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Revista Brasileira de Psicodrama

Print version ISSN 0104-5393On-line version ISSN 2318-0498

Rev. bras. psicodrama vol.24 no.2 São Paulo Dec. 2016

http://dx.doi.org/10.15329/2318-0498.20160018 

ARTIGOS INÉDITOS

 

Cantodrama: um instrumento de intervenção terapêutica na abordagem psicodramática bipessoal e grupal1

 

Singingdrama: a therapeutic intervention instrument in bipersonal and group psychodramatic approach

 

Cantodrama: un instrumento de intervención terapéutica en el enfoque de psicodrama bipersonal y en grupo

 

 

Débora Cestaro da Cunha

Profissionais Integrados (Profint). e-mail: decestaro@gmail.com

 

 


RESUMO

Neste estudo de pesquisa socionômica, verificamos e experimentamos o canto como um instrumento para se atingir a catarse no processo psicodramático nas duas modalidades de investigação: individual, em consultório (no formato bipessoal), e em grupo, por meio de vivência psicodramática de Cantodrama. Abordamos qualitativamente os conteúdos emergentes por meio de uma descrição detalhada desse novo fenômeno gerado pelo cantar. Buscamos analisar fatos e dados de situações particulares para verificar a comprovação da eficácia do Cantodrama na abordagem psicodramática. O ato cantado superou palavras, expressando o Ser que sente. Assim, observou-se que o canto e o drama - Cantodrama -, unidos pela abordagem psicodramática de Jacob Levy Moreno, podem e devem ser utilizados como uma das possibilidades estratégicas terapêuticas.

Palavras-chave: psicodrama, canto, catarse


ABSTRACT

In this socionomic research study, we have used and applied the singing as a tool to achieve catharsis in psychodramatic process in both types of research: individual, in the office (in bipersonal approach), and in group, through psychodramatic experience of Singingdrama. We have used a qualitative approach to consider emerging content through a detailed description of this new phenomenon generated by the singing effect. We have analyzed the data and the specif situations in order to verify the effectiveness of the Singingdrama in psychodramatic approach. The singing has overcome words, allowing the Self to express what it feels easily. Thus, it was observed that the singing and drama - Singingdrama - united by Jacob Levy Moreno's psychodramatic approach, can and should be consider as a possible and powerful therapeutic tool.

Keywords: psychodrama, singing, catharsis


RESUMEN

En este ensayo de investigación socionómica, hemos constatado y experimentado el canto como una herramienta para lograr la catarsis en el proceso de psicodrama en los dos tipos de investigación: el individuo en la clínica (en formato bipersonal) y en grupo a través de la experiencia de psicodrama del Cantodrama. Investigamos cualitativamente los contenidos que emergen a través de una descripción detallada de este nuevo fenómeno generado por el canto. Se analizaron los hechos y los datos de situaciones particulares para verificar la evidencia de la eficacia del Cantodrama en el enfoque del psicodrama. El acto cantado ha superado palabras, expresando el interior que se siente. De este modo, se observó que el canto y el drama - Cantodrama - unidos por el método del psicodrama de Jacob Levy Moreno, pueden y deben ser utilizados como una de las posibilidades terapéuticas estratégicas.

Palabras clave: psicodrama, canto, catarsis


 

 

INTRODUÇÃO

Na atualidade, vivemos em um mundo dicotômico, resultado de um processo estabelecido historicamente por milhares de anos, em que o homem tem tentado a dominação dos seus instintos e impulsos corporais, os quais passaram a ser controlados pela razão, criando assim uma dicotomia entre o intelectual e o sensível, excluindo qualquer forma de conhecimento por meio do sensível, do corporal.

Hoje, na área de Saúde, o racionalismo cientificista atinge quase todas as suas especificidades, assim como na Psicologia, em que se observa maior valorização do racional em detrimento do sensível pelo predomínio de terapias, técnicas e diagnósticos em que se usa a razão na tentativa de fazer com que o ser humano compreenda racionalmente sua história e a transmita por meio do pensamento ou de sua materialização, a fala.

