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Revista Brasileira de Psicodrama

versão impressa ISSN 0104-5393versão On-line ISSN 2318-0498

Rev. bras. psicodrama vol.22 no.2 São Paulo  2014

 

ARTIGOS INÉDITOS
Original Articles

 

Matriz do Sonhar Social: uma proposta brasileira

 

The social dreaming matrix: a Brazilian proposal

 

Matriz del Soñar Social: una propuesta brasileña

 

 

Gloria Hazan1; Anna Maria Knobel2; Eni Fernandes3

Departamento de Psicodrama do Instituto Sedes Sapientiae

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A Matriz do Sonhar Social (Dreaming Matrix) é um método criado por W. Gordon Lawrence no Instituto Tavistock de Londres, em 1982, no qual os participantes contam espontaneamente seus sonhos uns para os outros, em um processo de livre associação, que produz uma Matriz coinconsciente. Este artigo relata como ele foi associado, por psicodramatistas brasileiros, ao Sociodrama de J. L. Moreno, usado como prática transicional entre o mundo onírico dos participantes e as cenas coconstruídas no Sociodrama, que permitem um entendimento mais amplo da realidade social do grupo. Apresenta também um exemplo de intervenção pública no Centro Cultural São Paulo (CCSP), em 2013.

Palavras-chave: Matriz do Sonhar Social. Coinconsciente. Sonhos. Sociodrama.


ABSTRACT

The Social Dreaming Matrix (SDM) is a method created by W. Gordon Lawrence in 1982 at the Tavistock Institute (London), in which participants spontaneously share their dreams with each other in a process of free association that produces a counconscious Matrix. This article describes how this method was linked by Brazilian Psychodramatists to J.L. Moreno's Sociodrama, and used as a transitional practice between the dream-world of the participants and the sociodramatric scenes jointly constructed by them, which enable us to better understand the social reality of the group. As an example of this intervention, we describe a public event, which took place in 2013 at the São Paulo Cultural Centre (CCSP.

Keywords: Social Dreaming. Matrix. Counconscious. Dreams. Sociodrama.


RESUMEN

La Matriz del Soñador Social (Social Matrix Dreaming) es un método creado por Gordon Lawrence en el Instituto Tavistok de Londres en 1982, en el que los participantes cuentan espontáneamente sus sueños entre sí en un proceso de libre asociación que produce una Matrix coinconsciente. En este artículo se relata cómo el método fue asociado por psicodramatistas brasileñas al Sociodrama de J.L. Moreno, utilizado como práctica transcional entre el mundo onírico de los participantes y las escenas coconstruídas en el Sociodrama, que permiten una comprensión más amplia de la realidad social del grupo. También se presenta un ejemplo de una intervención pública en el Centro Cultural São Paulo (CCSP) en 2013.

Palabras-clave: Matriz del Soñar Social. Coinconsciente. Sueños. Sociodrama.


 

 

O sonho introduz um estranho mundo que não pode ser controlado, ou pode
apenas de forma bastante reduzida. Uma maneira de apreender o
incompreensível é analisar o sonho...

ZERKA MORENO, 2001

 

O objetivo deste texto é o de apresentar nossa trajetória no exercício do método Social Dreaming Matrix (W. Gordon Lawrence), associado ao do Sociodrama (J. L. Moreno). Esse trabalho vem sendo desenvolvido em instituições de ensino e em creches, bem como em congressos e workshops, sempre com bons resultados: o grupo encontra novas respostas para lidar com questões que se interpõem à produtividade e ao desenvolvimento.

Nosso grupo começa em 2004, quando Glória Hazan e outros profissionais da área de saúde passam a reunir-se periodicamente para contar sonhos. Não tardam a perceber que havia conexões entre seus sonhos, um tema comum que os convidava a refletir. Assim, trabalham intuitivamente até encontrar o método no XVI Congresso do IAGP (2006), em São Paulo, quando Hazan e Knobel participam de um workshop sobre o Social Dreaming Matrix (Matriz do Sonhar Social, em português), dirigido pelo Dr. Cláudio Neri, grupo analista italiano. O que era inicialmente vivenciado e intuído, estava ali como um elaborado método para trabalhar a dimensão social dos sonhos.

