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Revista Brasileira de Psicodrama

versão On-line ISSN 2318-0498

Rev. bras. psicodrama vol.21 no.2 São Paulo  2013

 

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Original Articles

 

 

Teatro-debate em la reina

 

Debate-theatre in la reina

 

 

Moysés Aguiar

Psicólogo, psicoterapeuta, professor-supervisor pela Federação Brasileira de Psicodrama (Febrap), especialista em Psicologia da Arte pela Universidade Estadual Paulista (Unesp).

Endereço para Correspondência

 

 


RESUMO

Neste artigo, o autor apresenta as características do teatro-debate, um formato de teatro espontâneo, ilustrando-as com o relato de uma sessão em que se evidenciam alguns questionamentos. São apresentadas informações históricas, o contexto da proposta e a correlação com outras formas de trabalho na área.

O formato em questão consiste em propor ao público o debate de um tema, anunciado previamente ou decidido no momento. Os procedimentos buscam fazer a passagem gradativa de uma abordagem verbal tradicional para uma abordagem cênica, na qual o público improvisa, atuando ele próprio no palco, uma história que apresenta analogicamente seus questionamentos e sentimentos.

O evento tem como facilitadores um diretor e uma trupe de atores treinados, cujo objetivo é estimular a participação do público.

Palavras-chave: Teatro espontâneo. Teatro-debate. Sociodrama. Axiodrama.


ABSTRACT

The author of this article introduces the characteristics of debatetheatre, a variation the spontaneous theatre, illustrating these through the account of a session in which certain issues were raised. The historical background and context of this approach as well as its correlation with other working modalities within the area are presented.

In this working modality the audience is invited to debate a certain topic that has been announced before the session or decided on there and then. The aim of the process is to then gradually move from the more traditional verbal debate onto a scenic exploration, during which the audience will improvise a story that simultaneously expresses their feelings and thoguths around the chosen topic.

The event is led by a director in conjunction with a team of trained actors whose objective is to stimulate the participation of the audience.

Keywords: Spontaneous theatre. Debate theatre. Sociodrama. Axiodrama.


 

 

INTRODUÇÃO

O teatro-debate é uma modalidade de arte cênica, derivada do "teatro espontâneo", proposto originalmente por Jacob Levy Moreno (MORENO, 1923). Esse autor é mais conhecido como o criador do Psicodrama – um desdobramento da mesma experiência teatral, em que se constatou o efeito terapêutico da encenação improvisada de conflitos existenciais, quando os sujeitos atuam no palco, criando e desempenhando personagens clonados de sua experiência pessoal (MARINEAU, 1989).

O "teatro espontâneo" é basicamente um teatro de improviso (JOHNSTONE,1990; CHACRA, 1983), no qual a improvisação deixa de ser utilizada como estratégia de treinamento de atores para constituirse no espetáculo em si. A ausência de ensaios e de uma produção com soluções mais elaboradas muda o foco estético tradicional, passando a tomar como valores prioritários o que acontece no "aqui e agora": a espontaneidade, o envolvimento emocional dos participantes e a construção coletiva.

A prática do teatro espontâneo permite identificar duas orientações básicas. Uma delas é a que centraliza a produção dramática no desempenho de uma equipe de atores, preferentemente com treinamento específico, que captura a contribuição do público e a toma como matéria-prima para criar tanto o texto quanto sua representação simultânea, em tempo real. A outra corrente instrumentaliza a transformação do público em atores/ autores, com os próprios "espectadores" ocupando o palco e traduzindo nele a criatividade coletiva. Nesse caso, os atores da trupe desempenham o papel de facilitadores "profissionais" da atuação cênica de "leigos".

Entre esses dois extremos, encontram-se várias combinações intermediárias, que dispõem de maneiras distintas a ocupação do palco por atores adrede preparados e por atores supostamente não preparados para a atuação. A relação entre os dois polos do acontecimento teatral – palco e plateia – configura um caleidoscópio de alternativas, que encontra expressão na história do teatro, desde a Antiguidade até os nossos dias. O mesmo se pode dizer da correlação entre o espetáculo que se apresenta pronto e aquele que se constrói no momento.

