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Revista Brasileira de Psicodrama

versão On-line ISSN 2318-0498

Rev. bras. psicodrama vol.22 no.1 São Paulo  2014

 

ARTIGOS INÉDITOS
Original Articles

 

Espiral psicodramático: ciência e arte do aquecimento

 

Psychodramatic spiral: the science and art of warming up

 

 

Antônio José dos SantosI; Maria Inês Gandolfo ConceiçãoII

I Psicólogo Clínico, Psicodramatista Didata, com especialização em Docência do Terceiro Grau, Gestão de Recursos Humanos e membro da Associação Brasiliense de Psicodrama e Sociodrama (ABP).
II
Psicodramatista didata, supervisora, professora associada da Universidade de Brasília, doutora em Psicologia pela Universidade de Brasília (UnB) e membro da Associação Brasiliense de Psicodrama e Sociodrama (ABP).

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este estudo tem como propósito apresentar o espiral psicodramático para aquecimento e verificar sua aplicabilidade por meio da discussão de um caso clínico, à luz dos conceitos e das definições de Moreno e dos psicodramatistas contemporâneos. Buscam-se elementos que estabeleçam interfaces entre o espiral psicodramático com o diagrama de Elaine Goldman, em uma perspectiva complementar e de superposição. Visa-se contribuir para roteiros de sessões em níveis real, imaginário ou de fantasia, e investigar o surgimento das catarses de integração revolutiva, resolutiva e evolutiva. Tendo em vista que a espontaneidade, espinha dorsal da teoria psicodramática, somente é alcançada e mantida mediante o aquecimento em um ponto ideal e adequado, a adoção do espiral psicodramático pode contribuir para o alcance de estados espontâneos.

Palavras-chave: Aquecimento. Espontaneidade. Catarse de integração. Espiral psicodramático. Psicodrama.


ABSTRACT

This study aims to present the use of the psychodramatic spiral in the warm-up process, and to verify its applicability through the discussion of a clinical case, in light of Moreno's and other contemporary psychodramatists' concepts and definitions. It searches for interfaces between the psychodramatic spiral and Elaine Goldman's diagram, looking at their complementary and possible overlaps. It aims to use the psychodramatic spiral for scripts used in sessions, whether working on the level of reality, imaginary or fantasy, and to investigate the emergence of revolute, resolutive and evolutive catharsis of integration. Considering that spontaneity, the backbone of psychodrama theory, can only be achieved and maintained by warning up to an ideal and appropriate level, the use of the psychodramatic spiral can contribute toward achieving these spontaneous states.

Keywords: Warming up. Spontaneity. Catharsis of integration. Psychodramatic spiral. Psychodrama


 

 

INTRODUÇÃO

Este trabalho tem por objetivo apresentar uma proposta metodológica denominada "Espiral Psicodramático para Aquecimento" e suas respectivas fases, superposto ao Diagrama Psicodramático de Goldman e Morrinson (1984) e suas cenas. Para isso, exemplificaremos o espiral em sessões de psicodrama realizadas com um paciente, em níveis real, imaginário ou de fantasia, com o objetivo de favorecer as catarses de integração revolutiva, resolutiva ou evolutiva.

A espontaneidade é considerada a espinha dorsal de toda a teoria psicodramática. No nascimento, encontra-se o grau máximo da espontaneidade, uma vez que o processo de aquecimento é a expressão operacional da espontaneidade (MORENO, 1974; 1975). O aquecimento é o que conduz a estados espontâneos de qualidade. Dentre as 15 regras do Psicodrama, estabelecidas por Zerka e Moreno (MORENO; MORENO, 2006), três delas são aplicadas ao aquecimento: Regra V: o processo de aquecimento caminha da periferia para o centro; Regra XI: o aquecimento para o Psicodrama deve se adequar a cada cultura, devendo-se fazer mudanças na aplicação do método; Regra XII: a sessão de Psicodrama consta de três partes: aquecimento, dramatização e comentários (compartilhamento).

