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Revista Brasileira de Psicodrama

versão impressa ISSN 0104-5393versão On-line ISSN 2318-0498

Rev. bras. psicodrama vol.24 no.2 São Paulo dez. 2016

http://dx.doi.org/10.15329/2318-0498.20160021 

ARTIGOS INÉDITOS

 

O sociodrama como metodologia de intervenção com condenados

 

Sociodrama as an intervention methodology for convicts

 

El sociodrama como metodología de intervención con condenados

 

 

Luiz Felipe Viana CardosoI; Maria das Graças de Carvalho CamposII

IUniversidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). e-mail: luizfelipevcardoso@gmail.com
IIInstituto Mineiro de Psicodrama "Jacob Levy Moreno" (IMPSI). e-mail: graca.campos@impsi.com.br

 

 


RESUMO

Este artigo apresenta um estudo sobre o uso do Sociodrama como metodologia de intervenção com condenados que cumprem pena no Método de Execução Penal APAC. Busca-se compreender como essa metodologia pode servir para auxiliar no desenvolvimento de novos papéis e na (re) construção do projeto de vida dos condenados, à luz da socionomia de Jacob Levy Moreno. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, realizada com reclusos de uma Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (APAC) de Minas Gerais, que visa refletir sobre o sentido do encarceramento e a produção de novos projetos de vida para esses indivíduos. Foi possível estabelecer correspondência entre os resultados alcançados e a teoria sociodramática, uma vez que esta pode se constituir como uma intervenção psicológica no contexto prisional.

Palavras-chave: psicologia jurídica, presidiários, psicodrama, socionomia, projeto de vida


ABSTRACT

This article presents a study about the use of sociodrama as an intervention methodology for convicts who serves a sentence in the Criminal Execution Method APAC. The objective is to understand how this methodology can be used to assist in the development of new roles and in the (re) construction of the convicts' life project, in the light of Jacob Levy Moreno's socionomy. It is a qualitative research developed with inmates of Association of Protection and Assistance to the Convicts (APAC) in Minas Gerais, aiming at reflecting on the meaning of incarceration and the production of new life projects for these individuals. It was possible to establish a connection between the results achieved and the sociodramatic theory, as sociodrama can be constituted as a psychological intervention in the prison context.

Keywords: legal psychology, prisoners, psychodrama, socionomy, life project


RESUMEN

En este artículo se presenta un ensayo sobre el uso del Sociodrama como metodología de intervención con los presos que cumplen penas en el Método de Ejecución Penal APAC.Se trata de comprender cómo esa metodología se puede ser utilizada para ayudar en el desarrollo de nuevos roles sociales y en la (re) construcción del proyecto de vida de los condenados a la luz de la Socionomía de Jacob Levy Moreno. Se trata de un ensayo con el diseño cualitativo llevada con los internos de la Asociación de Protección y Asistencia a los Convictos (APAC) de Minas Gerais, que tiene como el objetivo reflexionar sobre el sentido de encarcelamiento y la producción de nuevos proyectos de vida de estas personas. Fue posible establecer correspondencia entre los resultados obtenidos y la teoría del sociodrama, ya que esto puede ser como una intervención psicológica en el contexto penitenciario.

Palabras clave: psicología jurídica, reclusos, psicodrama, socionomía, proyecto de vida


 

 

INTRODUÇÃO

O presente artigo fundamenta-se no trabalho monográfico do curso de pós-graduação em Psicodrama (lato sensu), intitulado "O sociodrama como metodologia de intervenção com condenados inseridos no Método de Execução Penal APAC" (2016).1 Buscamos com esta pesquisa investigar quais as contribuições do sociodrama para o desenvolvimento de novos papéis e para a (re) construção dos projetos de vida de condenados em privação de liberdade.