Usando a Arte para corrigir sua rota histórica, a Psicologia, baseada na filosofia existencial-fenomenológica e no teatro, resolveu unir a ciência e a arte, dando assim origem ao Psicodrama, que "surgiu como uma reação aos métodos individualistas e racionalistas predominantes no século XX e privilegiou o estudo do homem como ser bio-psico-social e cósmico" (Ramalho, 2011, p. 37). "O Psicodrama é um método socioterapêutico que tem ilimitado potencial para integrar todos os tipos de artes: drama (teatro), música, dança etc." e "as artes no Psicodrama podem ser usadas simultaneamente e em combinações variadas" (Moreno, J. J., 2005, p. viii).

Jacob Levy Moreno, criador do Psicodrama, também utilizou a música como método de intervenção, chamando-a de Psicomúsica, pois a experiência musical, para ele, era um retorno à mais primitiva forma de ação, e, assim, definiu duas formas de Psicomúsica: Forma Orgânica - realizada por meio dos próprios sons corporais (voz e percussão) - e Forma Instrumental - executada com instrumentos musicais.

Seguindo os passos da Psicomúsica Orgânica criada por J. L. Moreno (1946/2007), o Cantodrama - assim nomeado por nós - é um instrumento psicodramático por meio do canto e da dramatização das situações da existência humana, de seus conflitos, queixumes, desejos, sonhos etc.

Neste estudo, tentaremos verificar qual é a eficiência do canto, juntamente com a dramatização, como um instrumento para se atingir a catarse no processo psicodramático, não apenas como aquecimento, mas como carreador do próprio processo de catarse de integração. Justifica-se ainda a utilização do Cantodrama como um método além das abordagens cognoscíveis e racionalistas, pois permite que o paciente ou o grupo passem ao ato (acting out), como J. L. Moreno (1946/2007) afirma, ou seja, saiam do mundo de pensamentos e palavras racionalizadas e explorem no "como se", por meio de atos e sons, externalizando o que está dentro de si, as angústias e os conflitos, em um ambiente seguro, permissivo e acolhedor.

Assim, com o intuito de gerar conhecimento para a aplicação prática de técnicas psicodramáticas de intervenção terapêutica, fizemos uma pequena Pesquisa Socionômica por meio do estudo de natureza empírica, buscando a experimentação e a observação do cantar por meio de duas modalidades de investigação: individual, em consultório, no formato bipessoal; e em grupo, por meio de vivências psicodramáticas.

Por fim, buscamos analisar os fatos para verificar a comprovação da eficácia do Cantodrama na abordagem psicodramática.

 

RELATO PRÁTICO E TEÓRICO

O local da experiência foi o nosso consultório, e os sujeitos participantes foram, no caso do Psicodrama bipessoal, uma criança de 6 anos de idade, que chamaremos de M. (a fim de preservar sua identidade); e, no Cantodrama em grupo, dez pessoas (sete estudantes de Psicologia, um estudante de direito, um estudante do Ensino Médio e uma empresária), que chamaremos de P1, P2... (participante 1, 2...).

Psicodrama bipessoal: M., 6 anos de idade

A avó de M., 6 anos, procurou terapia para a neta, que apresentava sintomas como vômitos recorrentes, sem motivos físicos reais, principalmente durante sua estada na escolinha. A primeira sessão ocorreu com a mãe, que nos relatou o fato de estar recentemente separada do pai de M., que sem prévio aviso abandonou o lar. O pai deu a M. um telefone para que pudessem conversar, porém, segundo relataram a mãe e M., ele quase não telefonava para a filha, o que gerou nela um quadro de ansiedade.

No primeiro atendimento, procurei deixar M. livre para escolher o que gostaria de fazer; e, assim, ela escolheu o violão e pôs-se a brincar de tocar e cantar músicas em inglês, no estilo blues, com um inglês inventado (improvisado). "Nas experiências de improvisação, o cliente faz música tocando ou cantando, criando uma melodia, um ritmo, uma canção ou peça musical de improviso" (Bruscia, 2000, p. 124). Para o autor, a improvisação estabelece um canal de comunicação não verbal e desenvolve a capacidade de intimidade pessoal, a espontaneidade e a capacidade lúdica.

