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Revista Brasileira de Psicodrama

versão impressa ISSN 0104-5393versão On-line ISSN 2318-0498

Rev. bras. psicodrama vol.25 no.1 São Paulo jun. 2017

 

ARTIGOS INÉDITOS

 

Psicoterapia infantil mediada por contos infantis: estudo de caso na perspectiva do Psicodrama

 

Child psychotherapy mediated by children's stories: case study from the perspective of Psychodrama

 

Psicoterapia infantil mediada por cuentos infantiles: estudio de caso en la perspectiva del Psicodrama

 

 

Ivone LopesI; Marilene DellagiustinaII

ICentro Universitário Estácio de Santa Catarina. E-mail: ivonel27@gmail.com
IICentro Universitário Estácio de Santa Catarina. E-mail: marilene@intercorp.com.br

 

 


RESUMO

Este texto tem o objetivo de apresentar a utilização dos contos infantis como ferramenta lúdica no trabalho psicoterapêutico com crianças. Apresenta o embasamento teórico e o caso clínico de uma criança que chegou para atendimento e tinha a agressividade como queixa principal. Ao final, observou-se, com a utilização de um recurso ao mesmo tempo lúdico e dramático, a possibilidade de diminuição das respostas repetitivas, conservadas, bem como de incremento de respostas inéditas e criativas, a partir de um aumento da espontaneidade como catalisador desse processo criativo, conforme propõe a teoria psicodramática.

Palavras-chave: psicoterapia da criança, psicodrama, conto, espontaneidade, role playing


ABSTRACT

This work aims to present the use of children's stories as a playful tool in the psychotherapeutic work with children. It presents the theoretical basis and a clinical case of a child who was taken to care, having the aggressiveness as the main complaint. At the end, with the use of a resource that was both playful and dramatic, it was observed the possibility of reducing the repetitive and conserved responses, as well as increasing the unprecedented and creative responses, through a growth in spontaneity as a catalyst of this creative process as proposed by psychodrama theory.

Keywords: child psychotherapy, psychodrama, tale, spontaneity, role playing


RESUMEN

Este estudio tiene como objetivo presentar el uso de cuentos para niños como herramienta lúdica en el trabajo psicoterapéutico con niños. Presenta la teoría y el caso clínico de un niño que vino a servir, y la agresividad como la queja principal. Al final se observó, con el uso de un recurso a la vez entretenido y dramático, la posibilidad de reducción de las respuestas repetitivas almacenado, así como un aumento de las respuestas creativas e inéditas, a partir de un aumento en la espontaneidad como un catalizador de ese proceso creativo que propone la teoría de psicodrama.

Palabras clave: psicoterapia infantil, psicodrama, cuento, espontaneidad, rol de tocar


 

 

INTRODUÇÃO

Este artigo foi produzido com base em um estudo de caso de um atendimento em clínica escola do Centro Universitário Estácio de Santa Catarina, no município de São José (SC). A criança foi atendida inicialmente em grupo e posteriormente na modalidade individual.

Optou-se por tratar este texto como uma estória infantil, visto que todo o trabalho grupal se baseou no uso dos contos infantis como instrumentos psicoterapêuticos, conforme descrito a seguir.

Assim, a par de uma narrativa que se vale de licença literária, da poesia e da imaginação, sempre presentes nos contos infantis e que encontram na ludicidade deste contar uma forma de expressão dos conceitos morenianos, foi sendo construída a história real dessa criança.

ERA UMA VEZ

Uma pesquisadora do Curso de Psicologia do Centro Universitário Estácio de Santa Catarina que juntamente com sua orientadora, e diante da possibilidade de utilizar a literatura dos contos infantis como recurso lúdico e terapêutico na relação terapêutica com crianças, propuseram-se realizar um trabalho com um grupo de crianças. Este é o relato da experiência vivida em encontros semanais de uma hora e trinta minutos, através de estudo de caso de uma criança desse grupo. A fundamentação teórica desta prática se baseou no Psicodrama e em outros autores, entre eles Celso Gutfriend, que em seu livro escrito a partir de sua tese de doutorado na França, O terapeuta e o lobo, descreve as possibilidades do trabalho terapêutico com crianças utilizando os contos infantis como mediador. Assim, iniciou-se a jornada com o grupo terapêutico, através do mundo encantado dos contos infantis.