Tendo então esse método como base, nosso grupo, já em 2007 e 2008, realiza intervenções com a Matriz do Sonhar Social, sendo a primeira delas com cuidadores de uma creche de São Paulo. O sucesso desse trabalho nos leva a outros. No VII Congresso Iberoamericano de Psicodrama, em Quito no Equador, em 2009, Hazan realiza um Psicodrama Público e uma vivência com o método, sempre com ótimo retorno dos grupos. Nesse mesmo ano o trabalho foi aplicado na Sociedade de Psicodrama de São Paulo, com Anna Maria Knobel, configurando-se a associação entre duas metodologias: a do SDM e a do Sociodrama. A conjugação dos dois métodos é, assim, criação e adaptação da equipe brasileira

O trabalho foi ganhando forma e, ainda em 2009, Glória Hazan realiza um curso em Londres com o Dr. W. Gordon Lawrence. Entusiasmada com o trabalho e com o desejo de trazê-lo para cá, propõe a tradução do livro de iniciação ao método para o português. Seu convite é prontamente aceito e o livro O sentido social do sonho - a técnica da Matriz é lançado em 2010. Com o apoio do Departamento de Psicodrama (DPSedes) do Instituto Sedes Sapientiae, o lançamento ocorreu em um breve curso ministrado por Patel Bipin e Trish Barry, coordenadores e anfitriões titulados pelo Dr. W. Gordon Lawrence, que não pôde comparecer por motivos de saúde. Outros trabalhos marcantes foram: na PUC, em 2010, com alunos do curso de Pedagogia e, em 2012, com a equipe multiprofissional de duas creches conveniadas com a Prefeitura de São Paulo.

Em 2013, em tributo ao inventor do método, é criada a Fundação Gordon Lawrence e Gloria Hazan é convidada a ser Associada Internacional e representante oficial do método Social Dreaming Matrix no Brasil. Sua missão: desenvolver a prática do Sonhar Social (SDM) com parceiros que desejem trabalhar com a Fundação para expandir o legado de Gordon Lawrence.

Ainda em 2013, no dia 16 de novembro, foi realizado um trabalho público no Centro Cultural de São Paulo (CCSP), experiência descrita mais pormenorizadamente a seguir. A equipe de coordenação foi composta por Glória Hazan, Anna Maria Knobel; Terezinha Baptista Tomé, Michael David Holzhacker, Catarina Lúcia Siqueira da Cunha e Lumena Saleme Yamamura. O grupo era aberto, com público geral, contou com aproximadamente 50 pessoas e teve a duração de duas horas e trinta minutos.

 

PARTE 1: MATRIZ DO SONHAR SOCIAL

O grupo foi recebido com música ao fundo. Glória Hazan, no papel de anfitriã, deu início ao trabalho seguindo os passos de instruções e de aquecimento, descritos mais adiante neste texto. Propôs e acordou com o grupo o tema a ser trabalhado, que ficou assim composto: "Liberdade, Morte, Beleza, Crueldade".

Em seguida, dirigiu os participantes a um movimento introspectivo. A atmosfera onírica criada envolveu a todos, logo convidados a sonhar seus sonhos novamente, oferecendo-os à Matriz.

Foram, aproximadamente, 30 sonhos narrados, que percorreram os seguintes temas: prisão, necessidade de atenção, desamparo/abandono, raiva, objetivos não atingidos, perigo, morte, dor, tristeza, amor, liberdade, vitória, encontro, mudança, alegria e transformação.

Para ilustrá-los, descrevemos fragmentos ou pontos centrais de alguns deles:

1. "... tem uma parte bem pesada em cima, parece que eu queria me libertar daquele peso...";

2. "... tinha pedido alguma coisa muito importante para a minha mãe fazer... entrei no carro e ela não fez ... fiquei com muita, muita raiva...";

3. "...eu continuo muito pendurado numa dependência (escolar) e tenho certeza de que ainda não me formei e fico achando superestranho que eu já estou trabalhando...";

4. "... e, de repente, eu me vi dentro de um navio... caio na água, me afoguei e ninguém me ajudou...";

5. "... estou na minha rua... saio correndo e começo a voar... aparecem... pessoas que começam a voar comigo... sensação de liberdade...";

6. "... sonho que eu gostava... eu tinha aquela sensação gostosa de correr, correr, correr e ao mesmo tempo voar; eu dava pulos como seu eu fosse o Superman...";

7. "... o mundo tinha acabado e as pessoas tinham virado zumbis... eu tinha sobrevivido... tinha que matar... iam me comer... eu tinha uma espada gigantesca...";

8. "... a pessoa se transformou numa entidade... vi... virar uma fada e aí eu me espantava... a fada se escondia dentro da pessoa... comecei a voar... tinha me transformado também.".

