SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.21 número2Psicoterapia psicodramática: una forma de diagnóstico y tratamiento para la depresiónA funcionalidade do conceito de papel índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Revista Brasileira de Psicodrama

versão On-line ISSN 2318-0498

Rev. bras. psicodrama vol.21 no.2 São Paulo  2013

 

ARTIGOS INÉDITOS
Original Articles

 

 

O conflito indivíduo versus sociedade nas perspectivas do psicodrama e da gestalt-terapia

 

The individual versus society conflict from the perspective fo psychodrama and gestalt therapy

 

 

Érico Douglas VieiraI; Jeane Franco de OliveiraII; Ludimila Gomes de Assis FerreiraIII

IPsicólogo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), especialista em Psicodrama pelo Instituto Mineiro de Psicodrama Jacob Levy Moreno (IMPSI-BH), doutorando em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO), professor do curso de Psicologia da Universidade Federal de Goiás - Campus Jataí (UFG).
II
Discente do curso de Psicologia da Universidade Federal de Goiás - Campus Jataí (UFG), membro da equipe de pesquisa do projeto "Investigando possibilidades de integração entre o Psicodrama e a Gestalt-terapia".
III
Discente do curso de Psicologia da Universidade Federal de Goiás - Campus Jataí (UFG), membro da equipe de pesquisa do projeto "Investigando possibilidades de integração entre o Psicodrama e a Gestalt-terapia".

Endereço para Correspondência

 

 


RESUMO

Com este artigo pretendemos estimular a reflexão sobre os diversos bloqueios que nossa cultura impõe ao desenvolvimento individual e à capacidade de autorregulação organísmica. Apresentamos aqui algumas ideias de Perls e Moreno sobre as dificuldades e os entraves vividos na fluidez existencial em contextos culturais desfavoráveis como a nossa sociedade. Perls aponta que a sociedade enfatiza o desenvolvimento intelectual e produz expectativas neuróticas de perfeição que levam o indivíduo a uma dissociação de sua natureza. Moreno relata que a espontaneidade é experimentada em graus maiores na infância. A sociedade inibe a espontaneidade do indivíduo ao valorizar as conservas culturais. O conflito entre sociedade e indivíduo é legítimo e merece ser trazido à luz, em um mundo cheio de verdades prontas e acabadas.

Palavras-chave: Psicodrama. Gestalt-terapia. Sociedade.


ABSTRACT

This paper aims to invite reflection on the various barriers that our culture imposes on individual development and the organism's ability to self-regulate. We present some of Perls' and Moreno's thoughts on the difficulties and obstacles experienced in the existential flow within an unfavorable cultural context such as our society. Perls points out that society emphasizes intellectual development and produces neurotic expectations of perfection that result in the individual dissociating from his nature. Moreno argues that spontaneity is experienced in greater degrees during childhood. Society inhibits the spontaneity of individuals and values cultural conserves. In a world full of ready-made truths the conflict between society and the individual is a legitimate issue and needs to be brought out into the light.

Keywords: Psychodrama. Gestalt-therapy. Society


 

 

INTRODUCCION

O presente trabalho tem como foco a investigação da relação existente entre indivíduo e sociedade de acordo com as formulações do Psicodrama e da Gestalt-terapia. Os criadores dessas abordagens, Frederick Salomon Perls e Jacob Levy Moreno, empreenderam esforços para a compreensão das influências que a sociedade e a cultura exercem sobre o indivíduo. Muitas vezes, a relação entre indivíduo e sociedade foi retratada como oposição e conflito, ou seja, a sociedade coloca sérios obstáculos ao desenvolvimento individual. Pretendemos discutir como essas abordagens retratam essa relação e quais os caminhos propostos para amenizar ou superar esse conflito. Talvez possamos afirmar que a Gestalt-terapia e o Psicodrama são constituídos na motivação de buscas de tentativas de superação dos bloqueios que a sociedade impõe. São abordagens que tecem críticas contundentes aos contextos sociais que inibem o crescimento pessoal, construindo propostas de novas formas de configurações sociais, tendo em vista uma compreensão do ser humano como um gênio em potencial.

