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Revista Brasileira de Psicodrama

versão impressa ISSN 0104-5393versão On-line ISSN 2318-0498

Rev. bras. psicodrama vol.24 no.1 São Paulo jun. 2016

http://dx.doi.org/10.15329/0104-5393.20160002 

ARTIGOS INÉDITOS

 

Leitura conceitual sobre o fenômeno da transferência na cena psicodramática

 

Conceptual reading about the phenomenon of transference in psychodramatic scenes

 

Lectura conceptual del fenómeno de la transferencia en la escena del psicodrama

 

 

Fábio Santos; Tatiana Torres de Vasconcelos

Universidade Tiradentes (Unit)

 

 


RESUMO

A discussão sobre a transferência no Psicodrama, apesar do que já foi feito por Moreno e alguns outros autores no Brasil, ainda é incipiente e demonstra carecer de certo aprofundamento, sobretudo um que não a situe exclusivamente enquanto mazela da relação télica. Com o objetivo de investigar a abordagem da transferência na literatura psicodramática, este artigo apresenta breves considerações em torno dos aspectos relacionados à temática. No trabalho, uma pesquisa de revisão bibliográfica, pôde-se perceber que a transferência obteve segundo plano no Psicodrama, prática e teoricamente, contudo isso não a impediu de fazer parte da cena psicodramática, mesmo com suas idiossincrasias: por um lado, elemento de repetição, automatismo e equívoco; por outro, catalisador do processo psicoterápico.

Palavras-chave: psicodrama, papéis, transferência psicoterapêutica, pesquisa bibliográfica


ABSTRACT

The discussion about transference in Psychodrama, despite what has been done by Moreno and some other authors in Brazil is still developing and demonstrates a lack of refinement, especially one that is not only cited as deficiency within the telic relationship. With the aim of investigating the approach to transference in psychodramatic literature, this article presents brief considerations around the aspects related to the theme. In this work, through a bibliographic research review, it could be seen that transference held a secondary position in Psychodrama, practically and theoretically, however, that did not stop it from being part of the psychodramatic scene, even with its idiosyncrasies: on the one hand, an element of repetition, automated and ambiguous; on the other, a catalyst of the psychotherapeutic process.

Keywords: psychodrama, roles, psychotherapeutic transference, bibliographical research


RESUMEN

La discusión sobre la transferencia en el Psicodrama, a pesar de lo que Moreno y algunos otros autores en Brasil ya han hecho, todavía es incipiente y demuestra falta de cierta profundización, especialmente una que no sólo sitúa como una enfermedad de la relación télica. Con el objetivo de investigar el abordaje de la transferencia en la literatura sobre el psicodrama, este artículo presenta breves consideraciones sobre los aspectos relacionados a la temática. En el trabajo, una investigación de revisión bibliográfica, se puede percibir que la transferencia ha obtenido el fondo en el Psicodrama, práctica y teóricamente, sin embargo, eso no ha impedido la transferencia ser parte de la escena de psicodrama, incluso con sus idiosincrasias: por un lado, elemento de repetición, automatismo y equívoco; por otro, catalizador del proceso psicoterapéutico.

Palabras-clave: psicodrama, roles, transferencia psicoterapéutica, investigación bibliográfica


 

 

INTRODUÇÃO

A transferência, fenômeno associado à relação clínica, pode estar presente entre os grupos terapêuticos ou mesmo nas relações cotidianas. Embora a transferência seja um elemento comum à Psicanálise, abordagem reconhecida por sustentá-la, pela sua importância no tratamento clínico, no Psicodrama, apesar de sua ênfase ser menor quando comparada a outros elementos, a transferência também é fator atuante, clínica e teoricamente.

Este artigo tem o objetivo de investigar a abordagem da transferência na literatura psicodramática. Por esse motivo, o trabalho contribui como um compêndio que agrega alguns dos posicionamentos no campo da literatura psicodramática, segundo psicodramatistas e estudiosos.

