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Revista Brasileira de Psicodrama

versión impresa ISSN 0104-5393versión On-line ISSN 2318-0498

Rev. bras. psicodrama vol.25 no.1 São Paulo jun. 2017

http://dx.doi.org/10.15329/2318-0498.20170008 

ARTIGOS INÉDITOS

 

Solidão e isolamento sociométrico: antítese ou sinonímia - estudos preliminares a partir de grupos de drogadictos1

 

Solitude and sociometric isolation: antithesis or synonymy - preliminary studies based on drug addiction groups

 

Soledad y aislamiento sociométrico: antítesis y sinonimia - estudios preliminares a partir de grupos de drogadictos

 

 

Paulo Cesar de Oliveira

Sociedade de Psicodrama de São Paulo (SOPSP). E-mail: pcesaroliveira2@gmail.com

 

 


RESUMO

Este estudo investiga as semelhanças entre o sentimento solidão e o conceito psicodramático isolamento sociométrico, bem como as influências que eles exercem sobre as escolhas humanas, no caso, a drogadição. Apresenta alguns questionamentos com o intuito de entender quais lógicas afetivas de condutas estão acionadas, quais personagens conservados atuam e como esses conceitos, tão ricos e importantes do Psicodrama contemporâneo, vão se cristalizando e se transferindo para outros contextos pelo cacho de papéis e de que maneira se articulam com o aqui-agora que se instala nas relações que se estabelecem entre as pessoas dos grupos atendidos. Investiga ainda as possibilidades de superar certas dores a partir da superação desse mesmo estado de isolamento.

Palavras-chave: sociometria, codependência, isolamento social, solidão, droga (abuso)


ABSTRACT

This work investigates the similarities between the feeling of loneliness and the psychodrama concept of sociometric isolation, as well as their influence on human choices, in this case, drug addiction. Questions arise in order to understand which affective logic of conducts are activated, which conserved characters are acting, and how these concepts, so rich and important of the contemporary Psychodrama, are crystallizing and transferring to other contexts by clusters of roles and in which way these roles work together with the here and now installed in the relations established among people who belongs to the groups served. It still investigates the possibilities of controlling certain pain based on overcoming of that state of isolation.

Keywords: sociometry, codependency, social isolation, loneliness, drug abuse


RESUMEN

Este estudio investiga las similitudes entre el sentimiento de soledad y el concepto psicodramático de aislamiento sociométrico, así como las influencias que ejercen sobre las decisiones humanas, en el caso, la drogadicción. Se presenta algunos cuestionamientos a fin de entender qué lógicas afectivas de conductas están accionadas, qué personajes conservados están actuando, y cómo esos conceptos, tan ricos e importantes del Psicodrama contemporáneo, se cristalizan y se trasladan a otros contextos por el racimo de papeles y de qué manera se articulan con el aquí y ahora instalado en las relaciones establecidas entre las personas de los grupos atendidos. También investiga las posibilidades de superar ciertos dolores a partir de la superación de ese mismo estado de aislamiento.

Palabras clave: sociometría, codependencia, aislamiento social, soledad, abuso de drogas


 

 

Aquecimento (ou enquanto o outro não vem)

Este artigo quer compreender como se instala o uso compulsivo de drogas ilícitas, estudando grupos terapêuticos - com intervenção de metodologia psicodramática -, compreendendo-o não como uma doença individual, mas um adoecimento dado em determinado grupo e que atinge esse mesmo grupo. Assim, observa o surgimento de um personagem drogado que nega a necessidade de vínculos, ou que os destrói quase sempre como alternativa possível para um estado isolado que não pode suportar. Para ele, as escolhas positivas direcionadas não serão as que talvez ele preferisse, pelo menos não para aqueles projetos dramáticos a que é solicitada sua ação. Dele não se quer ouvir as palavras, seus sentimentos. O escravo (porque adicto, sem direito a voz) é escravizado por uma dívida impagável: estar só.

 

Aquecimento específico (ou investigando o protagonista) e dramatização (ou a hora e a vez do personagem)

É simplificação razoável - justificada pelo interesse em esclarecer cada vez mais a teoria sociométrica que serve como norteadora deste artigo - dizer que a sociometria estuda e revela em seu estudo atrações, repulsas e indiferenças existentes entre os indivíduos de determinado grupo. Fica uma pergunta: o ser isolado surge com as repulsas e indiferenças a que estão expostos os usuários nas suas infâncias e adolescências? É um aprendizado afetivo que se deu? Estar isolado obriga-o a se manter solitário, usando de todos os artifícios para assim sobreviver?

