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Revista Brasileira de Psicodrama

versão On-line ISSN 2318-0498

Rev. bras. psicodrama vol.22 no.1 São Paulo  2014

 

ARTIGOS INÉDITOS
Original Articles

 

A experiencia da criança com diabetes: pesquisa qualitativa e interventiva em saúde por meio do sociodrama

 

The experience of children with diabetes: qualitative research and interventional health through sociodrama

 

 

Yadja Nascimento GonçalvesI; Susana Kramer Mesquita OliveiraII; Aline Rodrigues RibeiroIII; Ana Maria Vieira LageIV

I Psicóloga da Pediatria do Hospital Universitário Walter Cantídio (HUWC) da Universidade Federal do Ceará (UFC), docente do curso de Psicologia da FANOR/DeVry, mestre em Saúde da Criança e do Adolescente pela Universidade Estadual do Ceará (UECE), residência em Psicologia Hospitalar do HUWC da UFC.
II
Docente e pesquisadora (professora adjunto) do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC); coordenadora do LABRI (Laboratório de Relações Interpessoais); pósdoutora em Interações Familiares nos mundos Ocidental e Oriental – em parceria com SHIATS (Department of Home Sciences), Allahabad/Uttar Pradesh, India; UCSSH, MLSU (Department of Psychology), Udaipur/Rajasthan, India; Wheaton College (Psychology Faculty), Wheaton/Illinois, US; Malone University (Psychology Department), Canton/Ohio, US. Doutora em Psicologia Clínica e Cultura, pela UnB - DF; especialista em Psicodrama, pela ACEPFEBRAB – CE.
III
Psicóloga do Serviço de Psicologia do Hospital Universitário Walter Cantídio (HUWC) da Universidade Federal do Ceará (UFC).
IV
Professora titular do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC), doutora em Psicologia Clínica pela Université Paris Descartes, especialista em Psicodrama pelo Associação Cearense de Psicodrama, autora dos livros: Psicologia hospitalar: teoria e prática em hospital universitário; Autismo infantil.

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

As doenças crônicas – entre elas a diabetes mellitus – acometem uma parcela significativa da população brasileira, incluindo crianças e adolescentes. Essas doenças impõem inúmeras limitações, tanto comportamentais como físicas e/ou nutricionais aos seus portadores, desencadeando atitudes e sentimentos específicos, o que requer um trabalho especializado de desenvolvimento da capacidade adaptativa, tanto no enfrentamento da doença, como no que se refere ao processo de adesão ao tratamento. O presente artigo apresenta uma pesquisa qualitativa e interventiva em saúde, com foco na compreensão dos significados das crianças sobre a experiência de ser portador de uma doença crônica, especificamente o diabetes mellitus tipo 1, em um contexto eminentemente social e relacional, promovido pelo método sociodramático.

Palavras-chave: Crianças. Psicologia hospitalar. Sociodrama. Diabetes mellitus. Grupo.


ABSTRACT

Chronic diseases – among them diabetes mellitus – affect a significant portion of Brazilian population, including children and teenagers. These diseases impose numerous limitations, both behavioral and physical and/or nutrition for those who have it, triggering specific attitudes and feelings, which require a specialized work for the development of the adaptive capacity, in the fighting disease and in the accession process treatment. This article presents a qualitative and intervention research in health, focusing on understanding the meanings of children on the experience of being with a chronic illness, specifically diabetes mellitus type 1, in a environment eminently social and relational, sponsored by the sociodramatic method.

Keywords: Children. Health psychology. Sociodrama. Diabetes mellitus. Group.