Nossas experiências foram realizadas em uma unidade da Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (APAC), de um município do interior de Minas Gerais. A APAC é uma instituição de terceiro setor, que compõe o Sistema Prisional Brasileiro, mas se diferencia dos sistemas tradicionais, pois tem como fundamentação a recuperação e a reintegração social do condenado (Tribunal de Justiça de Minas Gerais - TJMG, 2011) por meio do trabalho de valorização humana. Criada em 1972, por Mário Ottoboni, tem como objetivo ser uma alternativa à superlotação, às más condições, à falta de dignidade e ao descumprimento dos direitos humanos, do sistema prisional brasileiro comum. Sem perder de vista a finalidade punitiva da pena, o método APAC visa recuperar o preso, proteger a sociedade, socorrer as vítimas e promover a justiça.

Nesse sistema, o preso é chamado de recuperando, e a ele é prestada uma assistência espiritual, médica, psicológica e jurídica, além do acesso à escolarização e ao trabalho e da participação da comunidade. Para Ottoboni (2001), a dupla finalidade da APAC consiste em recuperar o homem e permitir o cumprimento digno da pena, garantindo os direitos do condenado. O recuperando é corresponsável por sua recuperação, segurança e disciplina (TJMG, 2011). Não há presença de agente penitenciário ou de policiais, e em seus lugares é dado espaço a voluntários e funcionários formados pelo método.

Este estudo mostrou-se relevante ao entender que o encarceramento, a subjetividade e o sistema prisional são fenômenos que precisam ser mais bem estudados pela Psicologia, sobretudo em relação aos novos métodos, como o método APAC (Mameluque, 2006). Além disso, especificamente dentro da Socionomia, observamos que há uma escassez de pesquisas com o público privado de liberdade.

Considerando que a recuperação do condenado está intimamente relacionada com a noção da prospecção futura, constituíram-se como objetivos centrais desta pesquisa: compreender quais aspectos do Sociodrama contribuem para um trabalho de (re) construção do projeto de vida do condenado e identificar como, por meio de processos criativos e espontâneos, novos papéis podem ser desempenhados no contexto prisional. Buscamos ainda refletir sobre as contribuições do Sociodrama para o trabalho do psicólogo no contexto prisional, entendendo que essa metodologia é uma intervenção psicossocial que pode contribuir para a valorização humana nesse contexto.

 

O SOCIODRAMA NO CONTEXTO PRISIONAL

Ao ser afastado temporariamente de seu convívio social, o indivíduo tem a sensação de romper com a própria história, vindo a não reconhecer sua identidade, constituindo o que Goffman (1990) denominou como processo de mortificação do eu, resultado da perda de alguns dos papéis devido à separação do indivíduo com o mundo externo. Mameluque (2006) traz questionamentos sobre como o psicólogo prisional trata a subjetividade. A autora também faz o mesmo apontamento ao trabalho do psicólogo no Método APAC, visto que nessa perspectiva de trabalho há uma preocupação mais explícita com a humanização da pena.

Nessa perspectiva, a atuação do psicólogo deve comprometer-se em tocar a dimensão subjetiva da experiência de privação de liberdade, permitindo ao condenado um espaço de elaboração subjetiva (Mameluque, 2006; Medeiros & Silva, 2014). Medeiros e Silva (2014) consideram que o psicólogo não deve se limitar à produção de documentos técnicos, mas agir em relação à condição em que o encarcerado se encontra, buscando desenvolver um trabalho de (re) construção da cidadania orientada pela garantia dos Direitos Humanos.

Para Moreno (1992), "um procedimento verdadeiramente terapêutico deve ter como objetivo toda a espécie humana". Campos (2013) afirma que o objetivo do Sociodrama "é o tratamento sociodinâmico das relações interpessoais em grupos operativos, em grupos de estudo, trabalho, igrejas, comunidades, empresas" (p. 78). O protagonista é sempre o grupo, que traz uma história e/ou vivência que é partilhada por todos os indivíduos, considerando o momento o qual o grupo vive. Nos grupos, os próprios indivíduos se tornam agentes terapêuticos ao compartilharem suas histórias (Moreno, 2011).

Yozo (1996) faz apontamentos importantes sobre trabalhos que envolvem metodologias psicodramáticas com grupos. Para o autor, essas metodologias buscam desenvolver e estimular a criatividade e a espontaneidade dos participantes, de forma que se quebrem os papéis conservados e se chegue ao ato criativo, ou seja, algo novo seja atingido (novos papéis, novas reflexões, novas formas de pensar e ver um fenômeno).