Knobel (1999), em seu magistral artigo "Estratégias de direção grupal", fala que Moreno quis estudar experimentalmente o desenvolvimento e o funcionamento dos grupos. Fez isso estudando grupos de bebês, de crianças, de adolescentes e de jovens adultos. E como resultado desses estudos, Moreno (1992) afirmou:

As três direções ou tendências de estruturas que descrevemos para os grupos de bebês: isolamento orgânico, diferenciação horizontal e vertical são características fundamentais no desenvolvimento dos grupos. Elas aparecem sempre, qualquer que seja o tamanho ou a complexidade do grupo. (p. 238)

O que aquela autora parece querer nos ensinar é que "a sociometria parte, pois, da observação dos fatos e procura entendê-los de forma simples e direta. Seus métodos se aproximam tanto quanto possível do processo natural de o ser humano crescer e conhecer a si e aos outros" (Knobel, 1999, p. 339).

Ao estudar grupos de drogadictos, ao viver intensamente com eles nos variados contextos psicodramáticos - a saber, contextos social, grupal e dramático -, um diretor psicodramatista disponível a fazer parte do grupo em um papel diferente passa a perceber duas situações que se repetem e chamam a atenção. Em primeiro lugar, esse isolamento orgânico, em que se está sozinho apesar de estar em grupo, que traz para o próprio desenvolvimento do grupo uma dificuldade de se constituir como tal. Uma questão que se repetirá nos vários grupos acompanhados, que tem data para iniciar e terminar. É um aprendizado que parece não ter sido experimentado antes, sair dessa posição isolada para encontrar-se mais legitimamente com o outro. Nesse primeiro momento, de construção do grupo, esse isolamento teima em resistir, quase como um impedimento.

Este texto quer demonstrar que será parte da construção do personagem drogado o desenvolvimento de um personagem anterior "isolado", que surge a partir das primeiras relações, na placenta social. Ainda: que a força de uma sociometria perceptual pode ser tão determinante a ponto de colocar o ser em uma situação de onde só se consegue sair com o auxílio do outro. E essa força é suficiente para tirar do ser a capacidade espontânea e criativa, aprisionando-o em um modo de existir que ou afasta de si a todos, ou o faz sentir-se isolado por todos. Estar isolado será como estar só. Dito de outra forma, esse estado em que se vê seguidamente faz com que desenvolva em si uma necessidade de se fazer só, mesmo que com alto custo emocional, ou que obriga, como um mandato, que o isolamento desenvolva um sentimento de solidão.

Dessas questões surge a segunda situação que se repete. Uma vez superada essa fase, quem for lidar com grupos terapêuticos de usuários compulsivos vai conviver com cenas que apontam para esse estado isolado em muitas sessões. Retornam sempre alguns personagens mais frequentes: a criança abandonada, o adolescente rejeitado, o adulto que se isola ou os contrapapéis que esses personagens desenvolvem na relação, por exemplo, o pai que abandona, o amigo que rejeita ou aquele que obriga que o adulto se mantenha isolado. São esses os personagens que não aprenderam a conviver com a dor da solidão, ou que os obrigaram a aprender a viver assim. E também são esses que não conseguem viver em grupo, encontrar-se com o outro, porque não conseguiram romper com o estado de isolamento.

A sociometria é o guia deste artigo. Entender seus conceitos se faz obrigatório. Já na introdução de seu livro O teste sociométrico: Fundamentos, técnica e aplicações, Bustos (1979) fala do "homem e seu ajustamento, esse eterno problema... . Não o isolamos para estudá-lo, mas o compreendemos nos seus vínculos e através deles penetramos em seu mundo interno" (p. 11).

