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Revista Brasileira de Psicodrama

versão impressa ISSN 0104-5393versão On-line ISSN 2318-0498

Rev. bras. psicodrama vol.24 no.2 São Paulo dez. 2016

http://dx.doi.org/10.15329/2318-0498.20160015 

ARTIGOS INÉDITOS

 

Psicoterapia pré-cirúrgica em grupos de homens e mulheres transexuais participantes do processo transexualizador

 

Pre-surgical psychotherapy for groups of transsexual individuals participating in the transgender transitioning

 

Psicoterapia preoperatoria en grupos de hombres y mujeres transexuales participantes del proceso de reasignación de sexo

 

 

Roberta Rodrigues Alves TorresI; Giancarlo SpizzirriII; Edna Terezinha BenattiIII; Carmita Helena Najjar AbdoIV

IPrograma de Estudos em Sexualidade (ProSex) do Instituto de Psiquiatria (IPq) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (HC-FMUSP). roberta.torres@hc.fm.usp.br
IIPrograma de Estudos em Sexualidade (ProSex) do Instituto de Psiquiatria (IPq) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (HC-FMUSP). giancki@usp.br
IIIPrograma de Estudos em Sexualidade (ProSex) do Instituto de Psiquiatria (IPq) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (HC-FMUSP). edna.tbenatti@hc.fm.usp.br
IVPrograma de Estudos em Sexualidade (ProSex) do Instituto de Psiquiatria (IPq) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (HC-FMUSP). prosexmail@uol.com.br

 

 


RESUMO

Indivíduos transexuais foram divididos em dois grupos, para o seguimento psicoterapêutico semanal, no Programa de Estudos em Sexualidade (ProSex) do Instituto de Psiquiatria (IPq) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (HC-FMUSP), desde 2011; o primeiro grupo, constituído por mulheres transexuais (MTS) - sexo masculino e que se identificam com o gênero feminino, e o segundo por homens transexuais (HTS) - sexo feminino e que se identificam com o gênero masculino. Foram levantados dados clínicos e psicodinâmicos desses grupos. Verificou-se ao longo dos anos a relevância dessa abordagem para dirimir conflitos e sofrimento associados com essa condição, além de terem sido notadas particularidades, durante o manejo dos grupos, relacionadas ao gênero com o qual os indivíduos se identificam.

Palavras-chave: transexualismo, disforia, psicoterapia de grupo, psicodrama, cirurgia de redesignação sexual


ABSTRACT

Transsexual individuals were divided into two groups to follow-up their weekly treatment at Program on Sexuality Studies (ProSex) of Psychiatry Department of University of São Paulo Medical School, since 2011. The first group is transsexual women (MTF) - persons of the male sex who identify themselves with the female gender, and the second group is transsexual men (FTM) - persons of the female sex who identify themselves with male gender. Clinical and psychodynamic data of these groups were collected. Over the years, it was observed that this approach is very relevant in order to settle conflicts and distress associated with this condition. Also some characteristics of the groups management was noted in relation to the gender with which the individuals identify themselves.

Keywords: transsexualism, dysphoria, group psychotherapy, psychodrama, sex reassignment surgery


RESUMEN

Personas transexuales han sido divididas en dos grupos para proceder al tratamiento psicoterápico semanal en el Programa de Estudios en Sexualidad (ProSex) del Instituto de Psiquiatría (IPq) del Hospital das Clínicas de la Faculdade de Medicina de la Universidad de São Paulo (HC-FMUSP) desde 2011; el primer grupo, compuesto por mujeres transexuales (MTS) - sexo masculino que se identifican con el género femenino, y el segundo grupo, compuesto por hombres transexuales (HTS) - sexo femenino que se identifican con el género masculino. Se levantaron datos clínicos y psicodinámicos de estos grupos. Durante los últimos años, fue comprobado la pertinencia de esto enfoque en dirimir los conflictos y el sufrimiento asociados a esta condición, además de notar las particularidades del manejo de los grupos relacionado con el género con lo que los individuos se identifican.