Nessa perspectiva, os formatos de teatro espontâneo são tão variados quanto os teatrólogos que o praticam. No entanto, podemos citar alguns modelos de trabalho que se vêm firmando como matrizes, a partir das quais se desenvolvem os diferentes estilos e as diferentes propostas. Para estas nossas considerações, julgamos relevantes a dramaterapia (JENNINGS, 2006), o playback theatre (SALAS, 1993), a multiplicação dramática (KESSELMAN; PAVLOVSKY, 2000) e o teatro da plateia (AGUIAR, 1998).

Na dramaterapia trabalha-se, em um primeiro momento, com um texto que serve de estímulo para as improvisações que se seguem. Há várias maneiras de operar isso. Uma delas é examinar detalhadamente, em conjunto, o script proposto e aprofundar-se na compreensão dos personagens, dos conflitos e da trama. Ao tentar, estrategicamente, sucessivas representações provisórias, identificam-se aspectos relevantes do texto, com a possibilidade de, inclusive, criar modificações alternativas. Esse trabalho criativo permite defrontar-se com os conflitos que caracterizam a problemática do coletivo envolvido e tem, como consequência, um efeito transformador.

. Outra possibilidade é a representação ensaiada de uma peça, que funciona como disparadora do processo criativo grupal: os membros do grupo são convidados a recriar a trama, no todo ou em partes; a contracenar com os personagens originais, mantendo seu papel como pessoas; a criar novos personagens, finalizações diferentes para a trama, representando-as ou meramente verbalizando-as, e assim por diante.

Já o playback theatre, modalidade hegemônica no momento, chega a ser confundido com o próprio "teatro espontâneo" (GARAVELLI, 2003), quando o particular é designado pelo geral, que acaba sendo tomado pelo particular.1 Em seu modelo mais clássico e original, uma trupe de atores se propõe a encenar improvisadamente, em tempo real, histórias relatadas por membros da plateia, ou mesmo meras emoções por eles explicitadas. O narrador vê, então, sua vida transformada em arte. Daí o nome playback.

Uma das versões brasileiras dessa proposta introduziu algumas modificações significativas no modelo original e foi batizada como "teatro de reprise" (RODRIGUES, 2013). Outra, o "teatro de criação" propõe não exatamente encenar o que foi contado pelo público, mas criar uma nova história a partir da ressonância desencadeada na equipe de atores pela contribuição de um membro da plateia (REÑONES, 2000).

A linha de trabalho do "teatro de criação" tem um ponto de contato importante com a proposta de Kesselman e Pavlovsky, denominada "multiplicação dramática". Ambientada originalmente no Psicodrama, a partir de uma visão crítica e de uma compreensão alternativa dos fenômenos psíquicos, a ideia é que qualquer situação relatada repercute de alguma maneira nas pessoas que a "escutam", mobilizando fragmentos de memória de cenas vividas pelos "ouvintes" – ressonâncias – , cenas essas que podem ser levadas ao palco. Um de seus desdobramentos é o "teatro de multiplicação" e, mais recentemente, o "teatro molecular", ambas as propostas da lavra de Sintes (SINTES, 2002; SINTES e DOTTA, 2008).

O teatro-debate é uma inovação proposta por uma trupe brasileira, a Companhia do Teatro Espontâneo. Fundada na cidade de São Paulo, na década de 1980, ela se desfez mais ou menos dez anos depois e foi posteriormente refundada em Campinas, onde sobreviveu até a primeira década deste século. Esse grupo se caracterizou pela diversidade de formatos com que trabalhou (inclusive os já mencionados) ao longo de sua história e pela disposição de experimentar novas alternativas e disponibilizar suas invenções. Uma de suas experiências mais significativas foi a chamada "Escola de Tietê", um projeto pedagógico que visava inicialmente a formação de psicodramistas e se transformou, paulatinamente, em um experimento importante de desenvolvimento de operadores de teatro espontâneo. O termo "escola" tem, no caso, duplo sentido: designa a instituição formadora e também o teor de suas propostas.