O material principal com que se preocupa a sociometria é o vínculo entre as pessoas. Esse vínculo é sempre objeto das escolhas. Não se escolhe alguém para mais nada que não seja vincular-se ao outro, para os objetivos mais variados. No entanto, nem sempre se deixam claras as escolhas que se faz. Sobretudo porque existem três possibilidades de escolha: positiva, negativa ou neutra. Não obstante, nem sempre as escolhas são congruentes, ou seja, alguém que me escolhe positivamente pode ser para mim uma escolha negativa ou neutra. Além disso, as escolhas nem sempre são reveladas, o que pode gerar distorções entre a escolha real e a percebida na relação. Portanto, a sociometria lança um olhar o mais completo - diga-se, total - possível sobre a realidade relacional, vincular. "É contemplando essa totalidade que a sociometria se instala no socium e não no psicos para formular suas teorias, e a partir dele sistematiza seus conceitos, chave de Tele e transferência" (Bustos, 1979, p. 17).

Será preciso ressaltar o caráter transferencial da drogadição. Trata-se de um fenômeno que invade a vida de modo geral, em todas as relações, em todas as escolhas sociométricas feitas, anteriores ou não ao uso compulsivo de drogas. Falamos em cacho de papéis que formam uma possibilidade de existência. A pessoa é a partir dos papéis que desempenha, e não o contrário. E são muitos os papéis que podem ser desenvolvidos. Desde o inicial, o de filho (com seus contrapapéis aprendidos da relação, o de pai e o de mãe), até tantos outros que não caberiam neste texto. A drogadição, para que assim possa ser considerada, invade todos os papéis, destruindo-os um a um, exatamente por dificultar sobremaneira a construção de relacionamentos positivos. É uma transferência total - ou para todos os papéis - que vai lentamente esgarçando e corroendo o átomo social dessa pessoa. O que se quer mostrar é que a transferência não se dá entre os sujeitos, mas entre os papéis desempenhados por eles. E os papéis vão dando lugar ao único que é disponibilizado por aquele em que o sujeito vai se aprisionando: drogadicto. Vale a pena repetir uma pergunta de Perazzo (2010): afinal, o que se transfere? Não é pouco seguir o mesmo autor em sua resposta e concluir que o que existe é um conjunto transferencial.

A transferência passa a ser vista como um conjunto constituído pelo personagem conservado, que se transfere para os mais diversos papéis pelo efeito cacho, pelas lógicas afetivas de conduta que fornecem sua pauta de atuação, pelo poder simbólico do personagem atuado a partir de um contrapapel decorrente de um vínculo primário, fornecendo como que um mandato, e pelos equivalentes transferenciais, ou seja, os sinais indiretos da transferência visíveis na complementaridade tanto dos mais variados papéis sociais, na vida, de um modo geral, quanto na cena dramática por meio dos inúmeros papéis psicodramáticos. (Perazzo, 2010, p. 102)

Essa discussão traz para a cena os vários papéis com que o homem moreniano existe e coexiste. O eu não é o que desenvolve os papéis, mas o contrário. São esses papéis que, por seus complementares, geram a possibilidade de existência para um eu.

Surge um problema especial na drogadição.

Como escreveu o psicanalista François Périer sobre o alcoolismo - mas o problema é o mesmo - com o conhecido e o desconhecido do usuário. Neste caso, o "conhecido" é essa espécie de drama onde ele projeta seu desejo - de imortalizar-se, ou talvez morrer, abolir a espécie humana junto com ele - ninguém o ouve porque ninguém pode escutá-lo inteiramente. O discurso, então, volta-se para dentro do toxicômano: drogar-se é falar consigo mesmo, solitariamente, para si mesmo. (Périer, citado por Olievenstein, 1977, p. 232)

Os papéis que raleiam, que vão deixando de existir pouco a pouco, é o que impossibilita o ser de se tornar alguém em uma relação. Só um papel de si mesmo jogado consigo mesmo. Um indivíduo que se solta das redes sociométricas. Ou as tramas da rede que não o sustentam satisfatoriamente. A sociodinâmica das relações, o entre, aquilo que não está dito, mas escapa através do que não se fala. Uma solidão que se apreende e se aprende das relações ensinadas através do isolamento sociométrico. Seja como for, é preciso entender como esses papéis são atuados na relação que é, via de regra, atravessada por um outro, um ente diferente, a droga, que provavelmente influenciará de modo diferente esse entre. Essa percepção nos mostra um novo fenômeno que este artigo quis estudar.

