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Revista Brasileira de Psicodrama

versão impressa ISSN 0104-5393versão On-line ISSN 2318-0498

Rev. bras. psicodrama vol.25 no.1 São Paulo jun. 2017

http://dx.doi.org/10.15329/2318-0498.20170007 

ARTIGOS INÉDITOS

 

O Psicodrama e a pós-modernidade: espontaneidade como via de resistência aos poderes vigentes1

 

Psychodrama and post-modernity: spontaneity as a resistance to the actual powers

 

Psicodrama y posmodernidad: la espontaneidad como resistencia a los poderes vigentes

 

 

Érico Douglas Vieira

Universidade Federal de Goiás - Regional Jataí. E-mail: ericopsi@yahoo.com.br

 

 


RESUMO

O Psicodrama é um projeto fundado na Modernidade que busca combater as formas sociais aprisionadoras da liberdade humana. Este trabalho procura investigar as possibilidades de atualização do Psicodrama diante das transformações subjetivas e sociais ocorridas na Pós-Modernidade. Atualmente, o que se percebe são vivências crescentes de sentimentos de impotência, inadequação pessoal e autodesprezo. A ideia de espontaneidade como esforço de recuperar uma presença que potencializa um corpo percipiente em ação que apreende a realidade em seus múltiplos significados e busca transformar o contexto é uma importante contribuição psicodramática. O conceito de espontaneidade pode representar uma estratégia de resistência aos poderes vigentes que desvitalizam as capacidades criativas e deterioram a autoconfiança dos sujeitos pós-modernos.

Palavras-chave: psicodrama, pós-modernidade, espontaneidade, modernidade, empoderamento


ABSTRACT

Psychodrama is a project developed in Modernity that seeks to combat social forms that threaten human freedom. This study aims to investigate the possibilities of Psychodrama's performance before the subjective and social changes in Post-Modernity. Nowadays, it can be noticed some increasing experiences of impotence, personal inadequacy and self-deprecation. The idea of spontaneity as an effort to regain a presence that enhances a percipient body in action that apprehends the reality in its multiple meanings by seeking to transform the context is an important contribution to psychodrama. The concept of spontaneity may represent a strategy of resistance to the actual powers that desvitalize creative capabilities and destroy the self-confidence of the postmodern subjects.

Keywords: psychodrama, postmodernism, spontaneity, modernity, empowerment


RESUMEN

El Psicodrama es un proyecto fundado en la Modernidad para buscar combatir las formas sociales que afectan a la libertad humana. Este estudio tiene como objetivo investigar las posibilidades de actualización del Psicodrama en los cambios subjetivos y sociales de la Posmodernidad. En la actualidad, lo que se percibe cada vez más son sentimientos de impotencia, insuficiencia personal y auto desprecio. La idea de la espontaneidad en un esfuerzo por recuperar una presencia que realza un cuerpo perceptor de acción que aprehende la realidad en sus múltiples significados y que busca transformar el contexto es una importante contribución del psicodrama. El concepto de espontaneidad puede representar una estrategia de resistencia a los poderes vigentes que desvitalizan las capacidades creativas y erosionan la confianza de los sujetos posmodernos.

Palabras clave: psicodrama, postmodernidad, espontaneidad, modernidad, empoderamiento


 

 

INTRODUÇÃO

Este artigo tem como objetivo a investigação das possibilidades de contribuições teóricas e metodológicas do Psicodrama para a compreensão da Pós-Modernidade. O projeto socionômico de Moreno pode ser vislumbrado como uma psicossociologia que busca promover um movimento instituinte nas amarras do instituído, viabilizando processos criativos e novas formas de ser (Contro, 2011). Para subsidiar essa práxis, o Psicodrama precisa manter sua fundamentação baseada na interface entre o individual e o coletivo, entre o contexto dramático e o contexto social. Ao se debruçar na compreensão dos atravessamentos sociais contemporâneos que produzem sofrimento subjetivo e problematizar possibilidades de contribuições, o Psicodrama atualiza sua origem como dispositivo de crítica social.

Emerge uma pertinência cada vez mais crescente de que a Psicologia e o Psicodrama reflitam sobre as origens sociais do sofrimento. O Psicodrama pode avançar no sentido de realizar leituras da Pós-Modernidade através dos seus fundamentos teóricos? Quais as contribuições potenciais do Psicodrama para melhorar um mundo que produz impotência, incertezas e autodesprezo? O posicionamento do Psicodrama frente aos mal-estares pós-modernos é importante, pois, de acordo com Guattari e Rolnik (1993), os que trabalham com o discurso do outro ou vão atuar para fazer funcionar processos de criação e reapropriação da subjetividade ou vão ajudar a manter os poderes vigentes.