O eixo de seu trabalho sempre foi o teatro da plateia, ou seja, transformar espectadores em atores, levando o público para o palco. Esse dispositivo propõe a todos os participantes alguns exercícios iniciais de aquecimento e, em seguida, busca uma história a ser encenada. Em um primeiro momento, tem-se apenas o embrião do enredo, muitas vezes somente o personagem central – o protagonista – representado por um dos membros da plateia. A história vai sendo construída e encenada ao mesmo tempo, com a participação principalmente dos espectadores. Aos atores da trupe cumpre a tarefa de alavancar a encenação, contracenando com os atores "leigos", facilitando-lhes a criação e estimulando-os a desempenhar seus respectivos papéis.

Esse modelo costuma apresentar dois grandes desafios. Um deles é o despreparo, em tese, dos atores oriundos da plateia. Algumas de suas dificuldades: o fazer a passagem do relato verbal para a incorporação de personagens; o assumir papéis no plano da ficção, despregando-se da "realidade" na qual vivem; a ausência de familiaridade com recursos estéticos, e assim por diante.

Outro desafio é a titularidade do papel de ator "profissional" 2, membro da equipe que coordena as atividades. Como a prioridade de atuação é das pessoas oriundas do público, é muito frequente que os atores da trupe não sejam muito exigidos, o que tende a gerar neles a frustração de ficar muito tempo no "banco de reservas", depois de terem se dedicado bastante à preparação para atuar. Equilibrar as participações, de tal forma que se obtenha um resultado estético satisfatório, aproveitando ao máximo a contribuição de operadores treinados, e permitindo ao mesmo tempo a expressão cênica dos sentimentos, conflitos, desejos, visões de mundo, das pessoas que acorreram ao evento – essa é a utopia.

Por outro lado, a clientela do teatro espontâneo é composta, no mais das vezes, de pessoas com reduzida experiência teatral, seja no palco, seja no auditório. A abordagem de temas de seu interesse costuma ser feita através de palestras e conferências, constituindo inovação a exposição de painéis, a exibição de filmes cinematográficos ou a apresentação de pequenas peças teatrais. O caráter "moralista" dessas modalidades parte do pressuposto de que o público-alvo é passivo, quando muito ávido de ideias esclarecedoras.

Para superar essa passividade, tem-se buscado algumas formas mais participativas. O "grupo focal", por exemplo, abre a possibilidade de exposição de ideias e sentimentos, utilizando basicamente a comunicação verbal. Outro exemplo: as chamadas "dinâmicas" (corruptela de "dinâmica de grupo"), jogos interativos com estrutura previamente planejada, que procuram ir além das palavras, incluindo tarefas corporais e utilização de objetos e ferramentas. A tendência moralista ainda pode prevalecer, nesses casos, na medida em que a coordenação se reserve uma palavra final, à guisa de interpretação, conclusão ou aconselhamento, resgatando em parte o sentido das palestras tradicionais.

A utilização de recursos teatrais como forma de expressão do públicoalvo tem dois ícones históricos importantes: Bertold Brecht e Augusto Boal, ambos com uma trajetória artística marcada por um radical compromisso político.

O primeiro desenvolveu a técnica da "peça didática" (KOUDELA, 1991). O modelo se parece com o da dramaterapia, que mencionamos acima, porém sem finalidades terapêuticas. Oferece-se ao grupo um pequeno esquete, induzindo-o a experimentar suas mais diferentes formas de representação, fazendo sucessivas críticas e autocríticas, estimulando a busca de alternativas cênicas que potencializem a expressão do sentido atribuído ao texto. Essa estratégia permite aos sujeitos envolver-se e aprofundar-se na compreensão do conflito em pauta. Aqui não se cria o texto verbal, que permanece sempre o mesmo, como estímulo básico, mas se cria um texto "atoral", volátil, de consumo instantâneo, imediatamente digerido e superado.

Boal (1996,1999) foi pródigo na formulação de jogos teatrais que permitissem à comunidade expressar-se e, no mesmo ato, ampliar sua consciência especialmente das relações opressor-oprimido, consciência que alimentaria a possibilidade de ações que visam sua eventual superação. Além de intervenções pontuais, efêmeras, nas quais a improvisação se dá dentro de uma estrutura previamente estabelecida, também propõe um tipo de intervenção com tempo mais prolongado, quando os participantes são estimulados a criar coletivamente um texto que os expresse, para ser posteriormente representado. Aqui, o autor se aproxima da famosa experiência do "Living Theatre".

