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Revista Brasileira de Psicodrama

versão On-line ISSN 2318-0498

Rev. bras. psicodrama vol.22 no.1 São Paulo  2014

 

ARTIGOS DE REFLEXÃO
Reflective Articles

 

Moreno e Espinosa: Aproximações

 

Moreno and Espinosa: approaches

 

 

José Fonseca

Médico, doutor em Psiquiatria pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), didata pela Sociedade de Psicodrama de São Paulo (SOPSP) e coordenador do Daimon – Centro de Estudos do Relacionamento.

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Busca-se uma aproximação entre alguns conceitos de Moreno e Espinosa, levantando-se a hipótese de que o ponto comum entre ambos se encontra na filosofia da Cabala. O texto divide-se em uma introdução histórica e tópicos da concepção do divino, do conhecimento e da alegria na obra desses dois pensadores.

Palavras-chave: Filosofia. Moreno. Espinosa. Cabala. Deus.


ABSTRACT

This article focuses on the connections between some of the concepts developed by Moreno and Spinoza, raising a hypothesis that the common denominator linking these two authors is the philosophy of Cabala.

Keywords: Philosophy. Moreno. Spinoza. Cabala. God.


 

 

"Deus existe mesmo quando não há."

(Riobaldo, personagem de Guimarães Rosa,
em Grande Sertão Veredas)

Tento fazer uma breve correlação entre Moreno (1889-1974) e Espinosa (1632- 1677), dadas algumas coincidências de suas ideias, com o intuito principal de melhor ilustrar alguns pontos da filosofia moreniana.

Em primeiro lugar, ambos eram judeus sefaraditas. Os sefaraditas, sefarditas ou sefaradís, viveram, preponderantemente, até o século XVI, na Espanha e em Portugal, e se distinguiam culturalmente dos judeus do Norte da Europa, denominados asquenazis. A filosofia da Cabala fazia parte da cultura mística e religiosa dos judeus ibéricos. Moysés de León (da cidade de León, Espanha) é tido como o compilador do Zohar (Livro do Esplendor), livro sagrado do conhecimento cabalístico.

No reinado de Fernando de Aragão (1452-1516) e Isabel de Castela (1451-1505), os judeus foram obrigados a converter-se ao catolicismo, caso contrário deveriam sair da Espanha. Os que não cumpriam a ordem real eram perseguidos, torturados e mortos. Poucos anos depois, Portugal instituiu essa mesma política de intolerância. Muitas famílias judias então buscaram abrigo em outros países. Os pais portugueses de Espinosa estabeleceram-se em Amsterdã, e a família de Moreno, inicialmente, em Istambul, e depois em Bucareste e Viena até a emigração final nos Estados Unidos.

Moreno (1997, p. 41) admitia suas influências cabalísticas. Em sua autobiografia diz:

Em dado momento fiquei particularmente impressionado pela Cabala. [...] O dogma central da Cabala – de que toda a criação é uma imanação da divindade e que a existência da alma 4é eterna – juntou-se a minha preocupação original com o livro do Gênese. "No princípio, Deus criou o céu e a terra" que me emocionou profundamente...

Em uma conversa com o psicólogo franco-brasileiro Pierre Weil (1924-2008), Moreno, já no final da vida, confirmou seus conhecimentos na área e citou antigos cabalistas5.

António Damásio (2009), em seu livro Em busca de Espinosa: prazer e dor na ciência dos sentimentos, considera que Espinosa também foi influenciado pela Cabala:

Grande parte da vida de Espinosa até então tinha sido passada na leitura do Talmude, da Torá e dos textos da Cabala, que faziam parte da tradição sefardita e eram especialmente populares entre os judeus portugueses de Amsterdã (DAMASIO, p. 251).

No Museu de Espinosa, em Rijnsburg, próximo a Amsterdã, onde existem objetos da última casa em que Espinosa viveu, encontram-se alguns poucos livros que restaram de sua biblioteca, entre os quais um sobre a Cabala6. Suas influências cabalísticas devem-se, pelo menos em parte, a um de seus orientadores, o rabino Isaac Aboab da Fonseca7, da sinagoga portuguesa de Amsterdã. No entanto, se, por um lado, Espinosa recebeu alguma influência da filosofia cabalística, por outro, discordava do significado secreto das letras e dos simbolismos numerológicos a elas atribuído pela Cabala, pois o considerava crenças supersticiosas.

