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Revista Brasileira de Psicodrama

versão impressa ISSN 0104-5393versão On-line ISSN 2318-0498

Rev. bras. psicodrama vol.24 no.2 São Paulo dez. 2016

http://dx.doi.org/10.15329/2318-0498.20160023 

ARTIGOS REFLEXÃO

 

Psicodrama e relações raciais

 

Psychodrama and race relations

 

Psicodrama y relaciones raciales

 

 

Maria Célia MalaquiasI; Denise Silva NonoyaII; Antonio Carlos Massarotto CesarinoIII; Maria da Penha NeryIV

ISociedade de Psicodrama de São Paulo (SOPSP). mcmalaquias@uol.com.br
IISociedade de Psicodrama de São Paulo (SOPSP). deninonoya@gmail.com
IIISociedade de Psicodrama de São Paulo (SOPSP). accesarino@uol.com.br
IVAssociação Brasiliense de Psicodrama e Sociodrama (ABP). e-mail: mpnery@hotmail.com

 

 


RESUMO

Este artigo é fruto do tema da mesa-redonda "Psicodrama e relações raciais", apresentada no 20º Congresso Brasileiro de Psicodrama. Seu objetivo é discutir a relevância de um espaço para compartilhar práticas, vivências e pesquisas sobre relações raciais. Moreno apresenta o Etnodrama como a contribuição do Psicodrama para tratar problemas étnicos. Sob a perspectiva de Guerreiro Ramos, visamos focar parte da história dessas relações no Brasil, marcadas por racismo e sofrimento psíquico. Evidencia-se a necessidade de conhecer as especificidades dessas relações de preconceito, discriminação e exclusão, que sutil ou explicitamente desencadeiam profundas feridas emocionais. Movidos pelas ressonâncias da referida mesa, apresentamos nossa discussão, acrescidas de seis depoimentos da plateia, e convidamos os leitores a refletir: como os psicodramatistas podem intervir nessa realidade?

Palavras-chave: psicodrama, relações étnicas e raciais, sofrimento, racismo, inclusão social


ABSTRACT

This article is the result of the round table "Psychodrama and race relations", presented at the 20th Brazilian Congress of Psychodrama, and aims at discussing the relevance of a space toshare practices, experiences and research on race relations. Moreno presents the Ethnodrama as a psychodrama contribution to combat ethnic problems. From the Guerreiro Ramos' perspective, we aim to focus on the part of the history of ethnic relations in Brazil, marked by racism and psychological distress. There is the need to know the specificities of these prejudice, discrimination and exclusion relations, that subtly or explicitly trigger deep emotional wounds. Moved by the resonances of that table, we present in this article our discussion, plus six testimonials of the audience. We invite readers to reflect: how psychodramatists can step in this reality?

Keywords: psychodrama, racial and ethnic relations, suffering, racism, social inclusion


RESUMEN

Este artículo es fruto del tema de la mesa redonda "Psicodrama y relaciones raciales", presentada en el 20o Congreso Brasileño de Psicodrama, y tiene como objetivo discutir la relevancia de un espacio para compartir las prácticas, las vivencias y las investigaciones sobre relaciones raciales. Moreno presenta el Etnodrama, como la contribución del psicodrama para tratar los problemas étnicos. Bajo la perspectiva de Guerreiro Ramos, buscamos centrar en la parte de la historia de las relaciones étnicas en Brasil, marcadas por racismo y sufrimiento psíquico. Se evidencia la necesidad de conocer las especificidades de esas relaciones de prejuicio, discriminación y exclusión, que sutil o explicitamente, desencadenan profundas heridas emocionales. Movidos por las resonancias de la referida mesa, presentamos en este artículo nuestra discusión, añadidade seis declaraciones de participantes de la platea. Invitamos a los lectores a reflexionar: ¿Cómo los psicodramatistas pueden intervenir en esta realidad?

Palabras clave: psicodrama, relaciones raciales y étnicas, sufrimiento, racismo, inclusión social


 

 

RELAÇÕES RACIAIS NO PALCO PSICOSSOCIODRAMÁTICO

Passado e presente apresentam-se com os mesmos instrumentos, às vezes com uma roupagem disfarçada, mas com as mesmas e sutis ações explícitas cotidianamente que não deixam dúvidas: no Brasil, há diferentes cidadãos com mais e menos direitos, dependendo da tonalidade de sua cor de pele.

