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Revista Brasileira de Psicodrama

versão impressa ISSN 0104-5393versão On-line ISSN 2318-0498

Rev. bras. psicodrama vol.24 no.1 São Paulo jun. 2016

http://dx.doi.org/10.15329/0104-5393.20160012 

RESENHAS

 

A caminho do futuro...

 

On a journey to the future...

 

En el camino del futuro...

 

 

Fabio Goffi Jr.

Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) - e-mail: efegejota@terra.com.br

 

 

Dias, V. R. C. da S (2016). Psicopatologia e psicodinâmica na análise psicodramática. São Paulo: Ágora.

No volume V da coleção Psicopatologia e psicodinâmica na análise psicodramática (Ágora, 2016), Victor Roberto Ciacco da Silva Dias, com a colaboração de Virgínia de Araújo Silva, oferece-nos uma ampliação de sua teoria, sistematizando a teoria e a prática de situações enfrentadas no dia a dia dos consultórios. É mais um desses momentos em que se constata o compromisso dos autores com a criatividade e a espontaneidade. Eles não se conformam com a "conserva cultural" de uma obra (boa) já estabelecida. Estão sempre em busca de aprimoramento. Contudo, não é um livro fácil, uma vez que é constituído da compilação de artigos que compreendem uma reciclagem de conceitos vistos, havendo, inclusive, inúmeras referências a volumes anteriores dessa coleção e a outros livros do autor que contêm a "matriz" dos temas. Apesar disso, em função da coerência da teoria, mesmo o leitor que nunca entrou em contato com suas ideias poderá ter boa compreensão e satisfação garantida.

Neste volume em particular, chama atenção a adequação do processo psicoterapêutico às modificações socioculturais da vida contemporânea, inserindo as recentes descobertas das neurociências em sua teoria da programação cenestésica e trazendo para a análise psicodramática seus pontos de vista a respeito das modificações instaladas na sociedade atual pela revolução causada pela evolução e pelo acesso fácil à comunicação.

Faz-se uma releitura de toda a teoria da programação cenestésica (capítulos 5 a 7) com uma vinculação mais estreita do desenvolvimento psicológico, à semelhança de uma programação de computador. Victor valoriza o poder computacional do neurônio, a organização dos mapas cerebrais, a formação das redes neuronais e a ocorrência das podas neuronais para (re)explicar e fundamentar a teoria do desenvolvimento psicológico com a fase da programação cenestésica e a fase psicológica. Descreve a rede neural somática, a rede neural psicossomática e a rede neural psicológica envolvidas nos modelos de ingeridor, defecador e urinador, durante a fase de programação cenestésica, assim como a formação da primeira e segunda zonas de exclusão. Também descreve a formação do conceito de identidade, as figuras de mundo interno, a fase de triangulação e o desenvolvimento da identidade sexual.

No capítulo 1, "Abrangência da psicoterapia e amadurecimento psicológico", Victor nos mostra o alcance de uma psicoterapia e delimita o que se pode esperar dela. Traz alguns parâmetros que ajudam a avaliar o grau de amadurecimento psicológico de um indivíduo. Depreende-se de sua colocação que o papel das chamadas neuroses até é pequeno diante de outros quesitos. Leia-se, cura de neurose não é sinônimo de amadurecimento psicológico. O indivíduo maduro deve ter resolvidos os aspectos de sua angústia circunstancial e existencial.

Mantém a angústia como pilar do projeto de busca em uma psicoterapia e o trabalho da angústia patológica com as fases de questionamento e autoquestionamento, o trabalho das divisões internas e o trabalho dos vínculos compensatórios. Como novidade, observa-se que são estabelecidos fatores que predispõem às angústias circunstancial e existencial. A angústia circunstancial deixa de ser meramente atribuída a fatores circundantes, e a existencial, decorrente somente de ameaça ao projeto de vida.

