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Revista Brasileira de Psicodrama

versão impressa ISSN 0104-5393versão On-line ISSN 2318-0498

Rev. bras. psicodrama vol.22 no.2 São Paulo  2014

 

ARTIGOS INÉDITOS
Original Articles

 

Proposta de intervenção com Grupo Multifamiliar com famílias nomeadas pela escola como violentas

 

Multi-family Group intervention for working with families considered as violent by schools

 

Propuesta de intervención con Grupo Multifamiliar con familias designadas por la escuela como violentas

 

 

Luisa Villela Soares1,I; Maria Aparecida Penso2,II

IInstituto Berço da Cidadania
IIUniversidade Católica de Brasília (UCB)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo apresenta os resultados da utilização da metodologia de reuniões multifamiliares, com famílias indicadas pela escola como portadoras de relações violentas na sua dinâmica, numa perspectiva de prevenção à violência contra crianças e adolescentes e também algumas reflexões sobre a forma como essas famílias funcionam. A pesquisa explorou o material produzido em cinco encontros com oito famílias, em que se buscou construir com as famílias uma abordagem que possibilitasse pensar nas relações familiares e no que consideravam risco ou potencialidade no seu funcionamento. Os resultados mostraram que a violência presente no cotidiano é refletida diretamente na vida familiar. Essa violência em grande parte deve-se ao enfraquecimento do Estado em cumprir seu papel na garantia dos direitos.

Palavras-chave: Relações familiares. Intervenção social. Violência. Prevenção.


ABSTRACT

This article presents the results of multi-family group meetings, a methodology designed to work with families referred by the school due to their violent relationship-dynamics. The aim is to prevent violence against children and adolescents, and to shed some light on how these families function. This research explores the material produced by eight families in five such meetings, during which attempts were made to, jointly with the families, create an approach that would allow them to think about family relationships and what they considered to be actual or potential risk in their dynamics. The results showed that everyday violence is directly reflected in family life. This violence mostly is due to the failure of State to fulfill its role on guaranteeing peoples' rights.

Keywords: Family relationships. Social Intervention. Violence. Prevention.


RESUMEN

El artículo presenta los resultados de la metodología utilizada en las reuniones multifamiliares con familias que tienen en comun la violencia en su dinámica cotidiana. Además de estos resultados con la perspectiva de prevenir la violencia contra los niños y adolescentes, la investigación busca algunos pensamientos sobre el funcionamiento de estas familias. El material producido en cinco reuniones con ocho familias donde se buscó construir el enfoque que permitiera pensar en las relaciones familiares y en lo que ellos consideraban riesgo o potencialidad en su funcionamiento. Los resultados apuntan que la violencia presente en la vida cotidiana se refleja directamente en la vida familiar. Esta violencia en su mayor parte se debe a la creciente debilidad del Estado para cumplir con su rol de garantizar los derechos de los ciudadanos.

Palabras-clave: Relaciones familiares. Intervención social. Violencia. Prevención.


 

INTRODUÇÃO

O objetivo deste artigo é apresentar os resultados da utilização da metodologia de reuniões multifamiliares com famílias indicadas pela escola como portadoras de relações violentas na sua dinâmica, numa perspectiva de prevenção à violência contra crianças e adolescentes e também algumas reflexões sobre a forma como essas famílias funcionam, tendo como fundamentação a Teoria Sistêmica e o Psicodrama.

A investigação esteve vinculada ao projeto de extensão "Teia do Conhecimento: saberes e saúde na Cidade Estrutural", região com menor renda familiar média do Distrito Federal, que almejava ouvir e atender às demandas dessa comunidade, especialmente nas questões ligadas ao cotidiano e à saúde. Dentro desse projeto foi criado um espaço intitulado "Teia da Família", em parceria com uma escola de ensino fundamental, com o intuito de oferecer um espaço de escuta e acolhimento de demandas que vinham das famílias e da escola, com o foco na prevenção da violência intrafamiliar e na promoção da saúde mental. Baseou-se no pressuposto de que as famílias buscam as instituições que ali se situam com demandas para além do simples pedido de auxílio básico, porém na maioria das vezes não há uma escuta do que está por trás desse pedido (COSTA; BRANDÃO, 2005).

