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Revista Brasileira de Psicodrama

versão impressa ISSN 0104-5393versão On-line ISSN 2318-0498

Rev. bras. psicodrama vol.25 no.1 São Paulo jun. 2017

http://dx.doi.org/10.15329/2318-0498.20170002 

ARTIGOS INÉDITOS

 

Aquecimento do diretor de psicodrama para o trabalho com grandes grupos

 

The psychodrama director's warm-up in preparation for sessions with large groups

 

Preparación del director de psicodrama para el trabajo con grandes grupos

 

 

Cassiana Léa do Espírito Santo

Sociedade de Psicodrama de São Paulo (SOPSP). E-mail: cassianalea@hotmail.com

 

 


RESUMO

Este artigo discute a importância do aquecimento do diretor de Psicodrama para o trabalho com grandes grupos e analisa a utilização de um plano de direção como instrumento facilitador desse processo, a partir do relato de uma experiência. Considerando aspectos da teoria e da prática psicodramáticas, conclui-se que o aquecimento do diretor pode facilitar o desenvolvimento de um trabalho organizado, estético, espontâneo-criativo.

Palavras-chave: psicodrama, percepção de papel, papel do terapeuta, aquecimento do diretor, grandes grupos


ABSTRACT

This article discusses the importance of the Psychodrama directors' warm-up in order to work with large groups and analyses the use of a direction plan as a facilitating instrument of this process, based on the narrative of an experience. As a conclusion, considering the aspects of psychodrama theory and practice, director's warm-up may facilitate the development of a organised, aesthetic and spontaneous-creative work.

Keywords: psychodrama, role perception, therapist role, director's warm-up, large groups


RESUMEN

Este artículo discute la importancia de la preparación del director de Psicodrama para el trabajo con grandes grupos y analiza la utilización de un plan de dirección como instrumento facilitador de ese proceso, a partir del relato de una experiencia. Considerando los aspectos de la teoría y de la práctica psicodramáticas, se concluye que la preparación del director puede facilitar el desarrollo de un trabajo organizado, estético, espontáneo-creativo.

Palabras clave: psicodrama, percepción del rol, rol del terapeuta, preparación del director, grandes grupos


 

 

INTRODUÇÃO

A promoção da saúde e da qualidade de vida das pessoas e das coletividades é um compromisso ético com a saúde pública e é nesse sentido que se busca facilitar a utilização do Psicodrama como método que visa ao tratamento e/ou à promoção da saúde das relações sociais.

Este artigo relata a experiência de uma profissional diante da perspectiva de dirigir uma sessão aberta de Psicodrama com um grande grupo, em um congresso de Psicodrama, com foco em seu aquecimento como diretora.

A elaboração de um plano de direção, com base na teoria psicodramática de J. L. Moreno e autores pós-morenianos brasileiros principalmente, foi uma estratégia utilizada pela diretora, considerando suas preocupações e seus cuidados relativos a ideias para o aquecimento inespecífico do grupo.

Será feita uma exposição teórica, seguida de um relato de experiência que inclui o plano de direção e um resumo da sessão aberta, com reflexões a respeito da importância do aquecimento do diretor para o trabalho com grandes grupos.

 

PSICODRAMA E GRANDES GRUPOS

A expressão grande grupo vem sendo utilizada para fazer referência ao Psicodrama público, sessão aberta em que geralmente não se conhece o grupo, com começo, meio e fim no mesmo dia (etapas de aquecimento, dramatização e compartilhamento, respectivamente), com duração média de duas a três horas. "Na linguagem corrente, acabamos falando de trabalho com grandes grupos e de atos psicodramáticos, quando nem sempre o grupo é grande" (Perazzo, 2010, p. 187).

Contudo, se não há consenso sobre o tamanho de um grande grupo (Weinberg & Schneider, 2006), parece existir acordo sobre sua natureza não processual em Psicodrama. Outros nomes para o Psicodrama público: sessão aberta de Psicodrama, vivência e/ou ato terapêutico, socionômico, psicodramático, sociodramático, psicossociodramático ou sociopsicodramático.