Um questionamento importante que se faz em relação ao teatro espontâneo é: ele está a serviço de quem ? As apresentações abertas ao grande público nem sempre contam com uma força de atração suficiente, primeiro porque não existe uma cultura teatral que tenha condições de competir com os apelos televisivos ou mesmo com o lazer descontraído, dos quais se ocupa a grande maioria da população. Se o ir ao teatro é uma alternativa que praticamente não se coloca, muito menos ainda para ir a um "teatro espontâneo", que praticamente ninguém sabe bem o que é.

Diante disso, o mais viável é ter uma programação de sessões de teatro espontâneo sob encomenda, em geral de uma instituição, de entidades corporativas (empresas e correlatos) ou de organizadores de eventos (congressos, celebrações). Em geral, quem contrata tem objetivos previamente definidos, mormente na linha do convencer as pessoas para que adotem determinados padrões de conduta tidos como desejáveis, valores a ser construídos na mentalidade do público-alvo. Menos frequente, porém relevante, é a utilização do teatro espontâneo para investigar opiniões, preferências, clima relacional e outros fenômenos grupais. A arte seria, no caso, mera ferramenta para alcançar esses objetivos, o que, em tese, estaria contra seu caráter libertário.

Mesmo assim, é possível que exista interesse em propor às pessoas o debate de alguns temas que dizem respeito, direta ou indiretamente, imediata ou mediatamente, à sua vida, como uma forma de intervenção social, sem um viés moralista, tampouco de manipulação. A hipótese do teatro espontâneo é que essa abordagem pode ser potencializada quando se articula com o potencial transformador do fazer artístico – no caso, o teatro. Trata-se de uma arte não utilitária, que não se confunde com o consumo passivo ou massivo de produtos artísticos de terceiros (AGUIAR, 2010).

 

A PROPOSTA METODOLÓGICA

Todas essas questões constituíram-se em pano de fundo para o trabalho da Companhia do Teatro Espontâneo, que estava sempre se voltando para elas – e nisso, com certeza, não estava só, porque as mesmas aflições devem frequentar os encontros de outros grupos de artistas que perseguem objetivos semelhantes.

Tomando como pressuposto o fato de o público participante estar mais habituado ao diálogo verbal, no teatro-debate propõe-se a abordagem de um tema, num primeiro momento apenas de forma oral. Na medida em que a discussão vai se desenrolando, os atores da trupe a interrompem para apresentar pequenas cenas (um minuto, em média, de duração), totalmente improvisadas, através das quais se pretende incentivar o aprofundamento da reflexão e oferecer um exemplo/modelo de expressão cênica.

Quando se fala de cenas totalmente improvisadas, isso na prática significa que os atores sobem ao palco sem saber o que vão fazer. Uma vez no espaço cênico, atuam a partir da intuição momentânea, porém dentro de um modelo dialético (tese-antítese-síntese), em que o primeiro ator – tecnicamente o protagonista – traz uma situação qualquer, o segundo suscita um conflito e o terceiro, apontando para a relação entre os dois primeiros oferece um caminho para a solução cênica. Curiosamente, as cenas mais fortes e mais belas são aquelas em que essa instrução é seguida à risca: quando se entra no palco já com alguma ideia do que fazer, a tendência é que as cenas se empobreçam. Pelo menos, isso tem sido constatado nesse tipo de teatro.

A incorporação desse modelo exige trabalho intenso da equipe. As oficinas costumam ser semanais, quando são examinadas e criticadas as últimas atuações e se experimentam formas alternativas, estas sujeitas, por sua vez, a minuciosa análise. Nelas, procura-se explorar todo o leque de possibilidades de atuação, na linha do teatro grotowskiano, com ampla valorização do corpo e dos recursos pessoais do ator (GROTOWSKI, 1968), associada à proposta da "obra aberta", de Umberto Eco (ECO, 1991).