A Cidade Estrutural ocupa uma área de 154 hectares, onde originalmente havia um aterro sanitário, também conhecido como "Lixão da Estrutural", existente desde a inauguração de Brasília. Na análise das situações de indigência (contingente de indivíduos pertencentes a famílias com renda per capita de até 1/4 de salário mínimo), relativa aos membros das famílias beneficiárias dos programas sociais, verifica-se a existência de 11,5 mil pessoas nessa situação. (DISTRITO FEDERAL, 2010). Essa também é uma área com alta concentração de violência e criminalidade.

 

FAMÍLIAS VULNERÁVEIS E A POSSIBILIDADE DE INTERVENÇÃO COM FOCO NA PREVENÇÃO DA VIOLÊNCIA INTRAFAMILIAR

Em cenários de violência e vulnerabilidade social é possível imaginar a dificuldade das famílias não só na geração de renda, mas também na educação de seus filhos e na manutenção de relacionamentos interpessoais sadios. As situações de vulnerabilidade social devem ser analisadas a partir da existência ou não, por parte dos indivíduos ou das famílias, de ativos disponíveis e capazes de enfrentar determinadas situações de risco. Logo, a vulnerabilidade de um indivíduo, uma família ou de grupos sociais refere-se à maior ou à menor capacidade de controlar as forças que afetam seu bem-estar, ou seja, a posse ou o controle de ativos que constituem os recursos requeridos para o aproveitamento das oportunidades propiciadas pelo Estado, pelo mercado ou pela sociedade.

O impacto da violência estrutural e conjuntural nas relações interpessoais é enorme e afeta profundamente as relações familiares, levando à produção e à reprodução de modelos de comportamentos violentos no cotidiano social e familiar (ARAÚJO, 2002). Isso significa que muitas dessas famílias submetidas a uma realidade de violência social e econômica se tornam mais vulneráveis à reprodução da violência em seu interior. Assim, a violência intrafamiliar, surge como uma forma de comunicação entre os membros da família, bem como de reprodução das violências sofridas no contexto social mais amplo (PENSO; RAMOS; GUSMÃO, 2004). Suas formas de manifestação são os abusos físicos, sexuais, emocionais e a negligência, que se caracterizam por relações assimétricas de poder, o que pode gerar consequências deletérias para o desenvolvimento físico, neurológico, intelectual e emocional dos indivíduos que vivem na família (AZEVEDO; GUERRA, 1993).

A família é compreendida aqui como um organismo social que tem uma estrutura complexa, na qual coexistem subsistemas separados por fronteiras que acabam por definir as funções e os papéis a ser desempenhados pelos seus membros. Os participantes de uma família se organizam dentro desse sistema familiar por meio de afiliações, alianças e coalizões. A família é então vista como um sistema vivo e mutável, que atravessa ao longo do tempo e de seu desenvolvimento diversos períodos de crise e transições, que influenciam diretamente em como esse organismo social vai se estruturar (MINUCHIN; NICHOLS; LEE, 2009).

Considerando que a violência intrafamiliar e a saúde mental estão diretamente relacionadas à qualidade das relações familiares e sociais, a presença do abuso físico intrafamiliar denota a fragilidade das relações e a vulnerabilidade da família. Revela também a dificuldade de vinculação dos membros no contexto familiar, com baixa coesão entre eles e estrutura hierárquica com centralização de poder na figura parental (DE ANTONI, 2005). Considera-se que nesses casos a intervenção psicossocial é adequada, possibilitando intervir em famílias de baixa renda, focando as relações familiares, comunitárias, institucionais, possibilitando o resgate das suas competências e contribuindo também com a mobilização das redes (DABAS, 1995).

 

MÉTODO

Metodologia dos Grupos Multifamiliares

Para Costa e Brandão (2005) é característico da intervenção psicossocial o vínculo com alguma organização da comunidade, na qual os indivíduos apresentam suas demandas, explicitas ou implícitas. Dessa forma, para a realização da intervenção no formato de Grupo Multifamiliar, foi feita uma parceria com a escola como porta de entrada para essa comunidade, indicação das famílias e espaço para realização dos grupos.

Os Grupos Multifamiliares se apresentam como uma proposta de intervenção que demonstra eficácia no alívio de tensões, compartilhamento de sentimentos, ampliação da consciência sobre os problemas enfrentados e a busca de soluções (COSTA, 1998). Fundamenta-se nos aportes teóricos: a) da Psicologia Comunitária e o enfoque da Psicologia Social Crítica e Histórica; b) da Terapia Familiar; c) do Sociodrama; e d) da Teoria das Redes Sociais, e segue o modelo da sessão psicodramática (aquecimento, desenvolvimento de um tema e compartilhamento) (COSTA et. al, 2009).