 

A QUESTÃO DE DEUS

Para efeito de contextualização, introduzo de modo sintético o conceito divino da Cabala. Deus é considerado em si ou em suas manifestações. Em si, antes de qualquer revelação, é indefinido, vago, infinito, como um mar sem praia, um abismo sem fundo ou um fluido sem consistência. Sua designação menos imperfeita seria o "sem fim" ou o "não ser". No entanto, ao manifestar-se, torna-se cognoscível. A Cabala diz que tudo que está em cima está embaixo, ou seja, que o macrocosmo (a Natureza) e o microcosmo (o homem) constituem a mesma substância.

Vejamos alguns pontos em comum entre os dois autores. Para Moreno, Deus, ou a Divindade (Godhead), como frequentemente o denomina, representa a força espontâneo-criativa da Natureza. Para Espinosa, Deus e a Natureza constituem a mesma substância (Deus sive Natura: Deus ou Natureza). O homem está imerso nela, portanto é passivo a ela. No entanto, é ativo como ela, na medida em que compartilha da mesma energia criativa. A potência da Natureza não é senão a essência ativa dela própria.

Entendo por Deus um ser absolutamente infinito, isto é, uma substância constituída por uma infinidade de atributos, cada um dos quais exprimindo uma essência eterna e infinita (ESPINOSA, 1983, p. 46).

Por governo de Deus entendo a ordem fixa e imutável da Natureza, ou seja, o encadeamento das coisas naturais [...] Dizer, portanto, que tudo acontece segundo as leis da Natureza é o mesmo que dizer que tudo é ordenado por decreto de Deus (ESPINOSA, 2008, p. 51).

Compreenda-se Natureza não somente no sentido de rios, florestas e oceanos, mas como um todo em que existe uma Unidade cósmica infinita. Assim, o amor a Deus ou à Natureza distingue-se do amor entre os seres humanos, pois significa uma compreensão intelectual e respeitosa, um amor dei intellectualis, a essa Unidade. No romance O enigma de Espinosa (YALOM, 2013), um personagem faz uma blague questionando se Espinosa deifica a Natureza ou naturaliza Deus.

Lacan, segundo Roudinesco (2001), ressalta o amor dei intellectualis espinoseano como a passagem da servidão religiosa para a liberdade, no sentido de que tanto o filósofo como ele próprio se tornaram mais livres para criar, a partir da "excomunhão" que sofreram: um do judaísmo e outro da Associação Internacional de Psicanálise (IPA).

Espinosa faz uma distinção entre a parte da Natureza que é criadora – Natura naturans (Natureza naturante) – e a parte que é resultado dessa criação – Natura naturata (Natureza naturada). Assim, fica delineada a perspectiva de um aspecto qualitativo, por assim dizer místico, na "natureza naturante", e um resultado quantitativo, material, na "natureza naturada". Moreno fala da Espontaneidade como catalisadora da Criatividade. A primeira como a energia que resulta em um produto transformador.

Nadler (2013) explica que o termo "substância", na definição do Deus espinoseano, deve ser compreendido como o que existe em si mesmo, e não em outra coisa, "o que no final de contas implica que há uma só substância, e ela é Deus ou a Natureza"(p. 42). A Cabala e Moreno falam de "centelhas divinas", a essência criativa universal.

O conceito de Deus de ambos nada tem a ver com o céu e o inferno. Trata-se de um Deus imanente à Natureza, diferente do Deus transcendente, personalizado, da tradição judaico-cristã. Tudo se integra e se reintegra, não há uma ação que vise a um fim último predeterminado. Tudo é um fluir natural e constante do qual fazemos parte.

O Deus de Espinosa não é, portanto, um Deus pessoal, religioso, mas um princípio metafísico, o que foi uma das razões de sua condenação pelas autoridades religiosas da época (MARCONDES, 2007, p. 89).

O hassidismo, movimento religioso judaico do século XVIII, fundamentado nos princípios cabalísticos, era acusado pelo judaísmo tradicional de ser panteísta (do grego: pan – tudo e theos – deus), assim como Espinosa o foi pelos rabinos de Amsterdã. Não por acaso, Einstein (1874-1955), perguntado se acreditava em Deus, teria respondido que acreditava no Deus de Espinosa, que se revela na harmonia de tudo o que existe, e não em um Deus que se preocupa com o destino do homem. Para arrematar, lembro que o filósofo tcheco-brasileiro Vilém Flusser (1920-1991) entendia a filosofia como uma dialética entre a ausência e a busca de Deus.