 

 

INTRODUÇÃO

Uma parcela significativa da população brasileira é acometida por doenças crônicas. O levantamento suplementar de saúde da Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios – PNAD (IBGE, 2008) constatou que 31,3% da população brasileira é portadora de pelo menos um tipo de doença crônica, o que corresponde a cerca de um terço da população brasileira. Os percentuais encontrados são de 35,2% de mulheres e 27,2% de homens. Na população do Nordeste, o percentual é de 26,8% de pelo menos uma doença crônica, incluindo o diabetes. Além disso, os índices indicam que a proporção de doentes crônicos aumenta com a idade: de 9,1% na faixa etária compreendida entre 0 a 4 anos, de 9,7% entre 5 e 13 anos e até 79,1% depois dos 65 anos.

A sua condição evolutiva imprime uma natureza singular aos cuidados necessários nas doenças crônicas, o que se contextualiza nas constantes idas ao consultório médico, em um prolongado tratamento e na consciência da impossibilidade de cura, uma vez que esses eventos estressores são típicos na vida desses pacientes. Pouco se sabe da prevalência desses índices no público infantil, porém é inegável a necessidade de atenção à fase de desenvolvimento da criança quando diagnosticada, em razão de sua característica de longa evolução e do provável impacto na capacidade de funcionamento da criança (GRAÇA; BURD; MELLO, 2000; CASTRO; PICCININI, 2002; ANGERAMI-CAMON, 2004). Além disso, segundo Moreira e Dupas (2006, p. 26),

(...) as emoções geradas na criança diante do enfrentamento da doença crônica são semelhantes às emoções vivenciadas por qualquer faixa etária, dentre elas a negação, a minimização da doença, a raiva e a frustração pela limitação da patologia, os sintomas depressivos, a culpa, a procura de soluções impossíveis, entre outras.

Entre os vários tipos de doenças orgânicas crônicas, o diabetes mellitus (DM) destaca-se pela incidência em crianças e adolescentes, atingindo, no Brasil, cerca de 5 milhões de diabéticos, dos quais cerca de 300 mil são menores de 15 anos de idade (MOREIRA; DUPAS, 2006).

O diabetes mellitus tipo 1 (DM1) tem sido "(...) considerado o resultado de um processo autoimune específico contra as células-beta pancreáticas, mediado pelos linfócitos T(12)." (DIB; TSCHIEDEL; NERY; 2008, p. 143). Segundo Carvalho e Carvalho (2000), trata-se de uma doença crônica de etiologia autoimune, com fatores genéticos, associados aos fatores ambientais e aos imunológicos. O "tipo 1" (ou insulino-dependente) indica que há perda da capacidade do portador de produzir insulina, e é bem mais comum entre crianças e adolescentes. Mesmo com o aumento do diabetes mellitus tipo 2 (DM2) na infância e na adolescência, segundo a Atualização Brasileira sobre Diabetes/Sociedade Brasileira de Diabetes (2005), o tipo 1 (DM1) ainda é predominante nessa faixa etária, e o pico de incidência dá-se dos 10 aos 14 anos. Os dados no Brasil apontam para uma com prevalência estimada de 0,2%, com incidência variável.

Há poucas publicações que abordam as repercussões psicológicas nas crianças com diabetes (Atualização Brasileira sobre Diabetes/SBD, 2005). No entanto, a psicologia, em seus diferentes campos de atuação, pode contribuir em todos os níveis de atenção a esses pacientes. Especificamente, a atuação do psicólogo hospitalar por meio de trabalhos em grupos constitui uma excelente ferramenta para o alcance de uma maior parcela da população, propiciando um espaço de expressão, trocas e elaboração dos processos vivenciados em relação ao processo de adoecimento, com a possibilidade de ressignificação conjunta.