Há um intenso debate nas ciências humanas e da saúde sobre o uso do termo "raça". Considera-se o termo "etnia" mais abrangente, por incluir o conceito de cultura, entendido como modo de ser e se expressar de um povo. Munanga (2003) - antropólogo, importante pesquisador do movimento negro brasileiro - esclarece que na atualidade não é mais "raça" nem "etnia", e sim o termo "população". Em seus escritos, ele se utiliza de população negra, população branca.

Neste artigo, será utilizada a expressão "relações raciais", e não "relações étnicas", na perspectiva de que o termo "raça" ainda está impregnado em nossa cultura de relações. Trata-se de algo transgeracional, que povoa o inconsciente e coinconsciente. Souza (1983) afirma que:

convém explicitar que raça aqui é entendida como noção ideológica, engendrada como critério social para distribuição de posição na estrutura de classes. Apesar de estar fundamentada em qualidades biológicas, principalmente a cor da pele, raça sempre foi definida no Brasil em termos de atributo compartilhado por um determinado grupo social, tendo em comum uma mesma graduação social, um mesmo contingente de prestígio e mesma bagagem de valores culturais. (p. 20)

Ele aborda a questão do ponto de vista do sofrimento psíquico do negro, em decorrência do racismo, da "experiência de ser-se-negro numa sociedade branca. De classe e ideologia dominantes brancas. De estética e comportamentos brancos. De exigências e expectativas brancas" (p. 17).

Na psicologia social, destaca-se a pesquisa de Carone e Bento (2002) sobre branqueamento e branquitude no Brasil, que afirma que "a falta de reflexão sobre o papel do branco nas desigualdades raciais é uma forma de reiterar persistentemente que as desigualdades raciais no Brasil constituem um problema exclusivamente do negro, pois só ele é estudado, dissecado, problematizado". E acrescenta: "evitar focar o branco é evitar discutir as diferentes dimensões de privilégio" (pp. 26-27).

Na prática, constata-se que o racismo e o preconceito causam danos emocionais e sofrimento psíquico. Em clínicas particulares e em trabalhos com pequenos e grandes grupos, encontram-se homens e mulheres de diferentes idades e classes sociais que apresentam seu sofrimento emocional desencadeado por situações de humilhação: sim, o racismo humilha e faz sofrer.

Moreno (1974) criou um método para tratar problemas étnicos, denominado Etnodrama, que define como "uma síntese do psicodrama com as pesquisas de problemas étnicos, de conflitos de grupos étnicos" (p. 123).

Ao finalizar a análise com o público, em seu trabalho "O problema negro-branco: um protocolo psicodramático", Moreno (1975) afirma que é necessário se familiarizar com o "verdadeiro papel vital de uma família negra, não intelectualmente, não como vizinha, mas também num sentido psicodramático, vivendo-o e elaborando-o conjuntamente neste palco" (p. 444).

Guerreiro Ramos aponta a importância do Sociodrama para tratar as questões de preconceito, em especial do preconceito racial, definindo-o como "precisamente um método de eliminação de preconceitos ou de estereotipias que objetiva libertar a consciência do indivíduo da pressão social" (Ramos, 2003, citado por Malaquias, 2004, p. 14).

Nesse cenário, a cena que emerge é um diálogo entre Moreno, Guerreiro Ramos e Mandela. Eles tinham um sonho de liberdade e de inclusão: Guerreiro Ramos com seu trabalho pioneiro; Nelson Mandela que nos lembra de que não nascemos racistas, portanto, podemos aprender a não ser; e Moreno com o Etnodrama. Dessa forma, eles nos convidam a trazer para o palco nossas vivências e possibilitar novas experiências, novas interações no defrontar-se consigo e com o outro.

Fonseca (2008) assegura que o trabalho de Moreno, seja em sua perspectiva sociológica, educacional ou psicoterapêutica, está fundamentado na tentativa de ajudar as pessoas a se incluírem em suas relações.

Podemos/queremos intervir nessas realidades?

