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Revista Brasileira de Psicodrama

versão On-line ISSN 2318-0498

Rev. bras. psicodrama vol.21 no.2 São Paulo  2013

 

ARTIGOS DE REFLEXÃO
Reflective Articles

 

 

Jogos eletrônicos, psicodrama e imaginação

 

Video-games, psychodrama and imagination

 

 

Andrea Raquel Martins Corrêa

Psicóloga pela Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep), psicoterapeuta e psicodramatista didata pelo Instituto de Psicodrama e Psicoterapia de Grupo de Campinas (IPPGC).

Endereço para Correspondência

 

 


RESUMO

Crianças e adolescentes, assim como muitos adultos, tornaram-se usuários de uma forma de entretenimento polêmica, embora atualmente banalizada: os jogos eletrônicos. Este artigo propõe uma reflexão que articula conceitos do Psicodrama ao universo da imaginação nos jogos eletrônicos. Será que os jogos podem propiciar exercícios de criação ou são apenas mecânicos e estimulam a rigidez no desempenho de papéis sociais e imaginários? Como podemos conceber a experiência das crianças que, fascinadas pelo prazer de simular outra realidade, a virtual, criam personagens e histórias todos os dias nas telas do computador? Seria possível nos aproximar dessa linguagem de comunicação, de forma que compreendêssemos qual o seu sentido para os jogadores?

Palavras-chave: Psicodrama. Jogos eletrônicos. Imaginação. Papel social. Papel virtual.


ABSTRACT

Children and adolescents, as well as many adults have become users of a controversial, yet still banalized form of entertainment: video-games. This article offers a reflection connecting psychodramatic concepts with the universe of imagination of video-games. Is it possible that these games can propitiate creativity, or are they simply mechanical and stimulate rigidity in the performance of social and imaginary roles? How can we understand the experience of children who, fascinated by the pleasure of simulating another virtual reality, end up every day creating characters and stories on their computer screens? Can we approach this language of communication in order to better understand its meaning for the players?

Keywords: Psychodrama. Video-games. Imagination. Social role. Virtual role.


 

 

BREVE APRESENTAÇÃO DOS JOGOS ELETRÔNICOS

A tecnologia e a indústria dos jogos eletrônicos data da década de 1970, quando surgiram os primeiros videogames na área do entretenimento. Diversos tipos de aparelhos vêm sendo criados a cada minuto, funcionando como suporte tecnológico de infindáveis jogos. Assim como os telefones, também os videogames tornaram-se pequenos e portáteis, libertando-se da televisão. Em nossos dias, qualquer computador ou celular, pode acessar um jogo.

Constatamos, através de rápida pesquisa pela Internet, que a variedade de jogos à disposição nos computadores é muito grande, dividida nos gêneros: ação, aventura, combate, estratégia e muitos outros. Para Krüger e Cruz (2002), a categoria de jogos de estratégia inclui os games de simulação, como o famoso The Sims (integrante da série SimCity, SimLife, SimAnt, SimHealth), cuja característica principal é proporcionar ao jogador maior liberdade de criar histórias, em um ambiente virtual próximo da realidade. Outros jogos de simulação conhecidos são o City Ville e o Empire.

Jogos classificados como Massive Multiplayer Online Role Playing Game (MMORPG)1 são considerados criativos por alguns pesquisadores, pois permitem a manipulação de personagens, com bastante autonomia, em universos encantados. Exemplos dessa modalidade são os World of Warcraft, Tíbia e, especialmente, os Multi-User Dungeon (MUDs), o mais antigo jogo eletrônico de Role Playing Game (RPG).

A grande diferença dos MUDs em relação aos outros jogos é que eles se caracterizam pelo ambiente virtual textual. Como esclarece Ivelise Fortim (2006), os MUDs são mundos virtuais baseados em texto, ou seja, não há gráficos nem imagens colorindo a tela. Por isso, a imaginação é de fundamental importância, uma vez que a realidade virtual, configurada apenas por descrições textuais, exige um grau notável de criatividade e interação social entre os jogadores, pelo menos no que diz respeito ao universo dos jogos eletrônicos.