A narrativa de sonhos foi encerrada e, ao ser solicitada uma palavra para compartilhar e traduzir aquela experiência, o grupo colocou: Conexão, Identificação, Estranhamento, Soltar o que está preso, Mergulho, Afinidade.

 

PARTE 2 – SOCIODRAMA

Anna Maria Knobel assume a direção nesta segunda etapa, convidando todos a sair do campo onírico e a organizar a sabedoria advinda dos sonhos, em torno dos temas levantados no início: Liberdade, Beleza, Morte, Crueldade.

Forma pequenos grupos para que cada um encontre ou apure o próprio tema, os quais, após essa experiência, assim se expressaram: Sono, Revelação Incômoda, Liberdade, Fantasia, Surpresa, Saudades, Angústia, Desconforto, Descrença, Fragilidade, Medo, Paz de Espírito, Perda de Controle, Aprofundamento/Mergulho, Lembrança, Identificação.

Por afinidade, entre esses temas há novo arranjo grupal, que resulta em sete subgrupos: Despedida/Saudade, Desconforto revelador, Medo, Controle, Sono, Fantasia, Liberdade. Cada um deles cria uma escultura fluida, que acaba por se tornar um enredo cênico coletivo, em sequência que dá sentido ao movimento do grupo: Solidão, Medo e Liberdade.

Algumas cenas foram mais elaboradas conceitualmente ou na apresentação, outras mais simples. Todas, porém, bastante expressivas. Para ilustrar essa produção, destacamos:

a. a escultura da Solidão: uma torre humana retorcida de dor e ensimesmamento;

b. a escultura do medo da perda: todos algemados pelo medo que aprisiona;

c. e a cena da liberdade: um dragão composto por várias pessoas, em coreografia, com sons de apitos.

Seguiram-se comentários que demonstram elaboração da vivência, estranhamento, força do grupo e do compartilhamento, alívio e incredulidade. Eis, alguns de seus trechos:

1. "...o Medo que prende, algema... gera Angústia, mas que a gente tenta sair disso... e aí veio a Fantasia, cada um encontrando seu caminho... E aí a ajuda dos colegas, de quem seja, com o abraço, contando com o apoio dos outros e, por fim, a Liberdade...";

2. "... sair de circunstâncias ou sentimentos quase individuais e chegar a alguma coisa que é consenso de um maior número de pessoas.";

3. "... fiquei muito impressionada porque eu não estava entendendo nada... E depois, parece que a gente até tinha ensaiado.";

4. "... deu muita dor de cabeça e fazia muito tempo que eu não tinha...";

5. "...uma palavra usada que eu gostei muito foi o sentimento de Festa...";

6. "... saindo lá fora agora, vocês vão ver muitas cenas, só que... não acontecem uma de cada vez e não acontecem numa sequência, isso não existe...".

Em meio a esses depoimentos, Anna Maria Knobel enalteceu o acolhimento que se encontra em um grupo ao compartilhar e trocar experiências. Como é possível perceber, o processo percorre o que pulsa no grupo e permite que cada um se aproprie do que foi produzido por todos e para todos, pela via dos sonhos, dando novos e criativos sentidos aos temas e às questões trazidas pelo grupo.

Voltando à reflexão sobre o processo, podemos dizer que o SDM (Matriz do Sonhar Social, em português) é um método que consiste na amplificação dos sonhos, por meio da associação livre destes. Essa técnica revela sentidos e conexões entre os sonhos que, por sua vez, apontam para questões nem sempre conscientes.

Vale dizer que, para Moreno, a técnica de livre associação foca sua importância na espontaneidade, ainda que se limite ao plano verbal. O que é eficaz não é a associação das palavras, mas sim a espontaneidade que influencia o processo associativo.