 

AQUECIMENTO: ETAPA E PROCESSO

Como etapa, o aquecimento tem início a partir do encontro do diretor ou da unidade funcional1 com o grupo. O objetivo dessa etapa é preparar as pessoas para a ação no contexto dramático, favorecendo a fluência da espontaneidade-criatividade (Monteiro, 2014; Perazzo, 2010). Para isso, o diretor deve facilitar entre os participantes da sessão o desenvolvimento de um clima afetivo, de acolhimento e confiança, um continente ou uma continência grupal (Navarro, 1999; Perazzo, 2010), uma rede sociométrica de sustentação para o trabalho com protagonista,2 um clima protagônico (Eva, 1976, 1977 e 1978, citado por Perazzo, 2010).

Em geral, fala-se em duas subetapas sequenciais: aquecimento inespecífico, dirigido ao grupo como um todo, até que se chegue ao protagonista (ou representante grupal, conforme Alves, 1999); e aquecimento específico, dirigido especificamente ao protagonista, para a montagem de sua cena, na etapa da dramatização. Outra divisão do aquecimento também foi proposta, em cinco subetapas que se interpenetram: ambientação, grupalização, preparação para o papel de ator, preparação para o papel de autor e preparação da plateia (Davoli, 1999). Essa divisão remete mais facilmente aos iniciadores fundamentais: corporal, emocional e ideativo (Perazzo, 2010) e também aos momentos vinculares: isolamento, diferenciação horizontal e diferenciação vertical (Knobel, 2012).

Arranques ou iniciadores são mecanismos que devem ser ativados durante a etapa de aquecimento inespecífico, dando início a um processo de aquecimento preparatório para a ação, quer dizer, estimulando as pessoas para o trabalho no contexto dramático. Entretanto, é preciso uma mobilização contínua dos iniciadores, a fim de que seja mantido o aquecimento do grupo. Aqui está o aquecimento como processo, cuja manutenção deve ser feita ao longo de todo o trabalho psicodramático (Davoli, 1999; Monteiro, 2014; Perazzo, 2010), caso contrário, isso poderá impedir o trabalho rumo à espontaneidade-criatividade do grupo.

Os momentos vinculares dizem respeito ao funcionamento dos grupos; seu conhecimento permite a construção de estratégias terapêuticas grupais. Não se trata de etapas fixas que não se repetem, mas de momentos que "aparecem o tempo todo, variando em função das múltiplas necessidades móveis do coletivo" (Knobel, 2012, p. 51).

 

O DIRETOR DE PSICODRAMA E O SEU PROCESSO DE AQUECIMENTO

Prezando pela melhor qualidade dramática3 no desempenho de suas funções, o diretor precisa abrir canais para a fluência de sua própria espontaneidade-criatividade, aquecendo-se devidamente para o trabalho como diretor.

O aquecimento do diretor é algo fundamental, pois ele traz informações importantes sobre o co-inconsciente e o co-consciente grupal. O diretor está inserido no grupo e o que ele sente é o ponto de partida de qualquer ação que se faça. (Castanho, 1995, p. 28)

Então, se o diretor faz parte do grupo, embora com funções específicas e diferenciadas, e se o aquecimento do grupo começa a partir do encontro entre o diretor (ou a unidade funcional) e o grupo, a rigor, o aquecimento do diretor só poderia iniciar e ser por ele cuidado ao mesmo tempo do aquecimento do grupo. No entanto, a "atuação do diretor começa, na verdade, bem antes do aquecimento e da dramatização propriamente dita" (Aguiar, 1998, p. 59). Assim, se sua atuação pode começar antes, seu aquecimento também pode: "O aquecimento do diretor inicia exatamente no momento em que recebe o convite para trabalhar com um grupo" (Barcellos, 2014, p. 91). Esse processo prévio de aquecimento poderia ser mais bem denominado como preaquecimento do diretor, assim como pode ocorrer com outros participantes de uma sessão de Psicodrama (ego auxiliar, protagonista ou plateia): "Preaquecimento é a parte do processo de preparação que ocorre dentro de uma pessoa e sem a intervenção do diretor" (Bustos, 2005, p. 55). Contudo, assim como a Socionomia4 ficou popularmente conhecida como Psicodrama, o preaquecimento do diretor tem sido descrito como aquecimento do diretor.