 

COMPLEXO DE VIRA-LATA: CONSIDERAÇÕES PSICODRAMÁTICAS SOBRE A MESTIÇAGEM

Moreno (1993), em sua utopia, declara "eu sempre tive a ideia de que o mundo em que vivemos necessita de uma terapia mundial" (p. 10). Com base na utopia moreniana de homem e no trabalho sobre relações étnicas de Maria Célia Malaquias (2004), será discutido o tema Complexo de Vira-Lata (ou Complexo do Mestiço). A expressão foi atribuída a Nelson Rodrigues ao referir-se à derrota da seleção brasileira de futebol em 1950:

Por complexo de vira-lata entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. O brasileiro é um narciso às avessas, que cospe na própria imagem. Eis a verdade: não encontramos pretextos pessoais ou históricos para a autoestima. (Byington, 2013, p. 71)

Segundo Byington (2013), o uso do termo deve-se a várias causas possíveis: por termos sido colonizados por prisioneiros portugueses degradados, por pertencermos ao Terceiro Mundo, mas principalmente à insegurança e à autodesqualificação diante do mundo branco, europeu e norte-americano por causa de nossa miscigenação (entre brancos, índios e negros e ultimamente também entre japoneses). Ampliado ao cachorro vira-lata, não há como negar que sua principal característica é o de não ser um cachorro de raça pura, e sim um miscigenado.

O Complexo de Vira-Lata é referido como o indescritível incômodo que é a sensação de inferioridade e menos valia, acompanhada de um desesperador pessimismo e uma visível dificuldade de assumir-se diante de qualquer coisa considerada ou supostamente mais forte ou desenvolvida que assola cada brasileiro (Braga, 2014).

Fonseca (2000) explica a dinâmica relacional entre colonizador/colonizado, destacando: ausência de intencionalidade mútua no vínculo, internalização do papel de colonizador, na ambiguidade de identidade, na identificação do colonizado como inferior e sentimentos de vergonha e medo.

A identidade de papel (Moreno, 1975) colonizado não nasce das pessoas, mas é imposta cultural e historicamente. Sentimo-nos desvalorizados e inferiorizados, impotentes diante dos fatos e jogados em situações sem condições e, continuamente, nos vemos como não merecedores.

Moreno (1992) proclama a alforria da conserva cultural e declara sua crença num só integrado: "Não há nenhuma raça em minha alma... . Em minha alma mora o Pai" (p. 51). Mais adiante, antevê o embate das minorias e resgata o senso de integridade: "Por que vós, que sois das pequenas raças, ficais trêmulos com o barulho das grandes raças? Lembrai-vos. Eu sou de uma raça que só tem um membro, somente Eu" (p. 119).

Moreno (1992) convida-nos à reflexão a respeito das igualdades raciais:

Onde eu vivo é a terra das sombras. Desse canto da vida, eu vejo como as sombras olham as sombras. Mas suas tantas faces se voltam para Ti... . Tu vês daí alguma diferença entre o negro e o branco, ou são todas as faces parecidas a Ti? (pp. 235-236)

O Psicodrama inspira a luta contra os fantasmas e o rompimento das algemas da repetição socioemocional, convocando todos ao processo de criação de uma nova era. Incita a nós, homens e mulheres de nosso tempo, ao protagonismo de nossa história, profetizada em sua Revolução Criadora (Moreno, 1975).

A mestiçagem pode ser entendida como um grande sincretismo espontâneo-criativo: somos espontâneos por exercício histórico e nossa criatividade é a variedade de sons, cores, cheiros, etnias e crenças.

Vamos nos pacificar e nos resgatar como vira-lata, que se opõe e resiste, valorizando nossa capacidade de Encontro, afinal somos todos negros, brancos, índios, judeus, asiáticos, mouros, cafuzos, caboclos, mamelucos, mulatos...

 

PRECONCEITO E RACISMO

Embora sempre tenha existido algum tipo de segregação - baseada até mesmo em características físicas - na história do mundo, não há como falar em racismo no Brasil sem remontar à escravidão. Como se deu esse fenômeno do racismo entre nós? Como se "transportou" a escravidão concreta, real, para dentro das pessoas?

A experiência social acumulada e "herdada" - negros eram escravos, e brancos, patrões - criou avaliações recíprocas, mecanismos de manutenção da distância social: produziu o status de brancos e negros. Para justificar tudo isso, criou-se uma caracterização do negro como raça inferior e incapaz de definir a própria sorte.

Uma das consequências dessa estrutura de "castas" é o preconceito (ainda presente) contra o trabalho braçal: trabalho de branco é de mando ou intelectual e trabalho de negro é manual. Os escravos, com raras exceções, não participaram propriamente da abolição por falta de condição de se organizar coletivamente; sua situação de vida os impossibilitava de uma tomada mais clara de consciência. A abolição foi, portanto, trabalho de brancos, "mulatos" e libertos.