Para tanto, foram pesquisadas as obras de Perls e Moreno e de outros autores significativos. Além disso, faremos uma análise da contemporaneidade, entendida como Pós-modernidade, a fim de contextualizar as possíveis contribuições das abordagens para o enfrentamento dos desafios atuais. Através deste estudo de natureza teórica, pretende-se estabelecer pontes entre o Psicodrama e a Gestaltterapia, pesquisando o que possuem de semelhante em relação a esse tema. As duas abordagens têm uma visão antropológica de base fenomenológico-existencial, o que facilita a construção de pontes teóricas entre elas.

 

PSICODRAMA E GESTALT-TERAPIA: PONTOS EM COMUM

Pode-se dizer que existem intercâmbios entre o Psicodrama e a Gestalt-terapia, embora não seja dada ênfase nessas trocas. Uma citação de Jonathan Moreno – filho de Jacob Levy Moreno – ilustra esse ponto: "Apesar de Moreno e Fritz Perls, que havia sido um devoto das sessões de Psicodrama em Nova York, terem discutido abertamente, Perls, sem se referir explicitamente a Moreno, reconheceu sua dívida para com o Psicodrama em suas memórias" (MORENO, 1997, p. 13). A Gestaltterapia absorveu influências do Psicodrama, principalmente no trabalho com grupos e na utilização de recursos de ação. A técnica da cadeira vazia, por exemplo, é fruto de clara influência do Psicodrama. É importante mencionar que, além das influências do Psicodrama, Perls tinha forte afinidade com o teatro; seu trabalho traz muitos elementos teatrais (PERLS, 1979). Psicodramatistas como Rosa Cukier e José Fonseca mencionam em seus trabalhos que utilizam ideias, recursos e técnicas da Gestalt-terapia (FONSECA, 2000; CUKIER, 1998). Percebe-se que esse intercâmbio acontece e que essas trocas podem ser mais bem exploradas, gerando, desse modo, enriquecimento para ambas as abordagens.

As possíveis trocas entre o Psicodrama e a Gestalt-terapia podem ser facilitadas por seus pressupostos filosóficos em comum. Existe uma corrente de pesquisadores que se interessa em sistematizar os fatores em comum existentes nos sistemas psicoterápicos, constituindo o movimento de integração presente, principalmente, nos Estados Unidos (HAWKINS; NESTOROS, 1997). A ideia de que a própria abordagem é insuficiente para lidar com todas as diferentes realidades clínicas é o que alimenta esse movimento. No caso brasileiro, o que se percebe é que muitos profissionais buscam recursos de outras abordagens permanecendo fiéis, ao mesmo tempo, à própria abordagem. No entanto, no Brasil, não há um movimento institucionalizado de integração entre psicoterapias.

O Psicodrama e a Gestalt-terapia possuem pontos de convergência nas suas concepções filosóficas e em muitos procedimentos metodológicos. O exame das suas interfaces pode contribuir para uma aproximação entre as abordagens, com a realização de trocas que podem ser benéficas para cada ambas. A construção de pontes entre o Psicodrama e a Gestaltterapia pode abrir possibilidades para um diálogo entre as abordagens, contribuindo para práticas mais ricas.

Segundo Almeida (2006) a Gestalt-terapia enriquece a compreensão do ocorrido nas sessões com propostas coirmãs do Psicodrama (p. 21). Para Almeida (2006), as psicoterapias de base fenomenológico-existenciais procuram descobrir qual o sentido da vida e da luta do ser humano e quais suas condições para essa compreensão. Para isso, é necessário ter uma dimensão maior para constituir as metas e as buscas de referências éticas, espirituais, filosóficas e axiológicas dos níveis psicológicos e psicopatológicos. A fenomenologia existencial surgiu como aversão ao determinismo das terapias. Entendemos que a Gestalt-terapia e o Psicodrama pertencem à família das psicoterapias fenomenológicoexistenciais. Essas abordagens pertenceriam a um conjunto de sistemas em psicoterapia, que veem o homem dotado de liberdade e enfatizam aspectos relativos ao crescimento humano.

