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Revista Brasileira de Psicodrama

versão impressa ISSN 0104-5393versão On-line ISSN 2318-0498

Rev. bras. psicodrama vol.24 no.2 São Paulo dez. 2016

http://dx.doi.org/10.15329/2318-0498.20160017 

ARTIGOS INÉDITOS

 

Psicodrama e meio ambiente: o ser ambiental, suas percepções e limitações

 

Psychodrama and environment: being environmental, its perceptions and limitations

 

Psicodrama y medio ambiente: ser ambiental, sus percepciones y limitaciones

 

 

Zilda RodriguesI; Munir Jorge FelicioII

IUniversidade do Oeste Paulista (Unoeste). zilda@unoeste.br
IIUniversidade do Oeste Paulista (Unoeste). munir@unoeste.br

 

 


RESUMO

Este texto reúne contribuições do Psicodrama na perspectiva de impulsionar as discussões sobre a degradação ambiental, cuja gravidade coloca em risco a sobrevivência humana das gerações futuras. Para ampliar e aprofundar a compreensão do comportamento humano na sociedade contemporânea, frente aos problemas ambientais atuais, o debate teórico é acompanhado pela aplicação do jogo dramático realizado com nove discentes do curso de Psicologia e com dez senhoras da Pastoral da Terceira Idade. Conclui-se que as alterações na percepção ambiental estão atreladas às vivências sociais, nas quais o meio ambiente é concebido e apreciado por valores axiológicos diferentes, em virtude de aspectos geográficos, culturais, históricos, econômicos e ideológicos.

Palavras-chave: ambiente, educação ambiental, psicodrama, técnica do jogo sociodramático, análise de conteúdo


ABSTRACT

This text compiles the Psychodrama contributions aiming at promoting discussions about environmental degradation whose gravity endangers human survival of future generations. To broaden and deepen the understanding of human behavior in contemporary society, comparing it to the current environmental problems, the theoretical debate is followed by the application of a dramatic game played with nine psychology students and ten ladies from the Ministry for the Third Age. The conclusion is that the changes in the environmental awareness are linked to social experiences in which the environment is designed and appreciated by different axiological values, such as geographical, cultural, historical, economic and ideological aspects.

Keywords: environment, environmental education, psychodrama, sociodramatic game technique, content analysis


RESUMEN

Este texto reúne las contribuciones del Psicodrama con las cuales impulsa las discusiones sobre la degradación ambiental cuya gravedad pone en riesgo la sobrevivencia humana de las generaciones futuras. Para ampliar y profundizar la comprensión del comportamiento humano en la sociedad contemporánea, delante a los problemas ambientales actuales, el debate teórico es acompañado por la aplicación del juego dramático realizado con nueve alumnos del curso de Psicología y con diez señoras de la Pastoral de la Tercera Edad. Se concluye que los cambios en la percepción ambiental están ligados a las vivencias sociales en las cuales el medio ambiente es concebido y apreciado por valores axiológicos distintos debido a aspectos geográficos, culturales, históricos, económicos e ideológicos.

Palabras clave: ambiente, educación ambiental, psicodrama, técnica de juego sociodramático, análisis del contenido


 

 

Este texto fundamenta-se na aplicação de uma das técnicas do Psicodrama denominada jogo dramático e consiste em um dos trabalhos de campo advindos do projeto de pesquisa docente cadastrado na Universidade do Oeste Paulista (Unoeste), intitulado: "Contribuição ao Estudo sobre a Crise de Percepção Ambiental". A Unoeste é uma universidade privada localizada no Oeste do Estado de São Paulo, na cidade de Presidente Prudente, região do Pontal do Paranapanema.

O projeto visa ampliar e aprofundar a compreensão sobre o comportamento humano diante dos problemas ambientais atuais, principalmente os desenvolvidos nessa região de grande assimetria social, que influenciam direta ou indiretamente nas percepções ambientais. Essas percepções são detectadas pelas abordagens do jogo dramático, por este desvelar e elucidar o mundo interno ao instigar as forças da imaginação, dos valores culturais, cujas vivências psicológicas são manifestadas por fazerem parte constitutiva da história de vida da pessoa.