 

O CONHECIMENTO

Espinosa, segundo Gleizer (2005), descreve três gêneros de conhecimento do homem que se apresentam como um processo ativo. O primeiro refere-se à apreensão sensorial do mundo. Por exemplo, o sol, em princípio, seria simplesmente um disco redondo e amarelo. Esse grau inculto de conhecimento corresponde, do ponto de vista cultural, às crenças, às crendices ou ao "ouvir dizer". O sujeito é "induzido" a acreditar em algo e ponto final. Não há questionamentos em relação à apreensão.

O segundo gênero do conhecimento inclui a reflexão racional sobre o objeto que causou a sensação inicial e a tentativa de compreendê-lo como parte de um todo, de um sistema. Estamos agora no terreno da "dedução".

O terceiro gênero inclui os dois anteriores, acrescentando a "intuição". Esta seria uma visão além do olhar sensorial e racional, algo como enxergar por intermédio de um "terceiro olho", descobrindo algo novo no mesmo objeto de observação. Em termos morenianos, nos reportamos novamente à Espontaneidade/Criatividade, considerada como uma "nova resposta a uma situação antiga" ou o "vislumbrar um novo horizonte". O terceiro gênero espinoseano corresponde ao Eu criador moreniano.

 

A ALEGRIA

O otimismo de Moreno, ou a alegria que foi introduzida no tratamento dos sofrimentos mentais ("o homem que trouxe alegria e riso à psiquiatria", segundo seu epitáfio), assemelha-se à proposta de Espinosa de enfatizar a alegria (laetitia), em oposição à tristeza (tristitia). A alegria passiva, aquela que é proporcionada por outro, difere da alegria ativa, que brota de si mesmo. Damásio (2009, p. 294) comenta que Espinosa era otimista e "[...] aplicava com afinco na tentativa de cancelar os sentimentos de medo e tristeza que a natureza inspira e substituí-los por sentimentos de alegria na descoberta da natureza". Para Espinosa, as paixões alegres incrementam a potência do agir (ação). As paixões tristes inibem a fluência dos sentimentos e da razão.

Ele se insurge contra os que se aproveitam das paixões tristes do povo para auferir vantagens e lucros desonestos (políticos, sacerdotes e curandeiros).

Tanto Moreno como Espinosa têm implícitos em seus conceitos a liberdade. O conceito de espontaneidade-criatividade só pode ser compreendido como um livre fluir criativo que vem de dentro para fora. Espinosa fala que "agir por si só" não significa fazer o que se quer, mas obedecer a "necessidade de sua própria natureza" (RAMOND, 2010, p. 47). A liberdade seria uma necessidade interior e a coação, uma imposição exterior.

O conatus (do latim: esforço) espinoseano tem a ver com o impulso humano não somente de autopreservação, mas com um princípio de expansão e realização de tudo que está contido em sua essência cósmica, ou seja, de Espontaneidade-Criatividade em linguagem moreniana. Desse modo, liberdade, ação e alegria andam juntas, pois representam a expressão de algo que se tem dentro. Para expressar essa característica, Moreno utiliza a expressão alemã "das ding ausser sich" que significa a coisa fora de si. Quando jovem, em Viena, Moreno participou de um movimento filosófico denominado "seinismo" ou "existencialismo heroico", um existencialismo da ação. O primeiro princípio do movimento falava da inclusão total da pessoa no fluxo espontâneo da existência. Aqui situava seu conceito de Momento, desvinculado do passado ou do futuro e definido como uma urgência da experiência imediata e criativa. O segundo princípio era constituído pela bondade, compreendida como a bem-aventurança natural de todas as coisas existentes.

Utilizo agora ama citação de Gleizer (2005) sobre o afeto espinoseano para fazer uma aproximação com a sociometria moreniana, em que as escolhas recíprocas entre os membros de um grupo acontecem em termos de neutralidade, positividade (atração) ou negatividade (rejeição), constituindo um dos fundamentos da sociodinâmica grupal:

Dessa forma, uma afecção neutra, isto é, que deixa invariável a potência de agir, não tem dimensão afetiva. [...] A variação positiva da potência de agir – ou seja, sua passagem a uma maior perfeição ou força de existir – constitui a alegria, enquanto sua variação negativa – isto é, sua passagem a uma menor perfeição ou força de existir – constitui a tristeza (GLEIZER, 2005, p. 35).