"Vocalmente improvisando ou cantando canções significativas as defesas são ignoradas e os sentimentos são acessados de forma mais eficaz que as palavras" (Austin, 2008, p. 127). Para a autora, "cada pessoa tem dentro de si própria uma voz inegável esperando para ser descoberta, escutada e acolhida. Uma vez que a voz é ouvida, a sua canção já não pode ser silenciada" (Austin, 2008, p. 213).

Recorrentemente, dramatizamos cenas propostas por M., em que eu era a médica e ela uma paciente adoentada (aplicamos inversões de papéis); eu telefonava ao pai e à mãe dela, mas eles estavam sempre muito ocupados, em reuniões de trabalho. Perazzo (1994) afirma que a criança, pela repetição de histórias, possibilita a revelação do mundo, o sentimento que ela tem ou revê por meio de papéis de fantasias.

Em determinada sessão, M. voltou a usar o violão, tocando em ritmo de blues e cantando: "Toda vez que eu quero te passar alguma coisa, eu não posso". M. continuou tocando e improvisando palavras num inglês inventado. Para Austin (2008), quando permitimos o extravasar de nossa voz natural, o resultado é a emersão de sons primitivos e de emoções primitivas.

Fizemos seu espelho, cantando o mesmo que ela: "Toda vez que eu quero te passar alguma coisa, eu não posso". M. canta junto e completa: "Porque estou num problema intenso, não posso sair de uma reunião"; ela faz duplo e inverte o papel com os pais. O espelho, para Austin (2008), ocorre quando um paciente canta a própria linha melódica, e respondemos repetindo a melodia do paciente, de volta para ele, ajudando-o a ouvir e aceitar partes de sua personalidade, fornecendo-lhe incentivo e validação.

Nós espelhamos M., trazendo-a de volta para o tema-refrão: "Toda vez que eu quero te passar alguma coisa, eu não posso". M. completa: "Porque estou numa reunião". Nós: "Muito ocupado" (cantamos fazendo um duplo). O canto psicodramático, segundo Austin (2008) pode atuar como um duplo ao se assumir papéis da história do paciente que se desenrola na improvisação, assim como o paciente pode mudar ou assumir outros papéis.

M.: "Também posso fazer alguma coisa ou não. Quando eu chego em casa, tá no trabalho agora". Nós: "E eu fico muito sozinha em casa" (duplo). Cantando psicodramaticamente, telicamente, conseguimos sentir, como M., o quanto é difícil para ela estar sozinha, interna e externamente. Para Austin (2008), há outra forma de cantar utilizando as próprias palavras em resposta às palavras do paciente, quando o terapeuta assume um papel mais ativo, questionando e usando seus sentimentos contratransferenciais para aprofundar o processo terapêutico e, dessa forma, ajudar os pacientes a entender e encontrar significados a partir do que estão enfrentando.

O objetivo do duplo é entrar em contato com a emoção não verbalizada do paciente, e às vezes até não conscientizada, a fim de auxiliá-lo a expressá-la. Quanto mais o terapeuta estiver identificado com o paciente, melhor duplo será capaz de fazer. (Cukier, 1992, p. 40)

M.: "É chato porque minha mãe tem que trabalhar. Vivo todo dia na casa da minha avó e a minha mãe tem secretária". Nós: "Mas não é a minha mãe". Ela toca fortemente os acordes do violão como se confirmasse o que acabei de cantar. "A estrutura de uma canção ou uma progressão de acordes podem produzir uma sensação de segurança, de realização" (Austin, 2008, p. 17).

Para Filipini (2014), a inversão de papel aumenta a força e a estabilidade do ego da criança, diminui a dependência dos pais e permite maior compreensão e sensibilização do terapeuta. Continuamos: "O que eu quero mesmo é a minha mãe" (duplo). "Mas ela não pode sair do trabalho nem de noite, nem de dia. Não atende o telefone". Nós: "E eu só quero a minha mãe" (repito cantando três vezes, finalizando, e ela fala: "Sua vez" (três vezes). "Cantar é inestimável nesse processo de cura. Ele pode nos dar acesso ao mundo invisível da imaginação, memória e associação" (Austin, 2008, p. 22).