O Psicodrama a e Gestalt-terapia valorizam a vivência e a experiência para além de relatos verbais como forma de melhorar o contato do indivíduo com seus sentimentos. Por isso, essas abordagens desenvolveram-se em oposição a uma tendência intelectualista em psicoterapia. O trabalho com grupos seria outro fator em comum. As duas abordagens se encontram ao valorizar a intersubjetividade, as relações interpessoais e enfatizar mais a experiência presente. É importante frisar que, apesar dos pontos em comum, o Psicodrama e a Gestalt-terapia são muito dessemelhantes em muitas construções teóricas e é interessante preservar a singularidade de cada abordagem, para que elas continuem contribuindo com suas riquezas particulares.

Um ponto em comum focalizado aqui é a relação existente entre indivíduo e sociedade. O Psicodrama e a Gestalt-terapia, como abordagens relacionais, descrevem os contextos sociais desfavoráveis que inibem a espontaneidade e o crescimento pessoal.

 

INDIVÍDUO VERSUS SOCIEDADE

A oposição indivíduo versus sociedade é um aspecto bastante discutido por Moreno e Perls. Podemos entender que eles buscaram, em suas obras, libertar os indivíduos dos códigos sociais cristalizados que causam sofrimento e impedem formas de expressão mais autênticas. Entende-se sociedade como as relações entre os indivíduos, os grupos e as instituições como escola, família, organizações de trabalho.

Apesar de falar em oposição, é importante ressaltar que a compreensão que a Gestalt-terapia e o Psicodrama possuem da relação do indivíduo com a sociedade é de íntima conexão e não de exterioridade. Na Gestalt-terapia, Perls (1997) elaborou o conceito de fronteira de contato – zona onde o organismo individual faz trocas incessantes com o meio –, demonstrando a vinculação indissociável entre o indivíduo e o ambiente que o circunda. Pelas veredas do Psicodrama, Nafah Neto (1997) discute o conceito de espontaneidade, definindo-a como uma relação de compromisso com a realidade. Além disso, muitos conceitos psicodramáticos – papel, tele, protagonista, átomo social –, sugerem o foco do Psicodrama nos fenômenos inter-relacionais.

Perls (1977) aponta que a sociedade enfatiza o desenvolvimento intelectual e produz expectativas neuróticas de perfeição que levam o indivíduo a uma dissociação de sua natureza. O indivíduo se vê diante de um problema: ser aceito pela sociedade e integrar-se internamente (PERLS, 1977). Tragicamente, o indivíduo aprende a ignorar seus sentimentos, seus desejos e suas necessidades para responder a um conjunto de respostas fixas a fim de ser aceito na sociedade. As reflexões de Ribeiro (1998) são oportunas: "como sermos diferentes em uma sociedade coercitiva, controladora, mesmificadora e massificante?" (p. 30). Para este autor, o conflito entre sociedade e indivíduo é legítimo e merece ser trazido à luz, em um mundo cheio de verdades prontas e acabadas.

A sociedade pode ser fonte de neurose, entendendo esta como uma interrupção do crescimento. A sociedade constrói ideais de perfeição, exigindo que todos os indivíduos sigam um modelo ideal. Com isso, o contato consigo mesmo fica comprometido e os indivíduos não conseguem realizar suas potencialidades. Paradoxalmente, quanto mais perfeição a sociedade exige, com menos eficácia o indivíduo funcionará (PERLS; HEFFERLINE; GOODMAN, 1997). Em vez de promover a autorealização, nossos contextos sociais desfavoráveis exigem que o indivíduo seja o que ele não é. As tentativas de adaptação do indivíduo à sociedade geram a neurose – como interrupção do crescimento – porque há uma interferência na autorregulação organísmica. Os conteúdos da sociedade são introjetados nos indivíduos, sem que haja oportunidades de assimilação saudável. O indivíduo passa a embotar suas emoções e perde sua vitalidade (PERLS; HEFFERLINE; GOODMAN, 1997). O mundo neurotizante não confia nessa capacidade de autorregulação. Esse conflito entre indivíduo e cultura é retratado por Perls como um conflito irreconciliável: "é provável que esses conflitos irreconciliáveis sempre tenham sido, não só na atualidade, a condição humana; e que o sofrimento concomitante e o movimento em direção a uma solução desconhecida sejam as bases do excitamento humano" (PERLS; HEFFERLINE; GOODMAN, 1997, p. 126). A busca de contextos sociais mais favoráveis ou de superação das barreiras impostas pela cultura é fonte de motivação para muitos preocupados com o ser humano.