 

MÉTODO

Trata-se de uma pesquisa bibliográfica cujas fontes consultadas são oriundas, em sua maioria, de bibliografia nacional. O principal aspecto de inclusão foi versar sobre a transferência, excetuando-se os escritos de abordagens não psicodramáticas. Em razão do primeiro critério, não se pôde selecionar facilmente textos atuais − principalmente livros e artigos científicos que datassem dos últimos cinco anos − para compor o corpus deste trabalho. Metodologicamente, a leitura seletiva e analítica foi empregada para a organização do material que posteriormente foi tratado mediante leitura interpretativa.

 

A RELAÇÃO TELETRANSFERÊNCIA NO PSICODRAMA

Na literatura psicodramática, a transferência é tratada como o lado patológico da tele (Bustos, 1992, Costa, 2015, Gonçalves, Wolff & Almeida, 1988; Moreno, 1997). Bezerra (2011) conceitua a transferência como a ausência ou o embotamento da tele, que representa, para Moreno (1997), "um sentimento que é projetado à distância, a unidade mais simples de sentimento transmitida de um indivíduo a um outro" (p. 135).

Entretanto, a definição de tele é motivo de certa imprecisão conceitual entre alguns autores (Kellerman, 1998): Aguiar (1998) a classifica como a faculdade perceptiva que permite acessar a essência do outro como ele é; já Kellermann (1998) a classifica como o que favorece oencontro autêntico com o outro em seus aspectos atraentes e repulsivos. Para Gonçalves,Wolff e Almeida (1988), a tele é a capacidade inata de discernir objeto do que é pessoa, embora Fonseca Filho (2010) a caracterize como o discernimento das pessoas entre si e Bezerra (2011) atribua à tele a faculdade de discernir sobre o mundo circundante.

Para Lima (1999), ao não esmiuçar a relação teletransferência, Moreno acabou deixando uma vaga lacuna no aprofundamento desses elementos. Talvez por isso ainda hoje a tele seja configurada como um elemento de ordem relacional, intersubjetivo, e à transferência pese negativamente apenas a responsabilidade daquele que transferiu. Com efeito, o debate teletransferência é causador de desdém e opiniões idiossincráticas (Aguiar, 1998). Estigmatiza-se a transferência como sinalizadora de uma relação não saudável, enquanto à tele seja atribuído um sentido positivo quanto à qualidade da relação (Lima, 1999).

Por questões ideológicas, Moreno privilegiou o estímulo à espontaneidade e à tele na recuperação da saúde, sem que precisasse retomar experiências do passado cujo poder de influência seria desfeito (Gonçalves et al., 1988). Essa concepção pode levar psicoterapeutas a criar expectativas quanto às relações com seus pacientes. Provavelmente para apaziguar o temor da transferência no tratamento clínico, Moreno (1983) considerou ser insatisfatório buscar explicar o comportamento de pacientes e terapeutas em grupos através de conceitos transferenciais e contratransferenciais, embora a irracionabilidade tenha sido atribuída para julgar a conduta grupal desadaptada em termos de transferência-contratransferência.

Para dirimir a persistência da transferência no tratamento psicodramático, "Moreno considerava que seus aspectos ficcionais e distorcidos foram demasiadamente enfatizados e que os aspectos de realidade do encontro que tem lugar no aqui-e-agora, ou foram vistos muito por alto ou inteiramente esquecidos" (Kellermann, 1998, p. 115).

O foco no fator tele, em detrimento da transferência e de outros elementos teóricos, pode significar a cristalização de uma terminologia própria e ter influenciado Moreno a não "analisar omecanismo da transferência, nem sua relação com outros, nem em tomá-lo como instrumento,como propunha Freud" (Gonçalves et al., 1988, p. 50).

Segundo Garfield (2008), a antipatia à Psicanálise e a Freud tornou a integração de conceitos e práticas analíticas no Psicodrama mais difícil nos Estados Unidos; porém Castillo (2000), por sua vez, revela que a aversão de Moreno não repercutiu de maneira inócua na Espanha, pois afetou uma gama de seguidores a ponto de psicodramatistas levantarem defesas diante da alusão associativa entre Psicanálise e Psicodrama. No Brasil, críticas recaem sobre a modalidade bipessoal do Psicodrama, presente há décadas no país, mas alvo de críticas por Moreno. Dias (1987, citado por Cukier, 1992) assinala que as principais implicações desvantajosas dessa modalidade decorrem da perda da distância terapêutica, estimuladora da transferência; a facilitação da contratransferência, por contaminação; e a limitação ao maior uso de técnicas verbais que de ação - três aspectos também presentes na Psicanálise.