Captação dos participantes

Participaram dos grupos oito famílias (pai, mãe e filhos) de nível socioeconômico baixo, indicadas pela escola, como consideradas "famílias problemáticas" com filhos problemáticos, que não tinham passado por processos de denúncia judicial e que se inscreveram por vontade própria no projeto "Teia da Família". Todas possuíam mais de um filho, entre eles pelo menos um era adolescente, eram originárias de outra cidade ou estado, mas com uma convivência mínima com alguns de seus membros. Três famílias já haviam passado por uma ou mais separações conjugais e em duas famílias havia a adoção de uma criança.

Descrição do Grupo Multifamiliar com foco na prevenção

Ao todo, foram realizados cinco encontros do Grupo Multifamiliar: o primeiro, para apresentação do projeto e inscrição das famílias interessadas, e o último, de fechamento e devolução dos resultados da pesquisa. Os encontros tiveram a duração de duas horas e meia, foram gravados em áudio e transcritos. Durante os encontros foram abordados temas como a educação dos filhos, relacionamento do casal, história de vida e da família, dificuldades cotidianas, leis, religião e comunidade.

No primeiro encontro, de sensibilização dos participantes, estavam 10 famílias das 50 que haviam sido convidadas. Nesse momento lhes foi explicado o porquê haviam sido convidadas, conversado sobre como percebiam a violência, as dificuldades que tinham em suas famílias e os temas que eram mais problemáticos na tríade: família, escola e comunidade. Após essa etapa, apresentou-se a proposta de trabalho reforçando o convite para participarem. As famílias que concordaram em participar preencheram um formulário de cadastro e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

O segundo encontro contou com oito famílias e foi o momento em que se iniciou o trabalho do Grupo Multifamiliar. O foco desse encontro foi conhecer a história da família, a compreensão que tinham sobre o que era uma família e também a sua rede de apoio extrafamiliar. Para o aquecimento foi solicitado que os participantes se apresentassem, falassem seu nome e o que sabiam sobre o seu significado e sua escolha. Em seguida, foi trabalhado o que entendiam por família e construída a árvore genealógica (genograma) de cada uma. Para a construção do genograma, cada família trabalhou em separado e recebeu papel pardo, canetinhas, cola colorida, tinta e lápis de cor.

Em seguida, as famílias compartilharam entre si seus genogramas e puderam comentar o que consideraram interessante nas histórias de cada uma, identificando semelhanças e diferenças entre si. Também expuseram as dificuldades vivenciadas no processo de educação dos filhos e o uso da violência física como forma educativa, bem como o desejo dos pais de que seus filhos tivessem melhores condições de vida do que aquelas que eles tiveram: "Qualquer pessoa no mundo pode desistir dele, mas eu não vou desistir! Disse que um dia eu ainda ia vê-lo como um advogado, um engenheiro. (M)."

Entre as situações relatadas, chamou a atenção o fato de as mães estabelecerem limites para a atuação de seu parceiro na educação dos filhos oriundos de outros relacionamentos, não lhe permitindo exercer autoridade e dar ordens para filhos não biológicos, sobrecarregando a si mesmas nas tarefas educativas.

Sobre o apoio da família extensa e também de outras pessoas que não eram da família em momentos de dificuldade, as famílias relataram:

"Na minha família só conto com minha mulher" (R). Ou

"Eu procuro não pedir, entendeu? Nas vezes que eu precisei, minha mãe me ajudou" ( S).

E "A minha família, quando tem um problema vem todo mundo em cima de mim" (O).

O terceiro encontro teve como tema cuidado e proteção. Após o aquecimento os participantes foram divididos em dois grupos, um de adultos e outro de crianças, pois não havia adolescentes nesse dia. Os adultos debateram sobre sua percepção de como haviam sido cuidados e protegidos por suas famílias e como realizavam esse cuidado e proteção em relação aos seus filhos. E as crianças realizaram desenhos que simbolizavam como percebiam que eram protegidas e cuidadas pelos pais. Em seguida, compartilharam o que havia sido trabalhado nos grupos, iniciando pelas crianças.

Os pais relataram, em muitas das suas falas, o medo de que os filhos sejam assassinados e a dificuldade em protegê-los, principalmente em razão do contexto externo, permeado pela violência:

Tive uma prima que falava que ia para escola, a última notícia que recebemos foi quando a polícia chegou na casa da minha tia e disse: "Olha, sua filha está morta dentro do rio!" (N).