Não poderíamos deixar de mencionar, nesta breve apresentação, os jogos que envolvem conteúdos de violência e agressividade, objeto de muitos estudos e teses controvertidas. Mortal Kombat, Pit Fighter, Counter Strike são exemplos dessa categoria que divide especialistas, que entendem de maneira diferente a influência dos games no desenvolvimento de condutas agressivas.

Lynn Alves (2004) se destaca como uma autora pesquisadora que aponta, por meio de estudos acadêmicos, a inconsistência das teses que relacionam diretamente comportamentos violentos e jogos eletrônicos. Em sua visão, ao contrário do que parece, os jovens têm a possibilidade de expressar sentimentos hostis através deles, liberando a agressividade de maneira positiva. Ademais, há um grande potencial de aprendizagem a ser explorado em todos os jogos, mesmo os da categoria combate, segundo Alves.

 

SIMULAÇÃO, JOGO E IMAGINAÇÃO

A partir dos relatos de crianças e adolescentes que acompanho, selecionei dois jogos de simulação e estratégia. Um deles, o The Sims, propõe ao jogador um personagem virtual que realiza atividades cotidianas, como passear, estudar, conversar ou namorar. Conforme anuncia o site do jogo – "Jogue com quem você é! Coloque cada detalhe de suas fantasias mais vivas!" –, o personagem Sim deve viver nossas fantasias e desejos na simulação da vida real que ocorre na tela, atuando de acordo com nossas vontades, mas dentro dos limites de um modelo oferecido pelo aplicativo. A liberdade de ação, portanto, é baseada nas estratégias que o aplicativo possibilita. Mesmo assim, temos absoluto controle sobre o Sim personalizado e sobre a maior parte das situações.

Algumas crianças afirmam sentir tédio com esse jogo, mas outras se apaixonam, relacionando diretamente os personagens virtuais a pessoas reais. Duas irmãs, por exemplo, brincam de mãe e filha na tela do The Sims, experimentando cotidianamente esses papéis virtuais. Há, portanto, uma interpenetração do universo virtual com a realidade, podendo-se inferir que, para essas crianças, o jogo é permeado pela imaginação. Então, elas estariam brincando, como se brinca em um jogo dramático? A resposta, automaticamente, é não.

Quando pensamos em jogo dramático, idealizamos crianças vestidas de bruxas e heróis, em uma atuação encarnada, corpo a corpo. Ou, então, imaginamos grupos de jovens participando de um Sociodrama, no qual o jogo se configura como uma proposta de criar ações inusitadas e liberdade para a imaginação. Conquanto sejam essas as imagens recorrentes no Psicodrama em relação ao jogo dramático, afirma Monteiro (1994):

O jogo se insere no Psicodrama como uma atividade que propicia ao indivíduo expressar livremente as criações do seu mundo interno, realizando-as na forma de representação de um papel, pela produção mental de uma fantasia ou por determinada atividade corporal (1994, p. 21).

A produção mental, compreende-se, também pode ser jogo, mesmo que não se transforme em ação concreta, interpretação de papéis ou dramatização. Importa, porém, se essa produção é livre ou até que ponto revela-se como expressão de espontaneidade criadora. O jogo eletrônico propicia uma forma de ação caracterizada justamente pelo aspecto mental, com relativo grau de liberdade, tendo em vista que as imagens e a narrativa são formatadas pelo aplicativo. O aplicativo determina a ação do jogador, ao mesmo tempo em que permite que se abram possibilidades. A ação pode ser mecânica, padronizada, mas nem por isso deixa de oferecer um repertório para a atuação da imaginação.

Em relação ao The Sims, de acordo com Krüger e Cruz (2002), as crianças brincam de fato quando simulam realidades virtuais, sem prejuízo em comparação às formas tradicionais de brincadeira. Os mesmos pesquisadores entendem, inclusive, que há oportunidade de criar narrativas singulares e criativas através dos recursos multimídia, que favoreçam aos jogadores se tornarem autores das próprias histórias.