Palabras clave: transexualismo, disforia, psicoterapia de grupo, psicodrama, cirugía de reasignación sexual


 

 

INTRODUÇÃO

Segundo Abdo (2014), os transtornos de identidade sexual ou disforia de gênero caracterizam-se pelo desejo irreversível de viver e ser aceito como alguém pertencente ao sexo oposto, e esse desejo é acompanhado por sentimento persistente de grande desconforto e de inadequação em relação ao sexo de nascimento. Essa condição causa sofrimento clinicamente significativo e/ou prejuízo no funcionamento social, ocupacional e em outras áreas de importância na vida.

A Classificação Internacional de Doenças (CID-10) (Organização Mundial da Saúde -OMS, 1993) emprega o termo diagnóstico transexualismo para designar as pessoas que apresentam incongruência marcante entre o sexo de nascimento e o gênero com o qual se identificam, e que desejam ser submetidas à cirurgia de redesignação sexual. Por sua vez, com o Manual diagnóstico e estatístico dos transtornos mentais, 5ª edição (Associação Psiquiátrica Americana - APA, 2013), a transexualidade por si só não é considerada um transtorno, mas o será caso seja acompanhada por sofrimento clinicamente significativo e receberá a denominação de Disforia de Gênero (DG). Essas modificações que foram contempladas no DSM-5 provavelmente serão incorporadas pela CID-11, prevista para 2018. Além disso, para que um indivíduo na vida adulta ou na infância/adolescência receba o diagnóstico de DG, deverá apresentar sofrimento significativo por no mínimo seis meses, segundo o DSM-5 (APA, 2013; Spizzirri, 2016).

Os transtornos da identidade sexual na infância iniciam-se antes da puberdade e têm como característica um sofrimento intenso e persistente em relação a pertencer a determinado sexo, com o desejo de ser ou a insistência de que é do sexo oposto. Esse quadro gera profunda perturbação no senso de feminilidade e masculinidade, e a evolução para o transexualismo na vida adulta não é regra geral (Abdo, 2014; OMS, 1993).

É frequente que crianças trans não se identifiquem com o gênero que lhes foi atribuído ao nascimento, apresentando manifestações dessa incongruência em diversos comportamentos. Por exemplo, aquelas que nasceram com o sexo masculino tendem a manifestar interesse em se vestir com roupas e adereços femininos, não se percebem atraídas por brincadeiras socialmente tidas como masculinas ou violentas, preferem as atividades e a companhia das meninas. Muitas vezes, recusam-se a urinar em pé, além de expressarem que são, ou desejam ser, meninas. Podem demonstrar aversão ao pênis e/ou aos testículos, e desejam ter vagina (APA, 2013).

Por sua vez, as que nasceram com o sexo feminino apresentam na infância comportamentos e reações negativas a tudo que se refere ao contexto sociocultural feminino, incluindo roupas, brincadeiras e atividades que as lembrem das exigências do meio cultural em se comportarem e se apresentarem como meninas. Sentem vontade de executar atividades e jogos junto a outros meninos, com quem terão maior afinidade. Muitas vezes, afirmam que serão homens quando crescerem e sentem muita angústia na puberdade, quando os hormônios começam a trazer resultados femininos ao seu corpo (APA, 2013). Vale ressaltar que nem todo indivíduo transexual apresentará DG, que se manifesta através de sofrimento psíquico, seja decorrente dessa condição (por comprometimento na adaptação ao meio social), seja pela falta de adequação do seu corpo (uso de hormônios e procedimentos cirúrgicos).

Este estudo vai focar indivíduos transexuais adultos com DG, que nasceram com o sexo masculino e habitualmente se autoidentificam como mulheres transexuais (MTS), bem como indivíduos que nasceram com o sexo feminino e usualmente se autoidentificam como homens transexuais (HTS).

A transexualidade ultrapassa o desejo de obter vantagem social. Pode afetar tanto a autoestima como o conceito de si próprio, o que dificulta ao indivíduo o encontro de parcerias afetivas e/ou sexuais. Não é infrequente esses indivíduos apresentarem histórias de quadros depressivos, muitas vezes acompanhados de ideação suicida, ações de mutilação ao próprio corpo, isolamento, preconceito e discriminação. Vale lembrar que alguns deles relatam ideação suicida, caso não tenham meios para adequarem o seu corpo ao gênero com o qual se identificam (Spizzirri, 2016).