As críticas à sociedade são contundentes nos precursores de ambas as abordagens. Enquanto Perls descreve a sociedade como neurotizante, Moreno (1975) denomina nossa sociedade como civilização da conserva. Assim descreve o processo de formação de nossa cultura:

O homem passou a ficar mais fascinado pelo "conteúdo" dos atos criadores pretéritos, sua cuidadosa conservação e avaliação do seu valor, do que pela manutenção e pela continuação dos processos da própria criação. Pareceu-lhe ser um estágio mais elevado de cultura desprezar o momento, sua incerteza e seu desamparo, e empenhar-se em obter conteúdos, proceder à sua seleção e idolatrá-los, lançando assim os alicerces de um novo tipo de civilização, a civilização da conserva (p. 83).

A civilização da conserva produz uma relação de pouco compromisso com o momento presente e com a capacidade criativa de cada um. A conserva cultural foi um conceito bastante trabalhado por Moreno em suas obras. Refere-se aos produtos acabados no âmbito da cultura. As conservas culturais seriam o resultado e o produto final de processos criativos. Como coloca Moreno, "é uma mistura bem-sucedida de material espontâneo e criador, moldado em uma forma permanente" (MORENO, 1975, p. 159). Contudo, com o desenvolvimento civilizatório, as conservas culturais foram sendo aperfeiçoadas e cada vez mais difundidas. Moreno faz uma crítica à nossa cultura, que passou a ficar satisfeita e acomodada com as conservas culturais. As pessoas passaram a utilizar menos suas capacidades criativas e a espontaneidade foi se atrofiando.

Moreno (1975) defende que a espontaneidade é experimentada em graus maiores na infância. A criança defronta-se com inúmeras situações novas, nas quais ela não dispõe de repertórios prontos de comportamentos, tendo, então, de recorrer à espontaneidade. Com o decorrer da socialização e a adoção de conservas culturais, o indivíduo vai perdendo sua capacidade de responder ao mundo de maneira inovadora (MORENO, 1975). Moreno (1975) aponta a educação elaborada pela cultura como um grande obstáculo:

Como a nossa educação está rigidamente delineada, ela tolheu o desenvolvimento de nossas personalidades, de modo a tornálas incompletas, as nossas existências cegas para a vida, os nossos momentos escassos de verdadeira espontaneidade, senão inteiramente vazios dela (p. 184).

Tanto Perls quanto Moreno elegem a infância como paradigma de saúde existencial. A educação, como influência do mundo adulto nas crianças é descrita como catastrófica. Gera indivíduos pouco criativos e com pouca autoconfiança. As crianças seriam seres espontâneos, enquanto os adultos são retratados como sem vitalidade e comportando-se de forma mecânica. Perls, Hefferline e Goodman (1997) assim retratam essa relação:

A deliberação costumeira, a factualidade, a falta de comprometimento e a responsabilidade excessiva, traços da maioria dos adultos, são neuróticos; enquanto a espontaneidade, a imaginação, a seriedade, a jovialidade e a expressão direta do sentimento, traços das crianças, são saudáveis (PERLS; HEFFERLINE; GOODMAN, 1997, p. 113).

A seriedade da criança significa o compromisso que ela tem com a realidade e com o que ela está vivendo no momento, seja nas brincadeiras seja nas fantasias. A deliberação do adulto seria a tentativa de controlar as situações, lidando com elas como se fossem repetições do passado, ignorando a novidade do momento presente.