Se perguntarmos às crianças o que pensam a respeito, a resposta, sem dúvida nenhuma, é que estão brincando, uma vez que nasceram inseridas na era digital, o que significa que possuem uma relação específica com o meio eletrônico virtual, diferentemente dos adultos. A nova geração ou geração net (TAPSCOTT, 1999), como tem sido denominada, desenvolveu outra percepção do mundo, das relações e das formas de conhecimento.

O segundo jogo a ser destacado nesta investigação é o Empire, que propõe ao jogador criar o próprio império ou civilização, inserido em um cenário medieval épico, habitado por personagens típicos: cavaleiros, dragões, deuses, aldeões e princesas. Através desses personagens constroem-se casas, fazendas, mercados e igrejas, em um contexto de aventuras e desafios, no qual são lançadas missões específicas, como libertar uma princesa ou partir a uma ilha desconhecida. Para cumprilas, é preciso participar de batalhas, equipar impérios cada vez mais poderosos e vencer – principal objetivo do jogo.

 

O PAPEL DE JOGADOR

M. me conta, sessão a sessão, como constrói seu império nos jogos de simulação, quais as estratégias que utiliza e de que maneira sempre ganha as batalhas dos colegas. Tento acompanhá-lo. Fico impressionada com sua inteligência, apesar de seu rendimento escolar não ser considerado bom. Garoto tímido, com problemas familiares sérios, ele fica muitas horas no computador, exageradamente, não desconectando do Empire.

Dramatizamos intensa e frequentemente as guerras entre os impérios, com personagens que se confrontam corpo a corpo no cenário psicodramático. Transformamos a vivência dos possíveis papéis virtuais (MERENGUÉ, 2004), experimentados no jogo eletrônico, em algo concreto, tangível, mais próximo do real, ainda que ficção. Papéis virtuais, consoante Merengué, "são aqueles desempenhados em situações entre o imaginário e o real, nas quais as pessoas envolvidas estão mais ou menos anônimas e intermediadas pela máquina eletrônica" (2004, p. 150). Na contemporaneidade, podemos afirmar que cada vez mais desempenhamos esses papéis, pois nos relacionamos uns com os outros através de redes sociais on-line, comunidades virtuais e mensagens eletrônicas. Definitivamente, a experiência da vida cotidiana está conectada e integrada ao universo da virtualidade, que inclui os jogos eletrônicos.

Imaginemos o garoto M. jogando diariamente pela internet, com várias pessoas diferentes, algumas que conhece pessoalmente e outras que são apenas amigos virtuais. Trata-se de uma interação configurada pelo papel de jogador, que é desempenhado durante a ação do jogo. Ainda que distantes fisicamente e inseridos na realidade virtual, os jogadores precisam executar ações em comum para garantir o sucesso nas manobras do jogo. Como compreender esse papel de jogador? Seria um papel virtual ou social?

Na maioria das vezes, os jogadores desempenham os dois papéis, pois são também amigos de escola ou de bairro, observando-se que alguns conquistam reconhecimento grupal como bons jogadores, ensinando as peripécias do game para outros colegas. Em geral todos trocam experiências, pessoal e virtualmente, fortalecendo e ampliando as possibilidades de desempenhar variados papéis sociais, como os de estudante, namorado e o próprio papel social de jogador, que se afirma nesses contextos.

Isso não significa que não ocorram situações em que o desempenho de papéis fique restrito ao mundo virtual, no qual os jogadores partilham jogos como se estivessem sozinhos, estabelecendo conexões nas quais o outro praticamente não existe como pessoa. Nesse caso, os jogadores nunca se comunicam e não sabem, nem se interessam em saber, quem são um para o outro, relacionando-se apenas no momento fugaz do jogo e desempenhando, assim, papéis virtuais. Esses papéis operam e se desenvolvem muito mais no âmbito da imaginação do que no da realidade, visto que não há uma aproximação real entre os jogadores. Porquanto se relacionem apenas no espaço virtual, atuam um em relação ao outro como se fossem personagens inseridos no game, seres fantásticos razoavelmente descarnados. Se são ou não pessoas ocultas pela tela do computador, movimentando-se, disputando e sentindo afetos, pouco importa.