Como elementos norteadores deste artigo, buscou-se estudar as transformações dos processos de subjetivação da Pós-Modernidade, principalmente, a partir da obra de Zigmunt Bauman. As ideias de Moreno e de autores localizados na perspectiva psicossociológica do Psicodrama, que procuram compreender os fenômenos subjetivos e relacionais a partir de uma leitura contextual da cultura, foram privilegiadas. Em relação à teoria psicodramática, procurou-se analisar os aportes teóricos e metodológicos do Psicodrama com potencialidade para a leitura de aspectos culturais da Pós-Modernidade e investigar a possibilidade de ressignificação de conceitos ou propostas de novas conceituações que possam atualizar a visão do Psicodrama na Pós-Modernidade. No estudo, buscou-se perceber a maneira como o Psicodrama se insere na Modernidade como um projeto moderno de emancipação diante das limitações dos modelos científicos vigentes na Psicologia e diante de formas sociais aprisionadoras.

Primeiramente, será feito um breve itinerário sobre a transição entre a Modernidade e a Pós-Modernidade. Na seção seguinte, algumas contribuições do Psicodrama para a Pós-Modernidade foram delineadas. No decorrer da investigação, a busca de ressignificação do conceito de espontaneidade como via de resistência política aos poderes vigentes foi um aspecto que se insinuou gradativamente.

 

MODERNIDADE E PÓS-MODERNIDADE

A Pós-Modernidade - também chamada de Modernidade Tardia, Modernidade Avançada, Hipermodernidade e Modernidade Líquida - inicia-se na década de 1960, estendendo-se até os dias atuais, compreendendo transformações subjetivas, relacionais e culturais (Bauman, 2001; Hall, 2003). Entre as sociedades modernas e pós-modernas há rupturas e continuidades. A permanência mais importante é a valorização do indivíduo como unidade social significativa. O individualismo é uma ideologia criada na Modernidade que coloca o indivíduo no centro da vida social com o cultivo dos valores de liberdade e igualdade (Dumont, 2000).

O indivíduo continua sendo a medida de todas as coisas na Pós-Modernidade, mas com algumas diferenças importantes. Enquanto na Modernidade, havia uma concepção de sujeito como racional, pensante, cartesiano, na Pós-Modernidade temos o sujeito descentrado, deslizando por múltiplas identidades. Na Modernidade ainda havia uma tentativa de conciliar a liberdade individual com as exigências ou ideais coletivos (Bauman, 2001). Algo que desapareceu da agenda na atualidade e que tinha forte apelo na Modernidade era a busca da construção de uma ordem nova e melhor para substituir a velha ordem defeituosa (Bauman, 1998).

Na Modernidade havia padrões de conduta, códigos e regras que eram os sólidos modernos e que ofereciam pontos estáveis de orientação. Os indivíduos modernos tinham que utilizar sua liberdade para encontrar seu nicho adequado e seguir as normas apropriadas do lugar onde se inseriram. Os padrões e as rotinas modernos deram lugar à desregulamentação, à fragmentação da vida social e à sensação de incerteza. Agora, os pós-modernos usam sua liberdade para mover-se de maneira leve, procurando não se fixar muito fortemente para não perder as oportunidades que surgem em outros lugares.

O indivíduo é responsabilizado pelo próprio bem-estar, pela construção de seu projeto de vida, pela satisfação de suas necessidades, pelo planejamento de sua vida. A busca solitária para encontrar soluções individuais para problemas socialmente produzidos isola cada um em uma tarefa a ser enfrentada com recursos inadequados. Dessa forma, as ações solidárias e a segurança existencial calcada em alicerces coletivos vão ficando cada vez mais escassas (Bauman, 2007). Estar abandonado aos próprios recursos, evidentemente inadequados para lidar com problemas gerados socialmente, e em um mundo no qual a competição tomou o lugar da solidariedade gera uma crescente sensação de insegurança. Seria a desregulamentação e a privatização das tarefas que antes eram coletivas. Nos dizeres de Bauman (2001), "a maneira como se vive torna-se uma solução biográfica das contradições sistêmicas" (p. 48). Em decorrência desse quadro, a incerteza gera experiências de tormentos e ansiedades e um significativo medo do fracasso. A ideia de liberdade amplamente circulada camufla a crescente sensação de impotência (Bauman, 2001).