Ao mesmo tempo, também afirmaram que não desistem dos filhos:

A gente que é mãe tem que lutar até a última lágrima, porque se mais tarde seu filho morre você vai chorar. (M).

No entanto, destacam que instituições como escola, igreja e até a justiça e a polícia podem ser pontos de apoio e ajuda na proteção de seus filhos. Nesse sentido valorizam a parceria com estas instituições, percebendo-as como aliadas no processo educativo.

Amizade se faz na igreja, você não vai fazer amizade lá na rua. É o único lugar assim... não vamos dizer em segurança... mas é o único lugar que pelo menos ouve a verdade de alguma coisa. (E)

Quanto ao cuidado, este é definido pelos pais como físico (alimentação, higiene etc.), isso também é confirmado nos desenhos das crianças. Além disso, nesse contexto onde há grande dificuldade de cuidar dos filhos, pela necessidade de garantir o sustento familiar, muitas vezes um filho mais velho assume um papel de garantia da organização da casa.

O quarto encontro focalizou o tema da educação, foi realizado à noite e contou com a participação de oito famílias representadas pelas mães. Assim, não houve divisão em subgrupos. Foram colocadas as seguintes perguntas em um papel pardo: O que é educação? Como eu fui educado? Como eu educo? As mães expuseram suas experiências e compartilharam entre si o que acreditavam que era a forma mais adequada de educar. O castigo físico e o impedimento de sair de casa como forma de castigo surgem como os principais métodos educativos, notando-se que esses métodos foram aprendidos em suas famílias de origem e as mães os repetem como algo correto e que foi útil na vida delas.

Meu pai era o seguinte, ele apontava o dedo para o rumo de casa, eu já sabia que era pra ir embora! Minha mãe, teve um dia que ela pegou um pau, e arrebentou na cabeça da minha irmã que até sangrou. Tava de rebeldia. (R.)

As mães também expuseram sua preocupação na educação de filhos e filhas adolescentes, diante da violência e do uso de drogas:

Se ela for para aquele córrego, Deus me guarde, mas se for estuprada, assassinada, (N.)

Eu peço e oro a Deus para os meus meninos não caírem em tentação! porque tem muita mãe que sofre com os filhos nas drogas, meninos de 13, 14 anos estão tudo ai na droga! (P)

Entretanto, também relatam o incomodo com o controle legal, representado pela Vara da Infância e da Juventude e sua intervenção sobre a forma de educar seus filhos, e o abuso de autoridade da polícia que não só toma condutas agressivas com os "suspeitos" como culpabilizam as famílias, principalmente as mães pelos atos de seus filhos. Além disso, acreditam que essas instâncias legais são usadas como instrumento de controle de vizinhos e até da própria escola. Contudo, buscam manter a sua autonomia no processo educativo:

O pai e a mãe perderem a autoridade, eu costumo falar lá na minha casa, eu não bato eu não judio, mas o instituto do menor (referindo-se ao ECA) sou eu! não maltrato meus filhos, eu trato da maneira que sei que tem que ser tratado. (E)

O quinto encontro foi de fechamento do Grupo Multifamiliar e teve como proposta debater sobre o que as famílias haviam aprendido umas com as outras nos encontros e o que gostariam de levar para suas vidas. Foi um momento em que a equipe também expôs o que havia aprendido e, principalmente, o que via de potencialidade de cada família em sua singularidade. As famílias descreveram a importância do grupo e afirmaram ter aprendido muito sobre como educar seus filhos.

 

DISCUSSÃO

A realização dos encontros do Grupo Multifamiliar possibilitou compreender e trabalhar os processos de cuidado, proteção, educação dos filhos, história familiar e transmissão geracional dessas famílias, tidas como problemáticas pela instituição escolar, propiciando um debate franco sobre vivências e experiências, no qual o grupo pôde refletir e construir, novos significados para a experiência das relações familiares.

As famílias repetem-se a si mesmas, observando-se que as questões que aparecem numa geração podem passar à geração seguinte, mesmo que sob outra forma. (GERSON; MCGOLDRICK, 1985). Durante a realização dos encontros do grupo, as famílias trouxeram questões a respeito de como eram em suas famílias de origem, a educação, o trabalho, a convivência e a afetividade. Segundo Ribeiro e Bareicha (2009), cada família seleciona as vivências da família de origem que vai levar para sua própria história. A violência é justificada pela história familiar, a repetição de padrões transgeracionais em que comportamentos violentos estiveram presentes e são interpretados como adequados para o processo educativo (ALOISIO, 2002; RIBEIRO; BAREICHA, 2009).