Quando os indivíduos têm a possibilidade de jogar com papéis diferentes (role playing), abre-se um espaço para a experimentação de novas possibilidades, respostas ou resoluções. No final desse processo, aproxima-se do que Moreno (2011) denominou role creating - quando não mais se toma ou se joga um papel, mas algo novo é criado ou reformulado neste. Ou seja, sendo o "como se" um aspecto lúdico, permite ao indivíduo agir sobre questões em um campo psicológico seguro. Para Yozo (1996), quanto mais tempo o indivíduo joga com um papel, maior a qualidade de respostas.

Nesse sentido, a situação de encarceramento pode ser vivenciada para se pensar em novos papéis, possibilitando assim a reconstrução ou a adoção de novos projetos de vida. A tomada de papéis, bem como a inversão de papéis, permite aumentar a percepção dos recuperandos em relação ao mundo, servindo também como ensaio para o futuro, no qual novas escolhas possam ser feitas, fazendo com que o papel de preso/ex-preso deixe de ser a única relação com a sociedade (Gulassa, 2007).

Andaló (2006) considera que no método sociodramático busca-se realizar uma investigação das relações sociais, das posições e dos papéis que os indivíduos representam. Assim, conforme o trabalho é realizado, cria-se a possibilidade para que os indivíduos se desfaçam de alguns papéis e superem a condição do que a autora chama de "sujeitos sujeitados" e se tornem sujeitos ativos, ou seja, papéis que antes estavam conservados são recriados.

A metodologia psicodramática nas instituições favorece o atendimento de maior quantidade de pessoas e, por ter uma estrutura muito dinâmica, motiva os participantes a comparecer aos grupos, possibilitando resultados a curto e médio prazos (Paula & Coelho, 2006). Gulassa (2007) coloca que o trabalho psicodramático dentro de unidades prisionais beneficia o condenado por lhe permitir um momento no qual possa se colocar de maneira mais criativa para refletir sobre sua vida, com base na experimentação de novos papéis. Dessa forma, a noção de projeto de vida é compreendida aqui como parte integrante do processo de recuperação do condenado, em sintonia com a filosofia do Método APAC: "Toda pessoa é maior que o seu próprio erro" (Ottoboni, 2001, p. 30).

 

MÉTODO

No contexto de pesquisa, Moreno (2011) toma o papel do psicodramatista como de investigador social, colocando-o alinhado a uma coexperiência com os participantes. O "diretor é o líder da pesquisa" (Moreno, 2011, p. 303). Nesse sentido, o Sociodrama tratará das relações intergrupais e das ideologias coletivas, enquanto o Psicodrama tratará dessas dimensões no contexto privado. Dessa forma, o procedimento psicodramático constitui um espaço de experimentação, sendo o palco uma plataforma social; os protagonistas são pessoas reais que não apenas atuam, mas apresentam os próprios Eu's, e o enredo não é uma peça, mas os problemas mais íntimos dos envolvidos (Moreno, 2011).

Em relação à aplicação do método psicodramático na pesquisa qualitativa, Brito (2006) coloca que no trabalho psicodramático acadêmico não há neutralidade, pois o pesquisador procura analisar a realidade social, mantendo o rigor metodológico, sem abrir mão de ser quem é. A autora entende que o nosso papel como pesquisador é o de utilizar nosso conhecimento teórico para acessar o mundo fenomenológico de pessoas e grupos, realizando encenações dramáticas com objetivo de conhecer e tratar a dimensão subjetiva do grupo com o próprio grupo, utilizando-se do espaço psicodramático construído por nossos protagonistas, para que possamos fazer questões e obter respostas (Brito, 2006).

Como pesquisador, o psicodramatista tem a oportunidade de integrar, de forma harmoniosa, a técnica, o método e o tratamento, tornando-se um pesquisador qualitativo (Brito, 2006), de modo que a pesquisa se coloque como uma possibilidade para a superação de impasses que geram sofrimento. Nesse sentido, durante a coleta de dados (no decorrer das intervenções), o sujeito-participante é cocriador do processo. Para Brito (2006), "a escolha da metodologia psicodramática diz respeito a um modo específico de compreender-descrever os fenômenos humanos e não apenas de observá-los ou registrá-los" (p. 53).

