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Revista Brasileira de Psicodrama

versão impressa ISSN 0104-5393versão On-line ISSN 2318-0498

Rev. bras. psicodrama vol.25 no.1 São Paulo jun. 2017

http://dx.doi.org/15329/2318-0498.20170006 

ARTIGOS INÉDITOS

 

Ressignificação da morte na abordagem psicodramática: perdas e ganhos no luto1

 

Reframing death in psychodrama approach: losses and gains in mourning

 

Resignificación de la muerte en enfoque psicodramático: las pérdidas y ganancias en el luto

 

 

Vanessa Ramalho Ferreira Strauch

Profint/SE - Profissionais Integrados. E-mail: ramalhonessa@gmail.com

 

 


RESUMO

Este artigo visa analisar as contribuições do Psicodrama e do Sociodrama no processo de elaboração e ressignificação do luto, nas modalidades individual e grupal. Ao lidar com a morte no contexto psicodramático, possibilitou-se ao indivíduo um novo olhar diante das perdas, advindo da realização simbólica viabilizada pela realidade suplementar, bem como o resgate dos vínculos saudáveis, da espontaneidade e do autoconhecimento. Nas intervenções propostas de psicoterapia individual e de vivência aberta em grupo, as técnicas psicodramáticas foram instrumentos fundamentais para o fortalecimento do sujeito em suas relações interpessoais e seus papéis sociais desempenhados.

Palavras-chave: luto, psicodrama, espontaneidade, realidade suplementar, sociodrama


ABSTRACT

This article aims to analyze the contributions of Psychodrama and Sociodrama in the mourning draft and reframe, in individual and group modalities. In dealing with death in the psychodrama context, the individual was able to have a new perception before the losses coming from the symbolic achievement enabled by a supplementary reality, as well as the recovery of healthy bonds, spontaneity and self-knowledge. In the proposed interventions of individual psychotherapy and open group experience, psychodrama techniques were the key instruments for strengthening the subject in its interpersonal relationships and social roles.

Keywords: grief, psychodrama, spontaneity, supplementary reality, sociodrama


RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo analizar las contribuciones del Psicodrama y del Sociodrama en el proceso de preparación y reformulación del luto en las modalidades individual y de grupo. Cuando se trata de la muerte en el contexto del psicodrama, se hizo posible que el individuo tenga una nueva mirada ante las pérdidas derivadas de la realización simbólica posible gracias a la realidad adicional y el rescate de las relaciones sanas, la espontaneidad y el autoconocimiento. En las intervenciones propuestas de psicoterapia individual y de grupo de experiencia abierta, las técnicas de psicodrama fueron herramientas clave en el fortalecimiento del sujeto en sus relaciones interpersonales y los roles sociales.

Palabras clave: luto, psicodrama, espontaneidad, realidad adicional, sociodrama


 

 

INTRODUÇÃO

Ao refletir sobre o tema luto, é inevitável revisitar nossa própria história, os momentos de luto, dor e perdas vivenciados em diferentes épocas, dimensões e sentidos - experiências de vida que significam alguma forma de enlutamento, situações de despedida, mudança ou saudade. O luto é uma reação natural à privação do convívio de alguém ou de algo significativo. Em alguns casos, no entanto, ele se torna "cristalizador" de papéis, "imobilizador", "estagnador", tornando-se necessário o apoio psicológico para que a espontaneidade e a criatividade voltem a fluir nas múltiplas funções desempenhadas. Assim, é preciso refletir sobre "Quem/O quê", "Quando", "Onde" e "Como" foi a perda, relembrando os sentimentos presentes à época do fato vivido. Em seguida, vem um "Por quê", na busca de certezas que nunca serão alcançadas, e o que nos resta é descobrir estratégias possíveis de como seguir adiante.

Como estar abertos para a chegada de algo novo, inusitado e inesperado, que preencherá a sensação de vazio deixada pelo distanciamento de algo perdido? Como ressignificar a morte dentro de nós? Qual o papel da psicoterapia de base psicodramática neste processo de enfrentamento?