Quando lidamos com sonhos, nós o fazemos com importante diferencial do adotado pela psicanálise: a ênfase recai em sua função social e não terapêutica, numa orientação sociocêntrica. A perspectiva sistêmica, holística dos sonhos é contemplada. Dito de outra forma, o foco se desloca do sonhador para o sonho! Nesse sentido se altera a função do trabalho com sonhos: deixa de ser um método terapêutico de exploração do inconsciente individual e passa a atuar no espaço imaginativo da dimensão onírica, que se encontra na origem da cultura e do conhecimento humano.

O sonhar tem sido conduzido socialmente há milênios, quando as pessoas contavam seus sonhos para os outros: na tribo, na família e na comunidade, dando-lhes sentidos coletivos.

O objetivo do Sonhar Social é transformar o pensamento dos sonhos colocados à disposição da matriz para gerar novos insights através das conexões entre eles.

A Matriz é a teia de sentimentos, de emoções e do pensar presentes em toda relação social. Despercebida, porque é, em sua maior parte, subliminar e inconsciente, não acessível à consciência dos indivíduos no desempenho dos papeis sociais. Assim, o Sonhar Social ecoa na vida desperta o que é produzido nos sonhos. A matriz do sonho social aponta em especial, para temas pressentidos. A proposta do método é a de entrar em contato com esse tipo de pensamento enquanto acordado.

O compartilhar da narrativa onírica cria um campo que permite às pessoas expor suas emoções de modo aberto e sem medo da crítica do outro: tendo seu mundo interno preservado, entregam-se à experiência. Disso resulta a aproximação afetiva entre elas e pode ser considerada uma forma de psicoterapia de grupo comunitária. É uma das terapias possíveis para pessoas em situação de risco social pois "a resposta de cada um alimenta mudanças nas perspectivas dos demais" (LAWRENCE, 2007).

No SDM feito em ato único também acontece forte mobilização das emoções, surgem conteúdos variados e intensos. Quando realizado em processo de vários encontros, vão se desvendar um ou mais temas que, segundo Lawrence (2010), trazem assuntos ora excluídos da consciência ou do saber, ora omitidos do grupo. São prioritariamente temas proibidos ou de difícil abordagem.

A proposta na prática é reunir até 60 pessoas, em encontros previamente estipulados de três a cinco sessões, com a duração de uma hora e meia. Os participantes são dispostos em grupos de três ou quatro, de costas um para o outro, mantendo-se o centro da sala vazio. As sessões podem ser dirigidas por duas pessoas ou um pequeno grupo de anfitriões (LAWRENCE, 2010). A conotação de Anfitrião e não Diretor contém em si a ideia do papel: receber as pessoas e acolher seus sonhos sem percurso predeterminado.

Outra proposição para o bom funcionamento do grupo é o anfitrião promover clima e ritmo no campo para que cada participante fale o mais livremente possível, possibilitando a cada um o aparecimento de conteúdos que reverberem em todo o grupo. Os anfitriões devem evitar fazer interpretações ou focar diretamente um único participante, promovendo, dessa forma, a criação de membrana grupal que abarque e contemple todos; e evitando que o campo se fragmente ou fique focado exclusivamente em alguém.

Depois dessas instruções e do aquecimento, os participantes são convidados a fechar os olhos e a conectarem-se consigo mesmos para recordar sonhos que elejam contar naquele momento e espaço. O anfitrião convida o primeiro que queira iniciar a narrativa. Está aberta a Matriz quando se produz o encadear espontâneo de outros sonhos, um estimulando o de outro, em continuada sucessão de temas afins.

A técnica consiste em promover uma permissão interna que cada participante se outorga e que lhe possibilita, ao mesmo tempo, interagir com seu mundo interno e com o grupo, conectar-se com sensações e sentimentos que surjam a partir da escuta atenta da narrativa dos sonhos dos demais. Perceber o que os tocou e os sensibilizou ao compartilharem seus sonhos contribui para a formação da Matriz.

Iniciado o trabalho, um clima de magia envolve a todos. Essa atmosfera leva a uma experiência sutil: a sensação de transformação qualitativa do encontro, que pode conduzir o grupo a experiências de outras dimensões de realidade, como a de: voar, pós-morte, sonhos premonitórios. A emergência de temas comuns expressos por emoção, medo, perseguição e catástrofe compartilhados enseja a consciência amplificada do grupo.

