SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.25 número1Child psychotherapy mediated by children's stories: case study from the perspective of PsychodramaRessignificação da morte na abordagem psicodramática: perdas e ganhos no luto índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Revista Brasileira de Psicodrama

versão impressa ISSN 0104-5393versão On-line ISSN 2318-0498

Rev. bras. psicodrama vol.25 no.1 São Paulo jun. 2017

http://dx.doi.org/10.15329/2318-0498.20170005 

ARTIGOS INÉDITOS

 

Bioatria: um conceito essencial no território da obra de J. L. Moreno

 

Bioatry: an essential concept in the territory of J. L. Moreno's work

 

Bioatría: un concepto esencial en el territorio de la obra de J. L. Moreno

 

 

Debora MelloI; Mariângela Pinto da Fonseca WechslerII

ISociedade de Psicodrama de São Paulo (SOPSP). E-mail: debora.mello@lanakana.com.br
IIInstituto Sedes Sapientiae (DPSedes). E-mail: maripfwe@gmail.com

 

 


RESUMO

O conceito de Bioatria foi criado por Moreno em resposta às preocupações e ameaças à manutenção da vida na biosfera. O presente estudo foi desenvolvido em duas etapas. A primeira etapa, como revisão teórica, conecta a Bioatria como metaeixo na teoria moreniana; a segunda etapa, como prática, utiliza o método sociopsicodramático e investiga, em cinco grupos distintos, os significados que os participantes atribuíam às suas relações com a Terra, assim como as possibilidades de se engajarem, ou não, em iniciativas visando à sustentabilidade. Os resultados sugerem algumas categorizações sobre escolhas positivas, ambivalentes ou neutras e negativas em relação ao tema pesquisado e caminhos possíveis para a ampliação desta reflexão em novos estudos.

Palavras-chave: grupos focais, vivências emocionais, bioatria, desenvolvimento sustentável, método sociodramático


ABSTRACT

The concept of Bioatry was created by Moreno in response to concerns and threats to the maintenance of life in the biosphere. The present study was developed in two stages. The first stage as a theoretical review connects Bioatry as a meta-axis in Morenian theory and the second one as an application uses the sociopsychodramatic method and explores, in five distinct groups, the meanings that the participants attributed to their relations with the Earth as well as the possibilities of engaging themselves or not in initiatives aiming at sustainability. Results suggests some categorizations about positive, ambivalent or neutral and negative choices in relation to the research topic, also possible ways to broaden this reflection in new studies.

Keywords: focus groups, emotional experiences, bioatry, sustainable development, sociodramatic method


RESUMEN

El concepto de Bioatría fue creado por Moreno en respuesta a las preocupaciones y las amenazas a la manutención de la vida en la biosfera. El presente estudio se desarrolló en dos etapas: la primera, como revisión teórica, conecta la Bioatría como meta-eje en la teoría moreniana y, en la segunda, como aplicación, utiliza el método sociopsicodramático e investiga, en cinco grupos distintos, los significados que los participantes atribuían a sus relaciones con la Tierra, así como las posibilidades de su participación o no en iniciativas de sostenibilidad. Los resultados sugieren algunas categorizaciones sobre las opciones positivas, ambivalentes o neutrales y negativas en relación al tema investigado, así como los caminos posibles para la ampliación de esta reflexión en nuevos estudios.

Palabras clave: grupos focales, vivencias emocionales, bioatría, desarrollo sostenible, método sociodramático


 

 

INTRODUÇÃO - A BIOATRIA COMO UM METAEIXO TEÓRICO ESSENCIAL

A obra moreniana, repleta de aberturas e pontos em discussão, faz-se útil como obra inacabada, como provocação a um pensamento científico mais próximo aos paradigmas de uma nova ciência, menos determinista e cartesiana e mais adepta a uma visão sobre a complexidade não só das relações humanas, mas de todos os fenômenos.

O Moreno do "porvir" é instigante e, em seus lançamentos caóticos de ideias, do ponto de vista tanto filosófico como prático, resgatou e também nos antecipou tendências e conceitos muitas vezes de difícil compreensão, mesmo para nossos tempos, um século à frente do ponto de onde ele iniciou (Wechsler, 2016).