E do ponto de vista mais propriamente psicológico? Psicanalistas divergem sobre a noção de que o racismo seria a dificuldade de suportar o diferente; muitos acham que é maior orisco de ver o diferente tornar-se igual; isso seria uma ameaça à identidade. Quando hámedo de perda da própria identidade, passa a ser necessário definir o formato do outro que causa uma estranheza. Para dominar essa estranheza há duas saídas: pelo exotismo, criando uma visão fantástica do outro, ou pelo racismo, para ser temido em vez de temer.

Tudo o que foi dito anteriormente de forma sucinta foi somado às criações históricas das diferenças "raciais" e sociais na medida em que os descendentes dos escravos sempre foram mantidos (e o são até hoje) em condições de certa forma análogas àquelas da escravidão, com as mesmas "explicações": são incompetentes, preguiçosos e pouco inteligentes (como todos os membros das classes "inferiores", sempre assim descritos). Existem também maneiras de pensá-los como seres psicologicamente pouco equilibrados e, por isso, mais violentos e potencialmente perigosos. Quanto às mulheres, reserva-se a elas principalmente o tipo de trabalho semiescravo (empregadas domésticas e babás).

 

A AFETIVIDADE PRESENTE EM UM PROCESSO DE INCLUSÃO RACIAL

À medida que ampliamos nossa consciência social e crítica, a prática sociopsicoterapêutica torna-se mais eficiente no trabalho das relações de poder existentes na sociedade, particularmente no que concerne à diminuição do preconceito, da discriminação e da exclusão, no caso, dos negros no País. Os vários tipos de violência contra os negros demonstram que precisamos realizar diversos trabalhos para minimizá-los.

No Brasil, temos racismos típicos. Historicamente, desde a escravidão até os dias atuais, os negros são discriminados e excluídos do acesso a bens sociais, educacionais, culturais e materiais. Isso resultou no dado do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2005, de que 70% da população pobre é constituída por negros, e os negros compõem 55% da população em geral.

Isso demonstra que o racismo tem a característica de ser um racismo de resultados ou um racismo institucional (Santos, 2007). Também há o racismo de marca, em que a cor e as características fenotípicas delimitam a discriminação, ou seja, quanto mais negro, mais preconceito (Guimarães, 2002).

Depois de muito debater sobre políticas afirmativas para negros no Brasil, em 2000, algumas universidades implantaram o sistema de cotas para negros ingressarem no ensino superior. Para contribuir com o conhecimento de como ocorre esse processo inclusivo e de como ele pode ser realizado de maneira menos preconceituosa, foi realizada uma pesquisa qualitativa na Universidade de Brasília, entre 2003 e 2005, quando se implementou a política afirmativa para negros ingressarem na universidade por meio de sistema de cotas (Nery, 2008). Foram utilizados entrevistas e o Sociodrama (Moreno, 1974) como métodos de pesquisa.

Observou-se que os cotistas interagem predominantemente com uma dinâmica afetiva grupal relacionada ao temor da discriminação e à tentativa de sua eliminação por meio da autocobrança para um excelente desempenho acadêmico, e há relato de tensões e estresses para essa experiência universitária.

Os universalistas interagem com uma dinâmica afetiva grupal em que há predomínio da indiferença ao cotista (e ao estudante negro), do descaso em relação às identidades raciais e da negação da compreensão dos fundamentos teóricos e históricos das políticas afirmativas, gerando novos tipos de preconceitos e discriminação no contexto inclusivo. Suas falas relacionavam o cotista a uma condição de beneficiado, de privilegiado e estavam impregnadas das ideias da meritocracia. A sociometria resultante é a de isolamento do cotista (e do estudante negro) em relação ao grupo.

Nesse estudo, observou-se que predominantemente os cotistas, ao interagirem com os universalistas, ocultam sua identidade. Eles evitam participar de eventos relativos às questões raciais e se expor por temer a discriminação.

Conclui-se que o projeto de inclusão racial efetivamente ocorre quando os sujeitos que dela participam direta e indiretamente reorganizam projetos dramáticos, com o objetivo de produzir status sociométricos que favoreçam a integração social dos sujeitos aprovados pelo sistema de cotas da UnB. Para isso, é fundamental conhecer cada vez mais sobre o racismo vivido e reproduzido e trabalhar em todas as esferas sociais por sua extinção.