Para dimensionar a importância do aquecimento, recorremos à brilhante metáfora de Davoli (1999) que, longe de considerar o aquecimento um "primo pobre" da dramatização, equipara a arte do aquecimento no Psicodrama ao preparo da terra para o plantio visando colher bons resultados:

Como uma terra que se prepara para semear que tipo de planta irá nascer, apresentando reflexos em seus resultados, com plantas produtivas ou infrutíferas. [...] É dessa terra bem preparada (o aquecimento) que depende em grande parte toda a riqueza e a beleza da dramatização (DAVOLI, 1999, p. 80- 1).

Estudos realizados com estudantes, pacientes, atletas e trabalhadores apontam para a importância da utilização do aquecimento. Nesses contextos, há também exemplos ilustrativos de situações em que o aquecimento resulta falho, situações às quais Moreno chamou de "aquecimento rudimentar" (desaquecimento) e "aquecimento excessivo" (superaquecimento), que podem resultar em um efeito distorcido, prejudicando a duração e a manutenção do estado de espontaneidade. No esporte, a falta ou o excesso de aquecimento pode ser responsável por lesões ou contusões musculares. Na psicoterapia, esses estados se manifestam de formas diferentes e, portanto, exigem do terapeuta maior ou menor investimento, dependendo da singularidade e do momento de cada paciente. Assim, pacientes "deprimidos" necessitam de maior grau de aquecimento, enquanto os "eufóricos" necessitam de menor grau. O ponto ideal é o surgimento da emoção.

No diagrama proposto por Goldman e Morrinson (1984), as autoras descrevem o protótipo de uma sessão na qual o paciente relata o problema atual, representado pelo primeiro círculo (aquecimento), iniciando uma jornada de volta para o passado recente. Em seguida, o diretor orienta o paciente a montar a primeira cena (vide Figura 1).

 

 

No diagrama, utilizando-se apenas do aquecimento verbal, inicia-se a montagem da primeira cena, que se refere a um problema ocorrido no trabalho da paciente naquele momento. Em seguida, monta-se a segunda cena, no presente, que ocorre na casa da paciente. Depois, a cena do primeiro casamento, ocorrido em um passado recente. Até aí, ocorre o que se chama de horizontalização de cenas. A verticalização começa a partir do momento em que se monta a cena 4, do "passado profundo"; logo em seguida, a cena do "início da infância" e, posteriormente, a catarse de integração. Goldman e Morrison utilizam a técnica de concretização, no corpo, da emoção aflorada e encerram com os insights produzidos na sessão e com treinamento de novo papel para essa nova situação, experimentada no percurso entre o problema atual relatado e o início da infância.

Com base nesse diagrama, em que se fazem cortes nas cenas - verticalizando o intrapsíquico na direção do centro do espiral para, logo adiante (após o insight), completar o círculo com treinamento de papéis -, apresentamos a proposta original deste artigo: trata-se da criação de um espiral psicodramático para aquecimento que busca interfaces e inter-relações com o diagrama de Goldman e Morrinson, em uma perspectiva de complementaridade.

Na Figura 1, são apresentadas quatro cenas que correspondem às cenas dramatizadas em uma sessão de uma paciente:

Cena 1: Trabalho (orientação atual)  
Cena 2: Casa (presente) horizontalização
Cena 3: Casamento (passado recente)  
Cena 4: Passado profundo verticalização

Partimos da suposição de que sobrepor o espiral psicodramático ao diagrama de Goldman e Morrinson pode ser um caminho indicado e eficaz para se atingir os níveis de aprofundamento no modelo entrecortado de montagem de cena. Com a utilização do espiral de aquecimento em cada cena e nível, busca-se favorecer a ponte intrapsíquica entre o presente e o passado como forma de reparar traumas ocorridos em outros momentos da vida. Assim, ter-se-ia a seguinte configuração de fases (vide Figura 2), na qual a fase 1 representa o início do espiral a partir do lado exterior e a fase 5, o fim do espiral, localizado em seu núcleo.