O jogo dramático foi aplicado a dois grupos, em dois dias distintos: um grupo formado por discentes de Psicologia e outro por senhoras da Pastoral da Terceira Idade. Os dois grupos receberam identificações distintas: discentes, para os alunos de Psicologia, e senhoras, para as senhoras da Terceira Idade. Ambos foram convidados e deram consentimento assinando os termos devidamente registrados no Conselho de Ética. A escolha desses dois grupos se deve ao interesse em mapear e comparar o imaginário histórico de cada um deles para analisar as diferenças de percepção ambiental advinda de faixas etárias distintas; nível de escolaridade e origem familiar em habitat rural e/ou urbano.

Dentre os pesquisadores que se interessaram pelo estudo do ser humano em relação a si mesmo, ao outro e à realidade circundante, destaca-se Moreno (1978), por entender que a saudável sobrevivência psíquica do ser humano está diretamente ligada com o que ele denominou conceito de "revolução criadora". Nela, o ser humano atua como agente criador, cuja

primeira característica do ato criador é a espontaneidade; a segunda característica é uma sensação de surpresa, de inesperado. A terceira característica é a sua irrealidade, a qual tem por missão mudar a realidade em que surge; algo anterior e além da realidade dada está operando num ato criador... . A quarta característica do ato criador é que significa um atuar sui generis. Durante o processo de viver, atua-se muito mais sobre nós do que atuamos. É essa a diferença entre uma criatura e um criador. (Moreno, 1978, pp. 84-85 - grifos no original)

Para Moreno (1978), "o ponto criticamente mais frágil no universo hoje é a incapacidade do homem de competir com os artefatos mecânicos de algum outro modo que não seja através de forças externas: submissão, destruição real, revolução social" (p. 94). Por isso, o ser humano deve lutar, por intermédio de sua prática criadora, para alterar continuamente seu mundo circundante, sua cultura e seus valores morais, impulsionando transformações criativas, e não atitudes destrutivas.

A revolução criadora proporcionará ao ser humano engendrar alternativas para se contrapor diante da evolução tecnológica e não se submeter à máquina e ao robô, bem como aos ditames culturais desenvolvidos pela civilização contemporânea. A revolução criadora constitui o oposto da zona de conforto, própria de um ambiente estável. Nesta, o sentimento de pertença advém do envolvimento e da tranquilidade própria aos ditames culturais. A zona de conforto é propriedade do grande público e traz no seu bojo a conservação e a continuidade do ego.

O ininterrupto avanço tecnológico nunca visto no desenvolvimento social cria uma realidade com constantes mudanças, acarretando transformações cada vez mais rápidas e profundas, diante das quais as "conservas culturais" não fornecem alternativas. Como, por exemplo, as respostas construídas pela sociedade e, por conseguinte, pelo ser humano, para os problemas da contemporaneidade, dentre eles, as danificações ambientais.

É importante ressaltar a visão intuitiva de Moreno (1978), que apresenta aspectos da sociedade cada vez mais adstrita e comandada por tecnologias. Estas podem ser salutares ao ser humano, por um lado, mas altamente nocivas, por outro, quando atuam de forma destrutiva, contribuindo para uma sociedade repetitiva, narcisista e com pouca crítica dos e nos seus afazeres, seus valores e seus modos de vida.

O ser humano, nessa sociedade, deixa de ser autor e ator da própria vida, como preconiza o Psicodrama. Não consegue perceber que está sendo subsumido por forças que o levam a atuar de forma consumista, passiva e pouco questionadora.

Essa sociedade oferece, em troca, a ilusão da felicidade imediata, em que o presente consiste no melhor dos mundos, fazendo-o esquecer o passado e não se importar com o futuro, bem como a crença na capacidade da ciência em resolver todos os problemas humanos, livrando-o aparentemente da angústia existencial e das frustrações.

A criatividade e a espontaneidade são restringidas por esse tipo de sociedade. A criatividade incentivada é apenas aquela chancelada pelas forças que operacionalizam o consumismo e as ciências.