Moreno (1971/1992), procurando um sentido para a existência aparentemente vazia de significados, questionava-se se somos somente uma massa perecível ou o centro de toda a criação e se, diante do sentimento de terror da finitude, seria possível preenchermos o vazio fazendo renascer, criativamente, o divino dentro de nós. Remete-nos à importância de evocar um grau de flexibilidade no sujeito, para que ele possa enfrentar as situações diárias de luzes e sombras, satisfações e frustrações, dispondo, assim, de um estado espontâneo de prontidão para responder aos conflitos adequadamente, mais livre da interferência das conservas culturais.

Para Ramalho (2011), o conceito psicodramático de realidade suplementar é fundamental para ajudar na apresentação da verdade pessoal do protagonista, não apenas do que realmente aconteceu, mas também do que nunca ocorreu, embora desejado, imaginado, temido ou admirado, o desconhecido, o não dito, o não nascido, o sonho, as expectativas. Concordamos com Rubem Alves (2002) de que a morte não é algo que nos espera no fim, mas é uma companheira silenciosa que nos convida à sabedoria de viver.

Neste artigo, revisamos conceitos de morte, refletimos sobre contextos nos quais se vivencia o luto e analisamos as contribuições da metodologia qualitativa sociopsicodramática, por meio de duas estratégias: um caso clínico de Psicodrama bipessoal e uma vivência sociodramática (tematizada). Utilizamos nessa discussão o conceito moreniano de realidade suplementar, especialmente através da dramatização em cena aberta, do role playing, da inversão de papel e do sandplay psicodramático.2

 

DESENVOLVIMENTO

De acordo com D'Assumpção (2010), na cultura ocidental, os ritos mortuários são necessários para ajudar na elaboração das perdas e do medo da morte. Já na oriental, percebemos o esforço pela redução do apego, por práticas meditativas, pela busca da paz interior e da espiritualidade, pela aceitação do inevitável, pela compreensão da mortalidade e pela contemplação da impermanência da vida (Rinpoche, 1999).

Neste trabalho, valorizamos, como visão terapêutica, os lutos como aprendizados para a vida, momentos pontuais de forte mudança, crescimento e valorização. A morte é vivenciada como perda de pessoas próximas ou distantes do sujeito (familiares, amigos, conhecidos, colegas de trabalho, ídolos ou pacientes), que, por serem lembradas, tiveram importância singular para ele. As causas da morte podem advir de acidente, violência, doenças inatas ou adquiridas, envolvimento com drogas ou falência/idade. Parkes (1998) cita alguns fatores determinantes do luto para as diferentes respostas dos enlutados, como a relação com o morto (parentesco, apego, grau de envolvimento), o gênero do enlutado, idade do morto, o tipo de morte e a vulnerabilidade pessoal.

Outras dimensões vivenciadas como morte são experiências de traição, separação, aborto, abandono, decepções, adoecimento e morte simbólica ou psicológica-emocional (inclusive em crianças - quando, por exemplo, seus pais não dão espaço ao desenvolvimento de sua identidade por superproteção, negligência, violência, maus-tratos ou dificuldades na capacidade de compreensão de suas necessidades).

Medos da morte, da loucura e da perda são vislumbrados ao longo da existência humana. Percebemos também um peso maior atribuído ao luto vivenciado na matriz de identidade (núcleo familiar primário) ou quando se perde uma pessoa do convívio diário e se rompem laços de interdependência em atividades cotidianas. Para Figusch (2006), a perda que nos afeta mais profundamente é a perda pela morte de alguém importante de nosso átomo social, cuja ruptura de laços traz danos socioemocionais mais difíceis de lidar.

Segundo Ferreira-Santos (2003), dependendo da dinâmica pessoal de cada um, o novo sempre atrai ou assusta; se na fantasia ou mesmo na permanência das velhas cicatrizes há busca pela completude, o novo é uma possibilidade, mas, se fere a alma, é uma ameaça.

A psicoterapia de base psicodramática e o processo de luto

Para Jacob Levy Moreno (1975), consagrado criador do Psicodrama, Sociodrama e da Psicoterapia de Grupo, o indivíduo é concebido e estudado através de suas relações interpessoais. Ao nascer, ele é inserido num conjunto de relações, sua matriz de identidade, e através desta inicia seu processo de socialização e integração na cultura.