Ainda outro resultado é o de que se tornam possíveis percepções intuitivas, sentimentos e sensações, cujo solo é a intersubjetividade. Nesse sentido, diferentemente de tornar consciente o inconsciente pela interpretação, a proposta do SDM é sensibilizar o olhar para o fenômeno intuitivo que se estabelece entre as pessoas no âmbito social.

A associação das narrativas permite identificar os padrões que conectam os vários sonhos e revelar a natureza subjacente do contexto social no qual o grupo de sonhadores está inserido. Contribui, assim, tanto para o autoconhecimento quanto para o reconhecimento de conflitos. Diríamos ainda que expande o pensamento, dando novos e criativos sentidos à realidade, trazendo consciência de temas que permeiam as relações.

Esse processo pode promover intenso momento de espontaneidade, abrindo campo para o acontecer criativo e permitindo a experiência de compartilhamento do mundo onírico, cujo efeito consiste na liberdade de expressão e na conexão profunda entre os participantes.

Ao apresentar o método do Social Dreaming Matrix, Gordon Lawrence diz que o processo de narrar sonhos de forma espontânea e encadeada conduz aos "processos primários inconscientes e infinitos da Matriz."

Para o autor, esse processo se enraíza no inconsciente infinito que não é controlado pela consciência e tem uma lógica própria, na qual a emoção predomina tanto sobre o raciocínio como sobre a percepção das experiências. Assim, para ter acesso ao "inconsciente, não é suficiente apenas decodificar conteúdos, mas, principalmente, ter uma percepção emocional" (MONDRZAK, 2003).

As ideias de Matte Blanco (1908-1995), psiquiatra e psicanalista chileno ajudam sobremaneira a compreensão dessa afirmação acerca de um inconsciente infinito. Segundo Matte Blanco, consciente e inconsciente não são locais da mente, mas modos de ser (MONDRZAK, 2007) que se pautam por duas lógicas: a assimétrica que estabelece relações pelo pensamento cotidiano e pelo bom senso, na qual não há condição de reversibilidade, por exemplo, a afirmação: "João lê o jornal" não pode ser transformada em "o jornal lê João." A lógica simétrica se move simultaneamente nas duas direções, quando se diz: "Josefina é esposa de Daniel" há a possibilidade de reversão sem que a afirmação deixe de ser verdadeira: "Daniel é esposo de Josefina". Para esse autor, o inconsciente se rege pela lógica simétrica na qual não vigoram os princípios da não contradição e de ordenação do tempo e do espaço. Nele o passado pode ser o presente, o antes pode ser o depois e o desconhecido pela consciência pode se apresentar. É nessa reversibilidade de processos inconscientes, que a Matriz acomoda infinitas possibilidades de expressão.

Configura-se aqui a seguinte questão metodológica: como facilitar o trânsito dos elementos da Matriz para a vida cotidiana e permitir o acesso ao conhecimento infinito provido por ela? Lawrence propõe após a Matrix, o "dream reflection dialogue," ação verbal na qual cada um é estimulado a estabelecer nexos entre o pensamento inconsciente infinito e a realidade compartilhada. O fato de a equipe de Anfitriões da Matriz do Sonho Social ser constituída por psicodramatistas resultou no emprego do método sociodramático na etapa de reflexão. Como o Sociodrama promove um processo de elaboração em campo relaxado e lúdico (KNOBEL, 2004), essa associação tem se mostrado eficaz instrumento de mapeamento, expressão ativa, catarse e elaboração do vivido.

Além disso, essa junção da Matriz do Sonho Social com o Sociodrama se sustenta conceitualmente pois, como vimos, as duas metodologias operam de modo assemelhado em relação à percepção das experiências: as duas não se apoiam na lógica aristotélica mas, sim, nas emoções, na lógica simétrica do pensamento. Na Matriz o encadeamento se dá pela associação de sonhos, no Sociodrama as conexões ocorrem pela sucessão de cenas metafóricas e/ou composições imagéticas enraizadas no corpo.

Essas similaridades entre os dois métodos favorecem a manutenção do fluxo coinconsciente, engendrando desdobramentos e amplificações das imagens oníricas, estabelecendo paralelos "entre os conteúdos da Matriz e o contexto coletivo dos participantes".