As doenças psíquicas, tão comuns na sociedade contemporânea, como depressão e ansiedade, são, quase sempre, tratadas por intermédio da medicação - portanto, interferência da medicina como ciência. No entanto, elas podem ser decorrentes da ausência de espontaneidade, pois esta foi sufocada pela tecnologia ou pela conserva cultural. Razões que impulsionam o ser humano a buscar a utopia da segurança, da liberdade, mas o que vivencia é, de fato, a coerção e o aprisionamento, embora não tenha a devida consciência disso.

Moreno (1978) aponta que o ser humano precisa encontrar uma estratégia de criação para, com ela, escapar da traição da conserva cultural e também da concorrência com a tecnociência, e argumenta que é no exercício do ato criador que o ser humano pode mudar continuamente seus processos e seus produtos. E não ser mudado por eles, como acontece na sociedade contemporânea. Para Moreno (1978), "as raças de homens que aderiram à produção conservada extinguir-se-ão" e "serão substituídas pela sobrevivência do criador" (p. 96). Sobreviverão os seres humanos como criadores da própria existência, com autonomia e protagonismo. São ações criadoras com essas características que produzem novas ideias, novas formas e podem trazer possibilidades de atuação frente ao mundo circundante.

Embora Moreno (1978) apresente ideias que possam parecer catastróficas, messiânicas, há que se compreender que, em certa medida, isso ocorre cotidianamente na sociedade contemporânea, o que foi devidamente registrado no jogo dramático descrito a seguir.

 

JOGO DRAMÁTICO

Com o título "A natureza que habita em mim ou eu que habito a natureza: o ser ambiental", foi criado o jogo dramático com a finalidade de resgatar o contato do ser humano com a natureza e auxiliá-lo na percepção do meio ambiente, buscando mobilizar a valorização dos dois grupos em relação a esse meio ambiente.

Após o aquecimento inicial, em que foram utilizadas música instrumental e técnica de relaxamento e lido um poema, solicitou-se aos dois grupos que deitassem no chão, fechassem os olhos e buscassem vivenciar as cenas narradas pela diretora. A narrativa consistiu na descrição das seguintes cenas:

Em um primeiro momento, de beleza, prazer, conforto, como se você estivesse andando entre árvores altas, verdes, sinta uma brisa suave, com temperatura agradável, cheiro bom, de terra, de perfume de flores, milhares de várias cores e texturas. Ouça o barulho da água, de um riacho de águas transparentes, com pedregulhos ao fundo, peixinhos nadando, areia fininha e branca. A satisfação de sentir os pés molhados, de sensação boa, de caminhar na relva macia, de acolhimento, de paz, de tocar nas plantas e perceber como são frescas, algumas delicadas quase como um rendado, outras de textura mais fibrosa, fortes. O sol aparece emitindo raios que vão iluminando e fornecendo, à mata fresca e fecunda, a vida, a luminosidade. Levante os olhos e perceba pássaros de diversas espécies, com os seus cantos, voando em bandos para traçar no céu um balé maravilhoso. Ao lado das árvores, aparecem borboletas de cores magníficas, como se convidasse você a fazer parte dessa paz e dessa beleza. O prazer invade seus olhos e o convida para o envolvimento em tudo aquilo. Então, com o ar que entra em seus pulmões, fica mais fácil o contato com a natureza e poder fazer parte dela, como se você fosse a borboleta, a árvore, o pássaro, as flores, a terra, as pedras, a água, experimentando todos os elementos, sendo uno com eles. Sinta a força que vem da natureza, adentrando-se e fortalecendo-o, sinta-se pleno, respire envolvido por toda esta beleza, por toda esta grandeza. Olhe para o céu e veja as nuvens, o sol tocando sua pele, quente. Aos poucos, a luz fica mais fraca e você sente o peso da existência, o céu já não é tão limpo, nem tão azul. Surge no horizonte uma terra rachada, seca, as árvores desapareceram. Um vento abafado e muito quente traz um cheiro desagradável, vindo daquele rio que antes era limpo, mas agora é marrom, a água cheira mal, o verde desapareceu, só há pequenas árvores retorcidas, o ar é pesado, os pássaros foram embora, a terra é dura e sem vida. O cansaço se apresenta com sua força e o desânimo surge no horizonte e se aproxima de você e se apropria de seu corpo. Há que se fazer algo. O que é necessário realizar para diminuir essa sensação de desolação? São indagações que geram preocupações e precisam de respostas a fim de minimizar os danos a esse meio ambiente.