De acordo com Angerami-Camon (2004, p. 100), o trabalho com grupos infantis "mostra-se como um espaço vivencial, onde elas podem elaborar seus pensamentos e seus sentimentos relacionados à doença, por meio de atividades lúdicas, gráficas e verbais que podem facilitar sua expressão". A Teoria Psicodramática de Jacob Levy Moreno favorece com muita propriedade um trabalho consistente com grupos. O psicodrama é uma modalidade de psicoterapia que tem como foco as relações psicossociais do indivíduo, e o sociodrama é a modalidade em que o foco de atuação são as ideologias coletivas e as relações estabelecidas no grupo. Como também salientam Nery, Costa e Conceição (2006, p. 305) "o sociodrama é um método de pesquisa interventiva, que busca compreender os processos grupais e intervir em uma de suas situações-problema, por meio da ação/comunicação das pessoas". Na assistência terciária, Gonçalves e Gomes (2013) inferem ser uma importante metodologia na expressão espontânea e no protagonismo dos sujeitos, além de contribuir para o atendimento integral.

 

METODOLOGIA

O presente artigo foi elaborado a partir do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) do Programa de Residência em Psicologia Hospitalar do Hospital Universitário Walter Cantídio (HUWC) da Universidade Federal do Ceará (UFC). A pesquisa teve como objetivo identificar as experiências de crianças portadoras de DM tipo 1, compartilhadas em grupo, com base em uma perspectiva sociodramática, em que são identificadas as expressões individuais e as evocações coletivas na busca dos significados em jogo.

Trata-se, pois, de uma pesquisa qualitativa e interventiva em saúde com base no método sociodramático, em que "as pessoas são levadas a investigar e experienciar como se sentem ao receber uma nova informação e a avaliar as impressões subjetivas, os sentimentos que têm a esse respeito" (MARRA; COSTA, 2004, p. 107). As autoras referidas definem, ainda que o:

Sociodrama é um método psicopedagógico de trabalho com grupos que facilita a aprendizagem de conceitos e atitudes a partir da vivência pedagógica. Ele apoia-se na ação e no conceito de espontaneidade, que é concebida como resposta própria do indivíduo adequada às relações de seu contexto social. Tem uma proposta de transformação nos indivíduos e nos sistemas sociais (p. 106).

Em síntese, o método trata as relações intergrupais e as ideologias coletivas, revitalizando todo o grupo (considerado protagonista de sua história) por meio da construção conjunta de cenas de vida em um contexto específico, no presente caso: ser portador de uma doença crônica, o diabetes mellitus tipo 1. O sociodrama aplicado com crianças, tão escasso na literatura, foi escolhido pela percepção que trabalharíamos focando o grupo, "vale lembrar que essa é a diferenciação proposta pelo próprio Moreno, que para tanto utiliza como critério o 'quem é o sujeito' (cliente, em nosso linguajar profissional): no psicodrama, o sujeito é o indivíduo; no sociodrama, o grupo" (AGUIAR, 1998, p. 26). Desse modo, focalizar na atuação conjunta de crianças aquecidas para falarem de si e de como se relacionavam com o que tinham em comum: eram crianças e portadoras de diabetes mellitus.

A pesquisa foi realizada com seis crianças encaminhadas pelo serviço de Psicologia e da equipe médica do ambulatório de Pediatria para acompanhamento em grupo, nos meses de maio e junho de 2009. Além da psicóloga-pesquisadora, o grupo contou com a participação de uma ego-auxiliar, estudante de Psicologia, como cofacilitadora em todas as sessões. Os critérios para inclusão dos sujeitos na pesquisa foram: crianças, de ambos os sexos, na faixa etária compreendida entre 7 e 12 anos, com diagnóstico de diabetes mellitus tipo 1 há, no máximo, três anos, e que estivessem sendo acompanhadas pela equipe médica do Ambulatório de Endocrinologia da Pediatria do HUWC/UFC. O consentimento dos responsáveis também foi requerido, com a assinatura do Termo de Livre Consentimento Esclarecido.