Se criássemos uma imagem cartográfica, localizaríamos, ainda hoje, na obra de Moreno clareiras que foram abertas, porém que se mantêm inexploradas. A proposta deste artigo é reconectar um destes territórios esquecidos, a Bioatria, que, seguindo a lógica de suas raízes etimológicas, constituiria a ideia de Bio (vida) Atria (terapia).

O conceito de Bioatria atravessa, de forma geral, toda a obra de Moreno. Neste artigo, exploraremos trechos de três obras em que ele é claramente identificado. Em As palavras do pai, publicado pela primeira vez em 1922, Moreno (1992) expõe sua visão cosmológica, tocando em questões que vão muito além da humanidade, como a criação do universo e da vida:

Se existir responsabilidade, ela deve ser uma responsabilidade com o Todo! E como eu poderia assumi-la sem ter uma função criadora neste mundo e sem ser parceiro em sua criação? Eu devo ter estado lá, há bilhões de anos atrás e estarei lá, a bilhões de anos no futuro. Eu me criei, logo, eu existo. (p. 11)

Já em Quem sobreviverá?, publicado em 1934, Moreno (1994) projeta, de forma prospectiva, no terceiro volume, questões que reforçam uma visão para algo além da Socionomia, sendo a Bioatria entendida como um projeto para além da Humanidade, alcançando, assim, um escopo muito mais amplo como proposta de "Terapia da Vida".

Há uma forma superior de democracia "bioátrica" e sociométrica na qual os não-nascidos, os vivos e os mortos são todos parceiros ... é um estado de coisas em que a igualdade de oportunidade estende-se ... A sociometria junta-se, aqui, à bioatria; compartilha tanto as riquezas biológicas quanto as sociais com todos, nascidos ou não, distribuindo-as entre eles. (pp. 178-179, itálicos do original)

Em Psicoterapia de grupo e psicodrama, publicado pela primeira vez em 1959, Moreno (1999) descreve a relação humana com o cosmo e com o universo, extrapolando a visão socioantropocêntrica, desvelando assim conceitos bioátricos.

Vê-se, portanto, nesses três momentos criativos, o Moreno hassídico, de origens filosóficas existencialistas e europeias, expressando, de forma viva, aspectos dos quais se distanciou ao imigrar para os Estados Unidos, tendo em vista que a Bioatria seria um território muito distante dos valores e dos conceitos da ciência positivista americana.

Para reintegrar o território bioátrico ao conjunto da obra moreniana, voltamos ao tripé criado pelo próprio Moreno (1999), que descreve a Socionomia, representada com a junção de três eixos: 1) A Sociodinâmica: ciência da estrutura dos grupos sociais, isolados ou unidos; 2) Sociometria (do grego metrein = medir): utiliza instrumentos quantitativos e qualitativos, para entender a "medida" dos relacionamentos humanos. O socius recebe aqui uma importância maior que o metrum; 3) Sociatria (do grego iatreia = terapêutica): ciência do tratamento dos sistemas sociais.

Agregado a esses três eixos e seguindo a mesma lógica que ele utilizou para explicar esquematicamente sua visão, propõe-se neste estudo o conceito de bioátrico como um metaeixo essencial em seu trabalho, originado em uma cosmologia, constituída por influências hassídicas, de sua origem cultural, e também por tendências filosóficas da imanência. Essa cosmologia seria a fonte de inspiração de todo o conceito bioátrico, permeando e influenciando todos os outros conceitos de sua obra, estando de certa forma acima destes.