Apesar de o sucesso do tratamento ser dado a outros elementos, nem mesmo Moreno poderia evitar que a transferência ocorresse em seus grupos terapêuticos. Criativamente, ele elaborou uma forma de manter-se distante da influência direta dos processos transferenciais através da utilização de ego-auxiliares na "linha de frente" das experiências protagônicas.

Além de salvaguardar o diretor dentro de uma distância "segura", com a presença dos ego-auxiliares, o impacto da contratransferência também se dissiparia, pois estes assumiriam a função de receptores da transferência do protagonista, diminuindo as chances de colocar o diretor num duplo papel (Kellermann, 1998). No Psicodrama clássico, o terapeuta distancia-se estrategicamente do desenvolvimento das cenas, levando ego-auxiliares e a plateia a canalizar determinadas experiências e distribuí-las pelo grupo (Lima, 1999). Essa "proteção" diminuiu a convicção do terapeuta principal de ser alvo da transferência, estimulando a negação e a minimização do fato (Garfield, 2008).

A proposta seria preservar o status do diretor com a assimetria característica da relação terapêutica. Na Psicanálise, o vínculo terapêutico ocorre por meio da transferência e se caracteriza pela relação assimétrica entre analista-analisando. Bustos (1992) complementa essa ideia alegando que o paciente deseja ter uma relação simétrica − prejudicada nas relações reais - com o seu psicoterapeuta.

Ao dar ênfase aos ego-auxiliares, Moreno reforça sua posição ao enfocar a tele e não a transferência, como se pode inferir dessa afirmação: "o médico, face a face, converteu-se num médico à distância. Ele ajustou a sua função à dinâmica de um mundo tele" (Moreno, 1997, p. 299). Ele demonstrou sua seletividade quanto ao que espera nos encontros psicodramáticos: mais tele e menos transferência (Costa, 2015). Não se trata de um julgamento que espere o oposto, afinal, a relação télica promove o progresso terapêutico (Moreno, 1983; Fleury, 1999) e muitos psicodramatistas, estejam eles atuando em grupos ou na clínica bipessoal, aspiram por isso.

 

A TRANSFERÊNCIA NOS ESCRITOS PSICODRAMÁTICOS

A transferência ocorre fora do setting psicoterápico, acontecendo também em outras relações (Garfield, 2008, Lima, 1999). Experiências responsáveis por influenciar o modo como se veem situações atuais, ao fazer parecer que algo vivido antes ocorre mais uma vez (Gonçalves et al., 1988), e experiências de abalo emocional produtoras de padrões de comportamento (Aguiar, 1998) podem ser elencadas como eventos de carga transferencial produtoras de uma posterior autotransferência (Fonseca Filho, 2010).

A proposta de retomada de experiências do passado pode se desencontrar da noção do aqui-e-agora adotada no Psicodrama. Moreno alegava que lidar com essas questões não levaria ao entendimento da dinâmica nas relações sociais (Gonçalves et al., 1988). Moreno (1983) e Kellermann (1998) concordam que a transferência remeta a relações do presente marcadas por alguma influência do passado. Inevitavelmente, torna-se difícil para o psicodramatista que queira manter a seguridade da relação clínica deparar-se com uma manifestação transferencial, não apenas porque ele constata uma dificuldade télica, mas também em razão de outras dificuldades que podem estar implicadas.

A ausência de discussões em torno da transferência pode levar ao desconhecimento ou mesmo não aprofundamento de sua dinâmica no espaço psicodramático, obrigando o psicoterapeuta a recorrer a leituras de outras linhas, ou a levar adiante uma bagagem às vezes equivocada. O pensamento teórico viabiliza a compreensão entre o que se pensa e o que se faz, além de favorecer material de reflexão que supera a dissociação teoria-prática (Aguiar, 1998). Em situações às quais o psicoterapeuta se centra em outros elementos e evita cogitar o significado do fenômeno transferencial, corre-se o risco de interpretar toda mensagem agressiva, inclusive télica, como transferencial (Bustos, 1992).