No Brasil, os indivíduos que pleiteiam se submeter à cirurgia de redesignação sexual (adequação por intervenção cirúrgica para o sexo desejado) deverão, entre outros procedimentos, ser acompanhados por, no mínimo, dois anos em psicoterapia. Essa série de intervenções, para os indivíduos transexuais com DG, que se inicia com a avaliação psiquiátrica, recebe o nome de processo transexualizador. O ProSex faz parte desse programa no HC-FMUSP. Abaixo é apresentado o fluxo desses procedimentos.

Processo transexualizador

• Triagem com avaliação psiquiátrica para estabelecer a hipótese diagnóstica de transexualismo segundo a CID-10, no ProSex.

• Após triagem, o paciente é encaminhado para processo psicoterapêutico - é informado ser indispensável o acompanhamento psicoterapêutico (individual ou grupal), no ProSex.

• Após seis meses de psicoterapia e com a confirmação diagnóstica, o paciente é encaminhado para o Serviço de Endocrinologia do HC-FMUSP, para a realização de terapia hormonal com esteroides sexuais.

• Após dois anos de seguimento pela equipe interdisciplinar, o indivíduo recebe laudo psiquiátrico autorizando a cirurgia de redesignação sexual ou é reconduzido à psicoterapia por mais um tempo.

A psicoterapia, segundo Dias (1994, 1997, 2000), é um dos recursos para que o indivíduo acelere seu processo de busca diante dos seguintes aspectos: sensação basal de incompleto, sensação basal de insegurança, medo basal da vida e perda parcial da identidade. Essas sensações estão presentes em todos os seres humanos, a partir da formação de estrutura do ego, logo nos primeiros meses de vida. As vivências de satisfação e insatisfação, associadas a climas externos expressos pelas figuras cuidadoras da criança, podendo esses climas ser inibidores ou facilitadores, trarão a ela maior ou menor incidência dessas sensações de falta. A psicoterapia: (i) clareia e conscientiza o processo de busca ao nortear o indivíduo sobre faltas internas e externas; (ii) sistematiza os procedimentos de busca ao utilizar técnicas para abordagem de conteúdos internos, além de ajudar no manejo das defesas intrapsíquicas e dos vínculos compensatórios; (iii) controla as variáveis internas ao permitir que o indivíduo conheça suas defesas e tendências reativas quando se aproximar do processo de busca; (iv) controla variáveis externas ao criar situações artificiais como dramatizações, questionamentos, contatos com pessoas em sessões de grupo, além de auxiliar o indivíduo a ir buscá-las na vida. A psicoterapia não cria um processo de busca, pois esta só acontece quando o indivíduo tem esse processo ativado no seu interno associado à presença de angústia patológica (Dias, 1994, 1997, 2000).

A psicoterapia possibilita criar novas respostas a velhos comportamentos e encontrar um significativo sentido do existir. Possibilita a construção de um novo projeto de vida, ou a readequação deste. Amplia a resiliência do indivíduo, possibilitando-lhe maior tolerância com suas dificuldades. Pode ajudar na possibilidade de lidar com as dificuldades de sua existência em todas as formas que o sofrimento humano pode assumir, além de favorecer o crescimento e o amadurecimento pessoal. É um dos facilitadores no processo do autoconhecimento, assim como no reconhecimento do conceito de identidade real, além de propiciar o distanciamento do conceito aprendido sobre si mesmo e das estereotipias que o indivíduo apreendeu como subjugadas pelos padrões familiares e sociais.

 

OBJETIVO

Este trabalho visa relatar aspectos do processo psicodinâmico e clínico oriundos do acompanhamento psicoterapêutico, com enfoque psicodramático, de indivíduos transexuais com DG que pleiteiam a redesignação sexual.

 

MÉTODO

Na coleta das informações para a realização deste estudo, adotamos os seguintes procedimentos:

1) Os dados clínicos e psicodinâmicos foram obtidos de dois grupos de indivíduos transexuais com DG, em seguimento psicoterapêutico desde 2011, no ProSex: Grupo 1 (G1) - constituído por MTS - e Grupo 2 (G2) - constituído por HTS. A Tabela 1, abaixo, exibe os dados sociodemográficos dos participantes dos grupos no início de sua formação, em 2011.

 


Tabela 1 - Clique para ampliar

 

2) Foram realizadas sessões de psicoterapia semanais, com duração de 1 hora e 30minutos, coordenadas por duas psicólogas com formação psicodramática.