 

 

Temos no desenvolvimento da Socionomia pós-moreniana autores que, em suas buscas e em seus questionamentos pelas origens cosmológicas e filosóficas, de certa forma, têm delineado material que nos aquece a retomar as correntes "bioátricas" dentro da obra de Moreno. Há trabalhos bastante significativos nesse sentido, como os de Fonseca (1980), que buscou origens hassídicas da filosofia moreniana e depois ratificou a originalidade de Moreno na apresentação do artigo de Waldl (2012); Wechsler (2014; 2016), que clarifica as origens epistemológicas da obra moreniana, em um campo além das dualidades corpo-mente, homem-ambiente, ser-ação, trazendo à tona conceitos da complexidade e da imanência, que abarcam a noção de homem moreniano, em uma visão filosófica muito mais ampla e mais livre dos dispositivos limitantes das ciências tradicionais, ainda distantes dos novos paradigmas da contemporaneidade; Marino (2002), que, em suas aulas sobre visão de mundo e de homem morenianos e em publicação de influência fenomenológica-existencial, reforçou essa perspectiva na formação de novos sociopsicodramatistas, mais atentos à constituição filosófica da obra; Sampaio, Mello e Souza, e Anjos (2016), que questionam o processo de formação, muitas vezes tão hierarquizado, nas escolas de teoria moreniana, tirando espaço para cocriação e produção de novos saberes; (Mezher et al., 2001), que, com o resgate do campo da axiologia e da nomeação mais apropriada da Socionomia, como instância mais ampla, desmistificou paralisias que nos aprisionam no termo reducionista Psicodrama; Weil (1990) que abriu novas fronteiras ao pensamento proeminente nesta teorização mais ampla, e talvez seja a mais forte e original expressão bioátrica, entre aqueles que tiveram contato com Moreno, contribuindo com a retomada de sua obra no Brasil e, mais tarde, com visões sobre as três ecologias e os perigos da ilusão da separatividade; Mota (2010) com o relevante registro da história dessa linha teórica no Brasil, incluindo passagens coletadas com uma pesquisa de importantes depoimentos de Weil, sobre a relação dele com Moreno, inclusive nos momentos finais da vida deste, quando recebeu a visita de Weil em Nova York; por fim, cito Campolim de Almeida (2009), que relaciona as visões de Moreno e Weil e indica a problemática da indiferença, quanto aos aspectos socioambientais, por parte tanto de pesquisadores como do público em geral; discorre em seu trabalho sobre a teoria de Moreno em uma prática que denominou de "ecopsicodrama".

Por outro lado, apesar dos esforços desses e de outros autores, que rompem com as barreiras de conservas já questionáveis, as gerações de estudiosos da obra de Moreno nos últimos 40 anos continuam enfatizando, majoritariamente, os aspectos relacionais exclusivamente humanos como eixo central da teoria moreniana Mesmo tendo Moreno aberto espaço para um campo relacional muito maior e esboçado suas preocupações bioátricas aqui resgatadas. A Bioatria, neste estudo, retoma, portanto, a cosmologia moreniana, que vai além do "sócio", tendo como escopo o "bio" e a relação do homem com a vida além do humano, com o planeta e com todo o universo. O homem no conceito de "centelha divina", porém não hierarquizada como o centro do universo, mas como um ponto luminoso nesta infinita conexão cósmica.

Dessa maneira, este artigo posiciona a Bioatria como um metaeixo essencial, no diagrama original descrito por Moreno. Embora a citação específica do termo Bioatria1 tenha aparecido em poucas passagens de sua literatura, são muito enfáticas suas citações em Palavras do pai, Quem sobreviverá? e também em outros textos, como em Psicoterapia de grupo e psicodrama. Por esse motivo, torna-se curiosa a razão pela qual o termo permaneceu despercebido e mesmo desconhecido por muitos que estudaram sua obra. Não terá sido a ênfase suficiente? Ou existiriam outras razões que impediram que o tema afetasse a comunidade científica dedicada a estudar sua obra? Sem responder a esta questão, que deixarei em aberto, o conceito de metaeixo, aqui criado, sustenta-se na alegação de que toda a produção de Moreno evoca uma cosmologia além das relações sociais.