Alguns procedimentos podem ser utilizados pelo diretor ao longo de seu aquecimento, facilitando posteriormente a direção de um grande grupo. Quanto mais ele tiver participado de atividades psicodramáticas, em qualquer papel, maior será seu repertório técnico e sua possibilidade de criação de novos caminhos e/ou procedimentos facilitadores para o seu aquecimento como diretor e para o aquecimento de grandes grupos (Holmes, 1991).

 

UM PLANO DE DIREÇÃO COMO UM CAMINHO ESTRATÉGICO

Pode ser necessário ao diretor de Psicodrama planejar estratégias para melhor fluência de sua espontaneidade-criatividade. "Concluí que o instinto e a intuição são suficientes para a produção da espontaneidade de uma única pessoa, mas o interjogo é um problema social. Aqui se torna indispensável o acréscimo de uma inteligência planejadora, uma espontaneidade planejada" (Moreno, 2012, p. 128).

Visto que o diretor de Psicodrama pode começar a se preparar ou atuar antes mesmo do encontro com o grupo, ciente de que toda ação envolve uma preparação que a antecede, e que é possível uma "espontaneidade planejada", ele pode, então, se utilizar de um plano de direção.5 Seria algo como fazer um esboço ou um rascunho de caminhos possíveis, tanto no sentido de escolher previamente uma modalidade de trabalho psicodramático, como no sentido de delinear caminhos para o aquecimento inespecífico, que é o limite até onde é possível fazer algum plano, já que o aquecimento específico dirige-se ao protagonista, a quem o diretor nunca poderá ter acesso antes do encontro com o grupo.

No entanto, uma vez diante do grupo, o diretor precisa identificar se seu plano de direção é viável, se não há necessidade de readequar sua proposta, considerando um projeto comum ou projeto dramático grupal (Aguiar, 1994).

Mas sem essa disciplina e sem essa medida, a interação pode fracassar, mesmo a dos atores mais criativos.

O trabalho espontâneo é tão desafiador para a organização mental humana que é prudente não convidar o fracasso desde o começo, evitando-se o método do laissez-faire. Seria como se a razão, antecipando-se ao salto para a encenação espontânea, caminhasse cautelosamente com sua lâmpada de prospecção intuitiva e desenhasse um esboço do possível terreno a ser encontrado, com suas barreiras e armadilhas, de tal forma que esse desenho indicasse a direção que o salto deveria tomar. (Moreno, 2012, p. 97)

Outros autores também reconhecem a importância da disciplina para a arte teatral, para a criatividade e para o Psicodrama; fala-se até em disciplina de criação (Davoli, 1999).

 

RELATO E DISCUSSÃO DE UMA EXPERIÊNCIA PRÁTICA

O plano de direção buscou contemplar dois momentos: antes do encontro com o grupo, compilando informações gerais (Parte 1A) e cuidando da logística que antecede o trabalho psicodramático (Parte 1B), e a partir do encontro com o grupo, delineando ideias e/ou passos para a etapa de aquecimento inespecífico (Parte 2). A seguir, encontra-se o plano de direção utilizado, com sua estrutura e conteúdo, além de observações e comentários posteriores especificados entre os sinais [ ]. Considera-se a possibilidade de novas utilizações desse modelo de plano de direção, como uma estrutura possível de trabalho psicodramático.