Finalizando com esses questionamentos, foi solicitado aos participantes que abrissem os olhos, se sentassem e compartilhassem a experiência.

As manifestações pessoais dos dois grupos foram anotadas e posteriormente separadas por categorias para serem tratadas neste texto como análise de conteúdo de acordo com a teoria de Bardin (1977). Para o jogo dramático essas expressões ressaltam a importância da experiência pessoal desencadeada a partir da narrativa. Experiência para Tuan (1983)

é um termo que abrange as diferentes maneiras através das quais uma pessoa conhece e constrói a realidade. Estas maneiras variam desde os sentidos mais diretos e passivos como o olfato, paladar e tato, até a percepção visual ativa e a maneira indireta de simbolização. (p. 9)

 

ANÁLISE DE CONTEÚDO

Dentre essas categorias, destaca-se: a natureza remete às lembranças da infância. Essa experiência ficou evidenciada no grupo das senhoras pelas verbalizações de seis delas. O que chamou a atenção foi a verificação de que apenas um discente, entre os outros, se referiu à natureza como lembrança da infância. Essa constatação sugere que a natureza era o lugar de destaque mais presente e atuante na infância do grupo das senhoras, em comparação com o grupo dos discentes.

As lembranças das experiências passadas são carregadas de emoção e de temores, como explicita Tuan (1983), contudo, "a criança não tem mundo. Ela não é capaz de distinguir entre o eu e o meio ambiente externo. Ela sente, mas suas sensações não estão localizadas no espaço" (p. 23). Como o primeiro ambiente descoberto pela criança envolve seus pais, "a criança pequena, tão logo aprende a andar, quer ir atrás da mãe e explorar o ambiente dela" (Tuan, 1983, p. 27). Por conseguinte, o mundo da mãe torna-se o mundo da criança ou, como explica Tuan (1983):

a mãe é o primeiro lugar. A mãe pode bem ser o primeiro objeto duradouro e independente no mundo infantil de impressões fugazes. Mais tarde ela é reconhecida pela criança como o seu abrigo essencial e fonte segura de bem-estar físico e psicológico. (p. 32)

O lugar como principal referência e importante centro de valor, de alimento e apoio possui significados distintos, dependendo da imagem de estabilidade e permanência. A partir das considerações de Tuan (1983), é possível intuir, ao menos como hipótese, que a natureza era o lugar vivenciado e apreendido pelas senhoras, ou seja, o habitat de maior importância, o lugar natural de brincadeiras, de alegria, e que, ao ser ocupado, deu sentido à existência delas. Já no grupo dos discentes, o lugar ocupado deve ser outro, o que nos sugere um distanciamento da natureza nessa faixa etária, pelo fato de o grupo estar em constante contato com o mundo virtual.

Outra categoria que surgiu no grupo das senhoras foi: lembranças dos hábitos e da vida em família, oque fortalece a hipótese anterior. As senhoras falaram muito da mãe e das relações afetivas e educacionais. E conforme Tuan (1983), "o lugar pode adquirir profundo significado para o adulto através do contínuo acréscimo de sentimento ao longo dos anos" (p. 37). O que sugere que o lugar da mãe e o da natureza, para essas senhoras, fundiram-se ao longo dos anos. Essa categoria, contudo, não aparece no grupo dos discentes, o que confirma a hipótese lançada anteriormente. É provável que essa transformação esteja atrelada ao intenso uso das tecnologias contemporâneas. Para Tuan (1980), no mundo contemporâneo, o contato físico com o meio ambiente natural é limitado e cada vez mais indireto e geralmente restrito a momentos de lazer (p. 110). Para as senhoras, o envolvimento com o meio ambiente é visceral e sugere que as pessoas e o meio ambiente formam uma totalidade.