O conceito Socionômico de coconsciente-coinconsciente oferece importante sustentação cognitiva para o processo, pois ilumina os estados compartilhados de ser e compreender a si próprio, aos outros e ao mundo, e organiza de forma não intencional ou voluntária entre duas ou mais pessoas. Além de serem fruto da coexistência, são construídos como formas de evasão do que não pode ser dito, assumido ou reconhecido na vida social e na cultura, sendo em geral compostos por "traumas e glórias selecionados." (WEINBERG, 2007, apud PENNA 2014, p. 418). Assim, condensam valores, costumes, história e estórias coletivas que, oriundos do passado, dão forma às experiências do presente. No SDM e no Sociodrama eles podem ser vividos e assumidos sem medo ou culpa, por meio do compartilhar igualitário entre humanos.

Entretanto, apesar dessas similaridades, há uma discrepância fundamental entre esses dois métodos: no SDM intencionalmente não se constitui um grupo, e no Sociodrama o trabalho é centrado no grupo. Foi necessário, então, inventar uma maneira de transição natural entre os dois momentos, de forma que não se perdesse o clima dos sonhos.

Como estratégia temos esclarecido, logo no início do trabalho, a existência de duas etapas específicas de expressão, a da Matriz e a do trabalho coletivo. Temos também trabalhado com dois líderes profissionais: o Anfitrião para a Matriz e o Coordenador de Grupo, no Sociodrama. Eles promovem dois modelos de aquecimento: o sensível, fantasioso e musical para a Matriz e o operativo, motor e relacional para o Sociodrama. Com esses cuidados tem ocorrido uma passagem natural e discriminada entre os dois momentos.

Esse Sociodrama começa com a atitude do diretor de marcar o fim da etapa da Matriz e o início do momento grupal. Promove, então, um aquecimento específico com foco na tarefa de evidenciar os sentidos do encadeamento dos sonhos da Matriz.

O primeiro momento é de introspecção para circunscrever as vivências pessoais mais importantes. Cada um compartilha esses conteúdos com alguém, criando-se duplas escolhidas ao acaso, pois busca-se viver a complexidade do coletivo.

Em seguida, as duplas se juntam em pequenos grupos de quatro nos quais há uma inversão de papéis: cada parceiro da dupla fala das impressões do outro, permitindo maior apropriação vivencial das experiências na Matriz. O clima em geral é vivo e interessado: escuta-se e fala-se em um partilhar que inclui todos os presentes em um locus de intimidade e pertencimento.

Em um segundo momento, cada subgrupo é solicitado a criar um pequeno enredo inspirado nos relatos e/ou nos personagens mais relevantes para eles.

É importante que cada script tenha começo, meio e fim ao ser encenado teatralmente no palco psicodramático Um depois do outro, todos os subgrupos se apresentam. Cada um deles dá um nome a seu enredo. Ao fim das diferentes dramatizações todos juntos definem a melhor sequência destas, criando um roteiro coletivo que ganha um título.

Após o compartilhamento, na fase de comentários, estabelecem-se possíveis nexos entre o que foi desvelado pela Matriz e pelo Sociodrama em relação às questões do grupo em sua inserção social. Isso expande o trânsito entre o pensamento simétrico e o assimétrico, possibilitando um modo de ser que Matte Blanco chama de bi-lógico.

Assim, esse processo não visa produzir consenso, mas justamente o contrário: um "multiverso" (LAWRENCE, p. 68), que engloba os inúmeros sentidos coconscientes/coinconscientes daquele grupo, sentidos estes que sempre estão ancorados em questões sociais amplas: valores, mandatos, crises, culpas e medos coletivos. O que não pode ser dito irrompe pelos sonhos e pelas cenas, desvelando o coinconsciente grupal. Esse Sociodrama, que podemos chamar de transicional, tem algumas características específicas:

  • há muitas cenas com personagens míticos (dragões, dinossauros) que evidenciam a mobilização de um inconsciente primevo;
  • os enredos envolvem grandes ameaças, estados de desproteção e desvalia social, pois o coinconsciente não é domesticado pela objetividade;
  • a produção conjunta transforma os medos em atitudes coconscientes assertivas de coragem ou em propostas bem humoradas e caricatas;
  • são visíveis o prazer e o alívio que a ação criativa promove, gerando alegria e um falar de si mesmo sem fim;
  • fica evidente também que pessoas bem simples, com baixo nível de escolaridade, que desempenham tarefas de apoio (limpeza, cozinha) frequentemente assumem o espaço protagônico no Sociodrama em virtude de seus sonhos muito tocantes, que desconstroem estratificações e preconceitos sociais ligados à educação e à instrução formal.