Como procedimento metodológico nesta pesquisa, foram desenvolvidos seis sociodramas, de 1h30 cada, com um grupo de 9 (nove) recuperandos, do sexo masculino, que cumprem pena em regime fechado em uma APAC de Minas Gerais. A idade dos participantes variou entre 24 e 38 anos, e o tempo de reclusão no regime fechado chegava a 7 anos. Foram critérios para participar desse grupo: consentir a participação, ser do regime fechado e não estar próximo de conquistar a progressão de regime (ou seja, direito de ir para o semiaberto de imediato). O grupo foi formado exclusivamente com recuperandos do regime fechado, pois nesse regime a rotatividade é menor, tendo menor risco para o processo grupal.

Os sociodramas foram organizados respeitando a seguinte sequência temática: a história das pessoas do grupo; os medos, as dúvidas e as inseguranças do condenado a respeito da perspectiva sobre a experiência de encarceramento e o futuro; os papéis conservados e o desenvolvimento de novos papéis; projetos de vida; a finalização, bem como a avaliação e a devolutiva do processo e compartilhamento das experiências de pertença dos participantes.

Com a devida autorização por meio dos Termos de Consentimento Livre Esclarecido (TCLE), algumas cenas foram gravadas por vídeo e todos os compartilhamentos dos encontros foram gravados por áudio, servindo como coleta de dados a respeito dos objetivos da pesquisa. Todas as gravações foram transcritas. As transcrições foram tratadas pela análise de conteúdo, à luz da Socionomia, a fim de identificar referências quanto a: metodologia sociodramática, processo psicoterapêutico de grupo, projeto de vida, papéis conservados, desenvolvimento de novos papéis, entre outras categorias.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A partir dos sociodramas realizados, foi observado que o passado é visto na história de cada recuperando como forma de aprendizado. Segundo Moreno (2011), a representação em uma cena pode relacionar-se com situações tanto do passado como do presente, ou até mesmo futuras. Ainda que, para todas as pessoas do grupo, a lembrança do que aconteceu no passado seja algo que traz sofrimento, em virtude das perdas relacionadas ao envolvimento com o crime, a dimensão desse passado torna-se um divisor de águas em relação à prospecção de vida. Atribui-se à história passada o valor de "espelho", servindo de testemunha no compromisso com o desejo de um futuro diferente, o que é identificado na seguinte fala:

G.: É uma coisa muito difícil você olhar pra trás e lembrar de tudo que aconteceu, lembrar da família, lembrar de você mesmo, que outrora estava fazendo outras coisas, estava trabalhando, que saí desse mundo de trabalho e fui para o mundo das drogas, que não deixa de ser trabalho, mas é ilícito. E a gente tem muitos ganhos, muitas perdas. Nesses cinco anos e dois meses que estou preso aprendi muitas coisas... valorizando mais a família, valorizando mais viver. Tenho descido um pouco do salto... nós não podemos esconder de nós mesmos, temos que estar sempre olhando no espelho, refletindo nós mesmos, para nós, né?

Os aspectos trazidos pelo grupo em relação ao passado estão associados ao papel conservado de criminoso. Segundo Moreno (2011), os papéis se definem de diversas formas, entre elas, como uma personagem ou função assumida na realidade social. Sendo os papéis a menor unidade de uma cultura (Moreno, 2011), seu desempenho é dinâmico e realizado por meio da complementariedade de funções, como o papel de pai e de filho, professor e aluno etc. O conjunto de papéis desenvolvidos pelos indivíduos durante sua vida modifica-se em relação à maturação do próprio indivíduo e à cultura na qual está inserido. Nessa perspectiva, os sociodramas possibilitaram aos participantes resgatar papéis esquecidos ou criar novos. O papel de criminoso, que estava conservado, deu espaço ao resgate de papéis sociais diferentes, como de pai, filho, esposo, profissional etc., como exemplificado na seguinte fala:

J.: Achei bacana falar dos medos que temos e das dificuldades que vamos achar. A mudança depende de nós... Não quero criar meu filho nessa vida. Quero uma vida diferente pra ele.