Uma das grandes contradições da Modernidade fluida é a promessa de liberdade e possibilidades de autoafirmação, por um lado, e a incapacidade de controlar as situações sociais que podem tornar a liberdade e a autoafirmação possíveis, por outro. O indivíduo pós-moderno é levado a considerar sobremaneira seu próprio desempenho, desviando a atenção do mundo social onde suas contradições são produzidas. Com isso, o fracasso ou o sucesso são sempre relacionados com o desempenho individual independentemente do contexto no qual se está inserido (Bauman, 2001).

A Pós-Modernidade promove uma transformação dos cidadãos em consumidores. E a ideia de consumo não está ligada apenas ao consumo de objetos ou mercadorias. Esta ideia está articulada com a questão do desempenho. Como estamos governados pela sobrevivência individual, sempre é necessário ser mais e mais competentes. Estilos e receitas de vida, exemplos aperfeiçoados são vendidos e comprados para que as pessoas sejam competentes. A ideia de que, se todos se esforçassem mais, teriam melhores desempenhos acarreta uma sensação de sempre estar atrasado ou nunca ser suficientemente bom (Bauman, 2001). Além do aperfeiçoamento dos desempenhos individuais, o consumo excessivo é alardeado como a possibilidade de um antídoto contra a insegurança e a incerteza. Em um mundo em que todos estão à deriva e vivendo isolados, o papel de consumidor é estimulado como uma via para a obtenção da segurança. Só que a promessa se esvazia porque a profusão de opções oferecidas faz com que o prazer ou a promessa ligada a cada mercadoria se desfaçam rapidamente (Bauman, 2001).

A macroeconomia está interligada com as condições individuais de vida. Com o enfraquecimento dos Estados-Nação e o crescente protagonismo dos grandes conglomerados financeiros internacionais desatrelados de quaisquer compromissos com a população, o lucro e a competição tornam-se as únicas questões de interesse. A desregulamentação universal resulta numa liberdade sem limites dada ao capital em detrimento de outras liberdades e valores. A questão econômica passa a ser o princípio norteador da sociedade, deixando para a margem questões como o bem-estar das pessoas. O encolhimento dos estados, o desemprego estrutural, a ideia de descompromisso com os consumidores falhos, a crescente concentração de renda, tudo isso gera um quadro perverso de exclusão social que deixa à deriva milhões de pessoas desesperançadas de uma participação digna no tecido social. Num mundo em que todos são instados a tentar resolver individualmente problemas gerados socialmente, a exclusão é associada à indolência ou inadequação pessoal (Bauman, 1998).

A ideia de progresso contida na Pós-Modernidade foi individualizada, significando agora a luta desesperada para permanecer na corrida, não ser deixado para trás (Bauman, 2007). Não há caminhos nem metas a ser alcançadas, o imperativo é não parar nunca, permanecer sempre em movimento. O engajamento político, a vontade de reforma social e o interesse pelo bem-estar coletivo estão em declínio, com a alta da busca de sensações prazerosas e da sobrevivência individual (Bauman, 2001).

A vida como espetáculo faz com que a vida mostrada na mídia se torne sempre muito mais atraente do que a vida vivida. A vida cotidiana das pessoas é desprezada ou vivida como irreal enquanto não se aproximar da vida glamourizada das imagens (Bauman, 2001). A sobrevivência individual, o sentimento de inadequação por não ser competente o suficiente, a vida sem glamour longe dos espetáculos, todos estes aspectos fazem com que a Pós-Modernidade produza o autodesprezo, em vez das promessas de liberdade e autoafirmação individuais.

 

PSICODRAMA E PÓS-MODERNIDADE: ESPONTANEIDADE COMO RESISTÊNCIA

Na discussão desta transição da Modernidade para a Pós-Modernidade, o Psicodrama pode ser entendido como um produto e um projeto da Modernidade. O Psicodrama pode ser inserido no que Zigmunt Bauman denominou de programa emancipatório da Modernidade (Bauman, 2007). A utopia moderna buscava libertar os indivíduos da rotina opressora e das tendências sociais homogeneizantes, totalitárias e uniformizantes. As forças modernas de emancipação defendiam a liberdade de escolha, a autonomia e a autoafirmação, ou seja, o direito de ser diferente.