 

DEPOIMENTOS

As questões raciais foram, por muito tempo, sufocadas por nossa cultura. Hoje, compreendemos bem a necessidade de dar voz ao sofrimento que os negros ainda passam. Em vez de calar, falar, porque ao falar damos voz a tantas outras dores que muitas vezes já naturalizaram a injúria e o sentimento de inferioridade. A educação também combate o racismo. Quando o educador reconhece que é preciso falar sobre racismo, ele está oferecendo a oportunidade de criação de novas respostas diante de uma problemática que há muito tempo é conhecida, porém ainda pouco falada. O racismo é talvez a conserva mais antiga e até mais cruel que existe em se tratando de conservas relacionais, que empobrecem os vínculos humanos, segregam as pessoas umas das outras e, o que é pior, delas mesmas.
(Camila D'Ávila Moura, Psicóloga e Psicodramatista em formação - Convênio SOPSP/PUC)

Sou filho de um Brasil cheio de contrastes, pois descendo de negros nordestinos e humildes tecelões italianos. Tenho dificuldades, é verdade, em escrever algo que me soe tão familiar e ao mesmo tempo se mostre tão digno de reflexões e posicionamentos. Talvez essas dificuldades tenham sido alimentadas pela constituição de minha placenta social e das escolhas de meu átomo que não foram desenvolvidas sobre nenhuma forma de relação tendenciosa, apenas pelo olhar humano. O mundo pode ser construído de forma mais justa e positiva, como defendia o mestre Moreno. Base igual para todos poderem desenvolver seus papéis e potenciais de forma espontânea e criativa. Lembrei-me de algo da fenomenologia que inspira o Psicodrama. Não precisa ser isso ou aquilo. Podemos ser isso e aquilo, juntos.
(Davison W. Salemme, Prof. Unia, Psicodramatista Didata Supervisor - Potenciar e Nepsar)

Para mim, sempre foi difícil falar sobre um assunto que me afeta diretamente. Primeiro, por ser negra, depois por ter vivido boa parte de minha vida sobre falas negativas sobre o que é ser negro. Foi o Psicodrama que me trouxe outro olhar sobre minha negritude e poder falar sem sentir medo, vergonha e culpa. Por incrível que pareça, eu sentia culpa por ser negra, como se devesse um favor à sociedade por existir. Poder falar e compartilhar esses sentimentos é empoderar-se e dizer: "sim, eu existo, eu sou e eu posso!". Escrevo com lágrimas nos olhos, mas fortalecida, por saber que não estou só. E, sobretudo, por me reconhecer também em outras minorias, o que confirma minha luta em trabalhar pela inclusão.
(Ermelinda Marçal, Assistente Social, Psicodramatista em formação - Convênio SOPSP/PUC)

Assim como o próprio Congresso, com o tema: "Soluções para tempos de crise", propunha-se a pensar ou repensar o papel dos psicodramatistas perante momentos de crise, eu também, em sintonia completa com o tema, busquei na diversidade de programações as atividades que iam ao encontro de meus mais angustiantes anseios. Eu ansiava quase que desesperadamente por temas que tocassem em questões específicas sem destoar da totalidade e a mesa-redonda "Psicodrama e relações raciais" respondeu a esse anseio com êxito. A felicidade, mas não surpresa, foi poder experienciar que alguns psicodramatistas também enxergavam e se inquietavam com as mazelas sociais. Alguns desses psicodramatistas te emocionam pelo simples fato de emergirem enquanto representatividade, sim, porque ela importa. Há sim, dentro do movimento psicodramatista, pessoas que já compreenderam há muito tempo que: "Quem não se movimenta não sente as amarras que os prendem".
(Jéssica Oliveira, Historiadora, Estudante de Psicologia, Psicodramatista em formação - Instituto Rio-pretense de Psicodrama)