Na Figura 2, podem ser observadas as cinco fases que correspondem respectivamente a:

Fase 1. Aquecimento (inespecífico) físico/fisiológico (corporais e sensoriais). Por exemplo: alongamentos, respiração, gritos, gestos, danças, contorções.

Fase 2. Aquecimento (inespecífico) intelectivo/racional (pensamento e ideias). Por exemplo: "tempestade mental" de saudade, vergonha, trabalho, morte, doença.

Fase 3. Aquecimento (inespecífico) mental/imaginário (imagens e fantasias). Por exemplo: praias, montanhas, cachoeiras, ilhas desertas, cenas eróticas.

Fase 4. Aquecimento (específico) da cena (escolha e montagem da cena).

Fase 5. Aquecimento (específico) no intrapsíquico (ponte entre o presente e o passado).

 

 

Cabe aqui esboçar os tipos de catarse: revolutiva, resolutiva e evolutiva e sua contribuição no espiral. Wilson Castelo de Almeida (1999) assim as classifica e define:

a) catarse revolutiva ocorre quando o paciente experimenta uma catarse que o sensibiliza, mobilizando-o para novos aprofundamentos, aliviando as tensões acumuladas;

b) catarse resolutiva ocorre quando o paciente tem consciência do material psicológico vivenciado (recalcado, reprimido ou oprimido); e

c) catarse evolutiva ocorre quando o paciente de forma gradativa soma e integra elementos catárticos surgidos no processo psicoterápico, como: insights e feedbacks.

A metáfora do retorno para casa pode ilustrar melhor cada um dos tipos de catarse:

a) a catarse de integração revolutiva, que geralmente ocorre nas sessões iniciais, mobiliza pensamentos, sentimentos, emoções e corpo, dando a sensação de estar em um caos indiferenciado, de uma desorganização ou tempestade mental, que, muitas vezes, é capaz de desorientar o paciente em relação ao sentido de direção. Por isso, perde-se o caminho de casa;

b) a catarse de integração resolutiva, uma vez que o paciente tem consciência do material psicológico recalcado a ser revolvido, desperta a consciência da direção onde se encontra a casa dele. É como se iniciasse uma organização interna que se projeta para o exterior, clarificando-o e orientando sua direção; e

c) a catarse de integração evolutiva, ao favorecer insight e feedback, faz aflorar material inconsciente, com a retirada de "entulhos", criando condições para que elementos mais substanciais e saudáveis possam ocupar esses espaços. Daí a percepção de saber onde é sua casa, como ela é, mas desejar uma melhor.

Em suma, o espiral psicodramático teria por objetivo favorecer a produção de catarses de integração revolutiva (não sabe o caminho de casa), resolutiva (sabe o caminho mas não sabe qual é a casa) e evolutiva (sabe qual é a casa mas quer uma melhor).

Por outro lado, a proposta do espiral também recebe aportes da teoria sobre os corpos de Fonseca Filho (2000). Nela, o autor apresenta três descrições: "'corpo físico' (representado no caso descrito por uma cardiopatia com lesões específicas), 'corpo psicológico ou simbólico' (representado pelo mundo interno afetivo e seus desdobramentos emocionais) e 'corpo energético' (interação entre os dois corpos anteriores)" (FONSECA, 2000, p. 123). Essa descrição se assemelha a outra configuração, ocorrida durante uma sessão, em que presenciei o aparecimento de corpos imaginários, como os descritos a seguir:

1º) Corpo físico: dores físicas, sufocamento, estresse, hematomas, alergias, fibromialgia;

2º) Corpo mental: pensamentos, ideias, imagens, lembranças, cenas;

3º) Corpo emocional: desilusões, frustrações, rejeição, humilhação, medo, choro, ansiedade, angústia, solidão, depressão; e

4º) Corpo espiritual: depressão profunda, sentimento de inexistência, de abandono, vazio existencial, caos indiferenciado.