Durante o espetáculo, os atores não participam do debate verbal. Apenas acompanham o movimento do grupo, deixando-se invadir pelo clima emocional, captando de forma não racional a dinâmica das relações. Assim, as cenas brotam do mais profundo de suas sensações e cumprem duas finalidades principais: espelhar o grupo e fazer uma síntese provisória da reflexão. O espelhamento permite ao grupo reposicionar-se em seus movimentos em torno da tarefa. A síntese favorece a transposição do debate para um novo patamar.

Ao longo da sessão, o diretor vai sugerindo que membros da plateia subam ao palco para contracenar com os atores da trupe. Com isso, os próprios participantes vão incorporando a perspectiva especular e o distanciamento crítico.

O momento culminante é quando o debate se transforma de verbal em cênico: os atores agora são todos oriundos da plateia e constroem coletivamente uma história, que vai sendo encenada no momento mesmo de sua criação. Essa história costuma ser mais longa do que as pequenas cenas que se metem no meio das falas da audiência e se constitui em verdadeiro debate cênico, que incorpora as contribuições trazidas até então e expressa o ponto a que o grupo chegou na compreensão e na reflexão sobre o tema proposto.

 

A SESSÃO DE LA REINA

O caso aqui relatado ocorreu em novembro de 2003, no auditório do Centro Cultural de La Reina, em Santiago do Chile. A direção da sessão teatral coube a este autor. Os atores que integravam a trupe Impromptu, um grupo de teatro espontâneo então existente naquela cidade, foram convidados a constituir um elenco ad hoc.

Esses atores já tinham uma pequena experiência com teatro-debate. Seu diretor já havia participado de um seminário em Campinas. Duas das atrizes participaram de apresentações da Companhia do Teatro Espontâneo, em Buenos Aires. E praticamente todos eles vinham de uma oficina por mim conduzida, como parte do programa de pós-graduação da Universidade Mariano Egaña, de Santiago do Chile. No entanto, a equipe formada para essa apresentação não tinha um histórico de trabalho conjunto, tampouco no formato do teatro-debate. Isso se constituiu em importante desafio.

A exigência da improvisação radical, por parte dos atores, nas pequenas cenas, é relevante, porque o timing do teatro-debate é muito específico. Se as interrupções da discussão se tornam longas, com os atores se preparando para entrar em cena, seja utilizando elementos (figurino, objetos etc.), seja procurando um acordo mínimo quanto ao que vai ser representado, isso desaquece a plateia e trunca o debate. É importante salientar que a interação entre a trupe e os demais participantes precisa ter um equilíbrio tal que, mantendo a característica de uma experiência teatral, não se ofusque a participação da plateia .

O que fez da experiência da La Reina um desafio à compreensão da dinâmica do teatro-debate é que os atores de Santiago, ainda que sem o investimento dos companheiros de Campinas, conseguiram imprimir ao espetáculo a mesma dinâmica e demonstrar a mesma sensibilidade que se observa nas apresentações do grupo brasileiro. Um detalhe: as instruções a respeito da tarefa dos atores foram dadas rapidamente pelo diretor, de forma concisa, poucos minutos antes do espetáculo, em uma pequena sala ao lado do auditório. Não houve nenhum treino, nenhum aquecimento do grupo, a não ser esse breve encontro. A Companhia do Teatro Espontâneo tem como observação sua, ao longo dos anos, que a unidade do grupo é fundamental para o bom andamento do espetáculo e que é preciso ter um tempo suficiente de preparação, o grupo todo junto, para entrar em cena com as roupas molhadas de suor.

Outra peculiaridade dessa apresentação foi o tema. Normalmente, no teatro-debate, é feito um anúncio prévio, de tal forma que as pessoas, quando comparecem, já sabem o que vão discutir. A convocatória de La Reina não teve nenhuma explicitação, e assim o diretor teve de introduzir na sessão, improvisadamente, uma nova fase, ou seja, uma pesquisa, com os participantes, para definir o assunto que gostariam de tratar através do teatro-debate.