Passado e transferência nem sempre estão condicionados. A transferência apenas adquire sinônimo de patologia dependendo de fatores como intensidade, frequência e tipo de relação (Fonseca Filho, 2010). Como aspecto de adoecimento, ela degrada a capacidade de estabelecer ou manter satisfatoriamente os vínculos possuídos, o que em geral não é algo tão consciente para o paciente, mas que paulatinamente ele demonstrará em sua relação com o psicoterapeuta (Lima, 1999). Pequenos indícios precisam ser notados, pois "às vezes um paciente parece estar experimentando uma emoção, mas não está consciente dela. Isto é, o paciente não tem experiência subjetiva da emoção - por exemplo, embora o paciente possa não se sentir bravo, ele age de maneira hostil" (Atkinson et al., 2012, p. 421).

Para Moreno (1983), o relacionamento psicoterápico facilita a exteriorização de material interno que comunica algumas das necessidades do paciente, inclusive por meio de hostilidade e transferência, que perduram por certo tempo até se reestabelecer a tele. Pode-se considerar, então, que em todos os relacionamentos existem resquícios de realidade e fantasia, e mesmo as relações transferenciais são influenciadas por aspectos da realidade (Kellermann, 1998). Ou seja, numa relação pode haver momentos télicos e transferenciais flexivelmente (Bustos, 1992; Fonseca Filho, 2010). Assim como através da tele, transferencialmente as pessoas constroem seus grupos sociais, formando os diferentes átomos presentes em suas redes sociométricas (Fleury, 1999).

Embora atenue o peso negativo que paira sobre a transferência, essa alegação não diminui o consenso de que uma tele patológica gera equívocos perceptivos e sofrimento às relações vividas (Gonçalves et al., 1988). Em que pesem os seus defeitos, a transferência é tida como a projeção de características próprias nos outros (Aguiar, 1998; Fonseca Filho, 2010). Segundo Kellermann (1998), a transferência promove a repetição vívida do passado, incongruente com o aqui-e-agora por sua distorção, e que pode impedir novas respostas à relação.

Como inversão da tele, a transferência se configuraria como "escolhas desencontradas que se produzem no momento em que o indivíduo não é capaz de estar em contato com o outro real, confundindo-o com figuras do seu mundo interno" (Lima, 1999, p. 16). Ou seja, além de delinear um modo de agir às relações do passado, a transferência distorce perceptos por necessidades afetivas e fantasias subjacentes a respeito de importantes papéis complementares (Fleury, 1999). De acordo com a teoria socionômica, as pessoas se satisfazem quando podem desempenhar suas intencionais funções numa relação (Moraes Neto, 1999).

Nesse sentido, a experiência psicoterápica, geralmente visualizada como reprodutora da relação mãe-filho (Cukier, 1992), torna-se naturalmente prejudicial ao estimular distorções perceptivas e a necessidade de equilibrar a relação de maneira simétrica. Não por acaso, o fenômeno da transferência está associado à relação entre psicoterapeuta e paciente: um relacionamento marcado pela desfiguração da imagem do primeiro, que passa a assumir um papel muitas vezes condizente a um pai ou uma mãe para o segundo (Kellermann, 1998).

Essa constatação força, inevitavelmente, a repensar o vínculo desse relacionamento, assim como todos os outros dos quais o paciente possa ter se queixado ou mantido ao longo da sua vida. Seria confirmada também na clínica psicodramática a máxima "freudiana" de que "todo conflito [clínico] deve liberar-se na esfera da transferência" (Bustos, 1992, p. 43)?

 

CONCEPÇÕES VALORATIVAS SOBRE A TRANSFERÊNCIA

O fenômeno transferencial identificado na vida do paciente permite ao terapeuta investigar ou relegar as implicações em sua saúde. Aceitá-lo pode levar a diferentes benefícios envolvidos no processo psicoterápico (Kellermann, 1998; Lima, 1999). Para Bustos (1992), a transferência também é um importante eixo para esse processo, embora a relação télica seja central na Psicoterapia.