A relação com o cosmo e com o universo extrapola a visão socioantropocêntrica, como ele exemplifica em Psicoterapia de grupo e psicodrama (Moreno, 1999), encarregando-se nestes:

Marx via a situação do homem apenas como membro da sociedade, e considerava a luta dentro dessa sociedade como seu destino último. Freud via a posição do homem como a de um viajante entre o nascimento e a morte. O resto do universo não entrava em consideração. A tarefa de nosso século é reencontrar uma posição para o homem no universo. (p. 15)

Se analisado criticamente, este fato não logrou no século XX, tendo em conta a crise ecológica na qual nos encontramos, atribuída em grande parte à incapacidade da humanidade em estabelecer relações harmônicas com todos os outros seres do planeta. Moreno (1999) continua, na mesma obra, o seguinte trecho bastante significativo:

O homem é um ser cósmico; é mais que um ser psicológico, biológico e natural. Pela limitação da responsabilidade do homem aos domínios psicológicos, sociais ou biológicos da vida, faz-se dele um banido. Ou ele é também responsável por todo o universo, por todas as formas de ser e por todos os valores, ou sua responsabilidade não significa realmente nada. A existência do universo é importante, é realmente a única existência significativa; é mais importante que a vida e a morte do homem como indivíduo, como tipo de civilização, como espécie ... A ciência e os métodos experimentais, se têm pretensão a serem verdadeiros, precisam ser aplicáveis à teoria do cosmo. (p. 15)

Privilegiar o olhar para as relações não só humanas, mas humano-ambientais, torna-se, portanto, o metaeixo da produção pós-moreniana proposto neste estudo. Nesse contexto, responsabilizamo-nos como seres humanos, com papel criador de nossa própria história e destino. Em 1915, no poema "Convite a um encontro", Moreno sugeriu que colocássemos os olhos uns dos outros, para que enxergássemos o mundo a partir dessas novas perspectivas.

Nesta contemporaneidade, que nos faz apressadamente não contemplar de maneira profunda o planeta e seus habitantes, em suas generosidades e em suas dores, expressas em mudanças climáticas, em conflitos e desigualdades sociais, em milhares de refugiados errantes, isso permanece algo útil a se fazer.

Moreno esperava compreender quais as forças sociais a dominar a espécie humana, embora ele mesmo afirmasse que a esta pergunta não se atribuiria uma única resposta. A partir da Bioatria, faremos a mesma pergunta, mas agora a respeito de quais são as forças da vida a nos ajudar neste propósito.

 

APRESENTAÇÃO DAS PRÁTICAS E SUA FUNDAMENTAÇÃO METODOLÓGICA

O convite para os grupos nesta etapa continha a informação de que a partir de um "Diálogo com Gaia, a Mãe Terra" (Mello e Souza, 2016), interpretada dramaticamente por uma atriz em cena, o trabalho seria uma jornada na qual os membros do grupo poderiam investigar de que forma se conectavam atualmente com o planeta e qual a relação disto com conflitos e dores na contemporaneidade.

Os grupos foram organizados a partir da rede de relacionamentos da autora e não impunham limitação de perfis como gênero ou idade. Os convidados tinham como característica comum seu interesse em conhecer ou estudar a metodologia sociopsicodramática e também pesquisar sobre sustentabilidade.

O primeiro grupo foi realizado em um espaço de reuniões da própria autora; participaram cinco pessoas. O segundo grupo foi sediado em uma escola de ensino fundamental, com professoras que tiveram interesse em participar da pesquisa, pois estavam conduzindo na escola muitas intervenções sobre temas de cunho socioambiental. Fizeram parte desse encontro 16 pessoas. O terceiro grupo foi realizado em um jardim, anexo à sala de reuniões utilizada no primeiro encontro, e contou com a presença de cinco participantes. O quarto grupo foi realizado na Sociedade de Psicodrama de São Paulo, com 12 participantes. O quinto e último grupo ocorreu no XX Congresso Brasileiro de Psicodrama, com sete participantes. As datas foram sucessivas, ao longo dos seis primeiros meses de 2016. A amostra participante deste estudo consistiu-se em sua maioria de mulheres com idades entre 22 e 65 anos. Apenas dois homens fizeram parte da amostra, em dias distintos. Como o trabalho seguiu uma abordagem de sondagem qualitativa e descritiva, sem pretensões estatísticas, não foram coletados outros dados demográficos. Todos os participantes assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e concordaram que os dados fossem registrados com propósitos acadêmico-científicos. As compilações a seguir preservam a confidencialidade das identidades dos participantes e têm como objetivo descrever os achados da pesquisa para novas reflexões e estudos futuros sobre o tema.