Seu principal referencial filosófico, a fenomenologia existencial, dá ênfase às noções de intersubjetividade, corporeidade, liberdade, ação, filosofia do Momento e Encontro Existencial Eu-Tu. O conceito de espontaneidade destaca o fazer o oportuno e o novo, no momento necessário, de forma integrada, não repetitiva, nem separada de sua origem e de seu contexto - sendo vista como um fator inato (E), uma forma de energia em constante transformação, que capacita o homem a enfrentar situações novas e a criar novas respostas adequadas e pessoais às antigas situações, evitando respostas estereotipadas, determinadas e conservadas. Mediante o desenvolvimento insuficiente do fator E, acumula-se a ansiedade, o que pode acarretar enfermidade psíquica e social, podendo se transformar em conserva cultural, em algo que permanece em modos rígidos de ser e agir sem autonomia pessoal e que pode sufocar a capacidade criadora do homem.

A ação psicodramática nos conduz à própria realidade, sendo mais intensa e profunda que as palavras, contribuindo para maior conscientização e mobilização afetiva do sujeito, criando um clima de compromisso com a mudança. Durante a dramatização, novas memórias/possibilidades são associadas à cena conflitiva inicial/real. A técnica inversão de papéis, por exemplo, permite a manifestação do inconsciente e do que está acumulado numa relação, interferindo no desempenho de um papel. Colocar-se no lugar ou papel de um outro significativo possibilita a emergência de percepções télicas (trocas emocionais), o desenvolvimento da integração do próprio eu e a socialização, mesmo quando as experiências trazidas são atuadas no campo do "não lógico". Além disso, para Nery (2003), o conhecimento da interferência da afetividade e das práticas de poder nas dinâmicas relacionais poderá favorecer o estabelecimento de vínculos revitalizados.

A cena é um elemento simbólico, na qual se representam vivências internas, emoções, sensações corporais e suas associações, se evidencia um conflito e se busca uma resolução, que, no caso da morte, pode ser a necessidade de oportunizar uma despedida, externar algo reprimido, desengasgar ou possibilitar a ressignificação dos papéis perdidos. Blatner e Blatner (1996) citam a importância de o diálogo com a pessoa perdida ser internalizado de forma positiva. Atuando a dor e reconhecendo-se a perda, reflete-se sobre a adaptação necessária ao papel desempenhado no laço rompido e resgata-se a espontaneidade. Moreno, Blomkvist e Rützel (2001) reforçam a possibilidade de verticalização da cena, pois no Psicodrama podemos tecer do passado para o presente para o futuro, visto que a realidade suplementar ultrapassa o tempo real. E Perazzo (1995), sobre o Psicodrama diante da morte, afirma a importância de trabalhar, na cena, diversas dimensões do conflito, procurar origens nodais latentes, percebendo o cacho de papéis (intercruzamentos transferenciais) correlacionados com a cena marcante do luto, mas depois voltar o foco para o presente, o que possibilitará maior compreensão, conscientização, insight e catarse de integração após uma separação progressiva dos focos no real e no imaginário/simbólico - um desatar de nós.

Ao se tentar encobrir a verdade e banir a morte do cenário da vida, incorpora-se um processo de medo, angústia, indignação e paralisação. Kübler-Ross (1998) aborda em seus estudos com pacientes terminais e familiares cinco estágios que descrevem como reagimos à morte e às perdas - grandes ou pequenas, permanentes ou temporárias: 1) Negação: o sujeito isola-se, nega a possibilidade de morte e ignora o diagnóstico; 2) Raiva: revolta e indignação; 3) Barganha: sentimentos de inveja, expectativas de reverter o quadro e promessas em troca da cura; 4) Depressão: sente remorso do que deixou de fazer, derrotado e impotente, mas em seguida vê outros caminhos; 5) Aceitação: fisicamente, pode se sentir mais debilitado, quer ficar só e dormir, mas emocionalmente está melhor, pois absorve e aceita a impermanência e a inexorabilidade, enquanto experiência de vida. Bowlby, citado por Perazzo (1995), fala de três estágios na elaboração do luto: a) desconsolo e angústia de separação; b) desestruturação do Ego; e c) reestruturação do Ego.