No Psicodrama bipessoal há maior necessidade de se estar atento aos fenômenos de ordem transferencial, uma vez que nele o terapeuta se torna o único polo direto de ajuda (Lima, 1999). Essa atenção deve ser dada por dois motivos correlatos: por um lado, reproduz-se uma relação materna cuja função primária é o suporte (Castillo, 2000); por outro, necessidades individuais podem desconfigurar a comum assimetria entre psicoterapeuta e paciente numa simetria equivocada (Bustos, 1992). Na concepção de Cukier (1992): "o psicodrama bipessoal não se propõe a estimular ou criar nenhuma neurose de transferência, mas não tem também a pretensão de que esses desviantes da relação télica normal não ocorram" (p. 24).

A aproximação, nesse sentido, não parte da estimulação transferencial, que não é uma prioridade do Psicodrama. Contudo, não se configura também como evitação ou tentativa forçosa de tomar a postura de transparência para inibi-la em possíveis projeções. Como complementa Kellermann (1998), "sugere-se, portanto, que o terapeuta se mantenha consciente das respostas sutis de transferência e contratransferência que tendem a ocorrer e que, tanto quanto lhe seja possível, resguarde o relacionamento contra distorções excessivas" (p. 120).

Contrapondo essa indicação, Bustos (1992) alega que, mesmo indesejável, a transferência permite compreender conflitos não resolvidos pelo paciente, possivelmente autotransferenciais, indicativos do quanto as experiências relacionais do presente também geram impactos no futuro (Fonseca Filho, 2010). Lima (1999) se mostra mais radical: mesmo a relação télica assumindo um lugar de destaque para o reestabelecimento da saúde no Psicodrama, o fenômeno transferencial tem um papel "catalisador" no progresso terapêutico.

A transferência como objeto de cura (Lima, 1999) supõe um controle por parte do psicoterapeuta sobre suas próprias emoções, tanto quanto das nuances da relação. Castillo (2000) afirma que a relação psicoterapeuta-paciente possui condições de produzir mudanças necessárias ao tratamento sem que se perca o controle sobre processos télicos, transferenciais e contratransferenciais. Por isso, mesmo nos grupos de Psicodrama, onde a transferência é distribuída entre os membros, inclusive ao terapeuta, pode-se delimitar um importante espaço de investigação e trabalho (Garfield, 2008).

A transferência denuncia relações sociais e situacionais de significância ao surgir como processo reativo a comprometedores do equilíbrio mental, principalmente de caráter ansiogênico, como os vivenciados na relação clínica (Fonseca Filho, 2010). Fleury (1999) alega que em grupo muitos padrões de relacionamento são manifestos, revelando os papéis e os contrapapéis que expressam as formas com que os membros se relacionam social e familiarmente.

Além de facilitar a compreensão das dificuldades de relacionamento dos pacientes, a transferência informa a raiz histórica em torno de possíveis aspectos cristalizados. Sem temê-la presentificada na relação psicoterápica, propõe-se "livrar as pessoas de sua 'bagagem' psicológica, o que pode então ajudá-las a se dedicarem à tarefa de tornar a vida presente mais feliz, mais realizadora e satisfatória" (Kellermann, 1998, p. 110). No Psicodrama a dramatização é a forma com que os pacientes adquirirão autoconhecimento, resgatarão o seu potencial espontâneo-criativo e poderão entrar em contato com seus conflitos inconscientes (Bezerra, 2011).

A inversão de papéis, por exemplo, visa explorar as relações transferenciais, criar a oportunidade de o paciente assumir o papel de uma figura internalizada e conseguir sentir empatia ao concretizar seus pensamentos, sentimentos e atitudes. Isso o leva a tornar-se mais consciente da experiência alheia (Garfield, 2008). Portanto, uma técnica útil para desfazer pouco a pouco resistências interpessoais que dificultam a percepção em si de aspectos que julga ser consistentes nos outros (Gonçalves et al., 1988). Para o terapeuta, o aprofundamento dessas questões, auxilia-o a entender a personalidade do paciente, empatizar e inverter papéis com ele (Kellermann, 1998).