Plano de direção - Parte 1A: Informações gerais. a) Modalidade de trabalho (Psicodrama, Sociodrama etc.), por quê (motivações do diretor) e para quê (como este grupo pode se beneficiar): Sessão aberta de psicodrama, foco clínico. [O diretor pretendia trabalhar na linha de um Psicodrama clássico, ou seja, centrado no protagonista (Holmes, 1991), a fim de promover essa prática com grandes grupos. Os participantes poderiam se beneficiar dessa proposta tanto pessoal como profissionalmente, uma vez que a atividade teria foco clínico e aconteceria em um congresso de Psicodrama.]. b) Título (se houver; verificar se existirá divulgação prévia, como em congressos etc.): "Quem disse que tudo está perdido? Eu venho oferecer meu coração...". [Todas as atividades do congresso deviam ter um título. Veja outros comentários no item "i) Descrição geral da proposta", mais adiante. O convite para a sessão aberta foi feito por meio da programação do congresso, divulgada semanas antes no site da Federação Brasileira de Psicodrama (Febrap) e por meio impresso, na abertura oficial do congresso.]. c) Diretor ou unidade funcional (especificar nomes e respectivos papéis, além dos critérios sociométricos de escolha): [Foram descritos os nomes dos terapeutas que compunham a unidade funcional e seus papéis. A autora deste artigo foi a diretora, que convidou dois egos auxiliares: uma colega de formação e um de seus mestres no Psicodrama, inspirada por uma experiência em um grupo autodirigido, coordenado por outro grande mestre. Os critérios para a escolha dos egos auxiliares foram: proximidade afetiva, confiança profissional e experiência prévia de trabalho conjunto. No plano original, esses critérios haviam sido descritos como segue.]. Foi deliberada a escolha dos egos auxiliares considerando-se a experiência de dar e receber afeto, além do compartilhamento de teoria e técnica. O mestre, ao aceitar o convite para ego auxiliar, coloca em prática o movimento de "passar o bastão" aos psicodramatistas mais jovens. A colega, contemporânea da diretora, soma-se para "pegar o bastão", junto com a diretora, conscientes da necessidade e importância de "colocar a mão na massa", aprendendo sempre com os veteranos, assumindo novos desafios. d) Nome do registrador da atividade (se houver; especificar forma de registro e necessidade ou não de autorização formal): [O registrador era outro colega de formação em Psicodrama, que fez um registro fotográfico. O material foi colhido sem necessidade de autorização formal dos participantes; não foi publicado, servindo apenas para fins de estudo. Houve ainda uma registradora espontânea, mais uma colega da diretora em estudos psicodramáticos, que transcreveu algumas falas durante a etapa de compartilhamento.]. e) Público-alvo e caracterização (perfil, aspectos comuns à maioria, como sexo, idade, área profissional, necessidades especiais etc.; número estimado de participantes): Congressistas interessados em participar de atividade de caráter prático-vivencial; média esperada de sessenta participantes. [A inscrição no congresso era possível a psicodramatistas e alunos de entidades filiadas ou não à Febrap, profissionais e estudantes universitários de diversas áreas, estrangeiros ou não. Cerca de 70 pessoas formaram o público, com idade entre 20 e 75 anos, aproximadamente, sendo cerca de 85% do sexo feminino; estimativas feitas a partir do registro fotográfico.]. f) Local e endereço (local fechado ou aberto): Universidade Paulista (Unip), unidade Paraíso. [No plano original, endereço e local exatos foram especificados. O local era fechado, uma sala de aula.]. g) Data e horário (início e término): 27/05/2016, sexta-feira, das 17 às 19 horas, sendo uma hora e meia de vivência e meia hora de processamento, segundo especificações do congresso. [O evento ocorreu de 25 a 28 de maio de 2016.]. h) Materiais necessários (sistema de som, cadeiras etc.; verificar se o local oferece os materiais): Microfone, computador ou CD player, caixas de som, cadeiras (materiais solicitados); CD e pen-drive com a música Yo vengo a ofrecer mi corazón, cantada por Mercedes Sosa (letra de Fito Páez, 1995), e caixa com lenços de papel (materiais que devem ser levados pela diretora). i) Descrição geral da proposta (síntese): Trata-se de uma vivência grupal focada nas situações de crise no mundo em que vivemos e suas conexões com as crises pessoais. Serão aproveitados os emergentes grupais, visando a uma protagonização dessas questões, considerando o desejo e a necessidade do grupo. Trechos musicais serão utilizados como aquecimento para esse trabalho. O próprio título dessa atividade foi inspirado no início de uma canção do argentino Fito Páez (1995). A proposta foi pensada em cima do tema desse congresso: "Soluções para tempos de crise!". Em tempos de crise ou a qualquer tempo, é preciso dar lugar ao afeto, por isso a ideia de trabalhar com o "coração". [Conseguir redigir uma descrição geral da proposta indicava que as ideias da diretora começavam a ganhar corpo e contorno, o que diminuiu sua ansiedade.].