De acordo com Zerka Moreno, citado por Santos (2008), as pessoas precisam passar por um processo de luto quando sofrem uma perda significativa.

Veremos nos casos a seguir que nos processos terapêuticos buscamos a essência do que precisa ser trabalhado para aliviar uma tensão, o desempenho espontâneo criativo de papéis saudáveis, a reativação da energia desgastada com a separação da perda, a superação de pensamentos negativos ou depreciantes em demasiado e a diminuição das ilusões a respeito de si e do outro.

Relato de Caso 1 - Psicodrama Bipessoal: R., 22 anos, sexo feminino, último período de faculdade, iniciou acompanhamento psicológico com demanda de lidar com o luto e os sintomas que perduravam após uma perda ocorrida havia 6 meses, como insônia, falta de atenção e concentração, vontade de chorar antes de dormir, vazio, sentimento de culpa, medo de não conseguir apresentar a monografia para se formar, de não passar em prova de validação e de dirigir próximo ao local do acidente, além de insegurança e baixa autoconfiança. Após uma festa numa casa de praia, quatro amigos sofreram um grave acidente de carro, durante a madrugada, por imprudência de um motorista embriagado, e três deles faleceram imediatamente, e um deles era o melhor amigo de R. Uma testemunha do acidente a contatou para reconhecimento das vítimas.

Foram realizadas 20 sessões, durante seis meses. Na primeira sessão, foi realizada entrevista com a paciente e sua genitora, escuta acolhedora e intervenções breves para levantamento dos principais focos e das motivações para a busca do processo psicoterapêutico, além do histórico do caso e da rede de apoio sociofamiliar influente em seu cotidiano. R. relatou que teve de depor diversas vezes, participou de missas, manifestações nas ruas e nas redes sociais e deu apoio aos pais enlutados. Quando procurou psicoterapia, estava se sentindo desgastada, com necessidade de cuidar de si mesma, compreender o momento atual e elaborar o luto.

Identificamos outros pontos de interferência em seu estado emocional, diferentes formas de perdas, como distância da melhor amiga e dos primos que moravam no exterior, dúvida em relação ao namoro (falta de afinidades e de apoio relativo ao acidente), problema mental da avó materna e falecimento do avô paterno, além disso, havia estudado desde o colégio com os amigos que perdera. Na segunda sessão, foi realizado aquecimento inespecífico com iniciador corporal (exercício de respiração) e específico com internalização, na qual pedimos que relembrasse o dia do acidente, pensamentos e sentimentos presentes em cada momento e focasse na cena mais marcante e significativa para ela. E em cena aberta, ela trouxe o relato do momento da chegada ao local, quando viu os amigos cobertos no chão, o que fez seu coração disparar ainda mais: "O momento mais difícil para mim foi querer tirar o tapete de cima do rosto de meu melhor amigo para me despedir". Seguiu-se o diálogo diante desse amigo, através da realidade suplementar, buscando a realização simbólica e o alívio da tensão. R. diz:

Queria não ter te mandado a mensagem com a foto da gente nos divertindo juntos, para não ter te dado vontade de vir nos encontrar ainda de noite... Queria você do meu lado na minha formatura... Queria seus puxões de orelha para eu tomar decisões quanto ao namoro... Não estou conseguindo me concentrar direito, mas queria que você visse as coisas certas que tenho feito... Tenho tentado ser forte como você sempre me disse que eu era e eu negava.

Após inversão de papéis, o representando respondeu-lhe: "Obrigado pelo apoio à minha família na hora que eles mais precisaram! Sempre soube que você era mais forte do que imaginava! Eu vim para a festa porque quis. Levante, com alegria, aquele canudo!". A cena finalizou num abraço forte e desejado. No compartilhar final, pareceu aliviada e não mais tão culpada e angustiada como antes.