Com isto amplia-se o campo de ação, com a possibilidade de instrumentalização dentro das chamadas angústias circunstanciais; dos critérios motivacionais na vida‒ necessidade ou desejo; a resolução da postura narcísica com a aceitação do mundo como ele é, e não como deveria ser; a identificação dos sentimentos espontâneos (que brotam) versus os adquiridos (conquistados); o manejo dos sentimentos no que diz respeito a seu valor moral (bem e mal) versus seu valor essencial (aspectos instintivos)e a substituição de um comando superegoico por outro agora egoico.

No campo das angústias existenciais, dá ênfase à resolução da brecha entre fantasia e realidade, que permite a discriminação entre os conteúdos fantasiosos (ligados ao místico, ao sobrenatural e ficcional) e os advindos da realidade.

Em síntese, a meu entender, o amadurecimento psicológico é obtido a partir da liberação da espontaneidade, aquela moreniana que implica uma energia voltada a encontrar soluções adequadas para o estabelecimento de relações harmônicas.

No capítulo 2, "O perfil do cliente atual e a psicoterapia do futuro", Victor avalia as características das gerações mais contemporâneas, com perfil bem diferente das gerações dos anos até 1950. Nessa época a sociedade ainda vivia fortes influências de conceitos morais rígidos, da presença marcada da igreja/religião no ambiente familiar, dos conceitos de certo errado, do bandido e mocinho, quase caricatos e raramente questionados. Para ajustar-se socialmente, o indivíduo tinha somente que seguir esses preceitos. Paralelamente, os valores familiares ainda exerciam forte influência no desenvolvimento dos indivíduos.

Em contrapartida, havia muito pouco espaço para que as vivências, as opiniões e os sentimentos do próprio indivíduo pudessem ser expressos, reconhecidos e respeitados. Isto gerava indivíduos bem adaptados à sociedade, porém sufocados dentro de regras e normas, em permanente conflito e potencialmente neuróticos.

Nas épocas atuais, década de 2010, os conceitos morais e religiosos são muito mais relativizados, quase tudo é relativo, transitório, nada é absoluto, tudo pode ser, dependendo de alguma variável x ou y. E, paralelamente, a família perdeu espaço e poder de influência, substituídos pela mídia e pela propaganda.

Por outro lado, a valorização da opinião da criança e do adolescente, a permissão e o incentivo para a exploração do mundo, a independência e a autonomia permitem indivíduos com fortes convicções pessoais, com sintonia mais íntima com os próprios desejos e sentimentos. Essa configuração gera indivíduos com poucos problemas ligados à gratificação de seus prazeres ou vontades. No entanto, eles têm grande dificuldade em adequar-se às exigências da vida em sociedade no que tange a compromissos sociais e responsabilidades em geral.

Isto diferencia uma psicoterapia do paciente antigo, direcionada para descomprimir o verdadeiro eu dos grilhões dos valores de mundo externo internalizados, da terapia do cliente atual, direcionada a ajudá-lo a dar um contorno à sua personalidade, a criar uma identidade social adequada que permita sua integração à sociedade.

No capítulo 3, "A utopia do mundo consensual", Victor avalia o efeito das inovações tecnológicas e dos aparelhos que possibilitam o acesso das pessoas à internet e discorre sobre a atávica procura do ser humano pela homogeneização de valores. Avalia que no correr dos tempos várias maneiras foram usadas com esse mister, desde guerras de dominação até catequese religiosa. Apesar de, em alguns momentos e para algumas culturas, esse consenso ter sido atingido, na maior parte ele foi muito difícil, por isso a denominação Utopia Consensual.

Entretanto, com o advento da internet, que permite a livre expressão e comunicação, Vitor adverte que essa democratização da palavra permite um caldo de cultura que, apesar de caótico, começa a fazer parte do acervo cultural da humanidade, influenciando costumes, procedimentos e educação das crianças. Deixa em aberto se isto ocorrerá, mas aventa a possibilidade de que desse caldo caótico surja um consenso.