Salienta-se que a recuperação da espontaneidade criativa, do aprimoramento télico e da saúde relacional mantêm-se prioritários no tratamento. Por isso, versar o enrijecimento de papéis conservados transferencialmente não relega sua principal proposta. A decisão de trabalhá-los torna-se mais um aspecto da rematrização adotada para o paciente que paulatinamente poderá liberar emoções e sentimentos associados à figura que domina o seu passado e conseguir dar novos significados ao sofrimento vivido (Naffah Neto, 1979).

O produto final é uma revolução criadora que recupera a espontaneidade criativa retomada mediante modificação de padrões estereotipados (Gonçalves et al., 1988); e a capacidade de se relacionar de modo saudável ao ser capaz de reconhecer a si mesmo e ao outro (Tavora, 2001). Ressalta-se que o enfoque principal do psicoterapeuta não deve ser restrito a um ou outro aspecto implicado, corroborando o que Lima (1999) considera ser infrutífero: transformar a relação transferencial numa télica quando o mais importante é visar uma relação terapêutica.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Portanto, o projeto terapêutico no Psicodrama dá-se em torno da intersubjetividade, da dialogicidade. Essa concepção se fundamenta na ciência fenomenológica que tanto influenciou opensamento moreniano. Para a fenomenologia, a consciência intui a essência dos fenômenos,ou seja, é capaz de percebê-los com autenticidade (Forghieri, 2015). Nesse sentido, o jogo de papéis psicodramáticos é um caminho de intuir a essência dos fatos e fenômenos que nos acontecem.

Se o fenômeno transferencial tem se mantido numa posição secundária no corpo teórico psicodramático, isto se deve ao foco de trabalho de privilegiar a capacidade intuitiva da consciência. É importante lembrar que essa capacidade se dá no espaço da autenticidade, incluindo as memórias, a imaginação, os sentimentos, os pensamentos, o corpo. Na cena psicodramática todos esses elementos estão presentes, facilitando o desenvolvimento de uma compreensão autêntica sobre os fatos e os fenômenos da vida individual e social.

É coerente que o solo psicodramático privilegie o espaço da intersubjetividade em detrimento do intrapsíquico. A transferência é um fenômeno que se dá no espaço intrapsíquico, apesar de se revelar na intersubjetividade, enquanto a tele ocorre, necessariamente, num espaço intersubjetivo, como já afirmava Lima (1999).

Com este estudo abre-se mais uma porta de reflexão sobre a temática tele e transferência, longe de se esgotar. É, com efeito, uma discussão fértil para o meio psicodramático, por vezes questionado pelos psicodramatistas que vêm de territórios psicanalíticos, fazendo pontes teóricas que possam trazer integralidade às suas práticas.

Contudo, não se pode esquecer que a essência psicodramática é fenomenológica e não psicanalítica. Isso representa uma linguagem própria de compreender os fenômenos intersubjetivos. Essa linguagem pode dialogar com outras linguagens sem abrir mão de sua própria essência, mas enriquecendo-se das inúmeras possibilidades que o diálogo favorece.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido: 15/04/2016
Aceito: 31/08/2016

 

 

Fábio Santos. Psicólogo pela Universidade Tiradentes (Unit). Rua Mário de Andrade, 52, Farolândia, CEP 49032-310. Aracaju, SE. Tel.: (79) 98821-1596. e-mail: fbi-psico@hotmail.com
Tatiana Torres de Vasconcelos. Psicóloga pela Universidade Federal de Sergipe (UFS). Mestre em Saúde e Ambiente pela Universidade Tiradentes (Unit). Psicodramatista pela Profissionais Integrados (Profint). Rua Deputado Euclides Paes Mendonça, 771, Salgado Filho, CEP 49020-460. Aracaju, SE. Tel.: (79) 98813-0200. e-mail: prof.tatiana.torres@gmail.com

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