O cruzamento das ideias dos dois pensadores permite concluir que a congruência (coincidência ou mutualidade) de atrações traz sentimentos alegres, enquanto a não reciprocidade nas escolhas pode produzir sentimentos tristes.

 

FINALIZANDO

Moreno (1974, p. 21) cita Espinosa como o iniciador do processo de "desendeusamento" do mundo, seguido por outros filósofos como Nietzsche e Marx. Entende-se "desendeusamento" como o processo de descrença do Deus criado pelo desejo humano de um Pai doador e punitivo. Assim como Deus criou o homem, este cria "deuses" segundo suas próprias projeções. Vale lembrar as concepções divinas das cinco grandes religiões, originadas com base em substratos socioculturais existentes em diferentes períodos históricos: judaísmo, cristianismo, islamismo, budismo e hinduísmo.

Em outro momento, Moreno (1991, p. 57) elogia o filósofo Bergson, que se inspirou em muitos conceitos espinoseanos, pelo fato de:

(...) introduzir na filosofia o princípio da espontaneidade [embora raramente empregasse a palavra], numa época em que os mais destacados cientistas sustentavam teimosamente que tal coisa não existia na ciência objetiva.

Resumo essas aproximações entre Espinosa e Moreno, inicialmente, pelo fato de ambos terem sido judeus sefaraditas, com supostas influências cabalísticas que transparecem em seus conceitos, especialmente no de um Deus-Natureza imanente e espontâneo-criativo do qual fazemos parte como seu microcosmo. Ambos aproximam a expansão de si mesmo, ou a criatividade pessoal, como um ato de alegria. Valorizam a ação (acting-out terapêutico, de Moreno) como uma potência a ser expressa e propõem uma complementaridade semelhante entre a Natureza naturante/Natureza naturada e a Espontaneidade-Criatividade/Conserva Cultural. Foram universalistas, cada um a seu tempo, com o intuito de buscar uma compreensão da Unidade cósmica, em que tudo permanece e se transforma ao mesmo tempo.

 

REFERÊNCIAS

ESPINOSA, B. Ética. São Paulo: Abril Cultural, 1983.         [ Links ]

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DANTAS, R. "Das paixões à liberdade em Spinoza". Disponível em: <http://www.webartigos.com/artigos/daspaixoes-a-liberdade-em-spinoza/5369> Acessado em 23 jan. 2014.         [ Links ]

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FLUSSER, V. Bodenlos: uma autobiografia filosófica. São Paulo: Annablume, 2007.         [ Links ]

GLEIZER, M. A. Espinosa e a afetividade humana. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.         [ Links ]

MARCONDES, D. Textos básicos de filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.         [ Links ]

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RAMOND, C. Vocabulário de Espinosa. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.         [ Links ]

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WEIL, P. "Apresentação". In Moreno, J. L. Psicoterapia de grupo e psicodrama: introdução à teoria e à prática. São Paulo: Mestre Jou, 1974, p. 15-18        [ Links ]

YALOM, I. D. O enigma de Espinosa. Rio de Janeiro: Agir, 2013.         [ Links ]

 

AGRADECIMENTOS

Agradeço os ensinamentos do Prof. Emilio Terron no Grupo de Estudos de Filosofia (GEF) Daimon – CER, as contribuições dos colegas do grupo e os comentários do dr. Edson Miyahara.

 

 

Endereço para correspondência

José Fonseca
Rua Havaí, 78
São Paulo – SP
CEP 01259-000
Tel.: (11) 3862-4859
E-mail: fonseca@daimon.org.br

 

Recebido: 03/02/2014
Aceito: 13/05/2014

 

 

NOTAS

4 1. Segundo meu entendimento, tanto em Moreno como em Espinosa, a expressão "alma" tem a conotação de um self cósmico, algo inerente a tudo que existe, inclusive ao homem.
5 Consultar a "Apresentação", de Pierre Weil, ao livro Psicoterapia de grupo e psicodrama (MORENO, 1974).
6 Na verdade, os livros constantes do museu são réplicas dos originais do século XVII.
7 O rabino Isaac Aboab da Fonseca, durante a ocupação holandesa das cidades de Olinda e Recife (1630-1654), fundou nesta última a primeira sinagoga brasileira (e latino-americana), hoje transformada em museu.