As verbalizações expressas no grupo foram gravadas e transcritas para posterior análise e interpretação. Foram realizadas seis sessões, com duração de 1h30, baseadas no sociodrama. O ato sociodramático possui início, meio e fim definidos em três etapas: aquecimento, dramatização e compartilhamento. A primeira etapa prepara o grupo para a atividade em grupo, utilizando recursos (textos, falas, músicas etc.) relacionados à temática a ser abordada e que sensibilizem os participantes para a proposta. A etapa da dramatização é um meio de intervir no tema protagônico grupal, em que esse tema foi reconhecido pelo diretor na etapa anterior. A dramatização dá-se em consonância com a fala dos sujeitos, visando aprofundar a vivência específica do tema de aquecimento. Na última etapa, os participantes compartilham sentimentos e identificações, bem como analisam e refletem conteúdos emergidos nas vivências entre os integrantes do grupo.

 

ANÁLISE E DISCUSSÃO

Para Moreno (1978, 1993), a existência do indivíduo se dá em meio coletivo e é realizada pelo desempenho de papéis na sociedade, uma vez que o autor tem "papel" definido como a primeira unidade estruturante e tangível do eu, ou ainda: "como uma personagem ou função assumida na realidade social (...) as formas reais e tangíveis que o eu adota (...) uma cristalização final de todas as situações numa área especial de operações por que o indivíduo passou" (MORENO, 1993, p. 206).

Em todas essas concepções, conclui-se que o homem não pode viver sozinho e que, na convivência com outros, precisa de adaptação a certas normas sobre as quais Garrido Martín (1996, p. 212) explicita:

Estas normas impõem uma maneira de agir a que chamamos conduta e o modo concreto de aceitá-las é adotando um papel. Às vezes o indivíduo pode escolher o seu papel, outras vezes tem que aceitar o que lhe é imposto; num e noutro caso, porém, a sociedade lhe exige uma conduta de acordo com esses papéis. Daí, externamente, o indivíduo poder ser definido, como um intérprete de papéis.

Para Garrido Martín (1996, p. 213), é a partir do "eu" experimentado por meio do papel, que se tem consciência de si mesmo. Assim, somente se desenvolve essa consciência pelo desempenho de papéis, pois "o eu experimental é essencialmente um eu de papéis (...) uma criança nunca poderá ter consciência do seu eu, se não começar a desempenhar papéis".

No decorrer de sua teoria, Moreno elabora três categorias de papéis: psicossomáticos, sociais e psicodramáticos, considerando que os "papéis e suas relações entre si são os fenômenos mais importantes de uma determinada cultura" (MORENO, 1993, p. 51).

Os papéis psicossomáticos surgem primeiro, sendo caracterizado pelas primeiras experiências de dependência e necessidades fisiológicas. Os papéis sociais, segundo Bustos (1990, p. 100), são "os que respondem a generalizações convencionais de acordo com determinantes culturais". Os papéis psicodramáticos, por sua vez, seriam quando "os estereótipos sociais se unem ao desempenho espontâneo para produzir esta categoria de papéis" (BUSTOS, 1990, p. 101), sendo marcado pelas impressões individuais e vivências relacionais de cada indivíduo.

Na presente pesquisa, a experiência da condição de ter uma doença crônica (diabetes mellitus) foi observada e agrupada, enquanto significados ressoados nas falas das crianças e unificados no jogo de papéis desempenhados por elas em quatro grandes questões: 1) Sentirem-se diferentes, nível de aceitação da doença pelos outros; 2) Diagnóstico, tratamento e compreensão do DM; 3) Repercussões da condição de saúde e projeção de futuro; 4) Importância da vivência em grupo.

Seguem extratos das falas das crianças que apontam, nas histórias singulares, a condição diferenciada como portador de uma doença crônica, sentida com base no discurso de outras pessoas:

"eu já passei por uma situação lá no meu colégio, na minha sala antiga, eles me chamavam de diabético. Aí eu ficava constrangido, ficava bem cinco dias sem ir ao colégio" (Ja).

"é porque a pessoa quer sair, quer brincar com ele. Sabe que é doente, e as pessoas não gostam. Aí quando é normal, come o que quer e o que não quer (...)" (Le).