Moreno (1975) retrata a influência negativa da educação:

Até certa idade, todos os conhecimentos da criança são espontaneamente adquiridos e aprendidos. Entretanto, o adulto não tarda em intrometer-se no mundo infantil com "conteúdos" que não estão relacionados com as necessidades da criança. Daí em diante, a pequena vítima é pressionada por muitas sofisticações adultas para aprender poemas, lições, fatos, canções etc., que se mantêm como substâncias estranhas em um organismo. Começa a diferenciar entre seu "eu imediato", vida, a multidão de atos e sonhos que promanam de suas necessidades biológicas, por uma parte, e a massa de conteúdos que a autoridade lhe impôs, por outra parte. Começa aceitando esses conteúdos como superiores e passa a desconfiar de sua vida criativa (p. 192).

As ideias de Moreno se assemelham às de Perls no que se refere às exigências impostas pela sociedade para que o indivíduo se distancie da própria experiência. Ao impor padrões alheios ao organismo, a autoconfiança e a capacidade criativa individuais tornam-se atrofiadas. Fica patente que o ser humano pode utilizar mais seu potencial, pode ser melhor do que é. Os desafios se revelam quando examinamos o mundo contemporâneo, tema a ser discutido no próximo tópico.

 

SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA: BUSCA PELA LIBERDADE, INDIVIDUALISMO E INCERTEZAS

Interessa-nos entender como ocorrem na contemporaneidade as relações sociais e a construção da identidade, como forma de contextualizar na atualidade as reflexões sobre a relação indivíduo e sociedade. Veremos quais os desafios sociais contemporâneos impostos para o desenvolvimento individual.

Partimos do pressuposto de que a contemporaneidade pode ser denominada de Pós-modernidade, acompanhados de Lypovetsky (1983) e Bauman (2004). Este último também designa a Pós-modernidade como Modernidade Líquida em contraponto à Modernidade Sólida. A passagem da Modernidade para a Pós-modernidade ocorreu aproximadamente na década de 1960, com alguns marcos, como o movimento feminista, as revoltas estudantis e os movimentos juvenis contraculturais, entre outros (HALL, 2003).

A passagem da Modernidade para a Pós-modernidade acontece com a constatação do fracasso do projeto moderno. Ou seja, a ideia de ordenar, controlar e modificar o mundo e o ser humano foi sendo abandonada diante da crescente constatação das ambiguidades e das incertezas presentes no corpo social (BAUMAN, 2006). Diante da crescente complexidade do mundo e da derrocada dos apoios coletivos modernos, os indivíduos voltaram-se cada vez mais para si mesmos. A liberdade individual tornase um valor central na Pós-modernidade. As pessoas querem ter várias opções, ser livres para escolher e adotar o estilo de vida que quiserem (CHAVES, 2004). Com o declínio da proteção do Estado e de outros apoios coletivos como as religiões, as ideologias revolucionárias e os grupos familiares, cada um está voltado para a obtenção de sensações prazerosas a despeito de questões coletivas. A busca de sensações prazerosas caminha ao lado da busca pelo bem-estar individual. Cada indivíduo é responsabilizado pela construção da sua identidade, bem como pela manutenção do seu bem-estar (CHAVES, 2004).

Há uma mudança no sentido do tempo histórico, o presente se torna preponderante em relação ao passado e ao futuro. O desejável é não ter memória, a interioridade e as reflexões estão em declínio no culto à imagem e ao momento presente. O futuro é incerto e de difícil determinação. Na cultura do narcisismo, descrita por Lasch (1983), os indivíduos estão extremamente preocupados consigo mesmos. Na cultura narcísica, há a constante estimulação de desejos através da publicidade e a racionalização da vida interior. A juventude é escolhida como marco referencial, é preciso estar sempre belo, superando com "leveza" todos os obstáculos que a existência impõe. Por trás da fachada da busca de bem-estar, está escondida uma angústia crescente com a velhice, as doenças e a morte (LASCH, 1983). Há constante monitoramento de sinais de debilidades físicas e psicológicas; tudo deve parecer bem à vista dos outros no culto à imagem. Com a importância da imagem, há a crescente sensação de vazio interior e o descompromisso emocional com os outros (LASCH, 1987). As relações intersubjetivas ficam comprometidas, na medida em que o outro serve apenas como plateia para o narcisista ou como objeto de consumo no pensar de Bauman (2004). As relações se tornam instrumentais, elas são constantemente monitoradas através dos critérios de satisfação e qualidade. Se os critérios não são satisfeitos, a relação pode ser descartada.