Essas visões sobre doença psicológica podem ser adaptadas ou relacionadas às fases descritas no espiral psicodramático para aquecimento, complementado ou superposto ao diagrama descrito por Elaine e Morrinson.

Diante dessas configurações abstratas, é possível estabelecer uma relação entre os esquemas seguintes, abordados anteriormente:

a) Espiral psicodramático (Diagrama de Elaine Goldman);

b) Espiral psicodramático para aquecimento (idealizado pelo primeiro autor deste texto);

c) Corpo físico, psicológico (simbólico) e energético (de Fonseca Filho);

d) Corpo físico, mental, emocional e espiritual (aqui proposto e descrito).

Assim, o diagrama de Goldman, superposto ao espiral idealizado, possibilita o tratamento eficaz dos estados de desenvolvimento em que o ser humano se encontra, observando a existência desses corpos imaginários nos pacientes. Vistos dentro do esquema proposto, esses estados poderão ser melhores compreendidos e suas queixas melhor trabalhadas. Vejamos como isso é colocado em prática, com base na discussão de um caso clínico.

 

ESTUDO DE CASO

Para ilustrar nossa sugestão de adaptação da proposta do espiral psicodramático ao diagrama, apresentaremos um caso no qual essa metodologia de aquecimento foi empregada. Trata-se de um caso de um paciente que participava de atendimentos em grupo para pacientes com demanda de atendimento relacionada ao uso abusivo de drogas. A seguir, será apresentado o caso, bem como uma das sessões realizada com o paciente, na qual ilustramos o espiral psicodramático de aquecimento.

Sonho de um dependente químico. O paciente A tem 49 anos, é casado, católico, marceneiro, com ensino fundamental completo. Começou a beber aos 15 anos. Apresentava-se ao trabalho quase sempre alcoolizado e com sucessiva queda em seu rendimento. Encontrava-se diariamente alcoolizado e com delirium tremens. Foi internado duas vezes. Vivia separado dos filhos e morava com uma mulher e seus enteados.

Para o aquecimento inespecífico, foi proposto ao grupo: 1) jogos corporais (ginástica leve, respiração, alongamentos, música e dança), caminhar pelo espaço físico e olhar para os demais membros do grupo; e 2) tempestade mental: pensar como foi o fim de semana, como anda a vida conjugal, como está a família, o local de trabalho, os amigos, enfim, como estão se sentindo.

Diretor: Em uma palavra, qual o sentimento presente neste momento? Tem alguma coisa que gostaria de falar, de compartilhar com os colegas? Alguma coisa que gostaria de trabalhar, de dramatizar?

O paciente desponta no grupo como protagonista e relata um sonho frequente que lhe vem ocorrendo nos últimos meses. Ao verbalizá-lo, diz que sonha que está à beira de um abismo e que tem muito medo de cair. Acorda assustado, como se fosse um pesadelo.

Aquecimento específico: Deitado sobre o tapete e com os olhos fechados, relembra o sonho e descreve-o com detalhes.

Paciente: Estou à beira de um abismo, sobre uma montanha de pedras escuras, semelhante ao Grand Canyon, sozinho, olhando para baixo. No fundo e embaixo, vejo algo verde. Como se fosse uma sacada. Existem pedras rochosas e escuras à minha frente.

Diretor: Abra os olhos. Levante-se e vamos montar o cenário.

O paciente monta o paredão com dois membros do grupo à sua frente. As rochas, também com dois membros do grupo, encontram-se atrás, com os braços levantados. Ele coloca-se à frente e segura-se nas rochas (em cima de uma cadeira), representando uma das rochas. Em seu lugar, disse que se agarra às pedras (rochas) por se achar mais seguro. "Se me soltar, caio e morro", diz.

Diretor: Quem são essas pedras?

Paciente: Meu alcoolismo.