3) Foram empregadas técnicas psicodramáticas, entre elas: jogos, desenhos e o compartilhamento sobre os temas propostos pelo grupo ou indicados pelas psicoterapeutas.

 

DESCRIÇÃO DO PROCESSO E DISCUSSÃO

A psicoterapia de grupo, entre outros aspectos, é um recurso disponível para auxiliar os pacientes a conhecer e/ou reconhecer seus sentimentos, bem como gerenciá-los no cotidiano. Durante as sessões de psicoterapia, os pacientes puderam contar suas histórias de vida, suas dificuldades, seus medos e suas raivas e, com o progredir do tempo, perceberam vários pontos comuns em suas vivências. Acolhimento, confiança, discordâncias foram elementos fundamentais de elaboração nesse processo.

A psicoterapia de grupo propicia reflexões e questionamentos, abrindo espaços para novas adequações emocionais, inclusive as provenientes das transformações corporais, como consequência do tratamento hormonal. Seguem algumas considerações do processo de psicoterapia dos dois grupos (G1 e G2), em dois recortes ao longo do tempo: (I) o primeiro, após dois anos; e (II) o segundo, após cinco anos (mesmo os pacientes aptos à realização da cirurgia de redesignação sexual, após dois anos de acompanhamento, permanecem nos grupos até a realização da cirurgia).

(I) Os grupos passaram por mudanças após dois anos de acompanhamento psicoterapêutico, entre elas:

a) O G1 passou a ter onze integrantes e o G2 seis (além das terapeutas).

No G1, quatro indivíduos foram encaminhados para psicoterapia individual por apresentarem competitividade e agressividade durante as sessões de grupo. Essas expressões, pela nossa experiência, não são incomuns, mas se manifestaram de forma acentuada e foram por nós interpretadas como não terapêuticas para o manejo grupal. No G2, um participante foi encaminhado para o processo individual em razão de sua autoagressividade associada à tentativa de suicídio; dada essa situação, também concordamos que o acompanhamento individual seria benéfico.

Um integrante do G1 entendeu que não gostaria de ser submetido à cirurgia de redesignação sexual, pois essa perspectiva comprometeria sua atividade como profissional do sexo e abandonou o processo psicoterapêutico, assim como um integrante do G2, o qual tinha boa condição financeira e resolveu buscar auxílio por meios próprios.

b) Nesse período, ressaltamos algumas diferenças observadas entre os grupos (G1 e G2):

1) Relações parentais, relacionais e econômicas

No G1, seis integrantes moravam com suas famílias de origem, e dois não se sentiam responsáveis por ajudar a família economicamente. Por sua vez, 14 auxiliavam ou encaminhavam dinheiro para o sustento da família. Apenas dois integrantes tinham parceiros fixos no início do tratamento e outros seis iniciaram relações afetivas no primeiro ano de psicoterapia.

No G2, cinco moravam com a família de origem, e dois voltaram a residir com os familiares durante esse período. Nenhum dos integrantes se sentia responsável por ajudar a família economicamente. Três tinham parceiras fixas no início do tratamento e, após um ano de terapia e das mudanças no corpo em decorrência da hormonioterapia, somente um manteve o relacionamento afetivo. Chamou a atenção que, em relação à figura paterna, seis tinham histórico de pais alcoólicos.

A relação de independência e comprometimento com a família foi notadamente diferente entre os grupos. No caso das MTS, observou-se a necessidade de auxiliar suas famílias economicamente, o que não foi observado com os HTS. Uma possível explicação pode ser a decorrente dos papéis sociais aprendidos na infância, sendo o gênero masculino provedor e o feminino, cuidador.

2) Sobre a agressividade

No G1, diante de situações de discriminação e rejeição, as MTS apresentavam respostas mais agressivas nos grupos sociais com os quais conviviam; além disso, mostraram-se menos tolerantes a situações preconceituosas. As MTS tendem a ser mais eloquentes, e são mais comuns respostas com maior rapidez, bem como intolerância ao que consideram insultos. Aparentemente, os HTS, do G2, apresentam maior tolerância diante de situações consideradas preconceituosas, embora sintam muita indignação. Novamente, por meio do exposto, percebe-se o conflito entre o gênero aprendido e aquele com o qual os integrantes dos grupos se identificam; em outras palavras, os homens, em nossa cultura, tendem a ser mais agressivos quando intimidados, enquanto as mulheres tendem a compreender os sentimentos envolvidos nessas situações.