Através da teoria da espontaneidade/criatividade, Moreno formulou sua visão de mundo e de ser humano. O criador do Psicodrama buscava construir um modelo teórico/prático que promovesse a ruptura com padrões de comportamento estereotipados e a transformação das formas sociais aprisionadoras. Moreno propôs a Revolução Criadora para romper com a civilização da conserva. Portanto, pode-se entender que o Psicodrama possui, já em sua origem, uma busca contundente de construção de uma crítica à cultura. De acordo com Moreno, a civilização passou a valorizar sobremaneira os produtos finais dos processos criativos - as conservas culturais -, o que ocasionou a atrofia das forças criativas do ser humano.

O Psicodrama tinha a proposta de lançar o ser humano novamente no momento, com suas incertezas e desamparos, apostando na emergência de um ser humano mais presente nas situações, ativo, criativo e flexível (Moreno, 1975). O apelo moreniano era de que a sociedade mudasse seu compromisso fundamentado na valorização das conservas culturais na direção do cultivo da espontaneidade/criatividade. Esse era o programa emancipatório moreniano desejoso de combater a rotina e a estabilidade modernas.

E na Pós-Modernidade, como se situa o Psicodrama? De que maneira o Psicodrama, como um produto criado na Modernidade, pode trazer contribuições aos impasses e às contradições da Pós-Modernidade? O Psicodrama pode continuar com a potência de ser um sistema que critica a ordem vigente? As abordagens ou escolas de pensamento são sistemas dinâmicos abertos, sempre em movimento e estão em transformação diante das necessidades atuais dos membros que constituem as comunidades de profissionais que adotam as teorias e os métodos. Além disso, buscam se atualizar para acompanhar as necessidades da clientela (Vieira, 2015). Nesse sentido, cabe a reflexão dos aspectos teóricos/práticos do Psicodrama que permanecem potentes para criticar/lidar com os impasses pós-modernos. Ou pode-se questionar se seriam necessárias novas criações de aspectos teóricos que tenham sintonia com a proposta psicodramática e que possam ser úteis para compreender a Pós-Modernidade.

Pode-se vislumbrar o Psicodrama não como uma tecnologia que visa adaptar os sujeitos à sociedade, mas como uma psicossociologia que possui elementos analíticos que abordam a interseção entre indivíduo e coletividade (Contro, 2011). Por exemplo, o conceito de protagonista como representante grupal que se situa entre os dramas privado e coletivo pode ajudar a romper com a visão solitária do sujeito pós-moderno, fechado em si mesmo. Nesse sentido, a concepção contextual psicodramática fornece uma perspectiva que subverte o ideário neoliberal presente na atualidade: os sintomas não se originam "dentro" do indivíduo, mas são respostas às dinâmicas familiares, grupais e sociais.

O Psicodrama é visto pela cultura como algo ligado à falta de reflexão, muito fundamentado na emoção e na ação. Contudo, Blatner (1997) argumenta que o processo essencial do Psicodrama não está na ação propriamente dita, mas nos processos que facilitam a reflexão e a percepção das situações. Por exemplo, nas dramatizações o sujeito pode parar, voltar a cena, participar de cenas alternativas e é estimulado a responder as questões com alto grau de consciência. Como é um sistema não diretivo, espera-se que na dramatização sujeito e grupo alcancem uma percepção afetiva e intelectual da situação que se desvela perante todos, e não através da intromissão de alguma interpretação (Almeida, 2012). Um Psicodrama menos orientado para a catarse - necessário na época da quebra de padrões rígidos - e mais orientado para a reflexão pode se colocar como uma força transgressora numa sociedade que abandonou a ideia de questionar a si mesma, esvaziando as capacidades reflexivas e criativas do ser humano.

Outra contribuição psicodramática está presente nas reflexões de Moreno quanto ao tipo de universo necessário para a existência da espontaneidade (Moreno, 1975). A ideia de mundo em permanente mudança - um universo aberto e dinâmico - é uma concepção bastante atual para entender as constantes mudanças que o cenário pós-moderno apresenta. No entanto, ao fomentar fortemente o papel de consumidor, está presente na Pós-Modernidade um apelo à mudança compulsória (Merengué, 2009).