Nesse sentido, a experiência de dramatizar os projetos de vida trouxe ao grupo a possibilidade de inventar papéis diferentes dos já adotados. As dramatizações permitiram que ogrupo pudesse vivenciar seus medos e expectativas da vida fora da prisão.

G.: Chorei por ver o A. saindo da cadeia e procurar emprego e ter algumas portas fechadas. No teatro consegui trabalhar isso.

J.: Foi legal o sentimento de ter dado um emprego pra ele. Quando eu sair daqui penso em procurar algo pra mim e passarei pelo mesmo processo que ele.

A inversão de papéis foi uma das técnicas mais utilizadas durante os sociodramas. Conforme Campos (2013), essa técnica consiste em fazer com que o protagonista da cena troque de lugar com outro personagem, experimentando o outro lugar. Essa troca de papel provoca um processo de empatia. Uma das inversões de papéis que teve efeito significativo durante uma dramatização ocorreu quando houve a troca entre o personagem que representava um pastor e outro que representava um traficante. Antes da inversão, o personagem traficante (que estava desempenhando um papel familiar, por se tratar de algo de sua história) estava bastante confortável em convencer um ex-colega de tráfico a voltar a traficar. Ele enfrentou o pastor desqualificando-o. Quando a inversão ocorre, esse participante muda sua expressão, vindo a ter mais dificuldade de representar o novo papel. Nota-se que fica mais introspectivo nessa atuação e a cena traz uma ressonância em todo o grupo, fazendo com que outro participante se coloque como ego-auxiliar, ampliando um conflito que diz respeito à história desse grupo.

Em uma sessão de sociodrama, o grupo é levado a desempenhar novos papéis e a criar novas formas de lidar com situações para as quais, no passado, não conseguiram dar outras respostas. Abre-se um espaço para a experimentação, para a possibilidade de enxergar um mesmo fenômeno com outro olhar. A técnica de inversão permite quebrar papéis e ações conservados. Para Fonseca Filho (1980), a inversão de papéis faz surgir uma percepção mais realista de si, do mundo e do outro com base na experimentação de papéis.

Pensar sobre o futuro é algo que traz ansiedade ao grupo, pois há diversas incertezas e medos, como a de não conseguir trabalho, como serão recebidos pela comunidade e por suas famílias e como serão vistos por suas vítimas e/ou familiares delas. Há também o medo das desavenças deixadas durante a vida no crime.

W.: Eu vou falar assim, foi diferente do primeiro porque o pensamento primeiro foi focado no passado. Esse automaticamente faz a gente pensar no futuro... ah falar pra você que é bem frustrante, né? Ficar tentando imaginar seu futuro, como vai ser. Às vezes você pensa de um jeito e acontece de outro. Você acaba fazendo uma coisa meio frustrante... porque automaticamente todos que estão aqui não queriam esse caminho... mas rolou... acabou acontecendo isso. Frustrante.

Diretor: O que você sentiu fazendo as estátuas e vendo as estátuas dos colegas?

W.: Ah, senti um "cado" de esperança né? Mudar de vida. Então é esperança mesmo... sair dessa vida do crime.

Em uma dramatização o grupo representou uma cena na qual um ex-presidiário, após sair da prisão, vai em busca de um emprego, passando por várias recusas para ser contratado, devido à sua condição de ex-condenado, e por conflitos com pessoas ligadas ao crime, que o aliciavam para a prática do tráfico. Nesta cena, tornou-se visível o sentimento de medo e insegurança dos participantes em relação aos desafios que enfrentariam.

W.: Meu sentimento, é uma coisa assim, como o G. falou, um sentimento de libertação, de vitória. Porque nós sabemos que estamos falando do nosso futuro, e quando sairmos daqui automaticamente vamos passar por isso.