Na terceira sessão, chegou ansiosa, pois faltavam dois dias para a apresentação de seu trabalho de conclusão de curso. Trabalhamos num campo mais lúdico, com o sandplay psicodramático direcionando o tema para sua preparação. Os quatro personagens (miniaturas) escolhidos foram: a) Boneco Freud ou "Professor X" - professor da banca examinadora com o qual se sentia apreensiva e quem coincidentemente socorreu as vítimas do acidente e entregou o diploma ao seu melhor amigo; b) Vampiro ou "Plateia" - olhares e julgamentos das pessoas presentes; c) Boneco com otoscópio ou "Professor Y" - professor diante do qual se sentia insegura por ser explosivo, porém amigo, calmo, bom ouvinte; e d) Che Guevara ou "Professor Z" - seu orientador da monografia, que tem jeito autoritário, mas instigador.

Pedimos que tentasse criar uma história com os personagens escolhidos: "Era uma vez, um homem autoritário que conheceu uma menina indecisa e insegura, que lhe botava muita pressão para que tomasse decisões, o que era difícil, mas necessário para alcançar um objetivo". Buscamos identificar conflitos que inconscientemente permeavam aquela situação e, após diálogos com os personagens através de entrevista no papel e inversão de papéis, ela encerrou a cena de maneira positiva, conseguindo identificar o que tinha vontade de dizer para cada um deles, coisas internamente reprimidas que a faziam sentir-se paralisada. Título escolhido: "A 1ª decisão de uma menina". Na sessão seguinte, trouxe um feedback de como foi importante o treinamento da espontaneidade para enfrentar a situação conflitiva. Falou de sua ida à missa de seis meses de falecimento dos amigos. Trabalhamos retrospectiva do ano e desejos futuros, como "ter a certeza de que é preciso continuar tocando a vida".

Após um período de férias, retornou para quinta sessão citando dificuldades em lidar com grupos das redes sociais de que participava, cujas mensagens postadas pelos familiares dos falecidos buscavam "mantê-los vivos nas mentes das pessoas". Trouxe sua angústia sobre o relacionamento com uma das mães, que gostaria que ela lesse uma "carta psicografada" e visitasse um santuário que montara em casa, e também com um dos pais, que lhe fazia cobranças para continuar participando dos movimentos sociais. Trabalhamos com o role playing e a inversão de papéis, o que culminou num diálogo com "a cobrança", no qual percebeu expectativas dos outros e de si mesma que poderia ou não ser capaz de contemplar, inclusive em relação ao namoro, que havia terminado.

Ao final da terapia, ela trouxe para representar o pai a miniatura de Che Guevara, sem perceber que fora a mesma utilizada anteriormente como seu orientador de monografia. A partir dos questionamentos "Como cheguei na terapia, como foi o processo terapêutico e como me sinto hoje?", trouxe na caixa de areia novamente o Vampiro, desta vez representando "a perda da insegurança". Conjuntamente foi proposta a alta. Diz: "Sentia-me frágil, dependente e indecisa; percebi que era mais forte do que imaginava!". Percebe-se que a cena do luto foi se desdobrando em outras cenas presentes, como um "cacho de cenas", em que fragmentos da cena originária foram transferidos e interligados a outros contextos e papéis desempenhados. Segundo Bustos, citado por Formiga (2009), a compreensão do efeito cacho (de papéis) permite ao terapeuta uma análise mais profunda do funcionamento intrapsíquico e inter-relacional.

Relato de Caso 2 - Vivência sociodramática tematizada: A partir do projeto institucional na clínica Profint, chamado Vivências Abertas, foi elaborado planejamento da vivência intitulada "Ressignificação da morte na abordagem psicodramática - perdas e ganhos", com coordenação da autora deste artigo e mais duas psicólogas como egos auxiliares, aberta ao público e com pagamento de taxa simbólica. Participaram da vivência 26 pessoas, sendo 21 mulheres e 5 homens, com idades entre 25 e 55 anos. Além da lista de presença, todos assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido para pesquisa. O objetivo da vivência foi possibilitar uma intervenção sociopsicodramática vivencial a respeito da morte. Seguimos o método sociopsicodramático, trabalhando com as etapas: 1) Aquecimento (Inespecífico e Específico); 2) Dramatização - ação dramática propriamente dita, quando se cria uma situação no "como se"; 3) Compartilhamento de sentimentos, avaliação e formulação de esclarecimentos.