"De uma certa forma, nós somos diferentes e tomamos insulina, não podemos comer de tudo (...)" (La).

Refletindo-se a partir da abordagem sociodramática, sabe-se que, apesar de essas crianças com o diabetes mellitus sentirem-se diferentes e excluídas por outros, "o desempenho de um papel é a personificação de outras formas de existência através da representação" (MORENO, 1975, p. 60), o que confere a essas crianças certo manejo social dentro de seus recursos.

Seguem extratos das falas das crianças sobre o diagnóstico, o tratamento e a compreensão do diabetes mellitus:

"Um inútil. No primeiro dia, eu pensava que eu era um monstro na terra, vamos dizer assim... Eu (...) ficava pensando que essa doença era (...) contagiosa. Aí eu não chegava perto de ninguém, até a minha própria mãe, quando ela queria me abraçar, eu dizia: não, mãe, não me abrace, não! Aí eu passei até três dias sem comer por causa dessa doença" (Ja).

"eu fui para o hospital, e o médico disse que eu estava com diabetes, aí minha mãe começou a chorar, chorar, chorar. (...) eu perguntava o que foi? Nada não, meu filho. (...) Aí eu fiquei sabendo que eu tinha diabetes, aí eu comecei a chorar também" (Le).

"a pessoa, quando descobre a doença, pensa que é uma doença de outro mundo, vamos dizer de Marte, aí ela pensa que (...) em sentido figurado, é o fim do mundo, como ele diz. Aí ela começa a se desesperar" (Ja).

"foi ruim, porque quando ela foi medir a minha glicemia deu HI. Eu não sabia nem do que se tratava isso, não sabia que, entre aspas, que o diabetes existia. E quando ela mediu, eu só pensava ela podia fazer qualquer coisa comigo, contanto que eu vá embora desse hospital. Porque é horrível ficar no hospital, medindo glicemia, medindo soro, tomando insulina" (Gu).

As crianças referem-se ao diagnóstico do DM como algo doloroso, difícil de entender e de acreditar. No entanto, com a gradativa compreensão do DM, algumas chegam a elaborar de outra forma: saber controlar, não comer doces, precisar tomar insulina.

"Quando eu não tinha diabetes, o meu tio trabalhava numa fábrica, aí todo dia ele trazia pirulito, bombom, essas coisas. (...) Aí eu comecei a sentir os sintomas, aí eu fiquei com diabetes, né? Fiquei muito triste porque não podia mais comer doces, aí às vezes eu saia da rota comia açúcar, mas tem que viver a vida, nada de açúcar" (Ja).

"Eu acho que quando uma pessoa tem uma doença, ela não precisa se exaltar. Só basta ela saber controlar direito, que ela vai seguir como sempre" (Le).

"preciso (...) de insulina pra poder viver" (Ja).

Moreno (1975, p. 60) lembra que "o desempenho de papéis pode significar (...) uma repetição da vida, preparando-a para enfrentar qualquer situação futura, prevista ou imprevista". Assim, a atuação das crianças no desempenho de papel de portador de DM possibilita a preparação para o enfrentamento das possíveis dificuldades da doença. Desempenhar o cuidado de si mesmo, pelo aprendizado no manejo da condição, pode significar uma habilidade necessária no enfrentamento, como se observa no extrato abaixo:

"Primeiro, quando eu fui saber que tinha diabetes foi uma coisa horrível pra mim, mas ao passar do tempo não é uma grande coisa. É só você aprender a se cuidar. Quando você vai no hospital, você se cuida e fica bom. Mas você sempre tem que se cuidar bem. Você sempre tem que ir se consultar como eu. Mas hoje eu sou feliz porque eu me trato e tenho muito... E me dou muito bem com o diabetes" (My).