A realidade das crianças foi se misturando com um mundo mágico, no qual leões, lobos, princesas e até mesmo pedras ganharam vida e acompanharam o grupo na descoberta de novas possibilidades de enfrentar os desafios com os quais esses pequenos heróis se deparam em seu cotidiano real, em que possivelmente as condições de viver e expressar seus sentimentos poderiam ser difíceis. Abriu-se, assim, uma amorosa e eficaz possibilidade de intervenção clínica.

A proposta de trabalhar com os contos se baseou no costume que os seres humanos historicamente apresentaram e apresentam até os dias atuais de contar e ouvir histórias. Para Gutfreind (2010), "contar histórias a uma criança é promover um programa eficiente de saúde mental" (p. 15). Somou-se a isso a ludicidade que a psicoterapia psicodramática possibilita, de dramatizar no contexto de "como se" ou faz de conta, presente nos contos infantis. Ao ouvir uma história, a criança geralmente entra nesse mundo do faz de conta e encontra palavras e imagens que podem auxiliá-la na compreensão dos próprios sentimentos. A fantasia das histórias pode ajudar a elaborar as situações do mundo real de forma lúdica.

MEXENDO O CALDEIRÃO E UNINDO OS INGREDIENTES

A partir disso, utilizou-se como primeiro ingrediente o Psicodrama, que entende o homem como um ser em relação em constante transformação, que traz a espontaneidade, a criatividade e a sensibilidade como recursos inatos. Para os autores Gonçalves, Wolff e Almeida (1988), "a espontaneidade é a capacidade de agir de modo 'adequado' diante de situações novas, criando uma resposta inédita ou renovadora ou, ainda, transformadora de situações preestabelecidas" (p. 47). Lembrando que, quando Moreno (2009) propõe agir de modo adequado, refere-se à adequação e ao ajustamento do homem a si mesmo e também ao contexto social em que está inserido. Não se trata de adaptação, mas de poder usar seus recursos e, assim, encontrar a melhor resposta às situações.

Para Gonçalves (1988), "o psicodrama auxilia as crianças na superação de obstáculos a seu desenvolvimento emocional, através daquilo que ninguém lhes pode tirar - sua imaginação" (p. 11). Segundo a autora, as crianças procuram entender e lidar com o mundo através dos jogos, das brincadeiras e das histórias que criam espontaneamente. Registra, assim, que a terapia psicodramática possui uma forma específica de brincadeira: o teatro de faz de conta, em que a criança pode expressar:

O que atinge sua sensibilidade, o que lhe dá prazer ou desprazer e vontade ou medo de aprender. Revela o sentido que o mundo tem para ela, ou o revê, através de papéis imaginários que é capaz de reconhecer, imitar e interpretar. (Gonçalves, 1988, p. 11)

A psicoterapia psicodramática infantil prioriza o jogo de papéis e reconhece a importância dos brinquedos como recursos lúdicos. Morais (1988), partindo de pesquisa que realizou em 1978, relata que:

No psicodrama com crianças lida-se constantemente com o significado afetivo do brinquedo. Pode-se dizer que o terapeuta facilita o processo espontâneo do brincar e às vezes nele interfere, com o intuito de ajudar a criança a reviver e reagir de novas formas diante de experiências dolorosas ou conflitivas por que passou na vida real. Poder-se-ia até supor que a criança que consegue elaborar bem seus conflitos brincando espontaneamente tem uma maior saúde mental do que aquela que apresenta dificuldades em se expressar através do brinquedo. (pp. 28-29)

O trabalho em grupo com as crianças traz a possibilidade de mediar sua relação em sociedade e de ampliar o grupo a que ela está acostumada em seu dia a dia. Para Gonçalves (1988), os colegas servem de orientação e cooperação, corrigindo aquele que se distancia do papel que esteja representando.