Os grupos convidados propuseram-se a responder à seguinte questão de pesquisa: "Qual a nossa relação com Gaia, a Mãe Terra?".

Esta pergunta, desenvolvida e analisada nos cinco grupos, em datas e locais distintos, continha em si um paradigma Bioátrico. Ao falarmos da Terra, da nossa relação com tudo que existe nela, reconectamo-nos com algo além das correntes sociais humanas, conectamo-nos com todos os seres desta complexa teia biosférica.

Em todos os grupos, o ambiente foi previamente preparado com uma cenografia simples. Colocou-se uma cadeira com o "manto de Gaia", em local de destaque no palco. Um tecido azul, estendido à frente da cadeira, esticado por cerca de três metros, simulava o leito de um rio. Objetos dispostos ao longo deste leito remetiam a elementos da natureza: Terra, Água, Frutas e Plantas. As cadeiras foram dispostas em "U" e, dessa forma, delimitava-se o palco no centro. Utilizou-se música ambiente com sons de água e de natureza. As pessoas chegavam ao espaço onde estava exposto o palco e entravam em contato com esses estímulos.

 

DRAMATIZAÇÃO E PRODUÇÃO NOS CONTEXTOS GRUPAIS

O aquecimento iniciava-se com as pessoas entrando na sala preparada. A unidade funcional, constituída pela diretora e por uma ego auxiliar, que também assumia o papel de Gaia, aguardava que todos se acomodassem sentados e abria o trabalho com uma introdução, explicando de onde surgiu a ideia da pesquisa. Após a introdução, a diretora ficava só, e a ego auxiliar se afastava para entrar no papel de Gaia.

A diretora conversava com a plateia e propunha um processo de relaxamento de olhos fechados. Os participantes eram convidados a entrar em contato com o próprio corpo e com o ambiente. Assim que chegavam a um estado de relaxamento, a diretora solicitava que abrissem os olhos e assim visualizavam Gaia já no palco.

Gaia iniciava uma conversa com os participantes. Apresentava-se e falava sobre si. Descrevia o conceito de Gaia, da Deusa Terra, da Antiguidade (mitologia) à Contemporaneidade (teorias ecológicas).2 Finalizava sua participação com a pergunta: "Quem é você em relação à Gaia?". Após este questionamento, Gaia saía de cena e a plateia visualizava o cenário, agora com o manto de Gaia disposto sobre a cadeira.

A diretora perguntava: "Observando novamente este cenário, levantem-se e caminhem por ele. Imaginem que Gaia ainda se encontra presente, no local onde está seu manto. Encontrem um local para se posicionar que represente, considerando a distância, o quanto estão perto ou longe de Gaia". Para montar o mapa sociométrico dos participantes em relação a Gaia, solicitou-se que usassem o manto como ponto de referência onde estava Gaia, e se posicionassem, individualmente, em relação à sua proximidade com ela.

 

RESULTADOS NO CONTEXTO GRUPAL E DRAMÁTICO

Os conceitos de critério e escolha na teoria de Moreno serviram como recorte central para a aproximação feita com a pergunta disparadora. Corporalmente os participantes se posicionavam na distância que sentiam estar do planeta, que agora não era mais um "ISSO", mas um "TU"3 vivo e que abria um diálogo. A experiência vivida pelos participantes desta pesquisa nos forneceu dados extremamente valiosos neste caminho. Conforme a distância que se posicionavam individualmente, a diretora solicitava que se agrupassem com pessoas que de alguma forma se posicionaram em distâncias próximas. Para os subgrupos que se formavam, foram solicitadas cenas e, a partir do trabalho dramático, surgiam reflexões, ainda no próprio contexto dramático e também depois, no contexto grupal, no compartilhamento e no processamento do trabalho.