Os momentos de compartilhamento tiveram grande importância, visto que compreendiam o momento em que o grupo se escutava. Cada um expunha seus sentimentos, impressões, e os correlacionava com suas histórias de vida. Os participantes buscavam apoio uns nos outros, constituindo o que Campos (2013) denomina como o momento da catarse de integração no Psicodrama, na qual há uma interação dinâmica entre corpo, pensamento e emoção. A fala a seguir exemplifica os sentimentos que eram compartilhados pelos participantes:

A.: Inicialmente foi uma dificuldade muito grande... o sentimento que veio ali. Porque a gente está encenando, mas a gente sente no momento que é real. A gente sabe, igual o G. falou, que lá fora infelizmente vai acontecer isso conosco. E, aí, no momento que a gente está preso a gente pensa que o pior momento que a gente está passando é aquele, de estar dentro de uma cadeia. Mas aí, na hora que a gente sai, a gente vê que as dificuldades, muitas dificuldades ainda estão por vir. Entendeu? Tentações, propostas para ir pro lado errado apareceram, quando eu fui ali na entrevista de emprego [se referindo à cena em que ele buscava um emprego], eu recebi um não, mesmo aquilo ali sendo brincadeira, aquilo ali realmente doeu. Eu sentia verdadeiramente, mas aí quando eu saí pro encontro... com o pastor que deu boas ideias, fortaleceu de verdade mesmo. E quando eu cheguei no irmão J. e ele abriu as portas, aquilo foi um sentimento muito bom, sentimento de conquista e de vitória, e no final aqui agora, eu realmente estou sentindo um sentimento de vitória, um sentimento de conquista. Estou me sentindo muito orgulhoso.

Durante os sociodramas, o grupo pôde trabalhar questões referentes aos estigmas e aos preconceitos em relação à condição futura de ex-presidiário, bem como os medos de como serão acolhidos pela comunidade. O espaço do "como se" e do "aqui-agora" permitiu ao grupo treinar papéis que futuramente desempenharão ao sair do encarceramento. Para Zerka Moreno, na atividade psicodramática a realidade suplementar é um dos aspectos mais terapêuticos e facilitadores de mudança (Moreno, Blomkvist & Rützel, 2001). A dramatização torna-se terapêutica na medida em que possibilita ao grupo entrar nas questões subjetivas, como observado na fala a seguir:

M.: Sentimento de felicidade, mas me colocando no meu lugar de preso, ver o companheiro escutar vários nãos, pensar que vou passar por isso, dá um sentimento de tristeza. Mas precisamos ter persistência diante da dificuldade e não desistir. Não deixar a discriminação por ser ex-presidiário atrapalhar [referindo-se aos projetos de vida]. Não podemos desistir dos nossos sonhos.

O grupo se tornou um espaço muito significativo para os participantes, cumprindo a sua função de desenvolver o processo psicoterapêutico por meio da metodologia sociodramática. Apesar de terem sido apenas seis encontros, foram suficientemente intensos para dar aos participantes um sentimento de pertencimento, como identificado nas seguintes falas:

G.: O grupo foi legal... Eu pensava que seria igual aos que temos aqui, mas não foi. No primeiro dia eu falei que estava sendo diferente de todos os encontros que a gente estava fazendo aqui na casa [APAC])... com o teatro de ontem eu até me emocionei quando a gente fez [se referindo à cena da busca pelo emprego ao sair do APAC].

C.: Aqui foi especial, porque, a maioria do tempo, o que a gente expôs aqui são coisas que a gente não fala nem com a mãe e o pai da gente. Coisa que a gente tenta superar e entender no momento que a gente põe a cabeça na cama, vêm muitas perguntas... o que vai ser de amanhã, daqui a dez minutos. Problemas todo mundo tem. O que mais marcou o grupo é que todo mundo tem o mesmo problema e resolvemos compartilhar. Espero que todos tenham conseguido achar uma forma de superar os obstáculos e aqueles que não conseguimos resolver agora, que encontramos outra forma de vencer.