OS CONTOS INFANTIS

O segundo ingrediente utilizado foram as histórias infantis. Quem já não foi levado a mundos secretos e fantásticos que prometem revelar os grandes mistérios existenciais? E quanta ansiedade não existiu na expectativa de saber se João e Maria se livrariam da bruxa e encontrariam o caminho de casa? Como Cinderela conseguiria provar que o sapatinho lhe pertencia? E os Três Porquinhos, venceriam o lobo mau ou seriam transformados em uma bela refeição?

A ferramenta utilizada como aquecimento para o posterior desempenho de papéis foram os contos infantis, inseridos pela leitura de autores que nos apresentaram o mundo encantado de contos como possibilidade de utilização de aquecimento em sessões terapêuticas com crianças.

Historicamente, as tradições e os conhecimentos foram sendo transmitidos pela humanidade de forma oral, e nesse contexto surgem também os contos infantis. Contar histórias faz parte da convivência humana grupal. A oralidade é um elemento fundamental nas relações humanas e na transmissão da cultura. Desde os primeiros dias de vida, a criança entra em contato com narrativas. Seja através das cantigas, através das falas dos seus cuidadores ou das conversas dos adultos ao seu redor, a criança vai entrando em contato com sons, ritmo das vozes e histórias.

Bruno Bettelheim (2013) apresenta que por lidar com "problemas humanos universais, particularmente os que preocupam o pensamento da criança, essas histórias falam ao ego que desabrocha e encorajam o seu desenvolvimento" (p. 12). Para esse autor, os personagens de uma história infantil ilustram um conflito interior de forma simbólica e sugerem como esses conflitos poderão ser resolvidos. O conto é apresentado de forma simples, não ambivalente, ou seja, o personagem não é ao mesmo tempo bom ou mau. Nos contos, ou ele é bom ou ele é mau, sem meio-termo.

Gutfreind (2010) descreve a utilização dos contos infantis em suas pesquisas como recurso mediador no tratamento de crianças separadas de seus pais. Afirma que o trabalho com os contos "ajudou as crianças a encontrarem representações para o seu sofrimento ... ajudou-as a encontrarem um discurso, uma forma de expressão, uma história" (Gutfreind, 2010, p. 21).

O autor comenta também que Melanie Klein considerava os contos objetos de ludicidade similares aos jogos e que preencheriam as condições de brinquedos ao serem utilizados em situações lúdicas, por oferecerem a possibilidade de vivenciar personagens familiares em situações abertas, e que a criança pode utilizá-los conforme suas necessidades no momento. Relata alguns exemplos em que o personagem lobo representou para uma criança o medo da separação, para outra a dor pela falta do pai e para uma terceira criança a imagem dos maus-tratos físicos pelos quais passou (Gutfreind, 2010, p. 100).

Também para o Psicodrama, o jogo de papéis, através dos personagens das estórias, traz a possibilidade de viver no "como se" o drama que possivelmente a criança vive e não pode ou não consegue expressar.

Nos resultados de seu trabalho, Gutfreind (2010) apresenta que, aos poucos, as crianças melhoraram sua capacidade de ouvir e contar histórias, desenvolveram a habilidade de recontá-las com criatividade, o que levou à melhora de sua saúde mental. Registra também que, através do trabalho com os contos, as crianças desenvolveram a capacidade de pensar - o que foi demonstrado ao revelarem seus sonhos, naqueles relatos a respeito de personagens e situações das histórias - e a redução da agitação inicial, dando lugar a que os sentimentos pudessem ser expressos.

Gutfreind (2010, p. 165) registra ainda que, em seus trabalhos, emprestou de Lafforgue a utilização de um ritual que marca o início e o final da história, para que fique delimitada a passagem da realidade para o imaginário e vice-versa. Esse ritual pode ser a abertura de uma cortina ou um local físico próprio, destinado ao momento da leitura, e o fechar da cortina e sair daquele espaço, no seu término.