A liberdade individual, que é muito valorizada, é comparada com a capacidade de consumir. Como muitos estão excluídos da sociedade de consumo, a liberdade pós-moderna não é igualmente distribuída (BAUMAM, 2006). Os que estão excluídos do consumo ou dos ideais narcísicos de beleza, fama e riqueza não conseguem valorizar a vida que têm. O narcisismo, longe de fortalecer as individualidades, pode gerar autodesprezo e indivíduos profundamente insatisfeitos consigo mesmos (LASCH, 1983).

 

PROPOSTAS GESTÁLTICAS E PSICODRAMÁTICAS

As trocas entre o indivíduo e o meio são incessantes. Para a Gestaltterapia, o ser humano está indissociavelmente ligado ao seu meio circundante. Diante de contextos sociais desfavoráveis ao crescimento individual, pode-se inferir que a agressão desempenha papel importante. A agressão é responsável pela desestruturação do que vem do ambiente e posterior assimilação do que é nutritivo para o organismo, de modo semelhante ao que acontece no mecanismo de nutrição. Se a agressão como função positiva não funciona bem, o material ambiental é apenas introjetado, engolimos coisas inteiras, adotando visões de realidade e modos de vida ditados por outros (PERLS; HEFFERLINE; GOODMAN, 1997). O mundo pós-moderno valoriza ideais narcísicos como imagem, beleza, juventude. Como a ênfase é na imagem, a capacidade de cada indivíduo de pensar, refletir e discriminar o que é nutritivo para si, fica muito comprometida. Introjetos inteiros são engolidos, sem que haja uma digestão psicológica para eliminar material dispensável ou que pode ser até mesmo tóxico para o indivíduo. A capacidade de pensar por si só e confiar na própria experiência, na autorregulação organísmica, é uma importante contribuição gestaltista. Para isso, o gestalt-terapeuta auxilia o cliente a aumentar seu autossuporte e aumentar sua capacidade de contato com a própria experiência. Processo desafiador porque a sociedade estimula mais a heterorregulação do que autorregulação organísmica. Com contextos sociais que estimulassem mais a autorregulação e confiassem mais na sabedoria do organismo, teríamos seres humanos mais confiantes e seguros. Talvez a descrença, a falta de fé em nós mesmos, possa, paradoxalmente, alimentar posturas narcísicas de grandiosidade que comprometem as relações.

A proposta psicodramática para lidar com os obstáculos sociais que emperram nosso crescimento seria o resgate da espontaneidade. O indivíduo espontâneo enfrenta novas situações, utilizando-se livremente dos seus recursos com um mínimo possível de entraves. Para isso, deve haver uma vinculação de compromisso entre sujeito e mundo, em uma relação de prontidão com uma presença atuante e integrante da situação (NAFFAH-NETO, 1997). Dessa forma, o indivíduo pode experimentar um estado de autonomia e liberdade, com um livre fluxo de sentimentos integrados aos pensamentos e com o meio circundante. Outra importante contribuição do Psicodrama seria a construção de projetos coletivos e grupais como forma de quebrar o narcisismo preponderante. Colocarse no lugar do outro, fortalecer os espaços relacionais para resgatar a comprometida intersubjetividade do mundo líquido, onde a alteridade não é reconhecida em sua singularidade.