Para que as pessoas consumam muito e rapidamente, estimula-se uma sensação perene de insatisfação e um sentimento de inferioridade constante. O imaginário e a incompletude do ser humano são alvos das forças atuantes que oferecem, como saídas, o consumo de produtos, atitudes e estilos de vida. As soluções não funcionam como esperado e a insatisfação permanece ou aumenta. Na Pós-Modernidade, a criatividade está a serviço da ordem consumística. Ser espontâneo hoje talvez seja diferente do que era na época da origem do Psicodrama. Moreno buscava combater a rotina, a monotonia, as forças sociais aprisionadoras, convocando o ser humano a sair da acomodação e da estereotipia. A ressignificação da ideia de espontaneidade pode apontar que as novas respostas podem advir de uma atitude crítica e reflexiva diante das imposições da indústria do desnecessário.

O Psicodrama possui como fundamento filosófico a ideia de que o ser humano não pode ser reduzido à condição de peça de engrenagem, sem a participação ativa e atuante nas situações nas quais está imerso (Moreno, 1975). A essência do humano se manifesta na espontaneidade criadora que fornece impulso para a invenção de novos modos de estar no mundo que possam romper com os poderes de sedução da ordem consumística. Para Almeida (2012), com a ideia de espontaneidade, Moreno pretendia o resgate da expressão mais original de cada sujeito.

A Revolução Criadora proposta por Moreno pode ser uma importante contribuição para os tempos líquido-modernos. Talvez seja necessário acentuar uma dimensão política na Revolução Criadora moreniana. Apesar da liberdade apregoada, ainda se fazem presentes forças que acarretam a padronização e a homogeneização dos comportamentos, assumindo outras formas. Atualmente, essas forças possuem mais uma tonalidade sedutora do que repressiva como na Modernidade, mas, nem por isso, deixam de produzir condutas estereotipadas. A contemporaneidade também promove a alienação da espontaneidade ao colocar todos os indivíduos como peças de engrenagem da sociedade do consumo e do desempenho. Mesmo com uma pretensa liberdade como um valor supremo, o que se vê são indivíduos isolados com dificuldade de exercerem um papel ativo, impedidos de se reconhecerem como agentes da própria vida.

O Psicodrama tem a proposta de recuperar as forças vitais buscando resgatar o potencial afetivo das relações e a presença ativa de cada um, sem o qual não é possível a modificação dos aspectos insatisfatórios da sociedade. Através do Psicodrama, podemos buscar novos valores, refletir sobre a existência, viver algo novo, testar novas formas de estar no mundo. Enfim, o caráter transformador do Psicodrama pode contribuir para a emergência do novo a serviço da criatividade, e não da novidade atrelada ao mercado consumidor (Merengué, 2010).

A Pós-Modernidade, ao fomentar fortemente o papel de consumidor, esvazia os potenciais políticos e criativos dos sujeitos, fazendo desmoronar os alicerces coletivos nos quais a existência faz sua travessia (Bauman, 2007). A aposta no ser humano como agente criativo é um apelo moreniano que permanece atual. A partir da revisão do conceito de espontaneidade, fundamentado pela análise de Naffah Neto (1997), é possível vislumbrar possibilidades potentes de ação num mundo cada vez mais fluido. Naffah Neto (1997) argumenta sobre a necessidade de se rever alguns aspectos mecanicistas contidos nos escritos de Moreno. Por exemplo, a ideia de adequação presente no conceito moreniano de espontaneidade é algo problemático. No conceito clássico, espontaneidade é a capacidade de dar novas respostas para situações antigas ou uma resposta adequada para situações novas (Moreno, 1975).

O termo adequado parece não corresponder ao desejo moreniano de ruptura com padrões repetitivos de conduta e, ainda, sugere uma relação de exterioridade entre sujeito e mundo, como se houvesse um mundo externo no qual o sujeito precisa se adequar. Moreno (1975) também define espontaneidade como "uma aptidão plástica de adaptação, mobilidade e flexibilidade do eu, indispensável a um organismo em rápido crescimento num meio em rápida mudança (p. 144)". Apesar de nesta conceituação constar uma ideia de flexibilidade e mudança constante de sujeito e mundo, a noção de adaptação também se assemelha à noção problemática de adequação, na qual se subentende um mundo já dado onde os sujeitos procuram se inserir através dos estados espontâneos.