Von Franz (1990/2013), autora e psicoterapeuta junguiana, também apresenta a importância dessa prática. A respeito do ritual de início, traz que "em contos de fada o tempo e lugar são evidentes porque eles começam com 'Era uma vez' ou algo semelhante, que significa fora de tempo e de espaço" (Von Franz, 1990, p. 48) e sobre o final, que pode ser feliz, catastrófico ou até mesmo estúpido, mas tem sempre um registro, um rito, "porque um conto de fada leva você para longe, para o mundo sonhador da infância, do inconsciente coletivo, onde você não pode ficar" (Von Franz, 1990/2013, p. 50).

Também no Psicodrama é preciso propiciar às crianças os processos de aquecimento, de se experimentar espontânea e criativamente nos papéis através dos personagens no "como se", mas também orientar a elaboração de seus conflitos e suas dificuldades emocionais, sinalizando tanto o começo quanto o fim da atividade.

Cabe também ressaltar o fato de que os contos infantis tradicionais contêm cenas perturbadoras. Para Bettelheim (2013), a preocupação em relação a essas situações é restrita aos pais e ressalta que a vida não é constituída somente de bons momentos. Gillig (citado por Gutfreind, 2010), constatou que "as crianças experimentam um prazer ao conseguir enfrentar e controlar a angústia suscitada pelas histórias assustadoras. E uma prova disso é que pedem para escutar outra vez" (p. 79). Esse tema também foi abordado pelo casal Corso (2006):

Os assuntos complicados costumeiramente evocados pelos contos de fadas ... provam que as crianças não se esquivam de assuntos cabeludos, inclusive às vezes os enfrentam de forma bem ousada. É bem por isso que tantas dessas narrativas permaneceram conosco pelo resto da vida, graças à riqueza que emprestaram e seguem oferecendo como auxílio diante de encruzilhadas e dificuldades que continuam se interpondo no caminho. (p. 304)

Dessa forma, diante do caldeirão que a pesquisa suscita e tendo esses ingredientes consistentemente misturados e mantendo uma postura constantemente aberta à possibilidade de "adicionar temperos" que possam apurar a "poção", é apresentado como se utilizou o "era uma vez..." no trabalho psicoterapêutico infantil. O Rei Leão1 aceitou o convite e participou dessa mágica tarefa.

 

A CHAVE MÁGICA

A chave, ou o método, que foi utilizada para abrir as portas deste estudo tem o formato de pesquisa denominada Estudo de Caso Único. E, passando por essa porta, foi possível a análise, de modo detalhado, de um caso individual e de um processo grupal, com o objetivo de expor a forma utilizada: a contação de histórias infantis no setting terapêutico. Procurou-se aprofundar o conhecimento do fenômeno estudado a partir da exploração de um único caso. Foi estudado e analisado o processo de uma criança que participa do grupo desde sua criação e que, diante das dificuldades apresentadas, principalmente em relação à agressividade com terceiros, requeria, além do trabalho com contos no grupo, um acompanhamento individual na modalidade de Psicoterapia Bipessoal.2 Dessa forma, foi possível observá-la tanto em sua atuação individual quanto nas relações em grupo.

Para contar as histórias, foram utilizados livros comerciais dos contos infantis tradicionais e também algumas histórias infantis atuais, como O que me deixa triste?, O que vou ser quando crescer?, Tanto faz, como tanto fez. As sessões se iniciavam com um aquecimento inespecífico, e, logo após, eram lidas por elas ou pela pesquisadora, as estórias escolhidas pelo grupo, que também serviam como aquecimento específico. Em diversas ocasiões, nesse momento já ocorria a dramatização, uma vez que, com crianças, tanto as etapas da sessão de Psicodrama quanto os contextos social, grupal e psicodramáticos não estão claramente definidos. Através do role playing e das trocas de papéis surgiam as possibilidades de criação de novos finais e novos enredos para a história.