Plano de direção - Parte 1B: Logística que antecede o trabalho psicodramático. a) Encontro prévio entre os membros da unidade funcional com o objetivo de compartilhar e/ou coconstruir o plano de direção. [Diretora e egos auxiliares se reuniram uma vez, semanas antes do evento, para a construção do projeto dramático da unidade funcional. Foram realizados também outros encontros presenciais e comunicação por e-mail entre a diretora e cada um dos egos auxiliares.]. b) Confirmação da participação dos egos auxiliares e do registrador (se houver), bem como de outros itens necessários. [Todas as confirmações foram realizadas nesse trabalho.]. c) Conhecimento do local, sua infraestrutura e tempo de deslocamento (chegar antes do horário; evitar atrasos; cuidar da organização do espaço físico). [A unidade funcional chegou ao local cerca de vinte minutos antes da atividade. Organizou a disposição das cadeiras em forma de "U" e testou o sistema de som.].

A outra parte do plano de direção (Parte 2) descrevia passos conforme a estrutura exibida abaixo. Como as ações planejadas puderam ser realizadas, serão expostas mais adiante, quando da descrição resumida da sessão.

Plano de direção - Parte 2: Aquecimento inespecífico. Ações não lineares que contemplem: a) a ativação dos iniciadores: ideativo, emocional e corporal; b) as subetapas de aquecimento que se interpenetram: ambientação, grupalização, preparação para o papel de ator, preparação para o papel de autor e preparação da plateia; c) os momentos vinculares: isolamento, diferenciação horizontal e diferenciação vertical.

A seguir, a descrição resumida da sessão aberta realizada, com maior detalhamento da etapa de aquecimento inespecífico, cujos passos foram esmiuçados no plano de direção. Entre os sinais [ ] estão elementos citados no plano de direção (Parte 2) e comentários posteriores.