Nesse sentido, Naffah Neto (1997) propõe uma revisão do conceito de espontaneidade pautando-se na ideia de continuidade, interioridade e solidariedade entre sujeito e mundo. A falta de espontaneidade seria a perda da unidade entre sujeito e mundo. O sujeito como agente criativo busca recuperar a relação de compromisso entre sujeito e mundo, como um esforço de se colocar como presença ativa, integrante e atuante nas situações. Além de romper com a ideia de adequação ou adaptação, Naffah Neto (1997) coloca a percepção, o corpo e a temporalidade como aspectos importantes no entendimento da espontaneidade. Através dos estados espontâneos, o sujeito pode recuperar sua história ou seu passado, buscando transformá-lo em função da situação do momento presente e do futuro como devir imediato que se apresenta. A percepção é a abertura do corpo, do aspecto sensório-motor, que alarga os horizontes e busca apreender a realidade em sua multiplicidade. A espontaneidade, portanto, é a presença transformadora de um corpo consciente, que percebe a realidade em ação e numa relação de unidade com o mundo.

A Pós-Modernidade foca o olhar dos sujeitos no próprio desempenho e, ao mesmo tempo, desvia a atenção para os problemas coletivamente produzidos. A busca de soluções individuais muitas vezes não é bem-sucedida, produzindo sensações de fracasso, impotência e inadequação (Bauman, 1998). Nos tempos líquido-modernos, o enfoque do sujeito como agente criativo articulado com uma perspectiva política pode colocar o Psicodrama como um dispositivo de resistência aos modos de subjetivação contemporânea. Entende-se como dimensão política a possibilidade de resistência, de busca da reapropriação da subjetividade capturada pelos modos de produção subjetiva do capitalismo (Guattari & Rolnik, 1993). O Psicodrama pode contribuir para a ruptura da sensação de passividade engendrada pela impotência e pela dificuldade em lidar com a complexidade crescente do mundo contemporâneo.

A espontaneidade seria o veículo para a recriação de si mesmo e do mundo através da diferenciação, de busca de outras formas de ser, de outras sensibilidades e de outras percepções. Os movimentos sociais, as minorias, os desvios criativos só podem ser possibilitados por recusas criativas em se submeter às produções subjetivas dominantes. O processo de singularização proposto por Guattari e Rolnik (1993), que possibilita uma relação de expressão e criação através da reapropriação dos processos de subjetivação, pode ser articulado com a espontaneidade do Psicodrama. No cenário de incapazes e consumidores passivos, o resgate de um corpo consciente pela percepção que se abre para recriar a si mesmo e transformar o mundo circundante representa uma resistência psicodramática aos modos de subjetivação pós-modernos. Através da presença atuante e integrante das situações, a criação de novas formas de expressão e de novos mundos sociais fomenta a emergência dos potenciais criativos insurgentes em relação aos poderes vigentes que desvitalizam os sujeitos.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Pós-Modernidade, assim como a Modernidade, possui valores e promessas de melhoria de vida que não se concretizam. A liberdade e a autoafirmação dos sujeitos acabam se tornando um horizonte viável somente para os que possuem mais recursos simbólicos e materiais. Ao contrário, o que se percebe são sujeitos cada vez mais minados em sua autoconfiança, impotentes e com sentimentos de autodesprezo.

O Psicodrama, fundado como um projeto que era ao mesmo tempo um produto da Modernidade, mas também com elementos de críticas à sociedade da época, ainda permanece com sua potência de resistência. O agente criativo é uma possibilidade de contribuição psicodramática, pois enseja uma visão de sujeito em íntima conexão com o mundo, com uma forte presença, esforçando-se para recuperar a vivacidade de um corpo percipiente em ação para a transformação de si e do contexto.

Os tempos pós-modernos necessitam de psicologias, sistemas e teorias que busquem críticas aos poderes vigentes que cada vez mais tomam o critério financeiro como o mais importante balizador dos rumos da sociedade, dando lugar a uma desumanização crescente. Nos dizeres de Bauman (2001) "não podemos descartar os efeitos daqueles que sofrem tornarem-se conscientes da origem social da infelicidade" (p. 263). Para o sociólogo, diagnóstico e terapia se confundem, pois, para que a condição humana melhore, precisamos questionar a sociedade e perfurar os muros para evidenciar o que está presente, mas ainda não visível.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido: 06/12/2016
Aceito: 20/03/2017

 

 

Érico Douglas Vieira: Psicólogo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Especialista em Psicodrama pelo Instituto Mineiro de Psicodrama JL Moreno (IMPSI). Mestre em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas) e Doutor em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás). Professor Adjunto do curso de Psicologia da Universidade Federal de Goiás - Regional Jataí. Rua Dona Esmeralda, 606, Vila Fátima, CEP 75803-095. Jataí, GO. Tel.: (64) 98111-7051.

 

 

1 Texto apresentado no 20º Congresso Brasileiro de Psicodrama - 2016.

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