Nos encontros, o ato dramático, como forma de coleta de dados, ocorreu no cenário inter-relacional entre a diretora e egos participantes. Tomando-se por base o paradigma fenomenológico, não se buscavam explicações ou julgamentos do fenômeno pesquisado, tampouco nexo causal, mas sim os significados descritivos e suas implicações para os participantes, que se colocaram como atores e cocriadores do conhecimento construído Wechsler (2007).

Os efeitos intra e interpsíquicos gerados pela vivência de diversos papéis, não só humanos, mas de outros seres, como árvores, animais, fenômenos climáticos e até Gaia, tornaram-se uma rica fonte de análises qualitativas, uma vez que, a partir do papel, podemos observar formas mais ou menos espontâneas e criativas de uma pessoa se colocar no mundo. Suas marcas e singularidades de um complexo constructo que se configura em um sistema em constante interação com seu próprio meio.

A diretora entrevistava os participantes em cena e com base nos relatos e nas palavras, que foram sendo registradas. A coleta de palavras denota um campo semântico referente ao conteúdo emergente, apresentado pelos participantes em suas relações com Gaia. Num primeiro momento, as cenas surgiam com conteúdos positivos, e na atuação da diretora e ego auxiliar, que provocavam interpolações, outras referências ambíguas, indiferentes, negativas eram produzidas, para dar acesso ao todo relacional. A coconstrução deste campo era investigada nas cenas, no contexto dramático e depois comentada e compartilhada no contexto grupal. O registro das palavras foi realizado com a ajuda de egos auxiliares que se voluntariaram, o que ajudou a expandir a capacidade limitada da própria subjetividade da diretora para captar todo o conteúdo. Os mapas sociométricos dos cinco grupos reproduziram três tipos de agrupamento:

1) Escolhas Positivas: Participantes muito próximos de Gaia, alguns até entrando em seu lugar e vestindo o manto. Outros chegavam a sofrer e choravam em seu lugar pela situação em que o mundo se encontrava. Assumiam postura de ativistas ambientais, de mártires ou de guardiões; 2) Escolhas Ambivalentes ou Neutras: Demonstravam certa ambiguidade em relação à posição e aos sentimentos que expressavam. Relatavam que queriam estar mais próximos, mas não conseguiam nem sabiam como. Indicavam mais ambivalência do que neutralidade ao tema. 3) Escolhas Negativas: Participantes distantes, que sentiam certa repulsa, não de Gaia, mas das altas exigências feitas para que Gaia fosse mais bem cuidada. Também relatavam que queriam estar perto, mas não sabiam como fazer, ou o comportamento das pessoas mais próximas de Gaia, chorando, exigindo muito e impondo regras, os afastava.

 


Clique para ampliar

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os elementos apresentados pelos participantes deste estudo, lidos a partir de categorias criadas pelo vértice sociométrico e entendidos como escolhas positivas; escolhas ambivalentes ou neutras e escolhas negativas, podem ser considerados em futuras intervenções com o objetivo de melhor compreender indivíduos ou grupos em ações em prol da sustentabilidade e de uma "Ética do Cuidado à vida". Constatou-se também a eficácia do método sociopsicodramático na geração de reflexões e esclarecimentos de potenciais pontos de conflito e barreiras, tanto na possibilidade de atuação em intervenções práticas de clínica ampliada (foco socioeducacional), em que os papeis coletivos são o escopo a ser trabalhado, como no foco psicoterápico, em que os dilemas privados e suas relações também podem ser desvelados.