Reunindo dados de sessões anteriores, relatos dos pais, dramatizações e improvisações cantadas, chegamos à seguinte hipótese: ao adoecer, M., de certa forma, "unia" os pais, porque eles acabavam tendo, pelos sintomas físicos (vômitos e adoecimentos frequentes), motivos "reais" para saírem do trabalho, unirem-se novamente e cuidarem dela.

Levamos ao conhecimento da família a hipótese diagnóstica. Os sintomas foram cessando no decorrer das sessões e estas se encerraram após seis meses de trabalho.

Cantar e tocar violão de brinquedo funcionaram como aquecimento. Segundo Filipini (2014), sua função é estimular corpo e mente para atitudes e atuações espontâneas, assim como a dramatização cantada, que é carreadora do momento catártico. "Quando improvisamos ou resolvemos problemas musicais somos atores mudando nossa vida e emoção, somos agentes de transformação da nossa vida" (Lima, 2003, p. 8).

Para Austin (2008), as canções têm a capacidade de contar nossas histórias, são formas pelas quais exploramos as emoções, expressando quem somos e como nos sentimos, o que nos traz mais perto uns dos outros e nos faz sentir acompanhados quando estamos sozinhos.

Psicodrama em grupo: vivência aberta

Visando situar os participantes na sessão, assim como focar a atenção e diminuir resistências, iniciamos o trabalho com a primeira fase do Psicodrama: aquecimento inespecífico, por meio da conscientização do local e da respiração. É o "Momento do Eu - Comigo", ligado à primeira fase da Matriz de Identidade e, no que se refere ao desenvolvimento dos papéis, à fase do role taking.

Após esse aquecimento inicial, propusemos uma percussão sonora com as mãos espalmadas por todo o corpo. "A música, por causa de sua natureza abstrata, desvia o ego e controles intelectuais e, contratando diretamente os centros mais profundos, revolve conflitos e emoções, trazendo-os à tona" (Tayler & Paperte, citado por Ruud, 1990, p. 46).

Continuando no aquecimento, chegamos ao "Momento do eu e o outro", ligado à segunda fase da Matriz de Identidade, do Eu - Tu, e, no que se refere ao desenvolvimento dos papéis, à fase do role playing. Pedimos que cada um escolhesse um veuzinho de tule, para se comunicarem em duplas, sem palavras, apenas com sons. Utilizamos o modelo apresentado por Schafer (2011), que propõe que deixemos a música falar por ela mesma, num processo de improvisação musical, por meio da criação deliberada, explorando a criatividade, na tentativa de estabelecer um diálogo que expresse emoções, pensamentos e ideias, num movimento de trocar, expressar e ouvir o outro.

Para Benenzon (1988), a utilização das mãos e dos sons como objetos intermediários abrem canais de comunicação não verbais, pois, para o autor, somos um complexo som-ser humano-som pelo fato de que, desde o ventre materno, somos banhados por sons e movimentos o tempo todo, pelo líquido amniótico, pelos movimentos de vísceras e órgãos etc.

No aquecimento específico, o objetivo era fazer emergir o protagonista, uma situação de conflito. Utilizamos algumas técnicas sugeridas por Valongo (1993), que propõe uma sequência que trabalhe os principais elementos da música: ritmo, melodia e harmonia. No nosso trabalho acrescentamos também as principais propriedades do som: altura, intensidade, timbre e duração, assim como diversas dinâmicas musicais, com a finalidade de desenvolver a espontaneidade e a criatividade dos participantes. Colocamos uma música africana, dançante, com marcação por tambores e pulsação binária, pois, segundo Benenzon (1988), esta é a pulsação rítmica inicial de todos nós, as batidas do coração desde o ventre materno. Pedimos que os participantes formassem duas filas, uma em frente à outra, e ficassem um de frente para o outro. Criamos a marcação rítmica binária para a primeira fila bater com as mãos e pedimos que a segunda fila criasse outro ritmo, enquanto o primeiro continuava marcando.

Valongo (1993) considera o próprio corpo o instrumento mais importante na vivência musical. Ao pedir que a segunda fila de participantes criasse, improvisasse musicalmente, nós nos apoiamos nos pensamentos da autora citada, que considera a "improvisação uma técnica possível para aperfeiçoar a capacidade espontânea" (Valongo, 1993, p. 160).