A Gestalt-terapia também coloca a espontaneidade como meta desejável, embora o significado seja diferente. No Psicodrama, espontaneidade é a capacidade de enfrentar situações novas, ser criativo, em uma relação de compromisso com o mundo. Para Perls, Hefferline e Goodman (1997, p. 45), espontaneidade é "apoderar-se, crescer e incandescer com o que é interessante e nutritivo no ambiente". Para as duas abordagens, é necessário o cultivo de uma sensação de estar atuante no meio, crescendo dentro dele e formulando respostas novas.

Algumas práticas do Psicodrama e da Gestalt-terapia podem facilitar a emergência de modos de vida mais criativos. Os espaços grupais trabalhados pelas duas abordagens podem favorecer a construção do inusitado e o encontro de subjetividades, requisitos necessários para a ruptura com posturas narcísicas e a construção de novas formas de vida social. A própria história do Psicodrama demonstra o anseio de Moreno em facilitar a busca das tendências espontâneas de indivíduos e grupos. O Sociodrama representa importante método psicodramático no trabalho com grupos, visando à transformação social e à construção de novos papéis espontâneos (FLEURY; MARRA, 2010). É um método que "visa sempre diagnosticar e tratar tensões intragrupais ou intergrupais em um conflito qualquer, espelho micro e macrossocial" (PERAZZO, 2010). Através do compartilhamento de cenas no "aqui-e-agora" e da interação espontânea entre os membros do grupo, as subjetividades se ampliam no compartilhamento das histórias pessoais, das percepções e dos sentimentos (FLEURY; MARRA, 2010). As conservas culturais, que são os produtos acabados da cultura, podem ser modificadas. Os ideais pós-modernos da valorização excessiva da imagem e do individualismo exacerbado podem ser questionados pelo potente espaço intersubjetivo que uma prática sociodramática pode proporcionar, produzindo respostas criativas para lidar com as incertezas contemporâneas.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Assim como o Psicodrama, a Gestalt-terapia também enfatiza o grupo como instância mediadora entre o indivíduo e a sociedade, além de constituir um espaço para a cooperação (BORIS, 1993). As práticas grupais gestálticas auxiliam os indivíduos a ampliar o autoconhecimento, formando novas configurações e percepções, chegando a novas sínteses essencialmente pessoais. A construção da novidade sempre acontece conjuntamente – só pode haver crescimento na relação com o outro, na fronteira entre o "eu" e o ambiente (BUROW; SCHERPP, 1985). O grupo é o espaço no qual a pessoa experimenta a novidade e a diversidade, estabelece interações, podendo rever suas referências. É maior do que a simples soma das partes constituintes e forma uma totalidade dinâmica que contém várias possibilidades (LINS, 2009). O indivíduo não é refém do seu meio. A ênfase no momento presente facilita o repensar o que já está dado. Os grupos podem ser um espaço para a reinvenção dos ditames culturais, com a criação de novas formas de estar no mundo.

A Gestalt-terapia e o Psicodrama são abordagens que fazem críticas à forma como são estruturadas as relações sociais. Está impregnado em suas visões filosóficas o anseio pela mudança social, de forma que os indivíduos possam utilizar mais suas potencialidades. Pretendem proporcionar o crescimento humano e não somente a simples cura dos sintomas. Para isso, o Psicodrama pretende resgatar a espontaneidade, entendendo que todos somos gênios em potencial. A Gestalt-terapia, por sua vez, busca facilitar o maior contato do indivíduo com ele mesmo e com o ambiente, proporcionando a emergência de um ser humano mais inteiro e com mais vitalidade.