A diretora começou se apresentando, depois o fizeram os egos auxiliares. Explicitou os critérios para a escolha dos egos auxiliares, lendo um trecho de seu plano de direção (veja Parte 1A, item "c") [iniciadores ideativo e emocional]. Contou como iniciou seu aquecimento para esse trabalho, referindo experiências como: a continuidade de seus estudos como psicodramatista didata supervisora; o falecimento recente de Moysés Aguiar, grande psicodramatista brasileiro; o uso de música em seus momentos pessoais de crise, inclusive a que inspirou o título da vivência. O grupo aceitou a proposta da vivência a partir da música. Sem observar nenhum impedimento para a construção de um clima protagônico, a diretora prosseguiu com seu plano de direção. Perguntou a algumas pessoas o que elas esperavam da atividade [aproximação grupo-diretor / iniciadores ideativo e emocional], recebendo tanto respostas relativas ao tema: "Vim por causa do nome da vivência, achei bonito"; "Vim porque achei que poderia ser bom eu receber o coração das pessoas", como respostas relativas à unidade funcional: "Vim porque achei que o [mestre] ia dirigir"; "Vim para ver a sua direção"; "Vim porque vi o nome da [outra ego auxiliar]" [preaquecimento da plateia, diferentes critérios sociométricos]. Em seguida, a diretora pediu ao grupo que olhasse para o espaço físico, depois caminhasse por ele [ambientação]. Então cada um devia olhar para si mesmo [momento de isolamento], e a diretora dirigia-se ao grupo com frases do tipo: "Como está seu corpo? Tem alguma tensão? E como bate seu coração? Dá para sentir? Pode colocar a mão no peito, no pulso, no pescoço... Como estou me sentindo?" [iniciadores corporal e emocional]. Ainda sem falar, as pessoas deviam se olhar, se cumprimentar e fazer perguntas e exclamações só com o corpo [preparação para o papel de ator / iniciador corporal / momento de diferenciação horizontal]. Depois, deviam formar duplas para ouvir um trecho da música [iniciador emocional / momento de diferenciação horizontal]. Quando a música parasse, as duplas deviam se desfazer, as pessoas deviam caminhar e formar nova dupla, para audição de mais um trecho. Isso aconteceu mais uma vez, sendo ouvidos três trechos da música, com cerca de um minuto cada. Depois a diretora pediu que cada participante localizasse uma cena pessoal em que estivesse faltando ou em que tivesse faltado oferecer o coração, oferecer afeto, identificando um sentimento relativo a essa cena [iniciador emocional / momento de isolamento]. O grupo foi instruído a formar novas duplas, para conversarem sobre as cenas localizadas [preparação para o papel de autor], depois cada dupla devia se unir a outras duas duplas, fazendo o mesmo. Cada subgrupo de seis pessoas devia escolher uma pessoa apenas [preparação da plateia / momento de diferenciação vertical], que pudesse apresentar sua cena ao grupo, com a possibilidade de essa cena ser trabalhada no contexto dramático. Formaram-se treze grupos, nem todos com seis pessoas. Treze representantes grupais se apresentaram, sendo convidados a ficar lado a lado no palco.

Aquecimento específico e dramatização - A primeira cena relatada deu à diretora a ideia de trabalhar por meio de uma vinheta, ou seja, dramatização curta, de cena única, em que apenas uma relação é trabalhada (Fernandes, 2009). Feita a primeira vinheta, a diretora observou que não haveria tempo suficiente para todas as cenas, então perguntou aos demais representantes grupais quem sentia que precisava contar sua cena naquele dia. Quatro deles se apresentaram. Seguindo a ordem em que eles estavam no palco, foi possível trabalhar só mais duas cenas. Todos se mostraram compreensivos. Na primeira vinheta, um filho expressava gratidão ao pai falecido; na segunda, uma irmã expressava saudades a um irmão que morava em outro estado; na terceira, uma filha expressava amor à sua mãe, que fazia tratamento contra uma doença possivelmente fatal. Todos os papéis complementares (pai, irmão e mãe) foram desempenhados por egos auxiliares espontâneos, ou seja, pessoas da plateia escolhidas pelos protagonistas.

Na etapa de compartilhamento, todos os demais representantes grupais disseram que suas cenas foram contempladas nas dramatizações. Algumas falas da plateia também confirmaram a representatividade dos protagonistas sucessivos (Perazzo, 2010): "Eu não conheci meu pai biológico. E neste momento eu encontrei meu pai biológico e me senti muito inteiro. Também senti que tenho dado pouca atenção à minha mãe. E eu perdi minha avó com câncer no pâncreas"; "Hoje você ofereceu o seu coração... Eu nunca apresentei nada no congresso"; "Eu tinha muito medo de perder a minha mãe. Eu tenho muito medo do câncer, se eu tiver, nem quero saber. Eu queria ter feito mais, ela faz muita falta. Eu vou me formar em junho e gostaria que ela estivesse lá"; "E ver que você, aluna, está ali, fazendo na frente de um supervisor..."; "A minha tristeza de estar perdendo uma pessoa, a minha mãe... Você deu a mim a possibilidade de me olhar, me ajudou a me olhar".

O processamento não foi realizado, com a concordância do grupo, sendo a etapa de compartilhamento priorizada por todos os presentes.