3) Sobre o uso de bebidas alcoólicas

No G1, ao serem questionadas sobre esse tema, duas MTS relataram fazer uso de bebidas alcoólicas de forma exagerada. A maioria entende que bebe socialmente. No G2, quatro participantes relataram fazer uso abusivo de álcool. Estes HTS mostraram maior abertura ao serem questionados sobre o tema e confirmaram mais facilmente que esse uso trazia problemas para suas vidas de modo geral. Durante o processo, reavaliaram esse comportamento.

Após dois anos de psicoterapia, destacamos as seguintes frases de duas MTS do G1:

Minha vida toda busquei minha feminilidade acima de tudo; me sinto bem psicologicamente, sei de todos os riscos, e mesmo que não desse certo, com certeza, qualquer coisa é melhor do que você ter um pênis que você sente nojo, e tristeza.

Depois de dois anos estou bem. Antes eu não estava, devido a problemas que eu tinha comigo mesma. Devido ao processo de terapia tudo em minha vida mudou para melhor, me sinto feliz, estou trabalhando muito no amor. Estou bem com a minha família e comigo mesma.

(II) Após cinco anos do início da psicoterapia em grupo

G1 conta agora com sete integrantes, e dois foram submetidos à cirurgia de redesignação sexual e, posteriormente, encaminhados para a terapia individual pós-cirúrgica. Duas MTS iniciaram acompanhamento individual: uma por dificuldade em conciliar o horário do grupo com o trabalho, e a outra por apresentar dinâmica de autoagressividade. Como já mencionado, situações como esta não agregam benefício durante o processo grupal e, também, indicam maior aproveitamento no acompanhamento individual.

Os temas referentes à inveja e à raiva são recorrentes durante o processo psicoterapêutico. Outros assuntos sempre retornam à sessão e, na maioria das vezes, estão relacionados aos papéis femininos e masculinos, além de idealizações que geram frustrações. Embora se sintam e se percebam como mulheres, as MTS idealizam o significado do que é ter uma vagina, ou seja, é frequente a frase: "Só serei uma mulher completa após a cirurgia...". Trabalhar na desconstrução desse ideal de que somente ter uma vagina as fará completas e felizes ajuda no objetivo de aproximá-las de sua identidade real.

Algumas MTS do G1 realizaram cirurgias para adequarem seu corpo às características sexuais secundárias femininas, como prótese mamária, desgaste do pomo de adão, plástica de nariz e feminilização de traços do rosto. Esses procedimentos vieram acompanhados de melhora na autoestima. Todas as MTS relataram sentimento de sofrimento na espera pela realização da cirurgia de redesignação sexual.

O G2 permaneceu com seis participantes, com eventuais suportes de sessões individuais, quando necessários. Quatro foram submetidos à cirurgia de retirada do útero e, desses, três realizaram a mastectomia. A cirurgia de um integrante foi suspensa em decorrência dos conflitos familiares que essa situação poderia causar. Reiteramos a importância do suporte familiar, o que vem sendo conversado com o paciente. Como as cirurgias para os HTS foram mais próximas umas das outras, optamos por mantê-los no grupo de origem e não encaminhá-los para o atendimento individual.

Ainda que os HTS tenham relatado satisfação com as cirurgias realizadas, notou-se um clima depressivo no grupo em razão de maior cobrança por parte dos familiares, uma vez que, realizados os procedimentos cirúrgicos, os parentes tinham expectativas de que as almejadas adequações físicas seriam acompanhadas por atitudes mais bem aceitas socialmente, relacionadas ao papel preconizado ao gênero masculino. A construção da identidade masculina é tema, assim como os medos dos enfrentamentos internos e externos decorrentes dessa situação. Assim como as MTS, os HTS comentaram sobre a angústia pela espera dos procedimentos cirúrgicos.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os pacientes, em sua maioria, relataram melhora na qualidade de vida após esses anos de psicoterapia em grupo, além de vivenciarem maior respeito por si mesmos, bem como do meio social e dos familiares. Embora o início do processo da psicoterapia tenha sido encarado como mandatário e essencial para a realização dos procedimentos cirúrgicos, os participantes dos grupos (pacientes e terapeutas) criaram laços afetivos, colaborando para o enfrentamento das situações inerentes ao processo.