 

REFERENCIAS

ALMEIDA, W. C. Psicoterapia aberta: o método do psicodrama, a fenomenologia e a psicanálise. São Paulo: Ágora, 2006.         [ Links ]

BAUMAN, Z. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.         [ Links ]

__________. Vida líquida. 1. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006.         [ Links ]

BORIS, G. D. J. B. Crises e consequências das práticas grupais em Gestalt-terapia: a mediação indivíduo-sociedade nos grupos gestálticos como processo sociopedagógico de cooperação. Revista de Psicologia. Fortaleza, v. 12, n. 2, p. 47-63, 1993.         [ Links ]

BUROW, O. A.; SCHERPP, K. Gestaltpedagogia: um caminho para a escola e a educação. São Paulo: Summus, 1985.         [ Links ]

CARDOSO, C. L. Grupos terapêuticos na abordagem gestáltica: uma proposta de atuação clínica nas comunidades. Revista Estudos e Pesquisas em Psicologia. Rio de Janeiro, v. 9, n. 1, p. 122-136, 2009.         [ Links ]

CHAVES, C. J. Contextuais e pragmáticos: os relacionamentos amorosos na pósmodernidade. 2003. 223 f. Tese (Doutorado) Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e da Personalidade. Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Rio de Janeiro. 2003.         [ Links ]

CUKIER, R. Sobrevivência Emocional: as dores da infância revividas no drama adulto. São Paulo: Ágora, 1998.         [ Links ]

FLEURY, H. J.; MARRA, M. M. Tendências atuais no campo das intervenções e da aplicação do sociodrama como método. In: __________. Sociodrama: um método, diferentes procedimentos. São Paulo: Ágora, p. 13-18, 2010.         [ Links ]

FONSECA, J. Psicoterapia da relação: elementos de psicodrama contemporâneo. São Paulo: Ágora, 2000.         [ Links ]

GUIMARÃES, L. Aspectos teóricos e filosóficos do psicodrama. Febrap, 2000. Recuperado em 17 de março de 2011. Obtido em <http://www.febrap.org.br/pdf/Aspectos_Teoricos_Filosoficos_psicodrama.pdf>         [ Links ].

HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução Tomaz Tadeu da Silva e Guaracira Lopes Louro. 10. ed. Rio de Janeiro: DP& A Editora, 2005.         [ Links ]

HAWKINS, P. J.; NESTOROS, J. N. Beyond the dogmas of conventional psychotherapy: the integration movement psychotherapy. In: __________. Psychotherapy: New Perspectives on Theory, Practice, and Research. Athens: Ellinika Grammata, 1997, p. 1-68.         [ Links ]

LASCH, C. A cultura do narcisismo: a vida americana numa era de esperanças em declínio. Rio de Janeiro: Imago, 1983.         [ Links ]

__________. O mínimo eu: sobrevivência psíquica em tempos difíceis. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987.         [ Links ]

LIPOVETSKY, G. A era do vazio: Ensaio sobre o individualismo contemporâneo. Lisboa: Relógio D'água, 1983.         [ Links ]

MORENO, J. L. Psicodrama. São Paulo: Cultrix, 1975.         [ Links ]

__________. Autobiografia. São Paulo: Saraiva, 1997.         [ Links ]

NAFFAH-NETO, A. Psicodrama: descolonizando o imaginário. São Paulo: Plexus Editora, 1997.         [ Links ]

PERAZZO, S. Dois momentos sociodramáticos. In: Fleury H. J.; Marra M. M. Sociodrama: um método, diferentes procedimentos. São Paulo: Ágora, 2010, p. 123-136.         [ Links ]

PERLS, F. S. Isto é Gestalt. São Paulo: Summus, 1977.         [ Links ]

__________. Escarafunchando Fritz: dentro e fora da lata de lixo. São Paulo: Summus, 1979.         [ Links ]

PERLS, F. S.; HEFFERLINE, R.; GOODMAN, P. Gestalt-Terapia. São Paulo: Summus, 1997.         [ Links ]

RIBEIRO, W. Existência – Essência. São Paulo: Summus, 1998.

 

 

Endereço para correspondência
Érico Douglas Vieira

E-mail: ericopsi@yahoo.com.br

Jeane Franco de Oliveira
E-mail: jeane_franco17@hotmail.com

Ludimila Gomes de Assis Ferreira
Rua Riachuelo, 1530, setor Samuel Graham
CEP 75804-020. Jataí, GO
Tel. (64) 3606-8127 Fax (64) 3632-8202
E-mail: ludimilaferreira_89@hotmail.com

Recebido: 23/1/2013
Aceito: 2/4/2013