Continuando o aquecimento específico, trabalhamos a melodia, a harmonia, e assim fomos trabalhando diversas propriedades do som e dinâmicas musicais.

Descrevemos o desempenho do paciente como um fruto do seu ego criador em luta por uma existência espontânea, e prescrevemos como antídoto um adestramento sistemático da espontaneidade. Tal adestramento proporciona um verdadeiro paraíso, um viveiro para o desenvolvimento de seu ego criador. Liberta-o dos grilhões das conservas musicais, até que seu ego criador esteja amadurecido e capaz de integrar a sua criatividade e as conservas musicais com maior êxito. (Moreno, J. L., 1946/2007, p. 368)

J. L. Moreno afirma que o palco é a alma e todo "ator" é de fato criador da sua dramatis persona, a fim de desenvolver papéis em status nascendi, nascendo no momento, o oposto da rígida conserva cultural. À medida que cria, despadroniza. "Cada homem é o melhor agente para retratar-se a si mesmo" (Moreno, J. L., 1946/2007, p. 333).

Propusemos uma improvisação em grupo, em que cada participante criasse sua música pessoal simultaneamente com o grupo, e depois grupal, seguida pela criação simultânea de uma única música. Foi criada uma melodia única, descendente (lá bemol, sol bemol, fá e mi bemol) e nesse momento emergiu a protagonista P1. Sua voz sobressaiu ao grupo, emergindo como protagonista vocal por meio dos sons "Ah, ah, ah, ah" repetidos até finalizarem decrescentemente, terminando juntos, num encontro télico "na" e "com" a música. Para Valongo (1993), a Psicomúsica permite à pessoa entrar em sintonia com suas possibilidades sonoras e assim trocar com a vivência sonora dos outros participantes.

Pedimos que compartilhassem verbalmente o sentimento gerado e foi eleita a protagonista, P1, que compartilhou estar impressionada pelo fato de ter sido o centro das atenções, a "estrela", por poder cantar livremente e liderar o grupo, já que estava acostumada a abafar sentimentos, sempre se omitindo e se escondendo. Explicamos que a música foi protagônica e nascida do grupo e pedimos que, a partir dela, montassem uma cena utilizando P1 como representante desse sentimento de liberdade de expressão e lugar no mundo.

Protagonista "é o cliente que emerge para tratamento e simboliza o sentimento comum que permeia o grupo, recebendo deste a aquiescência para representá-lo" (Almeida, 1989, p. 32). Para Aguiar (1990), é o grupo que se integra para construir a cena, revelando o coletivo na individualidade do herói, do protagonista.

Pedimos a todos que voltassem a cantar a música do grupo e deixassem a cena rolar espontaneamente, e assim retornamos ao nosso Projeto Dramático, pois "A cena encaminhar-se-á sempre para uma resolução dramática do conflito que informa a queixa ou a proposta inicial do protagonista" (Aguiar, 1990, p. 171).

No "como se", conforme explica Ramalho (2011), trabalha-se com a realidade suplementar, o clímax da sessão, quando os personagens ganham vida e "assim, atuando livremente, o protagonista é convidado a experienciar um mundo sem limites, virtual, em que fica liberado do mundo real, podemos dizer que estamos trabalhando com a imaginação, numa realidade suplementar" (Ramalho, 2011, p. 50).

Austin (2008) afirma que improvisações vocais, com ou sem palavras, possibilitam aos pacientes liberdade de associações e que criem musicalmente um retrato de si mesmos ou partes de si mesmos, podendo revelar pontos fortes, vulnerabilidades, conflitos e sentimentos.

Na sequência, explicamos que, à medida que fossem se sentindo aquecidos, impelidos, poderiam construir uma imagem a partir de P1, que representasse o sonho de liberdade de todos ‒ uma imagem corporal, com movimento de P1 ou não, por meio da qual pudessem fazer, dizer ou cantar coisas.

Para Austin (2008), a improvisação vem de um impulso natural que permite a expressão livre através do jogo vocal e musical, liberando e permitindo o fluxo natural dos impulsos e, assim, a cura pode ocorrer porque os clientes podem se conectar com suas verdadeiras vozes, libertando-se da tirania dos deveres, acessando e liberando sentimentos genuínos, abrindo assim um canal para uma vida mais autônoma.