Diretor: Escolha um membro do grupo para representar você e entrar em seu lugar. O que você gostaria de dizer para essa pessoa aqui? [Indicando para o membro do grupo que o representa.]

Paciente: Desgarra dessas pedras e se projeta no ar que encontrarás outra vida.

Diretor: O que essas pedras querem? [Tomando o papel das pedras.]

Paciente: Penetrar nele. Ele é fraco. [Solilóquio das pedras]: Não me largue!

Diretor: O que elas dizem?

Paciente: Estamos aqui para não deixá-lo cair. Se você cair, vamos perdê-lo. Seguro nele para que ele não caia. Fique conosco! Sempre terá prazer e alegria.

Diretor: E as rochas de baixo, elas dizem alguma coisa?

Paciente [tomando o papel das rochas]: Estamos com medo de ele cair, porque senão vamos perdê-lo para sempre.

Diretor: E quem está lá embaixo?

Paciente: A esperança. [Tomada de papéis.]

Diretor: O que a esperança está dizendo?

Paciente: Estou lhe esperando. Sou a esperança e tenho fé de que você vai se largar lá de cima. Jogue-se daí de cima que eu te salvarei dessas malditas.

Diretor: Você está pensando em morrer?

Paciente: Não. Estou pensando em me salvar.

O diretor orienta os dois membros do grupo para que o empurrem para baixo, de cima da cadeira onde ele se encontrava.

Paciente: Estou com medo. Muito medo. [Tremia muito.]

O diretor coloca o membro do grupo, escolhido por ele, em seu lugar e perguntalhe do que ele se lembra ao ver aquela imagem ou cena.

Paciente: Lembro-me de Jesus Cristo querendo desencarnar. Deixar a terra, os judeus e os guardas. Lembro-me da crucificação de Cristo. As rochas e o paredão são os soldados, levando Cristo para ser crucificado. [Ele mesmo.]

Diretor: O que você gostaria de dizer para Cristo?

Paciente: Cristo, quando estiver lá no céu, lembre-se de mim.

Diretor: Troque de lugar com Cristo.

Paciente [como Cristo]: Tenha esperança. Lá você estará à minha direita. [Tomada de papéis]: Assim espero, Senhor.

Paciente [como Cristo]: Ainda hoje estará comigo no reino dos céus. [Tomada de papéis]: Calar-me-ei e esperarei.

Paciente [como Cristo]: Eu te espero lá, filho. Venha comigo. [Tomada de papéis]: Eu o seguirei.

Diretor: E agora, o que acontece?

Paciente: Eu expiro ao mesmo tempo em que Cristo também expira.

Diretor: Troque de lugar com Cristo.

Paciente: Expira. [Abaixa a cabeça, assim como Cristo crucificado.]

Diretor: Veja essa cena de fora. O que você gostaria de fazer?

Paciente: Abrace a esperança, ressuscite-a juntamente com os quatro soldados [antes paredão e rochas], com a seguinte frase: Em nome de Deus, acorde. [Perdoa os soldados e diz que vai partir para outra vida.]

Nesse momento, o membro do grupo desapareceu do cenário, sem que recebesse qualquer consigna para isso.

Para melhor ilustrar essa sessão psicodramática, retornemos à Figura 2, em que se tece uma correspondência entre as fases do espiral e os aquecimentos utilizados na sessão, na qual cada fase corresponde a:

Fase 1. Aquecimento físico/fisiológico: ginástica leve, respiração, alongamentos, música, dança;

Fase 2. Aquecimento intelectivo racional: "tempestade mental" (pensando alto): final de semana, vida conjugal, familiar, trabalho, amigos. Qual o sentimento presente?