Em muitos momentos foi exaltado como o passado era melhor que os dias atuais, pois os filhos eram mais obedientes aos pais e aos professores, e homens e mulheres eram de "verdade", pois tinham responsabilidades e pulso firme. Segundo Venturini, Bazon e Biasoli- Alves (2004), a violência doméstica poderia ser a expressão do excesso do poder disciplinador e coercitivo de pais ou responsáveis, que faz da vítima um objeto, desrespeitando seus direitos fundamentais, à vida, à liberdade, à integridade física e à segurança.

Apesar de as famílias valorizarem bastante o passado, algumas são capazes de escrever suas histórias e dar valor aos seus filhos. Os sentimentos de valorização são tidos como protetivos a partir do momento em que favorecem a construção da autoestima da família ou de seus membros (DE ANTONI; BARONE; KOLLER, 2007).

Quanto às instituições, a escola, apesar de ser percebida como fator protetivo e rede de apoio, é fonte de prazer e sofrimento porque as famílias se veem cobradas e criticadas, sentindo vergonha de si mesmas. A igreja é considerada como local seguro, onde é possível conhecer "pessoas de bem". De Antoni, Baroni e Koller (2007) descrevem a religiosidade como um fator de proteção, pois a religião ajuda a desenvolver valores morais e espirituais que proporcionam suporte emocional para que as pessoas lidem com os sofrimentos vivenciados. A justiça, representada pelas leis, pela polícia ou pelo Sistema Judiciário, é descrita ora com rejeição, ora com reconhecimento, e é tema recorrente nas falas do grupo. De Antoni, Barone e Koller, (2007) acreditam que os pais enfrentam um desafio constante em relação às práticas disciplinares. Realmente, os modelos aplicados em suas famílias de origem, como a punição corporal, são contestados pela sociedade atualmente e passíveis de intervenção jurídica (BRASIL, 1990). Algumas famílias de fato acreditam que perderam sua autoridade em razão das leis que impedem o uso da violência para a correção dos filhos. No entanto, há também a compreensão de sua importância, tanto que utilizam desses meios para controlar vizinhos e conhecidos.

As famílias compreendem por violência apenas a agressão constante ou de grande intensidade e que gera algum tipo de machucado visível. Venturini, Bazon e Biasoli-Alves (2004) enfatizam que a sujeição de jovens a diversas formas de maus-tratos no ambiente familiar pode ter duração indefinida e que a família é vista como espaço autônomo em sua gestão e no estabelecimento de papéis e regras, o que muitas vezes, no caso de famílias abusivas, pode gerar conluios, e a supressão da fala e expressão dos membros.

Muitas famílias relataram ter poucas pessoas com quem podem contar em momentos de necessidade. A falta de uma rede de apoio social pode resultar no isolamento da família, principalmente daquelas que vivem em comunidades sem recursos. Isolamento social é ter poucos amigos, não se relacionar com vizinhos ou parentes e não ter acesso a serviços de saúde e sociais (DE ANTONI; BARONE; KOLLER, 2007).

No que tange o comportamento dos filhos e a educação, Preto (1995) traz o ingresso na adolescência como uma das fases em que os filhos tendem a confrontar ordens e regras estabelecidas e os pais usam de força física como recurso para impor sua vontade e tentar controlá-los, o que os torna mais propensos ao abuso físico parental.

Os pais justificam que os adolescentes querem buscar independência, porém ainda não possuem o discernimento necessário e que, em virtude de fatores de risco da própria comunidade, eles tornam-se cada vez mais rígidos, como forma de tentar proteger seus filhos. As famílias compartilham as experiências difíceis e buscam soluções a qualquer custo, inclusive tentando controlar as amizades dos filhos como uma maneira de impedir que estes se envolvam com "más companhias" e iniciem ou recaiam no uso das drogas ilícitas.

Borges e Ribeiro (2004) afirmam que a violência intrafamiliar, assim como a violência em geral, são fenômenos complexos, que resistem a uma análise simplista, e que qualquer discussão sobre o tema deve levar em consideração aspectos sociais, políticos, culturais e econômicos que estão presentes no contexto em que surge o ato violento.