A percepção do meio ambiente apareceu em diversas categorias, como, por exemplo, a do meio ambiente saudável, em que uma das senhoras relatou que as frutas eram melhores, que os alimentos duravam mais, que ela andava descalça e não adoecia, que os alimentos demoravam a estragar e que não tinham "veneno". As análises de Merleau-Ponty (2014) contribuem para ampliar a compreensão sobre a percepção do ser humano diante dos fenômenos naturais, assim como relatado por essa senhora.

Para Merleau-Ponty (2014), "o mundo é não aquilo que eu penso, mas aquilo que eu vivo; eu estou aberto ao mundo, comunico-me indubitavelmente com ele, mas não o possuo, ele é inesgotável" (p. 14). A vivência dessa senhora a respeito da sua percepção da natureza foi a de uma natureza diferente da atual. Já a percepção de uma das discentes acerca da natureza é outra; ela verbalizou: "Fico brava com os passarinhos cantando porque quero dormir". Enquanto uma das senhoras descrevia sua sintonia com a natureza, de maneira agradável, demonstrando estar integrada a ela e que essa vivência lhe proporcionava sentimentos de bem-estar, outra discente demonstrava uma vivência diferente. Possivelmente, por não se sentir integrada à natureza, verbalizou um convívio incômodo diante das manifestações do meio ambiente.

Pelas manifestações das senhoras, a vivência com o meio ambiente parece concreta, indicando pertencimento, sentimento de unicidade da história de vida delas com esse meio ambiente. Para os discentes, a vivência do meio ambiente indica distanciamento, não pertencimento, pois alegam que não se percebem vivendo nele. Há certo automatismo nas manifestações desses discentes, o que contribui para compreender as análises de Merleau-Ponty (2014), quando afirma que "quaisquer que sejam nossas percepções empíricas, que podem ser verdadeiras ou falsas, essas percepções só seriam possíveis se habitadas por um espírito capaz de reconhecer, de identificar e de manter diante de nós o seu objeto intencional" (p. 502). Para Forghieri (1993), a consciência da existência humana emerge do lugar que a pessoa ocupa no mundo, pois é a partir desse lugar-no-mundo que o próprio mundo se descortina, como ela ressalta: "Precisamos do 'mundo' para sabermos onde estamos e quem somos" (p. 28).

O meio ambiente para as senhoras parece estar carregado de significações e de sentidos, como se pode perceber nas falas das cinco senhoras, o que aparece na categoria Natureza provocando bem-estar. Elas se referem ao meio ambiente fazendo verbalizações como, por exemplo, sensação de tranquilidade, de sossego, de um mundoleve de descanso, de chuva caindo e, ainda, dizendo "antigamente pegávamos bicho-de-pé porque andava descalço, andava nos pastos" (sic).

Essa vivência do meio ambiente parece não ocorrer com quatro discentes, que relatam a falta de percepção dele, verbalizando um cotidiano imperceptível, com vivências automáticas. Ou seja, não conseguem ter percepções suficientes a respeito do meio ambiente, talvez porque, como afirma Merleau-Ponty (2014): "Ver é ver algo" (p. 500) e para isso seria preciso uma intencionalidade, o que parece não ocorrer. Apenas um deles verbaliza: "Muito raro acontecer de sentar embaixo de uma árvore, se desligar do mundo e curtir a natureza" (sic). Como se fossem duas realidades distintas: o mundo, de um lado, e a natureza, de outro:

O "mundo" circundante consiste no relacionamento da pessoa com o que costumamos denominar de ambiente. Abarca tudo aquilo que se encontra concretamente presente nas situações vividas pela pessoa, em seu contato com o mundo. Abrange as coisas, as plantas e os animais, as leis da natureza e seus ciclos, como o dia e a noite, as estações do ano, o calor e o frio, o bom tempo e as intempéries. Dele faz parte, também, o nosso corpo, suas necessidades e atividades, tais como o alimentar-se e o defecar, a vigília e o sono, a atuação e o repouso, o viver e o morrer. O "mundo" circundante caracteriza-se pelo determinismo e por isso a adaptação é o modo mais apropriado do homem relacionar-se a ele... . Portanto do "mundo" circundante fazem parte as condições externas e o meu próprio corpo e é este que me proporciona os primeiros contatos com aquelas. São minhas sensações que me propiciam ver, ouvir, cheirar, tocar e degustar as coisas que me cercam percebendo-as com alguma significação. Mas isto acontece numa vivência global onde não distingo, de imediato, cada um de meus sentidos, bem como estes e as coisas com as quais me relaciono; eu simplesmente percebo coisas que têm um sentido para mim. (Forghieri, 1993, p. 29 - grifos no original)

Nos relatos das senhoras, aparecem duas categorias importantes: o progresso que gera degradação ambiental e os resíduos produzidos pela industrialização e pelo consumo. Ao comparar os relatos das senhoras com o dos discentes, chama a atenção a constatação de que apenas três falas dos discentes trazem essas temáticas, o que contribui para compreender as análises de Merleau-Ponty (2014) quando afirma que "só percebemos um mundo se, antes de serem fatos constatados, esse mundo e essa percepção forem pensamentos nossos" (p. 500).

Para Merleau-Ponty (2014), são indissociáveis a percepção e o objeto percebido, pois a consciência da percepção não pode ser separada da coisa percebida. Para ele "não se pode tratar de manter a certeza da percepção recusando a certeza da coisa percebida" (p. 550). Por conseguinte, é necessário que eu veja não apenas o mundo em ideia, mas principalmente como mundo existente. É mais importante ter uma consciência concreta do mundo do que uma abstração do mundo. Pensa-se que para ter essa vivência concreta do meio ambiente e dar importância a ele, como as senhoras dão, os discentes precisariam ter uma consciência concreta dele. Precisariam habitar mais esse meio ambiente do que vivenciar experiências num mundo tecnológico, que proporciona ampliar as distâncias das questões ambientais atuais.

Uma categoria peculiar surgiu no grupo das senhoras: a da cidade sem natureza. Duas delas relataram que muitas pessoas não plantam árvores para não ter que varrer as calçadas e que as pessoas preferem o asfalto, porque este não fica sujo. Essas duas observações sugerem a comodidade em detrimento do meio ambiente, o que gera preocupação com a preservação ambiental. Apesar disso, no grupo dos discentes, emerge a categoria a educação ambiental como saída para a preservação ambiental, destacada na fala de três discentes, e outra categoria similar, a falta de conscientização e a necessidade de conscientizar, na fala de cinco senhoras.

A educação ambiental surge nesses dois grupos, de forma consonante, como alternativa para efetivar a preservação ambiental. Contudo, é importante ressaltar que ambos os grupos se referiam à educação baseada na informação, vinculada ao sistema educacional e à engrenagem midiática. Todavia, a educação ambiental não é tarefa tão simples, como preconizam Sorrentino, Traiber, Mendonça e Ferraro Junior (2005):

A urgente transformação social de que trata a educação ambiental visa à superação das injustiças ambientais, da desigualdade social, da apropriação capitalista e funcionalista da natureza e da própria humanidade. Vivemos processos de exclusão nos quais há uma ampla degradação ambiental socializada com uma maioria submetida, indissociados de uma apropriação privada dos benefícios materiais gerados. Cumpre à educação ambiental fomentar processos que impliquem o aumento do poder das maiorias hoje submetidas, de sua capacidade de autogestão e o fortalecimento de sua resistência à dominação capitalista de sua vida (trabalho) e de seus espaços (ambiente). A educação ambiental trata de uma mudança de paradigma que implica tanto uma revolução científica quanto política. (p. 287)

Avançando na reflexão de Sorrentino, é importante elucidar que a educação consiste em um processo de formação de pessoas, sendo o empoderamento um de seus objetivos - empoderamento como fortalecimento, desenvolvimento pessoal e coletivo nas relações interpessoais e institucionais para a ruptura e a mudança do curso da vida, almejando alterar as percepções mediante as problemáticas ambientais, como forma de posicionamento sociopolítico.