Nessas circunstâncias, poderíamos de fato afirmar que não há um papel social de jogador sendo desempenhado, havendo somente o papel virtual? Quando um jogador joga com seus respectivos colegas virtuais, a complementação de seu papel virtual encontra-se também no plano virtual, não no social/real. Conforme Moreno, para que um papel seja considerado social, é necessária uma complementação de papéis no nível das relações sociais também, concretamente, como mãe-filho, professoraluno, namorados, irmãos. Dessa maneira, o papel de jogador (eletrônico) só poderia ser considerado um papel social se houvesse uma interação e uma complementação de papéis tanto no contexto virtual quanto no real, como ocorre, por exemplo, com amigos, irmãos, pais e filhos ou apenas colegas jogadores que, de algum modo, se relacionam também no plano da realidade.

Será realmente assim? Ou poderíamos pensar que o papel social de jogador se configura mesmo que os jogadores se restrinjam ao universo virtual, como já explicitado? O papel virtual prescinde ou não de um papel social? É possível estabelecer fronteiras precisas e seguras para conceituar os papéis, visto que eles se imbricam e se entrelaçam uns nos outros?

Compreendo que o papel de jogador funciona justamente na fronteira sutil entre os papéis social, virtual e também imaginário, configurando-se de modos distintos dependendo das relações que os jogadores estabelecem entre si e que têm com o jogo. Os jogadores aqui estudados partilham e desempenham efetivamente tanto papéis sociais quanto virtuais e imaginários. Como esses papéis se articulam uns com os outros durante o jogo, expressando valores, ideias, fantasias e desejos, é o que importa sobremaneira neste percurso reflexivo que estamos fazendo.

 

O DRAMA VIRTUAL: REALIDADE SUPLEMENTAR?

Na discussão sobre os jogos eletrônicos, um aspecto importante a ser ressaltado é a peculiaridade da plataforma do jogo, que funciona como mediadora de ações e sensações para os jogadores. Através das figuras e das narrativas apresentadas, os jogadores são estimulados a imaginar e reagir de determinadas formas, ao mesmo tempo em que também alimentam o jogo com um universo próprio de imagens, significados e desejos. Um papel imaginário que identificamos ser partilhado pelas crianças, muito incentivado pelos jogos, é o de vencedor: todos querem vencer, acumular pontos e ganhar. Provavelmente, imaginam-se vencedores em diversas situações da vida, inclusive no jogo.

Vencer, a princípio, configura-se como um atributo, uma qualidade e uma expectativa engendrada nos papéis. Contudo, dada a relevância dessa expectativa na sociedade, o investimento, o deslumbramento e o imperioso desejo de "vencer na vida", acertar e ter sucesso, sendo um "vencedor", poderíamos considerar esse atributo um papel, tendo em vista a dimensão e a corporeidade adquiridas. No plano imaginário, o papel de vencedor se caracterizaria, a meu ver, como um papel imaginário idealizado (MERENGUÉ, 2004), cuja personificação, no jogo, se dá através do guerreiro e do herói, os personagens mais importantes das sagas eletrônicas. Em contraposição a esse papel imaginário idealizado de vencedor, haveria também o papel imaginário temido de perdedor, ambos compartilhados pelos jogadores, virtualmente e muitas vezes socialmente. Essa dinâmica de disputa se refaz diariamente, invertendo posições entre ganhadores e perdedores, mesmo nos jogos em que essas disputas não são tão evidentes, como o The Sims.

No Empire, por exemplo, M. se esforçava para que seus guerreiros conquistassem bens e territórios, algo que exigia o conhecimento de estratégias cada vez mais apuradas. Essas estratégias, que resultam sucesso constante, garantiram que ele se transformasse em um dos melhores jogadores do grupo, um jogador vencedor, reconhecido em seu papel virtual e social. O papel imaginário de vencedor de M., portanto, pôde encarnar-se e desenvolver-se no papel virtual e social de jogador, assegurando-lhe um trânsito adequado entre fantasia e realidade, pelo menos em relação ao jogo. Todavia, o papel imaginário de vencedor também está vinculado a outros papéis e contextos da vida.