Além disso, na presente pesquisa, emergiram formas tanto de enfrentamento como de fantasia da realidade, como demonstra o extrato seguinte:

"(...) isso não é coisa do outro mundo. É uma doença normal. Mas só que ela só se trata sendo cuidada, aí com o tempo você pode até ser curado" (Ja).

Essa dupla posição de enfrentamento (ou não) da realidade registra-se como ambivalências. Segundo Zerka Moreno (1975, p. 55):

a criança jamais abandona a esperança de se tornar o centro e o senhor do universo. (...) Irá fazer qualquer jogo – o jogo do método científico ou qualquer melhoramento futuro sobre si mesma – uma vez que isso possa ajudá-la de alguma forma a concretizar seu desejo absoluto de estar sempre em contacto imediato com a vida, ser onipotente, imortal (...).

Observaram-se várias ambivalências, nas falas das crianças, no que diz respeito aos seus sentimentos na convivência com o diabetes:

"É feliz e não é feliz (...) antes de eu ter diabetes, eu podia comer de tudo. (...) é constrangedor" (Ja).

"Eu acho que ser diabético não é nenhuma coisa de outro mundo, é só saber como se controlar (...) não gosto de controlar, é muito chato. (...) Não queria ter diabetes" (La).

"Chato (...) É saber conviver com ela" (Le).

"Frustrante" (Gu).

"É saber controlar" (My).

Para Boss apud Pinto et al (2009, p. 140):

"a resolução da ambivalência depende essencialmente da ajuda à pessoa para reconhecer seus sentimentos conflitantes (...) o problema é que alguns sentimentos em relação aos relacionamentos são usualmente mais acessíveis para a consciência individual de uns do que de outros."

Dessa forma, o sociodrama é uma ferramenta de grande alcance na resolução desses conflitos, haja vista o modo como facilita a emergência de conteúdos emocionais na complementaridade relacional em jogo.

Em sua projeção de futuro, as falas de ambivalência são também bastante recorrentes, referindo-se ao futuro como ameaçador e, ao mesmo tempo, como cheio de perspectivas de conquistas e esperança.

"No futuro, ainda vou ser diabético (...) Porque, no futuro, eu vou morrer (...) Penso muito. Porque eu tenho medo de... Eu acho que no futuro, no futuro mesmo...Se eu não morrer, eu me mato. Eu quero morrer primeiro que os meus pais. Não sei como, não, mas eu me mato. (...) no futuro, eu não quero ser diabético. (...) mas também quero ser jogador de futebol" (Le).

"No meu futuro, eu quero viajar, ter meu emprego e conhecer lugares novos. (...) Mas também tenho medo de ficar em coma, entrar em coma" (Gu).

"Eu colei assim o futuro, assim adulto. Depois, vou ser papai, depois vou ser avó. Não, vou ser genro, vou ser papai e depois vou ser avô" (Ja).

"Naquela figura que tem três homens, é que a gente não seja diferente dos outros no futuro. E bem do lado de cá, é que a gente possa tomar e comer tudo sem não ter que tomar insulina antes. (...) tenho medo de morrer" (La).

Como se pode observar, a esperança de não se ter mais diabetes, de poder comer o que se quer, de brincar muito e não ser considerado diferente, foram as principais expectativas em relação ao futuro das crianças. No entanto, o medo, entrar em coma e ainda ser diabético foram condições de frustrações e medos que permearam o amanhã. As limitações no que tange à alimentação também foram muito observadas nas falas das crianças. A proibição em relação ao ato de comer foi um dos principais significados em relação à experiência de ser portador de diabetes, bem como a de não poder brincar muito.

Por fim, observou-se que os significados atribuídos tiveram sempre ressonância nas falas individuais: à medida que compartilhavam, iam se identificando com o discurso dos demais. Isso demonstra a importância de um espaço seguro onde os participantes da pesquisa possam falar e atribuir significados às suas experiências. O grupo foi compreendido como um espaço de compartilhar, conhecer novos amigos, saber mais da vida dos outros e conviver melhor com o diabetes:

"A gente aprendeu muito com esse grupo. Conheceu o dia a dia das pessoas, a conviver com diabetes (...) foi legal" (Gu).