As dinâmicas relacionais que se apresentaram nos cinco grupos, bastante polarizadas (pessoas que ocuparam o lugar de mártires e guardiões ou pessoas indiferentes e com escolhas negativas em relação ao tema "Cuidar da Vida"), e a rigidez, pouco espontânea e criativa, de ambos os polos sociométricos, mostraram-se como o ponto mais crítico. A produção de cenas e papeis de dramas individuais e coletivos pôde ser acolhida a partir deste método, reafirmando que a Bioatria, ou seja, a "Terapia da Vida", se dá no encontro entre todos estes papeis coletivos e singulares. O diálogo entre estes dois polos: o dos "cuidadores" e o dos "indiferentes" ou "resistentes" à urgência do cuidado, expressou-se ora em papeis sociais, ora em dramas individuais. O papel de Mãe, preocupada com os filhos, emergiu por diversas vezes nos grupos e pôde ser trabalhado num escopo individual e depois ampliado, assim como o de avô cuidadoso com os netos, ou de pessoas que relataram muita dificuldade em lidar com o autocuidado.

Todos estes temas emergentes nos grupos são também presentes na prática clínica de nossos consultórios. A partir da prática bioátrica, os grupos, imbuídos da capacidade de continência de dores e reflexões dos participantes, proporcionaram momentos de cunho reparador, terapêutico e mesmo psicoterapêutico para seus membros. O ato de "Cuidar da Vida" se mostrou um grande desafio, tanto no contexto dramático como no contexto grupal. Quais os limites para isso? Em qual tempo e urgência?

Observou-se, na fase de compartilhamento, em vários participantes, a dificuldade que tinham, dadas as polarizações presentes em suas vidas, em inverter papeis e se colocar no lugar dos que ocupavam o outro polo sociométrico, em relação a Gaia, ou a outros papeis de seus cotidianos. O princípio dialógico, em que os opostos podem conversar, sem buscar uma síntese, pôde ser apreendido. A percepção de que é "muito grande" e "quase inatingível" o que há por fazer, em benefício de uma visão mais global, tanto no microcosmo como no macrocosmo, para este retorno ao paradigma do "Cuidado" bioátrico, também foi relatado como um dos agentes de desmotivação para aqueles que ainda não conseguem se colocar no lugar dos "guardiões da terra", ou de cuidadores de si ou de cuidadores de outros.

Esse mal-estar é compreensível em nossa contemporaneidade, mergulhada por paradigmas, que bem descreveu Focault (2008), sobre o surgimento e os impactos da Biopolítica e do Biopoder, em que o individualismo, fruto de discursos neoliberais normatizados, regula a intensidade e a forma como nos ligamos à vida.

Os participantes cogitaram, em vários momentos, a importância de buscar um processo que respeite os tempos, os ritmos e os diferentes graus de consciência sobre o tema, assim como um olhar mais ponderado às necessidades diversas, que provocam diferentes sensos de prioridade, gerando conflitos contraprodutivos, no âmbito tanto privado como coletivo. A linha de fuga, frente à polarização, dentro da prioridade que o tema exige, configurou-se, então, como o grande trabalho a ser feito. Aliado a isso, a capacidade de se colocar em outros papeis (humanos e não humanos) e, em outras perspectivas.

Conclusivamente, percebe-se a metodologia moreniana favorável, aos que com ela trabalham, ao assumirem o lugar de agentes de transformação de uma consciência bioátrica, assim como postulou seu primeiro criador.

 

REFERÊNCIAS

Buber, M. (2001). Eu e tu. São Paulo: Centauro.         [ Links ]

Campolim de Almeida, C. M. (2009). Despertando consciência das ecologias pessoal, social e do ambiente natural (Monografia para titulação). Sociedade de Psicodrama de São Paulo, São Paulo.         [ Links ]

Cukier, R. (2002). Palavras de Jacob Levy Moreno. São Paulo: Ágora.         [ Links ]

Fonseca, J. S. (1980). Psicodrama da loucura: Correlações entre Buber e Moreno. São Paulo: Ágora.         [ Links ]

Foucault, M. (2008). Nascimento da biopolítica: Curso dado no Collège de France (1978-1979). São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Lovelock, J. (2001). A vingança de Gaia. Rio de Janeiro: Intrínseca.         [ Links ]

Marino, M. J. (2002). Vir a ser psicodramatista: Um caminho de singularização em coexistência (Tese de Doutorado). Programa de Psicologia Clínica, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), São Paulo.         [ Links ]