Vejamos: nos papéis sociais de filho e estudante, M. não poderia ser um vencedor, senão apenas em sua imaginação. Rotulado por quase todos os adultos à sua volta, ele encarnava, muito pelo contrário, o papel de perdedor. Era um aluno de notas baixas e um filho rebelde, considerado um fracasso pelos familiares, que o desvalorizavam e o julgavam inferior aos outros, que dele ganhavam em tudo. A não ser, claro, no jogo eletrônico!

O papel de jogador de M. era o único bem qualificado, segundo seus colegas também jogadores (para sua família, diferentemente, o jogo apontava para um novo fracasso, denominado "vício"). No jogo, ele era capaz de vencer e conquistar visibilidade social entre os amigos. Mesmo que em alguns momentos perdesse, recuperava-se e passava novamente a existir, pois era jogando, com certeza, que existia. Compreendo que o jogo significava, na experiência dele, a possibilidade de criação e participação em um mundo mais rico do que o mundo real, no qual era obrigado a viver. Se neste mundo M. era frágil, tímido e impotente, no virtual podia ser um líder forte, guerreando e vencendo seus oponentes.

Ao representar na tela personagens heroicos, lutadores e dragões gigantes, M. dramatizava a própria vida, desempenhando papéis imaginários que não podiam ser atuados em papéis sociais efetivos, conforme mencionado. Será que poderíamos pensar, nesse caso, em papéis dramáticos virtuais? Ou seja, será que na medida em que catalisa emoções e vivências de seus participantes, o espaço virtual potencializa a dramatização destas, os conflitos e as relações que delas fazem parte? Para algumas crianças, penso que sim, que o jogo proporciona a criação de narrativas plenas de sentido, nas quais se expressam conflitos, relacionamentos, desejos e valores.

Tomemos o The Sims, acompanhando as relações familiares de uma garotinha cujos pais se separaram de maneira muito dolorosa, e tanto ela quanto a irmã percebem-se desamparadas e órfãs. Com o personagem Sim, a garota inventou um "mundo bom", sem sofrimento, no qual ela mesma é a mãe e faz parte de uma família unida e harmoniosa. Sua filha, nesse mundo reparador e ideal, é a própria irmã real, com quem também joga The Sims. Ambas parecem se aliar no jogo, como mãe e filha, embora no dia a dia não sejam tão amigáveis uma com a outra.

É possível que a situação estressante de separação dos pais seja, no momento em questão, o elo em comum dessas irmãs, aquilo que as mantém unidas em uma relação de cuidado e amparo, visto que, indubitavelmente, os pais não estão sendo capazes de suprir as necessidades afetivas das filhas. Não seria incoerente afirmar, então, que o The Sims, para essas meninas, representa um palco no qual elas interpretam os papéis dramáticos virtuais que estão precisando, ampliando, dessa forma, a potência dramática do jogo e permitindo que ele seja experimentado, de certo modo, como uma realidade suplementar: um universo para além da realidade objetiva (MORENO, 2001), constituído pela subjetividade, pelos desejos e pelas fantasias que se articulam, obviamente, às propriedades virtuais do jogo.

Essa proposição é absurda? Se quando assistimos a um filme podemos nos modificar (ainda que provisoriamente) ou compreender algo que não compreendíamos, porque não haveria essa possibilidade com o jogo eletrônico? Diferentemente do palco psicodramático, com suas qualidades específicas que propiciam o desempenho de papéis psicodramáticos, o cenário virtual acena para uma perspectiva que pode ou não estimular certa intensidade dramática, aproximando-se do que denominamos realidade suplementar.

Tanto M., ao disputar impérios poderosos, quanto as irmãs, ao prover uma família funcional no universo virtual, atuam de acordo com as próprias necessidades, engendradas no espaço sutil e indeterminado do qual se compõe a imaginação e a realidade, em permanente tensão. Essa tensão, ao mesmo tempo em que se expressa no jogo, é também pelo jogo constituída, tendo em vista que a narrativa e os personagens nele dispostos funcionam como mediadores de diversas relações e experiências.