Na experiência relatada, a construção e a utilização de um plano de direção serviram como procedimento estratégico para a direção de um grande grupo, com implicações práticas. Foi possível percorrer os caminhos pensados para o aquecimento inespecífico, e uma sessão aberta de Psicodrama com foco psicoterápico deixou de ser só uma proposta da diretora para ser o projeto dramático grupal, desdobrado em um trabalho organizado, estético, consistente, com espaço para o fluir da espontaneidade-criatividade do grupo.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As reflexões teóricas e a experiência prática realizada permitem admitir a existência do aquecimento do diretor antes de seu encontro com um grande grupo. Se legitimado como um processo natural, ele pode ser respeitado, cuidado e aproveitado para o trabalho.

Dentro de seu processo de aquecimento, o diretor vai facilmente imaginando caminhos, a partir de inspirações e/ou temores. Esses caminhos podem ser esboçados em um plano de direção, a fim de checar se a linha de raciocínio do diretor contempla os elementos necessários a um bom aquecimento inespecífico do grupo.

O diretor de Psicodrama comprometido com a ética terá seu trabalho sempre baseado na teoria, na filosofia e na metodologia psicodramáticas e jamais perderá de vista que, em qualquer caso, deve permitir a fluência da espontaneidade-criatividade do grupo, atualizando constantemente o projeto dramático grupal. Assim, todo plano de direção precisa ser flexível, adaptável e até descartável. Entretanto, a possibilidade e/ou a necessidade de mudar de plano não faz com que ele não possa existir.

A elaboração de um plano de direção pode servir como autoaquecimento do diretor de Psicodrama, para: organizar suas ideias, inspirações e solilóquios, cuidar de suas cenas temidas, aumentar sua autoconfiança, diminuir sua ansiedade, favorecer a fluência de sua própria espontaneidade-criatividade. Sua utilização deve levar em conta a necessidade do diretor. Pode ser disponibilizado como um caminho estratégico a estudantes de Psicodrama e/ou profissionais, recém-formados ou não, que queiram e/ou precisem alinhavar ideias para a direção de um grande grupo.

 

AGRADECIMENTOS

Aos mestres Rosalba Filipini, Aníbal Mezher e Sergio Perazzo, meus agradecimentos especiais. Agradeço também a todos os mestres e colegas de estudos em Psicodrama.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido: 28/01/2017
Aceito: 30/05/2017

 

 

Cassiana Léa do Espírito Santo: Psicóloga pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Psicodramatista pelo convênio entre Sociedade de Psicodrama de São Paulo (SOPSP) e Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), em processo de titulação Níveis II e III - Psicodramatista Didata Supervisora (SOPSP). Acompanhante Terapêutica (Instituto Sedes Sapientiae). Especialista em Dependência Química pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Rua do Livramento, 63, Paraíso, CEP 04008-030. São Paulo, SP. Tel.: (11) 98235-5585.

 

 

1 Equipe de terapeutas ou profissionais "com diferenciação ou não de papéis e funções, que realizam juntos, no mesmo espaço e tempo, uma atividade" (Moraes Neto, 1999, p. 59).
2 Comunicação pessoal de Sergio Perazzo, em aulas sobre "Conceitos Morenianos e Autores Contemporâneos", na Sociedade de Psicodrama de São Paulo (SOPSP), 2015-2016.
3 Termo que reúne aspectos como "presença de espírito, dramaticidade, técnica, emoção, sensibilidade, razão e um tanto de amor", além de "visão estética, gosto pela plasticidade" (Amato, 2005, p. 218).
4 Ciência das leis sociais, criada por Jacob Levy Moreno (1974), que compreende a sociodinâmica, a sociometria e a sociatria.
5 O nome "plano de direção" foi utilizado por Cláudia Clementi Fernandes, em aulas sobre "Exercícios de Direção", no Departamento de Psicodrama do Instituto Sedes Sapientiae (DPSedes), em 2016. A autora deste artigo já se utilizava desse instrumento, chamando-o de esboço da proposta.

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