Ao longo do tempo, a psicoterapia de grupo vem se mostrando como um recurso terapêutico fundamental no acompanhamento desses indivíduos, transcendendo o objetivo inicial de obrigatoriedade, sendo útil para ampliar a construção de novos projetos de vida, bem como viabilizar formas de concretizá-los.

Vale enfatizar que os HTS, pelo uso da testosterona, necessitam de um olhar cuidadoso, pois, muitas vezes, por não estarem habituados com os efeitos de uma liberação maior desse hormônio no organismo, isso pode resultar em expressões e/ou ações mais impulsivas ou agressivas. Por sua vez, as MTS aparentemente apresentam menos conflitos com o modelo feminino, entretanto almejam uma perfeição de seus corpos que escapa à realidade tangível.

E por fim, vale ressaltar que as questões psicodinâmicas dos indivíduos transexuais não são diferentes daqueles que não apresentam essa condição. A diferença está no sofrimento que eles trazem associado, e que nos permite, a todos, entrar em contato com emoções tão primordiais, que trazem melhor compreensão do mundo e da diversidade sexual do ser humano.

 

REFERÊNCIAS

Abdo, C. H. N. (2014). Sexualidade humana e seus transtornos (4a. ed.). São Paulo: Leitura Médica.         [ Links ]

Associação Psiquiátrica Americana (APA) (2013). Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM-5). Porto Alegre: Artmed.         [ Links ]

Dias, R. C. V. (1994). Análise psicodramática: Teoria da programação cenestésica. São Paulo: Ágora.         [ Links ]

Dias, R. C. V. (1997). Psicodrama: Teoria e prática. São Paulo: Ágora.         [ Links ]

Dias, R. C. V. (2000). Vínculo conjugal na análise psicodramática. São Paulo: Ágora.         [ Links ]

Organização Mundial da Saúde (OMS) (1993). Classificação de transtornos mentais e de comportamento da CID-10. Porto Alegre: Artes Médicas.         [ Links ]

Spizzirri, G. (2016). Morfometria cerebral e imagens de tensores de difusão da microestrutura da substância branca em homens para mulheres transexuais antes e durante o processo transexualizador (Tese de Doutorado). Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo.         [ Links ]

 

 

Recebido: 27/10/2016
Aceito: 05/11/2016

 

 

Roberta Rodrigues Alves Torres: Psicóloga no Programa de Assistência à Pessoa Transexual e com Disforia de Gênero para o Processo Transexualizador do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FMUSP). Psicóloga e Supervisora no Programa de Estudos em Sexualidade (ProSex) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (IPq-HC-FMUSP). Rua Doutor Ovídio Pires de Campos, 785, 4º andar, Cerqueira César, CEP 05403-010. São Paulo, SP. Tel.: (11) 2661-6982.
Giancarlo Spizzirri: Doutor em Ciências do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). Psiquiatra responsável no Programa de Assistência à Pessoa Transexual e com Disforia de Gênero para o Processo Transexualizador do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FMUSP). Rua Doutor Ovídio Pires de Campos, 785, 4º andar, Cerqueira César, CEP 05403-010. São Paulo, SP. Tel.: (11) 2661-6982.
Edna Terezinha Benatti: Psicóloga no Programa de Assistência à Pessoa Transexual e com Disforia de Gênero para o Processo Transexualizador do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FMUSP). Psicóloga no Programa de Estudos em Sexualidade (ProSex) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (IPq-HC-FMUSP). Rua Doutor Ovídio Pires de Campos, 785, 4º andar, Cerqueira César, CEP 05403-010. São Paulo, SP. Tel.: (11) 2661-6982.
Carmita Helena Najjar Abdo: Professora Doutora Livre-Docente, Associada ao Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). Fundadora e Coordenadora do Programa de Estudos em Sexualidade (ProSex) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (IPq-HC-FMUSP). Rua Doutor Ovídio Pires de Campos, 785, 4º andar, Cerqueira César, CEP 05403-010. São Paulo, SP. Tel.: (11) 2661-6982.

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