"algo que me ajuda é... isso aqui" (My).

"foi bom conhecer novos amigos, se conhecer. Saber um pouquinho do outro, saber como é o futuro, o passado" (Le).

"Excelente (...) porque nós aprendemos muito. Nós aprendemos um pouco sobre cada um que está aqui e sobre o diabetes, como é a convivência dele com o diabete. (...) saber mais da vida do outro. Saber que o diabetes não é uma coisa para morrer, mas sim pros outros se cuidar. A pessoa pode comer qualquer coisa, mas um pouco de tudo. É só saber se tratar, como se cuidar" (My).

"assim, pra mim, eu acho que, assim, pra cada um. A gente, pra cada um tem feito diferença sobre o diabetes. Aí eu acho que foi bom a gente conhecer, saber mais, saber como se tratar" (La).

"muito legal (...) a gente se divertiu muito (...) também um pouco diferente, também ver como é com o diabete. Que diabete não é uma coisa que dá pra gente morrer, é saber controlar." (Le).

"Porque a senhora não faz esse grupo pra sempre? (...) eu queria ficar bem velhinho me consultando com a senhora" (Ja).

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Zerka Moreno (1975, p. 75) reflete que a melhor resposta diante das demandas infantis "consiste em criar métodos que atendam às necessidades da criança, e não aquilo que o adulto pensa ser uma necessidade infantil". Assim, uma pesquisa, referendada pelas próprias crianças ao se ouvirem, se confirmarem ou se contradizerem, torna-se uma garantia na legitimidade dos significados atribuídos por elas em situação de investigação.

A presente pesquisa, por meio do grupo sociodramático, proporcionou uma melhor compreensão sobre as experiências das crianças portadoras de diabetes mellitus tipo 1 e apontou contribuições significativas ao tratamento e à atuação dos profissionais de saúde diante desses enfantes.

Observou-se ainda a importância do espaço de escuta não só aos discursos das crianças, mas também às suas relações em jogo. Assim, a equipe de pesquisa em saúde deve atender a um espectro de acompanhamento e da interpretação integral, que vá dar atenção às necessidades, aos desejos e às angústias individuais, até aos significados coletivos atribuídos à condição investigada. Nesse contexto, o grupo torna-se um espaço acolhedor tanto de falas individuais, como coletivas.

Moreno (1975) demonstra que a espontaneidade e a criatividade são os principais fatores promovedores da saúde emocional e relacional. A fala espontânea das crianças e a busca de soluções criativas no enfrentamento das condições de vida impostas pelo diabetes mellitus, observadas nos extratos evidenciados no presente artigo, indicam o método sociodramático como um importante recurso facilitador na compreensão do drama experimentado pelas crianças. Não só pela revelação dos sentimentos envolvidos no drama pessoal compartilhado coletivamente, como também na intervenção diante de seus significados socialmente definidos. Dessa maneira, pode-se inferir que o processo reflexivo iniciado na busca das questões apontadas nesta pesquisa, se continuado, permitirá implicar uma progressiva compreensão coletiva (pesquisadora e grupo de pesquisados), promovedora em potencial da transformação e da busca de respostas criativas dos pesquisados à sua condição em jogo.

Assim, entende-se que a representação coletiva dos sentimentos diante do diabetes mellitus promove não só a revelação dos conflitos, como também o aprofundamento da compreensão criativa e espontânea, garantindo-se, assim, uma condição psicológica de enfrentamento em questões, como: o senso de inserção social, as tranformações de sentimentos ambivalente, o enfrentamento criativo de situações novas e o fortalecimento dos atores em jogo como protagonistas de suas histórias, conferindo-lhe senso de direção e de realização.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido em 09/02/2014
Aceito em 08/07/2014