Para ilustrar, trazemos um encontro mediado pela história da Polegarina (Andersen, 2015). Na dramatização, surgiu um leão que bravejava muito, se dizia do mal e matava todos os animaizinhos da floresta. No final, no entanto, ele se prontificou a levá-la para a casa de sua mãe, e Polegarina disse estar com medo dele, com medo de que ele pudesse machucá-la. O Leão então lhe respondeu que estava ali para protegê-la e que ia levá-la para um lugar seguro.

A disponibilidade do grupo para a execução das atividades sempre foi respeitada. Ocorreram encontros em que não desejaram seguir com a história e, assim, permaneceu-se com o aquecimento inespecífico, não significando, entretanto, falta de eventos terapêuticos para serem trabalhados.

 

A JORNADA DO HERÓI

Antes de discutir os resultados obtidos, o caso será apresentado em forma de conto. Segue então a história da criança, cujo nome foi alterado para preservar sua identidade, mas os fatos essenciais para a compreensão foram mantidos.

LEO, O REI LEÃO

Há algum tempo, em uma clareira dentro de uma grande floresta, nascia Leo, o leãozinho. A avó e o tio estavam presentes e, juntamente com sua mãe, receberam-no em um tempo de grandes dificuldades. A frágil saúde da mamãe leoa preocupava todos e, após quinze luas, ela não resistiu e morreu. O pai, um grande e temido leão, havia se comportado mal e já fazia muito tempo que o tribunal dos bichos o levara para um lugar distante, colocando-o em uma jaula de onde não podia sair, de forma alguma. Ficou então decidido que a avó e o tio cuidariam do pequeno leãozinho.

Leo cresceu sem conhecer o pai; quando o viu pela primeira vez já tinha uns cinco aninhos, e não demorou muito para que o pai fosse levado novamente para aquele lugar distante, onde está até hoje.

A avó de Leo precisava sair para caçar, então bem cedo ele foi para a escolinha. Conforme foi crescendo e ficando bem forte, aprendeu a se defender urrando e mostrando suas garras para os demais amiguinhos da floresta, fossem eles também leõezinhos, lobos, patinhos ou pássaros, enfim, quaisquer amiguinhos.

Leo adorava brincar de pega-pega, de lutar e de matar. Aos poucos foi percebendo que os amiguinhos tinham medo dele, pois ele urrava muito alto, estava ficando bem grandão e um leãozinho bem gorducho. Eles riam dele, o chamavam de rolha de poço, de órfão, sem pai, e o ameaçavam, e isso o deixava cada vez mais furioso! Isso também trazia sofrimento a Leo, mas, como não sabia o que fazer, respondia sempre do mesmo jeito: usando a agressividade.

Um dia, Leo soube que sua fama de valente tinha chegado até outros reinos, até o reino dos grandões! E sabe o que aconteceu? Isso o divertiu, o fazia rir, então ele provocava e mostrava mais ainda suas garras, urrando o mais forte que podia. Parecia que isso não o incomodava!

Assim, nosso leãozinho foi crescendo, crescendo, ficando forte e muito bravo. E sua avó precisou de ajuda, pois na escolinha da floresta ninguém mais conseguia ser amigo de Leo. Até mesmo a dona Coruja, sua professora, reclamava de seu comportamento, deixava-o de castigo e queria que ele fosse para outra escolinha. Ali não dava mais pra ele ficar! Aliás, por conta de seu comportamento, Leo já havia sido mandado embora de outras duas escolas. Sua avó já não sabia mais o que fazer com ele.

Foi então que a avó procurou um doutor, que todos diziam ser bem sabidão. Sabe o que ele disse de Leo? Que ele tinha um tal de Distúrbio do Opositor. "Nossa o que é isso?", perguntou a avó, que lhe deu os remédios, mas continuou em busca de ajuda. Suas amigas lhe disseram que ali, bem pertinho de sua casa, tinha uma escola de adultos, onde havia um grupo que recebia outros leõezinhos, centopeias e pássaros que também tinham "problemas" lá em suas casinhas.