Não obstante toda a continência que o ambiente virtual pode acolher, é importante, por outro lado, explicitar seus efeitos de rigidez no desempenho de papéis e na dinâmica dos jogadores. Tornar-se prisioneiro de determinado jogo é fato corriqueiro, que aponta para o isolamento de muitos jovens no papel de jogador. A manutenção e a repetição exaustiva desse papel, em detrimento de outros, sinaliza, com frequência, problemas familiares, ausência de projetos educativos e culturais interessantes, falta de oportunidades para o desenvolvimento de papéis sociais relevantes. M. é um exemplo de adolescente que vive essa condição de jogador: seu protagonismo situa-se justamente entre aquilo que o jogo proporciona de existência e o que possibilita de não existência, ou melhor, de aprisionamento e sofrimento.

Ao mesmo tempo em que se liberta, M. torna-se cativo da cena virtual, experimentando a própria vida como um paradoxo, afinal, no jogo ele cria, mas também morre para outros papéis. No jogo ele compartilha e atua a imaginação junto com amigos, mas arrisca-se a perder certa dimensão do real, necessária para seu crescimento como pessoa. A realidade de M. é austera e cruel, não lhe garantindo condições para um desenvolvimento de papéis adequados e funcionais. Sendo assim, viver em um "mundo à parte", pela imaginação que o jogo possibilita, pode ser muito mais interessante, bem como acolhedor.

 

PARA FINALIZAR

O desenvolvimento da tecnologia vem nos propiciando a problematização de questões desafiadoras, impulsionando-nos a criar permanentemente novos conceitos, novas teorias e metodologias. Assim como outros produtos da modernidade, os jogos eletrônicos participam da indústria tecnológica de entretenimento e revelam a maneira de viver do homem contemporâneo, mediado pela máquina o tempo todo.

A proposta deste artigo foi dialogar com o tema, enfatizando a singularidade de cada criança/adolescente, no intuito de romper o maniqueísmo que muitas vezes caracteriza a discussão sobre o assunto. Trata-se de uma tentativa de contribuição ao Psicodrama, que enseja mais perguntas do que respostas, mas com o firme propósito de participar da construção de uma teoria em conexão com o mundo, que se transforma e se constitui como práxis.

 

REFERÊNCIAS

ALVES, L. Jogos eletrônicos e violência – Um caleidoscópio de imagens. Revista da FAEEBA - Educação e Contemporaneidade, v. 13, n. 22, p. 365-373. Salvador: UNEB, 2004.

FORTIM, I. Alice no país do espelho: o MUD – O jogo e a realidade virtual baseados em texto. Revista Imaginário, v. 12, n. 12, p. 171-194. São Paulo: Instituto de Psicologia USP, 2006.

KRÜGER, F. L.; CRUZ, D. M. Os jogos eletrônicos de simulação e a criança. Revista Fronteiras – Estudos Midiáticos, v. 4, n. 1, p. 65-80. São Leopoldo, RS: Unisinos, 2002.

MERENGUÉ, D. O Obsceno: a cena pornográfica na espreita psicodramática. Revista Brasileira de Psicodrama, v. 12, n. 2, p. 145-156, 2004.         [ Links ]

MONTEIRO, R. F. Jogos dramáticos. São Paulo: Ágora, 1994.         [ Links ]

MORENO, Z. T.; BLOMKVIST, L. D.; RÜTZEL, T. A Realidade Suplementar e a Arte de Curar. São Paulo: Ágora, 2001.         [ Links ]

TAPSCOTT, D. Geração Digital: A crescente e irreversível ascensão da geração Net. São Paulo: Makron Books, 1999.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Andrea Raquel Martins Corrêa
Rua Aquilino Pacheco, 1517
Bairro Alto - Piracicaba, SP
CEP 13419-150
E-mail: andrearaquelmartins@gmail.com
www.recriandovinculos.blogspot.com

Recebido: 4/4/2013
Aceito: 30/8/2013

 

 

NOTAS:

1. Jogos de interpretação de personagens on-line e em massa para múltiplos jogadores.