Inicialmente focamos em alongamentos e reconhecimento não verbal do local/eu/tu, com diferentes formas de andar, incorporando posturas do ciclo de vida (do embrião ao corpo mortificado sem vida e renascimento como outro ser vivo animal, vegetal ou elemento da natureza), um aquecimento corporal de projeção ao passado e ao futuro, desde a fecundação até o envelhecer, morrer e renascer, com solilóquios no final: "em que me transformei ao renascer?". Em seguida, propusemos internalização com todos os participantes deitados confortavelmente e de olhos fechados, resgate, na história de vida individual, das situações vivenciadas de perda/morte, experiências anteriores, considerando lugar, pessoa e época em que aconteceu. Uma cena mais marcante foi escolhida, com associação a um sentimento que a representasse.

Seguimos com a proposta da escolha de um tecido para representar em uma "forma/imagem/escultura" a situação escolhida e o sentimento ali presente; colocaram a imagem construída num local da sala, refletiram, deram título e fizeram um compartilhar breve com o grupo dizendo o nome de cada um, título e significado, e depois foi instruída a formação de subgrupos, utilizando-se a consigna da identificação após imagens com tecido -identificação com o título da imagem, história da perda, natureza do vínculo, natureza do tipo de morte, ou seja, com o sentimento presente na situação ou atual. Compartilharam quando, quem, onde, o que e como foi a perda escolhida. Seguiu-se a dramatização, com a representação simbólica através de cenas, bem como o compartilhamento posterior. Escolheram uma das cenas vividas ou uma cena recriada que representasse o subgrupo. No compartilhamento em roda, através de uma simbólica pérola refletiram sobre seu aprendizado e crescimento posterior às perdas, sobre qual a ressignificação pessoal da morte. Alguns temas das imagens com tecidos foram: "Apesar da morte, deixou alegria", "Amor desatado", "Hora da despedida", "Borboleta foi alegrar em outro lugar", "O toque da interrupção", "Impotência", "Prosseguir caminhos", "Deixa um vazio social","Ciclo encerrado com perfeição", "Saudades", "Cesto desentimentos" e "Ausências".

Emergiram os seguintes títulos das seis cenas apresentadas: "Entrelaçados" (histórias se convergindo em triângulo), "Inaceitável" (homem deitado morto), "O acaso" (dramatização de um poema com leitura dramatizada), "Ressignificação" (um círculo de pessoas nascendo como uma árvore), "O arremedo de uma coisa perdida" (leitura de um poema sobre a morte) e "Coração de leão" (pessoas em círculo unidas pelos tecidos que seguravam). Apareceram comentários sobre a morte, como sua finitude, naturalidade, inevitabilidade e importância de extrair um aprendizado da morte.

Entre as pérolas que remeteram ao aprendizado e à oportunidade de crescimento junto à perda, tivemos: reencontro, reflexão, desapego, aceitação, limite, desaceleração, fé, foco, viver a vida, sabedoria, aprendizagem, amadurecimento, estranhamento do corpo, força, renascimento e amor. Encerramos com leitura do pensamento de Lya Luft (2003), sobre a importância de viver o aqui-agora: "Porque vamos morrer, precisamos poder dizer hoje que amamos, fazer hoje o que desejamos tanto (...) tentar ser felizes hoje" (p. 145). Foi marcante o comentário de agradecimento por tratarmos, com leveza, de um tema tão tenso.

 

CONCLUSÃO

De acordo com Moreno, Blomkvist e Rützel (2001), a catarse de integração (seguida de alívio de emoções) mais profunda no Psicodrama vem da possibilidade de vivenciar uma realidade suplementar, da realização de cenas conflitivas, de interações, de momentos que não acontecem, que não podem acontecer e jamais terão probabilidade de acontecer na vida real, como representar simbolicamente, no setting terapêutico, um diálogo entre o protagonista e alguém que já morreu. Quando se inverte o papel entre estes, há uma mudança de percepção durante ou após o processo, há o aprendizado de uma nova perspectiva. Depois, o terapeuta pode ter ainda de guiar o sujeito para outras cenas, buscando o propósito do processo psicoterápico de tocar o centro de cura autônomo do protagonista.