Fase 3. Aquecimento mental/imaginário: paciente relata um sonho frequente que lhe vem ocorrendo nos últimos meses, em que se encontra na beira de um abismo com medo de cair;

Fase 4. Aquecimento da cena: deitado sobre o tapete, com os olhos fechados, relembra o sonho e descreve-o com detalhes;

Fase 5. Aquecimento no intrapsíquico: "Lembro-me de Jesus Cristo quando estava para desencarnar" [...] "Lembro-me da crucificação de Cristo".

 

DISCUSSÃO

Moreno atribui grande significado e importância, em sua obra, ao aquecimento, dado seu caráter desencadeador de espontaneidade. Esta, por sua vez, pode ser considerada a espinha dorsal da teoria psicodramática, na busca do ser criativo e espontâneo – com saúde psicológica alcançada por meio da prática de inversão de papéis – que o conduzirá ao encontro eu-tu. Desse modo, produzem-se e liberam-se centelhas divinas, como ensina Fonseca Filho (1980), ou ainda, segundo a essência extraída da obra de Moreno (1975): "Deus é espontaneidade. Daí o mandamento: sê espontâneo!".

No caso descrito, "sonho de um dependente químico", nota-se a existência dos três contextos, das três etapas e de quatro instrumentos, com exceção do ego-auxiliar. As técnicas utilizadas foram basicamente solilóquio, espelho e inversão de papéis (no caso, tomada de papéis). No caso apresentado, chama a atenção o conteúdo religioso associado ao uso contínuo de álcool, simbolizado pela imagem de Jesus Cristo na cruz, que refletia o mesmo sentimento de sofrimento e dor causados por sua dependência ao álcool. Note-se que, para alcançar esse ponto ápice do aquecimento, o paciente precisou atravessar cada uma das fases do espiral psicodramático de aquecimento: inespecífico (físico/fisiológico, intelectivo/racional, mental/imaginário) e específico (da cena e intrapsíquico). A partir desse ponto, cria-se a ponte entre passado e futuro e abrem-se as possibilidades terapêuticas para os mais diversos caminhos possíveis da dramatização no rumo da reparação.

Em primeiro lugar, é possível destacar, na fundamentação teórica: a) as potencialidades ilimitadas da espontaneidade, cuja manifestação pode ser comparada à liberação da "energia nuclear"; b) as regras básicas, a partir das quais não podemos nos olvidar do fato de que o aquecimento caminha da periferia para o centro, além de que deve se adequar à cultura em que o aquecimento está sendo aplicado; c) o fator mais importante que previne a psicopatologia do aquecimento é o cuidado que se deve ter para que não haja nem superaquecimento nem desaquecimento do grupo, além de procurar meios para a manutenção do aquecimento ideal.

Com base nos aportes teóricos de Fonseca Filho (2000), compreendemos que, se um dos corpos sofre, causa sofrimento imediato nos demais. Por exemplo: se a lembrança de uma cena ruim do passado (corpo mental) for trazida ao presente, pode causar a sensação de dor, liberando choro (corpo emocional). Essa dor pode estar localizada no peito, no abdômen, no pescoço ou na cabeça (corpo físico). Dependendo da intensidade e do tempo em que essa dor se instalou, pode gerar uma depressão (corpo emocional); se permanecer, é possível ocorrer desânimo, queda da vitalidade, sentimentos obscuros, depressão profunda (corpo espiritual).

Voltando à questão da importância de se manter o aquecimento, dada a relevância que o assunto requer, Perazzo (1994, p. 64) nos ensina que "De nada adianta aquecer se o aquecimento não é mantido. Da boa manutenção do aquecimento depende o encadeamento fluido da cena ou das cenas e sua desembocadura natural na ação reparatória".

Outro fator de desaquecimento consiste na prolixidade do terapeuta, responsável também pelos desaquecimentos do protagonista, das sessões e dos membros do grupo. Esse fator está ligado diretamente à formação do diretor de psicodrama no que tange à aquisição de conhecimentos teóricos, tempo e qualidade de sua própria psicoterapia, supervisão de casos e prática clínica. Perazzo (1994, p. 70) faz um alerta quanto à prolixidade do terapeuta: "quanto mais conciso ele é, mais efetiva é a ação e mais oportunidade se dá à emergência da espontaneidade e da criatividade do protagonista".