A pesquisa demonstrou que as questões ambientais da contemporaneidade perpassam os campos de diversos saberes e estão engendradas na vivência do ser humano. Os dois grupos pesquisados apresentaram alguns pontos de convergência em relação ao meio ambiente, no entanto se verificam vivências distintas na questão da percepção e do "habitar" o meio ambiente. Há indícios de que o grupo das senhoras habita o meio ambiente concreto e o grupo dos discentes habita um meio ambiente tecnificado.

A proposta da educação ambiental como forma de preservação do meio ambiente, apresentada pelos dois grupos, possui um conteúdo simples e ingênuo, pois a educação ambiental, para ser profícua e cumprir sua finalidade, necessitaria de uma revolução, uma mudança paradigmática nos moldes da revolução criadora proposta por Moreno (1978).

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo desta pesquisa, verificou-se que a significação e a importância do meio ambiente dependem da intencionalidade, cuja concepção se engendra a partir de vivências humanas e históricas. Percebe-se uma sociedade cada vez mais voltada ao habitat virtual, consumidora de valores voláteis, do imediatismo, o que contribui para a distorção da real gravidade da degradação ambiental. A alteração da percepção das problemáticas ambientais pode ser implementada pelas contribuições da revolução criadora proposta por Moreno (1978).

Dentre as forças do ser humano, destaca-se a espontaneidade, por ser a responsável pelo desenvolvimento da revolução criadora. Por intermédio de sua prática criadora, o ser humano interfere e altera seu mundo circundante, sua visão de mundo, sua cultura e seus valores morais, bem como impulsiona transformações criativas, não ficando adstrito às atitudes destrutivas. O presente pode ser transformado eliminando ou minimizando a ilusão de felicidade imediata ofertada pela sociedade contemporânea, marcada pelo hedonismo.

Conclui-se, portanto, que, diante das problemáticas ambientais atuais, é imprescindível ampliar a compreensão de que os seres humanos sobreviverão se forem cada vez mais criadores da própria existência, com autonomia, independência e protagonismo.

 

REFERÊNCIAS

Bardin, L. (1977). Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70.         [ Links ]

Forghieri, Y. C. (1993). Psicologia fenomenológica: Fundamentos, métodos e pesquisa. São Paulo: Pioneira.         [ Links ]

Merleau-Ponty, M. (2014). Fenomenologia da percepção (4a. ed.). São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Moreno, J. L. (1978). Psicodrama. São Paulo: Cultrix.         [ Links ]

Sorrentino, M., Traiber, R., Mendonça, P., & Ferraro Junior, L. A. (2005, maio/ago.). Educação ambiental como política pública. In Revista Educação e Pesquisa, São Paulo, 31(2),285-299.         [ Links ]

Tuan, Y.-F. (1980). Topofilia: Um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente. São Paulo: Difel.         [ Links ]

Tuan, Y.-F. (1983). Espaço e lugar: A perspectiva da experiência. São Paulo: Difel.         [ Links ]

 

 

Recebido: 17/05/2016
Aceito: 09/09/2016

 

 

Zilda Rodrigues: Docente da Faculdade de Psicologia da Universidade do Oeste Paulista (Unoeste). Mestre em Educação Escolar. Psicóloga Clínica. Psicodramatista pelo Instituto Rio-pretense de Psicodrama. Rua Shigueo Karazawa, 725, Condomínio Gramado, CEP 19160-000. Alvares Machado, SP. Tels.: (18) 3223-9234 e (18) 99657-1313.
Munir Jorge Felicio: Docente Permanente do Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente e Desenvolvimento Regional (MMADRE) da Universidade do Oeste Paulista (Unoeste). Graduação em Filosofia, Teologia e Direito. Mestre em Educação. Doutor em Geografia. Rua Palmares, 49, Vila Comercial, CEP 19015-280. Presidente Prudente, SP. Tels.: (18) 3916-5763 e (18) 99113-6373.

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