E era isso mesmo! Lá nessa escola havia um grupo terapêutico que se reunia uma vez por semana, sob o olhar de duas atentas e carinhosas tigresas que contavam histórias de mundos distantes e de como seus habitantes enfrentavam desafios, medos, guerras, mortes, como conquistavam amigos e até aquilo que eles chamavam de felicidade.

Quando chegou ao grupo, Leo era o maior de todos os "filhotes" e, de tanto resolver todas as suas dificuldades com sua força, não sabia como fazer de outra forma, já não sabia mais como ser amiguinho dos outros animaizinhos da floresta. Ali também ele os olhava bem de frente, dava um urro que os assustava e tinha uma vontade enorme de comê-los inteirinhos! Foi então preciso que Leo viesse mais uma vez por semana àquela escola, para encontrar uma das tigresas sozinho.

E assim, aos poucos, Leo encontrou um lugar onde podia urrar com toda a força, contar todas as histórias de lutas e mortes que seus amigos não queriam ouvir, falar aquelas confidências que para ele, Leo, não deveriam ser contadas para outros, só para a tigresa. E mesmo quando Leo fugia, ou se escondia, trapaceava nas brincadeiras, provocava dona Tigresa, ela continuava a brincar com ele, a esperá-lo toda semana, a dar um abraço na chegada e na saída. Assim, Leo começou a ficar intrigado: "Ué, cadê os urros de volta?", como é que ali as brincadeiras não terminavam com um grito de "eu não gosto de você"? Então, ele foi, bem aos pouquinhos, mostrando o coração de leãozinho querido, que aprendeu a esconder para enfrentar os medos da floresta onde vivia.

E não era mais somente com dona Tigresa que Leo conseguia brincar sem querer comer todo mundo, lá no grupo ele já não provocava mais a passarinha, nem a amiguinha centopeia. E quando chegou uma coelhinha nova, ele até se mostrou todo garboso, arfou o peito, arrumou a juba e recebeu a amiguinha com um sorriso.

Ah!!! E teve aquele dia em que ouviram atentos a historinha de uns tais porquinhos, em que um lobo mau soprava suas casinhas e queria jantá-los. Na hora de brincar de faz de conta, todos acharam que Leo ia querer ser o lobo mau, como por muito tempo fazia questão de ser. Mas que nada! Não é que ele fez de conta que era o porquinho Prático! "Como assim? O que aconteceu com Leo?" Perguntavam os amiguinhos do grupo, que riram muito e adoraram o novo Leo!

Leo ainda urra alto quando se sente atacado, briga com aqueles que o chamam de leão gorducho, mas já sabe como fazer isso diferente. Até o doutor disse que ele não precisa mais dos remédios! Agora ele pede ajuda quando precisa, sabe brincar, sabe ser amigão e sabe amar.

E não é que agora ele veio com uma nova história? Contou para as tigresas e para o grupo de amiguinhos que está namorando!!! Sim, isso mesmo! Leo encontrou uma linda leoazinha lá na escolinha dele. Eles passeiam, estudam, namoram e estão vivendo muito felizes. E estamos torcendo para que sejam felizes para sempre!

OS DESAFIOS DA FLORESTA

No início do atendimento, Leo estava com nove anos. Participou por dois semestres de um trabalho em grupo terapêutico e, no início do terceiro semestre de atendimento, foi decidido que deveria ser atendido também em psicoterapia bipessoal. Os atendimentos individual e grupal ocorriam em dias e horários diferentes. Foi atendido por mais três semestres em grupo e individualmente.

Leo mantinha um papel aprendido e conservado, manifestado por postura agressiva, no grupo recebia os colegas sempre com olhar intimidador, respondia com tentativas de agressão física, e as histórias que ele relatava sempre finalizavam com morte de todos os personagens. Na escola, apresentava histórico de suspensões e havia passado por algumas expulsões; a diretora atual via isso como normal pelas atitudes que Leo demonstrava. Muitas vezes, recusava-se a participar das atividades grupais ou o fazia através de desempenho de papéis em que a agressividade era uma constante.