Em cena, P5 levantou os braços de P1, realizando um movimento de voo, liberando tensão e possibilitando psicodramaticamente esse "voar" da protagonista para atingir seu objetivo de maior liberdade, autonomia e autoestima. P2 "ensinou" psicodramaticamente P1 a andar de bicicleta, um dos seus sonhos revelados no compartilhamento, possibilitando essa vivência psicodramática no "como se".

Almeida (1989) cita que os egos, ao se identificarem com a protagonista, pela mobilização dos afetos e das emoções, compartilham de seu sentimento, promovendo a Catarse de Integração. "Esse fenômeno seria o verdadeiro fenômeno curativo do Psicodrama, pois possibilita a clarificação intelectual e afetiva das estruturas psicoemocionais e da sua ressonância na relação humana ... abrindo ao protagonista e ao grupo novas possibilidades existenciais" (Almeida, 1989, p. 35).

O canto catártico constituiu-se de cenas espontâneas e foi o canal libertador juntamente com as cenas trazidas pelos egos cocriadores, numa coconstrução ativa. "Catarse significa purificação, descarga de emoções, confissões, alívio de tensões ... ocorre na relação dos vários membros do grupo, a partir da encenação de alguns e do envolvimento dos outros" (Almeida, 1989, p. 35).

"A música é ... um recurso de expurgação, catarse, maturação, e por sua prática aprende-se a organizar o pensamento, a estruturar o saber adquirido, a reconstruí-lo, a fixá-lo ativamente" (Sekeff, 2007, p. 14).

Aplicamos a técnica da "Escultura" a partir de P1, apresentada por Barberá e Knappe (1997), que solicita que os participantes construam uma imagem corporal intuitiva, espontaneamente, a partir do sentimento trazido pelo momento presente. Para os autores, o corpo é utilizado como representante da fala, do sentimento, da vivência sem racionalização. "Seu corpo - e o de cada um dos indivíduos que fazem parte da escultura - trará a cada um sua própria mensagem, sua interpretação pessoal" (Barberá & Knappe, 1997, p. 158). Para Cukier (1992), a escultura é mais um recurso para concretizar conteúdos simbólicos internos do paciente, que, dessa forma, ganham vida. Houve inversões de papéis, duplos e espelhos.

No compartilhamento, todos falaram sobre como se sentiram durante a vivência. P1 relatou ter começado terapia havia alguns meses, porém essa vivência resolvera conteúdos internos mais eficazmente que sua psicoterapia individual.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste estudo, pudemos investigar as técnicas psicodramáticas aliadas ao uso do canto ‒ que nomeamos Cantodrama ‒, que foram observadas como carreadoras da catarse e não apenas como aquecimento, na dramatização, representando assim uma possibilidade terapêutica.

O Cantodrama foi fundamental nesse processo, pois possibilitou a expressão de forma sensível, sem o uso da razão, mas por meio dos sentimentos escondidos e contidos, que encontraram, assim, um canal de abertura, para extravases e ressignificados catárticos.

O canto improvisado, original, único, espontâneo emergiu e revelou sentimentos de forma mais eficaz que palavras, pois ao pensar utilizamos a razão, podendo haver mecanismos de defesas.

A voz cantada dos protagonistas tomou vez e atitude, disse de forma sui generis o que mais ninguém poderia dizer por eles. O encontro com a verdadeira voz interna, livre dos deveres impostos pela sociedade, abriu as portas para uma vida mais autônoma, expressiva e autêntica.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido: 02/08/2016
Aceito: 09/11/2016

 

 

Débora Cestaro Cunha: Psicóloga. Especialista em Psicodrama pela Profissionais Integrados (Profint). Espaço Débora Cestaro: Rua José Pontes de Magalhães, 2152, Ed. Itália, sala 307, Jatiúca, CEP 57036-250. Maceió, AL. Tel.: (82) 99902-2668.

 

 

1 Texto apresentado no 20º Congresso Brasileiro de Psicodrama - 2016.

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