No capítulo 4, "Manejos, condutas e procedimentos da análise psicodramática", Victor dá continuidade à sistematização de algumas circunstâncias que ocorrem paralelamente a uma psicoterapia, como as relacionadas ao contrato de pagamento feito com terceiros que subvencionam a terapia de um indivíduo em particular. Também instrumentaliza a relação com os pacientes, quando necessário, por meio de celulares e redes sociais.

Além disso, traz contribuições para temas aos quais somos instados a opinar como terapeutas, tais como:

• Indicação e avaliação de profissionais de psicoterapia ‒ aborda a delicada questão da amplidão do universo das escolas de psicoterapia, algumas com pouca fundamentação científica e formação pouco adequada dos profissionais, bem comoa falta de normatização que sirva como ponto de referência para regular uma avaliação adequada dessas escolas.

• O perfil de personalidade do cliente nas corporações ‒ oferece parâmetros que nos ajudam a identificar o quanto certas características de personalidade são mais favoráveis que outras para determinadas funções no âmbito profissional. Separa o perfil do técnico, do gerente, do diretor e do presidente.

• As relações compartilhadas ‒ separa, em função do que é compartilhado entre os indivíduos, as relações de casamento, societária, de amizade, de amantes, e as relações operacionais ou de equipe. Conforme já comentado, atualmente as maneiras convencionais de relação estão se modificando, gerando a falta de parâmetros para um convívio harmônico com os vários tipos de relacionamento. Ao descrever esses tipos de relacionamento, temos instrumental adequado para compreender e fornecer parâmetros àqueles que estão desorientados com a eventual situação, como nas diversas possibilidades de união afetiva e/ou de compartilhamento da vida ou de momentos dela.

Escondidos neste capítulo, temos também quatro temas de grande interesse e importância, que são:

• A psicodinâmica no uso das drogas psicoativas ‒ há um relato brilhante a respeito dos porquês do uso das diversas drogas, das repercussões de sua adição e do tratamento psicoterapêutico. Encontramos a descrição das drogas euforizantes, relaxantes e alucinógenas, sua ação no organismo e a psicodinâmica envolvida e a meta psicoterapêutica em cada um dos casos. É um capítulo difícil de ser resumido, pois cada frase tem sua importância. Resumidamente, podemos salientar que o efeito buscado pelos indivíduos que se utilizam das drogas euforizantes é o de evitar entrar em contato com conteúdos depressivos oriundos de seu mundo interno; os que usam drogas relaxantes buscam diminuir a agitação mental e o contato com os conflitos; e os que são adeptos das drogas alucinógenas experimentam um contato maior com seu mundo interno por meio de imagens oníricas e alterações da percepção e autopercepção. Enquanto a terapêutica dos dois primeiros é voltada para ajudá-los a entrar em contato com seu mundo interno e resolver seus conflitos, a terapêutica deste último grupo, na maioria das vezes, é a de tentar reorganizar um conceito de identidade viável, visto que o contato abrupto com o mundo interno tende a desorganizar o conceito de identidade, às vezes de forma irreversível.

• A psicodinâmica em vícios, compulsões, dependências e deslocamentos de privações ‒ o grande valor deste tópico é dar noções claras de que não adianta tentar encontrar peculiaridades que caracterizem este ou aquele vício, seja por compras, sexo, tabagismo, jogos e tantos outros. Todos esses comportamentos podem ser explicados e instrumentalizados de acordo com três possibilidades psicodinâmicas: ou são decorrentes de compulsões, ou de dependências (já bem descritas em livros anteriores) ou de deslocamento de privações. As compulsões estão ligadas a relações encobertas por figuras permissivas de mundo interno; as dependências, ligadas a funções delegadas de cuidado e proteção (ingeridor), de planejamento, organização e ação (urinador) ou elaboração, expressão e comunicação (defecador); e o deslocamento de privação decorre da tentativa de compensação para uma privação crônica e, na visão do indivíduo, insolúvel. Com o tempo, o psiquismo encontra algum tipo de compensação para diminuir a sensação de privação. Como exemplo, uma pessoa com privação afetiva e sexual pode desenvolver uma carência por doces, ou por compras. Sente sempre um vazio por doces, ou que lhe falta algo. Esquece-se de que sua carência é por afeto e sexo, e então a substitui pela de doces, que é mais fácil de ser suprida. Apesar de se dar conta de que o doce ou o objeto adquirido não é tudo aquilo que prometia ser, a pessoa não quer parar o vício, porque de alguma forma ele é prazeroso e evita o contato com a frustração da privação real, mesmo tendo a noção de que o hábito lhe traz prejuízos à saúde e financeiros.