Garrido Martín (1984) e Almeida (1998) enriqueceram a teoria psicodramática com imersões no pensamento moreniano sobre warming up e técnicas dos iniciadores, respectivamente. Garrido Martín destaca a importância do aquecimento para desencadear a força criadora da espontaneidade; Almeida estabeleceu uma conceituação didática do aquecimento em que envolveu outras áreas do conhecimento humano para suas conclusões, como psicologia sensorial e fenomenologia da percepção. É indiscutível a relevância do conjunto de contribuições oferecidas pelos autores de jogos dramáticos à comunidade de profissionais ligados à clínica, à educação ou às instituições.

Ao propor aqui o espiral psicodramático, aliamo-nos a Moreno que nos alerta para que não se dedique à psicoterapia se o método não for cientificamente comprovado e oficialmente reconhecido (MARTÍN, 1984). Por outro lado, recomendamos que não se perca de vista a arte presente no manejo espontâneo e criativo do diretor psicodramatista treinado, que atua como um guia com a lanterna na mão para iluminar o caminho do paciente, seguindo-o na trilha, quer para o caminho de volta para casa, quer para uma nova casa ou para onde quer que o paciente escolha (ALMEIDA, 1998). Ao diretor cabe a ciência e a arte de proporcionar a dosagem certa de aquecimento que, por sua vez, garantirá a liberação da espontaneidade e iluminará o caminho desconhecido e sempre surpreendente da ação psicodramática.

Como dizia o poeta espanhol Antonio Machado (1969, p. 138), "Caminante, no hay camino, se hace camino al andar...".

 

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, W. C. de. Psicoterapia aberta. São Paulo: Ágora, 1982.         [ Links ]

DAVOLI, C. Aquecimento: caminhos para a dramatização. In: ALMEIDA, W. C. de (org.). Grupos: a proposta do psicodrama. São Paulo: Ágora, 1999, p. 77-88.         [ Links ]

FONSECA FILHO, J. S. F. Psicodrama da loucura: correlações entre Buber e Moreno. São Paulo: Ágora, 1980.         [ Links ]

______. Psicoterapia da relação: elementos de psicodrama contemporâneo. São Paulo: Ágora,         [ Links ] 2000.

GOLDMAN, E. E.; MORRISON, D. S. Psychodrama: Experience and Process. Dubuque, Iowa/USA: Kendall/Hunt, Publishing Company, 1984.         [ Links ]

MACHADO A. Extracto de Proverbios y cantares (XXIX). Campos de Castilla. In: Machado A., editors. Antología poética. Madrid: Salvat editors, 1969, p. 138.         [ Links ]

MARTÍN, E. G. Psicologia do encontro: J. L. Moreno. 2. ed. São Paulo: Ágora, 1996,         [ Links ].

MORENO, J. L. Psicodrama. São Paulo: Cultrix, 1975.         [ Links ]

______; MORENO, Z. T. Psicodrama: Terapia de Ação & Princípios da Prática. São Paulo: Daimon – Centro de Estudos do Relacionamento, 2006.

______. Psicoterapia de grupo e psicodrama. São Paulo: Mestre Jou, 1974.         [ Links ]

PERAZZO, S. Ainda e sempre psicodrama. São Paulo: Ágora, 1994.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência

Antônio José dos Santos
SHIN QL 3 Cj. 1 - Casa 03
Lago Norte - Brasília, DF
CEP 71505-215
Tel. (61) 3577-2036
E-mail: anjosan@terra.com.br

Maria Inês Gandolfo Conceição
SQS 212 bl. B - ap. 206
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Tel. (61) 3877-0648 / (61) 8276-2485
E-mail: inesgandolfo@gmail.com

 

Recebido em 11/04/2014
Aceito em 24/05/2014