O contexto sociogeográfico em que se desenvolve a trama dessas famílias é uma região marcada pela pobreza extrema e por altos índices de criminalidade, no qual a violência presente no cotidiano das relações sociais reflete-se diretamente na vida familiar. As famílias reproduzem dentro de casa a violência sofrida no contexto social mais amplo, observando-se que dentro do contexto de incertezas e exclusões múltiplas vivido por grande parte da população brasileira, a violência torna-se uma forma de lidar com a realidade (PENSO; RAMOS; GUSMÃO, 2004). Nesse sentido, a violência sofrida é causada pelo enfraquecimento do Estado em cumprir seu papel na garantia do bem-estar de seus membros, assim como em assegurar o cumprimento das leis, e a comunidade responde com mais violência, como forma de garantir sua sobrevivência. Nesse circuito, as famílias reproduzem em seu seio a batalha diária para dar conta de sobreviver e educar os filhos em um contexto desafiador, conforme a fala de uma mãe do grupo:

A luta é maior ainda para seus filhos também não entrarem. É isso... a nossa vida é essa, a gente tem que lutar pelos nossos filhos! (R).

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A violência que essas famílias utilizam para educar seus filhos é, diante do contexto em que se inserem, uma tentativa de protegê-los; elas visam, a qualquer custo, impedir que estes envolvam-se com drogas e crimes ou sejam vítimas da violência extrema da realidade em que vivem. Desse modo, pode-se pensar que, apesar de aparentarem ser famílias violentas, elas possuem grande potencial protetivo, havendo dentro de sua organização espaço para carinho e cuidado em suas especificidades.

Como têm a Lei como "inimiga", os pais temem que seus filhos apanhem da polícia. Assim, sentem-se autorizados a bater primeiro, como maneira a evitar que apenhem depois. Com essa prática, porém, temem que a Justiça bata a suas portas, o que lhes gera um sentimento de perda de autoridade e vigia constante. Famílias, escola e vizinhos passam a se vigiar constantemente e têm como arma a Justiça, o que pode influenciar na redução da rede social de apoio dessas famílias e no potencial de articulação da comunidade para se protegerem e colaborarem entre si na vida cotidiana.

A relação com a escola é ambivalente. As mães sofrem com as críticas dos professores, mas em outros momentos se sentem valorizadas e capazes quando os filhos têm bom desempenho e são reconhecidas por isso. A igreja é, certamente, a instituição que mais possui caráter de suporte e articula, com os fiéis, uma rede social de apoio. Entretanto, ao participarem de grupos religiosos, as famílias, em muitos momentos cedem seu poder de decisão ao líder religioso, perdendo, assim, sua autonomia.

Costa (2004) traz o Grupo Multifamiliar como possibilidade de saída do enfoque assistencialista e dicotômico da relação de instituição detentora do conhecimento que ensina as famílias, para a busca de intervenções que valorizem seu potencial. Penso, Ramos e Gusmão (2004) criticam as propostas assistencialistas que, segundo elas, vem como uma forma de manter as famílias em condição de inferioridade, desigualdade social e de incompetência diante da tarefa de cuidar e educar os filhos; afirmam que gradualmente a sociedade, da maneira como vem se organizando, destitui as famílias do lugar de provedoras das necessidades de seus membros, atribuindo a elas características ligadas a pobreza, descuido, vício, abandono, muitas vezes acusando-as de serem "criadoras de delinquentes"

O intuito do Projeto Teia da Família foi abrir espaço para conhecer e compreender melhor a experiência cotidiana das famílias moradoras da Cidade Estrutural, lugar de múltiplas carências e que, dentro deste espaço de escuta e acolhimento, estas tivessem a oportunidade de aumentar sua rede social de apoio por meio do compartilhamento de vivências no âmbito da família, da comunidade e da escola, e pudessem se articular e se perceber não apenas com suas deficiências, mas principalmente com suas potencialidades o que, por si só, já é transformador.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido em: 3/11/2014
Aceito em: 2/3/2015

 

 

Endereço para correspondência

Luisa Villela Soares
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1 Luisa Villela Soares Psicóloga do Instituto Berço da Cidadania. Psicóloga, Mestre em Psicologia, Psicoterapeuta de casais e família.
2 Maria Aparecida Penso Professora do Programa de Mestrado e Doutorado em Psicologia da Universidade Católica de Brasília (UCB). Psicóloga, Terapeuta de Casais e Famílias, Psicodramatista, Doutora em Psicologia.