A inexistência de um tema prévio repercute no planejamento do aquecimento inicial. Quando as pessoas chegam, elas ainda não estão voltadas para a tarefa que as espera, nem para atuar em conjunto. O aquecimento constitui, por isso mesmo, um direcionamento das energias para determinado fim e a disponibilização para ações sinérgicas, o que vai configurar uma grupalidade do momento.

Em se tratando de um trabalho teatral, é indispensável que seja incentivada uma boa relação com o espaço, que os corpos sejam colocados em movimento, que as energias deixem de se concentrar no cérebro para encontrar novos canais de expressão, que se experimente o prazer e a importância da complementaridade, que haja uma abertura para a ficção e a fantasia, e assim por diante. No teatro-debate, os exercícios de aquecimento podem incluir uma focalização no tema proposto. Não havendo esse tema, como foi o caso, o aquecimento foi feito sem essa referência. No entanto, o fato de a escolha ser feita no momento favoreceu, por outro caminho, a necessária concentração.

Outro aspecto interessante foi o rumo da dramatização final. A história trazida por um dos participantes – devidamente estimulada pelo próprio ritual do teatro-debate – focalizava uma embrionária solidariedade entre pessoas de diversas nacionalidades e etnias, que estavam sendo circunstancialmente vítimas de constrangimento pontual, por razões políticas e jurídicas com as quais nada tinham a ver. Ao invés de o grupo construir um enredo que abordasse os conflitos embutidos nesse incidente, o diretor foi surpreendido por um dos membros da plateia que, interrompendo a dramatização que mal se iniciava, conclamou todos os participantes a uma expressão imediata do congraçamento coletivo e da união acima das diferenças porventura existentes entre eles. A proposta empolgou os participantes, que subiram todos ao palco, de mãos dadas em uma grande roda, que assim encerrou a sessão.

No momento em que a autora da proposta irrompeu da plateia, o diretor teve um momento de desconforto. Constatou ser uma pessoa que mostrava conhecer alguns recursos performáticos utilizados no Psicodrama, diferentes da orientação adotada pelo teatro-debate, que privilegia cenas com enredo – começo, meio e fim –, centralizadas em um protagonista. A proposta então trazida mudava tudo, como se a proponente lhe estivesse arrebatando o papel de diretor, oferecendo uma solução alternativa contestatória.

Os acontecimentos então se precipitaram vertiginosamente. Como a plateia aderiu à proposta e participou com muito entusiasmo, o diretor concluiu que esse caminho era o caminho desejado pelo grupo e que, portanto, deveria ser respeitado. Acima e a despeito da validade do modelo que pretendia colocar em prática.

Outra característica importante da experiência de La Reina: o diretor era o único que falava português, em um grupo de cerca de 80 pessoas, cuja língua nativa era o espanhol. Mesmo com o diretor arriscando expressar-se em um espanhol pobre e confuso, e entendendo apenas parte dos diálogos cruzados que ocorriam entre os chilenos, essa interação foi possível e o espetáculo aconteceu de maneira bastante satisfatória.

 

DISCUSSÃO

A experiência demonstra que é possível produzir uma obra teatral improvisada, mesmo quando as condições oferecidas não coincidem com aquelas consideradas como mais desejáveis.

No caso presente, havia um problema de comunicação idiomática, conforme descrito, que poderia ter sido um obstáculo à produção coletiva. Na experiência pessoal deste autor, fenômenos semelhantes foram constatados ao dirigir sessões de teatro espontâneo em países de língua diferente da sua, por ele não dominada.

Outra condição adversa foi a inexistência de uma equipe com treinamento prévio e com entrosamento desenvolvido através de extensivo trabalho em conjunto. A disponibilidade afetiva parece ter sido fundamental, nesse caso, além do fato de os atores já terem tido oportunidade anterior de conhecimento da técnica, mesmo sem a terem colocado em prática. A comunicação entre o diretor e os atores foi assim facilitada, de modo que estes puderam apreender o sentido de sua tarefa e colocar em ação sua criatividade artística.

Nas companhias teatrais estáveis, a missão extrapola o mero evento, como neste caso. A elas cabe não apenas atuar, mas construir experimentalmente a própria técnica, o que pode imprimir solidez e consistência ao trabalho. No caso presente, a solidez e consistência já vinham sendo construídas por outra equipe, havendo rápida transferência de conhecimentos, em um contexto de "aprendizagem significativa".