O Sociodrama associado à Matriz Social dos Sonhos vem sendo realizado em atos únicos e em grupos processuais com equipes profissionais. Neste último contexto, as avaliações dos resultados indicam melhora na comunicação, estabelecimento de um clima afetivo mais próximo e agradável entre todos, sejam eles subordinados, chefes, sejam coordenadores de equipe uma vez que os sonhos compartilhados operam em um campo de fraternidade.

Em atos únicos em espaços públicos, é evidente a importância da participação igualitária, pois nesse tipo de experiência todos são importantes.

Ainda estamos no início dessa pesquisa que visa compreender a riqueza da associação entre esses dois métodos, mas, desde já, têm nos encantado a simplicidade e a eficácia deles pois, em apenas três horas de duração, a atividade produz efeitos subjetivos, vinculares e grupais duradouros, conforme relatos dos coordenadores das instituições onde foram aplicados.

 

REFERÊNCIAS

CUKIER, R. Palavras de J. L. Moreno, São Paulo: Ágora, 2002.         [ Links ]

GERBER, I. Caminhos da intersubjetividade: Ferenczi, Bion, Matte Blanco, In: Psicol. USP, vol. 10, n. 1, São Paulo, 1999. Disponível:em:<http://dx.doi.org/10.1590/S0103-65641999000100007>. Acesso em: 3 mar. 2015.         [ Links ]

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LAWRENCE, G. W. Infinite Possibilities of Social Dreaming, London: Ed. Karnac, 2007.         [ Links ]

______ O sentido social dos sonhos – a técnica da Matriz, São Paulo: Summus Editorial, 2010.

MONDRZAK, V. et al. O inconsciente na perspectiva da complexidade e do caos: uma abordagem inicial, Grupo de Estudos de Epistemologia Psicanalítica SPPA, In: Revista de Psicanálise – SPPA, vol. X, n. 3, 2003, Porto Alegre. Disponível em <http/site.sppa.org.br/info_conteudo_revista/354>. Acesso em: 3 mar. 2015.

MONDRZAK, V. Processo psicanalítico e pensamento: aproximando Bion e Matte-Blanco. In: Revista Brasileira de Psicanálise, v. 41, n. 3, São Paulo, 2007. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0486-641X2007000300011. Acesso em: 3 mar. 2015.         [ Links ]

MORENO, Z.; BLONMKVIST, L. D; RÜTZEL, T. Realidade Suplementar e a arte da Cura. São Paulo: Ágora, 2001.         [ Links ]

PENNA, C. Inconsciente social. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2014.         [ Links ]

 

Endereço para correspondência

Glória Hazan
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Tels.: (11) 3801-2828 / cel. 99272-7112
E -mail: enif@uol.com.br

Recebido: 12/2/2015
Aceito: 23/2/2015

 

 

1 Glória Hazan Psicóloga, psicodramatista, mestre em Ciências da Religião pela PUC-SP, autora de Filosofia do judaísmo em Abraham Joshua Herchel: consciência religiosa, condição humana e Deus. Participante do Grupo Vagas Estrelas de Teatro e Psicodrama, coordenadora dos Pescadores de Sonhos e de grupos de estudo sobre Cabala e Psicologia. Representante no Brasil, associada internacional da Fundação Gordon Lawrence SDM (2013).
2 Psicóloga, psicodramatista, mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP, autora de Moreno em Ato a construção do Psicodrama a partir das práticas e de vários artigos sobre Psicodrama e grupos publicados em revistas e livros de Psicodrama. Supervisora didata do Departamento de Psicodrama do Instituto Sedes Sapientiae.
3 Psicóloga pela PUC-Campinas, psicodramatista pela Sociedade de Psicodrama de São Paulo (SOPSP), supervisora didata pelo Instituto Sedes Sapientiae e diretora de Psicodrama pelo Instituto J. L. Moreno. Experiente no atendimento clínico de adultos, casais e grupos.