Considerando que no Sociodrama o diretor é o psicoterapeuta (Campos, 2013), suas funções são dirigir, analisar a cena, ampliar, incrementar. Para Moreno (2006, citado por Campos, 2013), no Sociodrama o diretor está incluso no processo, ou seja, é parte da produção e da análise, compartilhando com os participantes a catarse social. Nesse sentido, o Sociodrama constitui uma intervenção possível para o trabalho do psicólogo no Método de Execução Penal APAC, na medida em que amplia suas possibilidades de intervenção psicossocial para a valorização humana do condenado.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A metodologia sociodramática como intervenção no contexto de privação de liberdade possibilita aos participantes uma intervenção psicológica, a fim de permitir ao condenado um espaço de escuta, ação e reflexão de sua história passada, de seu presente e de seus planos para o futuro. Devido ao aspecto lúdico do "como se", constitui um campo psicológico seguro para que os participantes exponham seus medos, suas angústias e seus projetos.

Sobre a categoria projeto de vida, os recuperandos puderam trabalhar seus projetos, os medos em relação ao futuro e os desafios de se reintegrar à sociedade. Nas dramatizações realizadas, o grupo representou tanto seus medos quanto novas formas de se relacionar e enfrentar a realidade. Nesse sentido, as pessoas encontraram umas nas outras o apoio para a elaboração de aspectos subjetivos de sua história e da produção de sua identidade.

Relacionam-se com os projetos de vida dos condenados aspectos familiares, profissionais e sociais, destacando-se o papel motivador que a família e a espiritualidade têm como catalisadores para as mudanças e o enfrentamento da realidade de encarceramento. A condição de presidiário não impede a re(construção) de projetos de vida dos recuperandos.

As etapas da metodologia sociodramática permitiram que o processo terapêutico fosse vivido conforme as demandas e o desenvolvimento do grupo. Os aquecimentos foram importantes para amenizar as ansiedades das pessoas do grupo frente aos temas trabalhados. As dramatizações foram momentos de criação espontânea, servindo como construções de novos papéis. Os compartilhamentos resultaram em um espaço possível de ressignificações.

Considerando a dificuldade de realizar intervenções grupais no contexto prisional, marcado pela insegurança do condenado em aderir uma atividade que implique exposição pessoal, sobretudo para seus pares, o aspecto lúdico do Sociodrama torna o processo psicoterapêutico de grupo menos ameaçador. É importante ressaltar que este estudo, por ter sido realizado em uma APAC, na qual a valorização humana é sua fundamentação, facilita o uso dessa metodologia, porém não é possível generalizar os resultados para todo o Sistema Prisional Brasileiro, dadas a sua dimensão e suas singularidades. Entretanto, como em estudos de Gulassa (2007), esse tipo de metodologia pode contribuir para a recuperação, como consta na Lei de Execução Penal (LEP) Lei nº 7.210/84.

Sendo a experiência de confinamento entendida como uma das causas para o adoecimento psíquico (Goffman, 1990), o Sociodrama convida o indivíduo encarcerado a quebrar os papéis conservados, nos quais foram cristalizadas as mesmas ações, levando o recuperando a dar uma resposta adequada a uma situação nova ou uma nova resposta a uma situação antiga, em meio a um processo criativo e espontâneo (Moreno, 2011), constituindo assim um movimento de saúde.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido: 13/09/2016
Aceito: 05/12/2016

 

 

Luiz Felipe Viana Cardoso: Mestrando em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). Psicólogo também pela UFSJ. Especialista em Psicodrama pelo Instituto Mineiro de Psicodrama "Jacob Levy Moreno" (IMPSI). Rua Amendoeiras, 43, apto. 203, Matozinhos, CEP 36305-062. São João del-Rei, MG. Tel.: (32) 98854-1203.
Maria das Graças de Carvalho Campos: Diretora do Instituto Mineiro de Psicodrama "Jacob Levy Moreno" (IMPSI). Especialista em Psicodrama pela Sociedade Brasileira de Psicodrama (Sobrap). Professora Didata Supervisora pela Federação Brasileira de Psicodrama (Febrap). Psicóloga pela Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). Rua Rio Grande do Norte, 1289, 5º andar, Funcionários, CEP 30130-131. Belo Horizonte, MG. Tel.: (31) 3287-5388.

 

 

1 A monografia, sob orientação da Profa. coautora, foi apresentada ao Instituto Mineiro de Psicodrama Jacob Levy Moreno (IMPSI) e à Faculdade Pedro Leopoldo (FPL), para obtenção do título de psicodramatista, em fevereiro de 2016.

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