• Comparação entre defesa de ideia depressiva, defesa hipomaníaca e defesa paranoide ‒ Virgínia descreve três situações aparentemente bem diversas na sua patoplastia, com clima depressivo, paranoide e hipomaníaco, o que pode gerar confusões diagnósticas, mas tem sua origem na mesma psicodinâmica. Todas são defesas intrapsíquicas do modelo de defecador e ligadas à área da mente. A ideia depressiva é a descrita classicamente como um debate interminável do indivíduo consigo mesmo, numa aparente tentativa de compreender, explicar e elaborar as próprias opiniões e condutas. Ou seja, tenta a elaboração, mas fica em permanente conjectura, sem chegar a uma síntese/insight. A defesa paranoide tem a mesma estrutura, distinguindo-se por ser um debate sem fim das intenções do outro. A defesa hipomaníaca é caracterizada por uma série de ideias criativas que vão se sobrepondo em sequência acelerada, sem uma conclusão final.

• O setting autoaquecido e o funcionamento do enquadre na análise psicodramática ‒ a importância deste tópico reside na explicação do andamento de uma terapia em análise psicodramática, da eficiência que se observa ao se verificar a menor duração das terapias pela alta capacidade de resolução dos conflitos, da utilidade de manter o autoaquecimento do setting ao estimular o trabalho com sonhos. Discorre ainda a respeito do hábito herdado, possivelmente, das psicoterapias de base psicanalítica, de sessões semanais ou bissemanais e justifica por que a análise psicodramática pode estabelecer contrato mais flexível de frequência às sessões, dependendo da fase da terapia.

No último capítulo, "A figura internalizada em bloco (FIB)", Virgínia nos brinda com um excelente retrospecto da evolução do conceito de Divisão Interna, descrevendo as várias Divisões identificadas e ampliando a definição da Divisão Interna com a figura internalizada em bloco. Virgínia aponta a origem dessa figura durante a formação do modelo de urinador e compreende sua constituição pela assimilação, por imitação, das características da família que cerca/influencia o indivíduo nessa época. Como isso ocorre antes do advento do ego, essas características vão ser incorporadas como próprias e darão origem ao que se chama figura internalizada em bloco. Salientamos que, apesar de não haver um ego estabelecido, existe um verdadeiro eu que pode ser diferente dessa figura internalizada em bloco. Essas duas estruturas poderão entrar em conflito. Isso vai caracterizar o que se chama duplo comando e um conceito de identidade conflitante (o conceito de borderline). Também é descrito todo o processo de desmonte do duplo comando com a substituição, no conceito de identidade, da figura em bloco por experiências e valores do verdadeiro Eu.

 

 

Recebido: 20/09/2016
Aceito: 23/09/2016

 

 

Fabio Goffi Jr. Mestre em Psiquiatria pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). Psicodramatista pelo Instituto Sedes Sapientiae. Professor no curso de sexualidade humana do Programa de Estudos em Sexualidade (ProSex) do Instituto de Psiquiatria da FMUSP. Professor no curso de formação em psicoterapeutas da Escola Paulista de Psicodrama. Av. Brigadeiro Faria Lima, 1572, cj. 1104, CEP 01451-001. São Paulo, SP. Tel.: (11) 3289-1987.

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