A irrupção de uma proposta que diverge do esquema planejado pelo diretor pode ser abordada de maneiras distintas. Uma delas é o desafio à sua sensibilidade e, principalmente, à sua espontaneidade, tendo em vista tratar-se de um fato novo, inesperado, que exige uma resposta imediata e criativa. Na perspectiva teórica do teatro espontâneo, o diretor faz parte do grupo, ainda que com papel diferenciado, o que significa que ele produz e é produzido ao mesmo tempo; ele é um cocriador da obra coletiva. Embora não tendo necessariamente de se subordinar a propostas alternativas oriundas do grupo, ele não pode deixar de considerá-las e avaliá-las em um nível de profundidade que vai pelo menos um passo além da superfície, do que é formalmente explicitado.

O mesmo ocorre com as manifestações emocionais, diretas ou indiretas, do grupo, que são informações importantes a respeito do trabalho e de seus rumos. No caso presente, o entusiasmo com que a proposta de congraçamento foi adotada foi um indicador não desprezível. Em outras situações, o público se manifesta das formas mais insólitas, como distração, sabotagem, dispersividade, sobreposição de necessidades (fome, micção, sono etc.). Todos esses fenômenos precisam ser levados em conta.

Outro aspecto importante diz respeito ao enfrentamento de conflitos. Nessa sessão relatada, a expectativa do diretor era poder aprofundar a exploração através da criação de novas cenas, de um enredo rizomático que favorecesse esse confronto. Não foi o caminho do grupo. Também nesse caso, o grande desafio que se coloca ao diretor é avaliar a resistência e decidir se é o caso de enfrentá-la e tentar superá-la ou se ela simplesmente estabelece o limite até onde o grupo pode ir na abordagem do tema. Não existe uma solução padronizada, cabendo, novamente, a busca de um caminho espontâneo e criativo.

 

CONCLUSÃO

Dez anos se passaram desde essa vivência em Santiago. De lá para cá, várias trupes vêm se dedicando ao teatro-debate. Aliás, temos notícia de que existem muitas pessoas, América Latina afora, que se dedicam profissionalmente ao teatro espontâneo e dele auferem sua sobrevivência. E o teatro-debate é uma de suas ferramentas.

Do ponto de vista técnico, muitas habilidades e muitos cuidados foram desenvolvidos ao longo dessa história. A preocupação estética predomina, partindo do pressuposto de que a qualidade estética se define como a contundência da mensagem artística: a força com que ela atinge não apenas os que fazem arte, mas também aqueles que a consomem. No caso do teatro-debate, maximizando seu potencial transformador, posto que sua mais destacada utilização tem sido como dispositivo de intervenção sociocomunitária, como um dispositivo tanto para o axiodrama como para o Sociodrama.3

 

REFERENCIAS

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Endereço para correspondência

Moysés Aguiar
Rua Vista Chinesa, 335
Campinas – SP
CEP 13104-188
Tel. (55) 19 9 9136-1710
E-mail: moysag@gmail.com

 

Recebido: 10/4/2013
Aceito: 2/9/2013

 

 

NOTAS

1. Esse mesmo fenômeno ocorre com o Psicodrama. A rigor, o Psicodrama é apenas uma das aplicações do teatro espontâneo, com objetivos psicoterápicos. No entanto, há toda uma área de conhecimentos e práticas, cuja designação mais correta seria "Socionomia", que é costumeiramente denominada "Psicodrama".
2. Rodrigues, R., em sua tese de doutorado, defendida em 2013 na Universidade de São Paulo (USP), chama esses atores de "ego-atores", em homenagem à terminologia psicodramática tradicional, que tem entre seus instrumentos o "ego-auxiliar", o terapeuta que, no palco, "empresta seu ego" para o protagonista.
3. Entendo o axiodrama como a utilização do teatro espontâneo como instrumento para abordagem de questões comunitárias, enquanto no Sociodrama o teatro espontâneo tem como objeto os fenômenos do grupo como tal.