Mello e Souza, D. (2016). Um encontro com Gaia. Recuperado em 7 de dezembro de 2016 de http://sopsp.org.br/index.php/component/k2/item/208-o-encontro-com-gaia        [ Links ]

Mezher, A. et al. (2001). A ética nos grupos: Contribuição do psicodrama. São Paulo: Ágora.         [ Links ]

Moreno, J. L. (1992). As palavras do pai: Fundamentos do psicodrama. São Paulo: Summus.         [ Links ]

Moreno, J. L. (1994). Quem sobreviverá? (Vols. 1, 2 e 3). Goiânia: Dimensão.         [ Links ]

Moreno, J. L. (1999). Psicoterapia de grupo e psicodrama. São Paulo: Livro Pleno.         [ Links ]

Mota, J. M. C. (2010). 1970: O congresso que redefiniu o campo do Psicodrama brasileiro. Revista Brasileira de Psicodrama, 18(2),119-128.         [ Links ]

Sampaio, M., Mello e Souza, D., & Anjos, F. (2016). Uma experiência de peer coaching na formação de psicodramatista. Anais do XX Congresso Brasileiro de Psicodrama. Febrap, São Paulo.         [ Links ]

Waldl, R. (2012). Raízes do encontro na psicoterapia: A influência de J. L. Moreno na filosofia dialógica de Martin Buber. Revista Brasileira de Psicodrama, 20(2),69-93.         [ Links ]

Wechsler, M. P. F. (2007). Pesquisa e psicodrama. Revista Brasileira de Psicodrama, 15(2),71-78.         [ Links ]

Wechsler, M. P. F. (2014). Preço ou/e apreço: Jornal vivo como dispositivo ou contradispositivo? In M. P. F. Wechsler, & R. F. Monteiro (Orgs.), Psicodrama em espaços públicos: Práticas e reflexões. São Paulo: Ágora.         [ Links ]

Wechsler, M. P. F. (2016). Criação e metodologia no psicodrama. In L. Gottlieb, & S. Perazzo (Orgs.), Psicodrama: Apontamentos e criação. São Paulo: FiloCzar.         [ Links ]

Weil, P. Holística. (1990). Holística, uma nova visão e abordagem do real. São Paulo: Palas Athenas.         [ Links ]

 

 

Recebido: 20/02/2017
Aceito: 12/05/2017

 

 

Debora Mello: Psicóloga. Psicodramatista Didata e Supervisora pela Sociedade de Psicodrama de São Paulo (SOPSP). Cofundadora da Lanakaná Princípios Sustentáveis. Pesquisadora do Núcleo Configurações Contemporâneas da Clínica Psicológica - Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Avenida Maria Thereza da Costa Naufal - q 52-1, CEP 13254-600. Itatiba, SP. Tel.: (11) 99966-2831.
Mariângela Pinto da Fonseca Wechsler: Psicodramatista Didata Supervisora, referendada pela Federação Brasileira de Psicodrama (Febrap) nos focos psicoterápico e socioeducacional. Doutora em Psicologia Escolar pela Universidade de São Paulo (USP). Especialista em Terapia Familiar Sistêmica pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Membro da Coordenação do Projeto Psicodrama Público do Centro Cultural São Paulo. Rua Senador Otávio Mangabeira, 85, CEP 05662-000. São Paulo, SP. Tel.: (11) 3746-9137.

 

 

1 Rosa Cukier (2002), em seu livro Palavras de Jacob Levy Moreno, indexou o termo Bioatria e localizou citações em duas obras: Quem sobreviverá?, v. 3, e Fundamentos de la sociometria.
2 Teoria Gaia, criada por James Lovelock (2001), um dos maiores especialistas em temas ambientais, versa que a Terra (Gaia, para os antigos gregos) é um sistema complexo, integrado e autorregulado, entre organismos vivos e seu ambiente.
3 Referência ao conceito relacional apresentado por Moreno e também por outros autores como Martin Buber (2001), sobre as relações EU-TU e EU-ISSO.

Creative Commons License