Em nossa prática, identificamos a importância das cinco seguintes fases no processo de elaboração do luto e ressignificação da morte: 1) Acolher: escuta qualificada, em que a expansividade afetiva do terapeuta é importante, identificação dos focos conscientes e inconscientes; 2) Fortalecer: empoderar para o enfrentamento, rever sentimentos presentes e atitudes necessárias; 3) Revisitar: técnicas de ampliação da consciência apoiam o retorno à cena, com continência afetiva (inclusive colocar a mão no ombro ou nas costas, para que o paciente se sinta seguro em continuar); trazer o contexto no real e no "como se", que trará as possibilidades; 4) Realizar simbolicamente: a representação dos papéis no "como se" em diferentes focos do fato vivido, dizer e/ou fazer o que gostaria, desengasgar o que ficou engasgado, realizar o que ficou paralisado, tornar possível (no sentido de vivenciável) o que era impossível, em cena interna ou em cena aberta. A vivência da dramatização é algo presente e significativo, que traz satisfação e realização simbólica, pois possibilita a ressignificação do sentimento anterior (angústia, insegurança, abandono); 5) Ressignificar: compreensão ampliada, novo sentido, articulações com outros focos. Essa evolução foi percebida nas intervenções relatadas, nas quais se partiu de um estado patológico paralisante e culpabilizante para um estado saudável, mais espontâneo-criativo, integrador e produtivo.

Em nossa experiência de sociodrama tematizado no luto, observamos também a importância dos pontos acima relatados, ampliados para o contexto grupal, em suas especificidades. O uso da reflexão coletiva após a vivência da perda, via realidade suplementar através de cenas psicodramáticas compartilhadas, mostrou-se fundamental no processo de ressignificação e aceitação do processo de luto.

Este artigo visou apresentar a possível evolução e ressignificação da morte, a partir das intervenções propostas nos contextos individual e grupal, utilizando a filosofia moreniana e o método sociopsicodramático, focando na importância da realidade suplementar, da espontaneidade e da representação de papéis no processo de cura. As técnicas como cena aberta, sandplay psicodramático e inversão/troca de papéis permitiram que os sujeitos vivenciassem o luto em novas perspectivas, identificando nas perdas os possíveis ganhos, ou seja, acolhendo as lições de vida que a morte nos revela. Buscaglia (1982) compara esse equilíbrio entre vida e morte com a história de uma folha na passagem das estações.

 

AGRADECIMENTOS

Aos meus pais e familiares, pelo ensinamento do amor à vida; ao meu marido e aos meus filhos, pelo ensinamento do amor que supera o medo da própria morte; aos pacientes, pela confiança e pelo ensinamento da resiliência perante a morte; e à orientadora Cybele Ramalho, pelo ensinamento da valorização da sensibilidade vincular.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido: 13/02/2017
Aceito: 30/05/2017

 

 

Vanessa Ramalho Ferreira Strauch: Psicóloga pela Universidade Federal de Sergipe (UFS). Psicodramatista Didata Nível II pela Profint/SE. Rua Duque de Caxias, 55, São José, CEP 49015-340. Aracaju, SE. Tel.: (79) 99950-7188.

 

 

1 Texto apresentado no 20º Congresso Brasileiro de Psicodrama - 2016.
2 Dramatização em cena aberta: construção no "como se" de um cenário, do tempo e da interação de personagens abarcados pela cena (Ramalho, 2011), onde se trabalha com a realidade suplementar, que possibilita diálogos fora do tempo e do espaço reais. Role playing: jogo de papéis que explora simbolicamente suas possibilidades de representação (Almeida, Gonçalves & Wolff, 1988). Inversão de papel: o protagonista atua como se fosse outra pessoa, objeto, sentimento ou sensação (Perazzo, 1995), desenvolvendo-se a capacidade de ver a trama de outro ponto de vista. Sandplay psicodramático: é o jogo com técnicas psicodramáticas na caixa de areia, como descreve Ramalho (2007).

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