Sua mãe faleceu quando ele tinha quinze meses de idade e passou a ser cuidado pela avó e pelos tios, que também foram afetados pela morte da mãe dele. Pode-se perceber que Leo viveu, desde sua Matriz de Identidade, dificuldades relacionais ligadas às figuras significativas da Matriz e que a morte da mãe alterou sensivelmente a forma de cuidado que passou a receber da avó e dos demais parentes, que tiveram que se revezar nesse cuidado. Assim, cresceu com diversos modelos familiares, recebendo orientação de várias fontes.

Nos trabalhos em grupo, Leo identificava-se com o papel do Rei Leão, escolhia um local da sala que tratava como seu reino. Permaneceu por longo tempo nessa conserva e, bem aos poucos, foi alterando sua postura para um leão amigo, que passou até mesmo a ajudar a andorinha, na dramatização do conto Polegarina (Andersen, 2015). A partir de então, foi aceitando as sugestões de trocas de papéis, até que, por si só, escolheu o papel de mocinho no conto Os três porquinhos (Marques, s.d.), quando se colocou como porquinho Prático, e não como lobo mau.

Nas sessões individuais, sua agressividade aparecia nos jogos e nas suas falas em que se colocava sempre como poderoso. Ali foi possível perceber, especialmente através dos desenhos, o quanto sua criatividade e espontaneidade estavam inibidas. Iniciou afirmando que não sabia desenhar e sequer conseguia terminar o que ele mesmo propunha. Com o passar do tempo, ficou menos irritado ao ser derrotado nos jogos, passou a explicar as regras de jogos desconhecidas pela terapeuta e não só apresentou iniciativa para desenhar, como finalizava seus projetos com riqueza de detalhes, como em um desenho que fez de si próprio sentado embaixo de uma árvore, lendo um livro.

Leo, quando necessário, ainda faz uso dos recursos de antes, no enfrentamento do mundo real onde vive, pois reside em um local em que a violência está sempre presente. Entretanto, pelos seus relatos, percebe-se que tem deixado um pouco de lado o videogame e os jogos on-line do aparelho celular, trocando-os por atividades como brincadeiras na quadra da escola, andar de bicicleta e de skate com seus amigos. Agora relata ter amigos que parecem não mais temê-lo pelo fato de ser filho de uma pessoa temida e por seu comportamento agressivo.

Nos três semestres em que foi acompanhado, estabeleceu-se com Leo um novo modelo relacional, em que a tônica foi o acolhimento e a firmeza quanto à impossibilidade de ser agressivo com os outros componentes do grupo. Ele pode desenvolver novas relações baseadas na solidariedade e na cooperação. Desenvolveu novas formas de se relacionar, à medida que as relações télicas passaram a ser mais frequentes, aprendendo a confiar e a não necessitar mais da agressividade como forma de se relacionar. Mostra-se, assim, mais espontâneo e criativo nas situações tanto em grupo quanto individualmente.

 

A HORA DO FINAL FELIZ

Encerrando este texto, foi possível constatar a harmonia entre os ingredientes iniciais, o Psicodrama moreniano e o trabalho com os contos infantis, como descrito por Gutfreind (2010). Os contos infantis são instrumentos que podem ser utilizados com a criança (e até mesmo com o adulto) nos processos de identificação e expressão de sentimentos, que, por vezes, são difíceis de ser manifestados diretamente pelo grau de envolvimento afetivo com a própria história. Ao se usar um recurso ao mesmo tempo lúdico e dramático, desenha-se a possibilidade de diminuição das respostas repetitivas, conservadas, bem como de um incremento de respostas inéditas e criativas, a partir de um aumento da espontaneidade como catalisador desse processo criativo, conforme propõe a teoria psicodramática.