Três negros como expositores na mesa. Todos significativos e especiais para mim. Muita alegria e entusiasmo de ver isto acontecendo. Eu sou branco. Há algum tempo venho trabalhando com o tema do racismo contra os negros no Brasil. Vários psicossociodramas feitos. Alguns somente dirigindo e outros com a parceria de Maria Célia Malaquias, psicodramatista, negra, uma das que inaugurou este tema no movimento psicodramático brasileiro. O tema do racismo, não só contra os negros, cresce como interesse de várias pessoas dos mais variados campos, à medida que no mundo vemos crescer manifestações racistas, xenófobas e fascistas. Muros visíveis e invisíveis são construídos para separar e isolar populações enormes, com a justificativa de controlar a violência e preservar privilégios. Na verdade, saqueiam o patrimônio da humanidade. Patrimônio social, cultural, emocional, político etc. Nos psicodramas que dirigi, apesar de me preparar para cenas cruéis, sempre me surpreendo com a intensidade do sofrimento constante. Choque traumático crônico e continuado. Um excesso muito perturbador da estabilidade psíquica. Corpo estranho, estranhamente íntimo, que provoca ruptura de associações, e paralisia do pensamento e da criatividade. A vivência coletiva em grupos públicos deste processo é de importância decisiva para a restauração da dignidade e da capacidade de pensar e criar. Esta dimensão pública da clínica vai permitir a convalidação de verdades históricas, sem desconsiderar a realidade fantasmática também presente.
(Pedro Mascarenhas, Médico Psiquiatra, Psicodramatista Didata Supervisor - SOPSP e Psicanalista - Departamento de Psicanálise Sedes)

Sou descendente de espanhóis, miscigenado com portugueses e índios. Lembrei-me de momentos de constrangimento por ter uma parte do corpo desproporcional à minha altura e ao meu peso, fruto dessa miscigenação, que gerou vários apelidos e consequentes exclusões e rejeições. Esse foi meu sofrimento sociométrico, do qual fazem parte todos os excluídos por questões raciais, estéticas e étnicas. Esse sofrimento me levou para a Psicologia como forma de luta e durante quase 25 anos na minha prática profissional fiquei lado a lado com essa população discriminada por vários fatores: moradores das periferias urbanas envolvidos com uso de substâncias químicas ilícitas, ávidos por qualquer tipo de ajuda e ignorados por sua condição social, étnica e cultural; crianças e adolescentes em situação de rua expostos a todo tipo de violência. Essas histórias ainda continuam em todos esses segmentos e, infelizmente, o trabalho de muitos ainda é pouco.
(Sergio Eduardo Serrano Vieira, Psicólogo Psicodramatista - Instituto Rio-pretense de Psicodrama)

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No Brasil, vivemos, de 1530 a 1888, quase quatro séculos de regime oficial escravocrata. Ainda hoje, início do século XXI, a população brasileira sofre as consequências desse legado, que fixou um conjunto de valores na sociedade.

Nos depoimentos aqui apresentados, evidencia-se a complexidade dessa herança de exclusão ao diferente, potencializada ao homem e à mulher negros. Vivemos um racismo velado, algumas vezes explícito, causador de sofrimento psíquico e social.

Identifica-se também uma carência de ações psicossociodramáticas. Entendemos que o Psicodrama, seu arcabouço teórico e metodológico, possibilita aos psicodramatistas imbricados contribuir com suas práticas para uma sociedade não racista.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido: 09/10/2016
Aceito: 1/12/2016

 

 

Maria Célia Malaquias: Psicóloga. Mestre em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Psicodramatista e Pesquisadora sobre Psicodrama e relações étnicas. Rua Arthur Soter Lopes da Silva, 88, apto. 14, bl. I, Jardim Esmeralda, CEP 05367-140. São Paulo, SP. Tel.: (11) 99908-1042.
Denise Silva Nonoya: Psicóloga e Psicodramatista. Especialista em Psicologia Social e do Trabalho (Sedes Sapientiae), Psicologia Clínica e Antroposofia (FCMSCSP). Rua Vergueiro, 875, cj. 71, Paraíso, CEP 01504-001. São Paulo, SP. Tels.: (11) 5908-3120 e (11) 997340454.
Antonio Carlos Massarotto Cesarino: Médico Psiquiatra (FMUSP). Doutor pela Universidade de Heidelberg (Alemanha). Psicodramatista. Membro da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo. Rua São Bartolomeu, 60, Perdizes, CEP 05014-030. São Paulo, SP. Tel.: (11) 3673-1431.
Maria da Penha Nery: Psicóloga. Doutora em Psicologia pela Universidade de Brasília. Psicodramatista. Autora de artigos científicos e livro. SRTVS 701 - Centro Empresarial Brasília, torre B, sala 210, CEP 70340-000. Brasília, DF. Tel.: (61) 3344-2029.

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