Ao abordar a violência apresentada pelas crianças, Herranz (2000) apresenta que "a violência não é uma qualidade interna que se transporta à relação com os demais, e que a violência é a consequência da relação que chega a constituir-se na única senha de identidade para alguns seres humanos" (p. 171). Pela acolhida que teve e pelo entendimento de que ele não sabia fazer de outra forma porque sempre havia resolvido todas as suas dificuldades com violência e por lhe ser apresentado um limite à impossibilidade de ser agressivo, o que machucava a si mesmo ou aos demais, Leo pôde conhecer um novo modelo de se relacionar.

 

REFERÊNCIAS

Andersen, H. C. (2015). Polegarina. In Contos de Andersen. São Paulo: Paulus.         [ Links ]

Bettelheim, B. (2013). A psicanálise dos contos de fadas (28a. reimpressão). São Paulo: Paz e Terra.         [ Links ]

Corso, D. L., & Corso, M. (2006). Fadas no divã: Psicanálise nas histórias infantis. Porto Alegre: Artmed.         [ Links ]

Cukier, R. (1992). Psicodrama bipessoal: Sua técnica, seu terapeuta e seu paciente (5a. ed.). São Paulo: Ágora,         [ Links ]

Gonçalves, C. S. (Org.) (1988). Psicodrama com crianças: Uma psicoterapia possível. São Paulo: Ágora.         [ Links ]

Gonçalves, C. S., Wolff, J. R., & Almeida, W. C. (1988). Lições de psicodrama: Introdução ao pensamento de J. L. Moreno. São Paulo: Ágora.         [ Links ]

Gutfreind, C. (2010). O terapeuta e o lobo. Rio de Janeiro: Artes e Ofícios.         [ Links ]

Herranz, T. (2000). Integrações: Psicoterapia Psicodramática individual e bipessoal. São Paulo: Ágora.         [ Links ]

Marques, C. (s.d.). Os três porquinhos. Blumenau, SC: BrasiLeitura. (Coleção Clássicos de Ouro).         [ Links ]

Morais, M. L. S. (1988). Faz de conta e participação social. In C. S. Gonçalves (Org.), Psicodrama com crianças: Uma psicoterapia possível. São Paulo: Ágora.         [ Links ]

Moreno, J. L. (2009). Psicodrama (12a. ed.). São Paulo: Cultrix.         [ Links ]

Von Franz, M.-L. (2013). A interpretação dos contos de fada (9a. reimpressão). São Paulo: Paulus. (Trabalho original publicado em 1990).         [ Links ]

 

 

Recebido: 07/12/2016
Aceito: 20/05/2017

 

 

Ivone Lopes: Graduada em Psicologia pelo Centro Universitário Estácio de Santa Catarina. Especializanda em Psicologia Clínica Gestáltica pelo Instituto Granzotto. Formada em Administração de Empresas pela Fundação Educacional do Alto Vale do Itajaí (Fedavi). Especialista em Gestão Financeira pela Universidade Regional de Blumenau (Furb). Rua Jairo Callado, 101, apto. 804, Centro, CEP 88020-760. Florianópolis, SC. Tel.: (48) 99980-1449.
Marilene Dellagiustina: Doutora em Psicologia pela Universidad del Salvador e graduada em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Psicodramatista Didata e Supervisora Didata pela Federação Brasileira de Psicodrama (Febrap). Professora do Centro Universitário Estácio de Santa Catarina. Presidente e professora da Sociedade de Psicodrama Atuare. Servidão Caminho dos Surfistas, 180, Campeche, CEP 88063-184. Florianópolis, SC. Tels.: (48) 99985-1818 e (48) 3348-1136.

 

 

1 Assim será chamada a criança que foi acompanhada durante todo o processo psicoterápico e ensejou este estudo de caso.
2 Abordagem terapêutica oriunda do Psicodrama, que não faz uso de egos auxiliares e atende apenas um paciente de cada vez, configurando uma situação bipessoal, ou seja, um paciente e um terapeuta (Cukier, 1992, p. 17).

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