"É do homem e de suas circunstâncias o lugar de onde surge a solidão, esse sentimento inerente à condição humana", conforme ensinou Aníbal Mezher (2014, informação verbal). São muitas e importantes, talvez definitivas, as relações entre o sentimento de abandono, a dor da perda e o sentimento de solidão, entre elas a responsabilidade pelo surgimento de uma patologia desagregadora como a drogadição, cujo maior poder se mostra ao destruir vínculos sociais corroendo o átomo social. É bastante provável ter isso uma ligação intrínseca e extrínseca com determinado isolamento sociométrico experimentado no átomo social, pouco importando se falamos em isolamento sociométrico real e isolamento sociométrico imaginado.

Fábio está só em cena. Aqueles que desempenharam papéis como egos auxiliares são pessoas de seu grupo e voltaram para o contexto grupal depois que Fábio protagonizou uma cena em que fora até a biqueira buscar sua última dose de crack depois de dois dias e duas noites fumando sem parar. Na realidade que se cria naquele momento, no contexto dramático, são quase seis horas da manhã. Encontra a biqueira fechada, enquanto os primeiros trabalhadores começam a dar movimento à cidade que dormia até então. A sessão está em seu final. Peço que escolha alguém para representar esses trabalhadores e ele se nega. Peço um solilóquio: "Eu estou sozinho. Essas pessoas passam por mim como se eu não existisse. Eu não consigo me ligar a ninguém. Nunca consegui. Não sei se sou eu que não existo, ou eu que não quero existir para ninguém". Usando da técnica de duplos, peço ao grupo que falem por Fábio: "Eu me sinto abandonado", "É muito triste ninguém me perceber", "Parece que nem usando drogas eles me percebem". Pergunto como ele recebe esses duplos. Diz que é triste saber que sempre foi assim, que nunca teve ninguém que cuidasse dele, teve que aprender a viver só desde a infância, não conheceu seu pai, não teve ninguém para ensiná-lo a discriminar entre o que é o certo e o que é errado.

Vinícius é um jovem de 25 anos e que vive em situação de rua desde os oito. Traz para o palco psicodramático a cena em que sua mãe o expulsa de casa para que ele não continue assistindo-a a fazer uso de crack. Para si mesmo fala que a escolha de sua mãe não o inclui. Sente-se à margem de seu grupo familiar, uma vez que seus pais e sua irmã mais velha são viciados em crack. Isolamento que carregará quase como um destino insuperável em sua vida.

Estar só é estar isolado sociometricamente? Isolamento é solidão? Isolamento constrói solidão? Solidão constrói isolamento?

Ao aproximar o grupo todo dessas e de outras histórias que são revividas no palco psicodramático, pode-se atentar para o fato de que esses dramas privados revelam mitos tão intrinsecamente vividos por esses pacientes, e se pode dizer que dramas coletivos também são transformados. Ocorre que os pacientes quase sempre estão sós, desde o começo da maioria das sessões. Diria que esse é o personagem cristalizado - o isolado, o solitário - que chega para a sessão e desenvolve uma forma de atuar no grupo repetindo uma forma de atuação na qual se encontra conservado. A espontaneidade/criatividade, binômio essencial para o encontro, faz-se tão invisível que chega a fazer pensar em crianças bem novas, bebês mesmo, de tão centrados em si. Por isso mesmo, não se pode ter pressa em iniciar um processo psicoterapêutico propriamente dito com grupos novos. Alguns grupos demoram mais de cinco sessões para finalmente perceber aquilo a que se denomina de clima protagônico. Esse ser solitário, que raramente experimentou conviver de forma positiva com os laços que o uniram aos grupos que conheceu, impede que esse grupo atual, terapêutico, possa existir como tal. Essa é uma afirmação importante para a prática clínica que este artigo quer apresentar.

Júlio tem 24 anos. Tem uma irmã de 20 anos. Sempre morou com os pais, apesar de ter vivido um relacionamento com uma jovem com quem tem um filho recém-nascido, de quem não tem e não quer ter notícia. Sua família pertence à classe média, o que contribuiu para que tivesse sempre oportunidades de crescimento pessoal. Usa crack desde os 18 anos, com uma frequência diária no último ano, pelo menos. Aos 16 anos fez uso de maconha pela primeira vez e depois com alguma frequência, e de cocaína, por três vezes semanais, no mínimo. Solicitado seu átomo social em sessão, apresenta somente a mãe. Não traz nem o pai nem a irmã. Quando investigadas as razões para isso, revela que o pai e ele não se falam há mais de três meses, embora ele diga que o pai nunca o amou, sendo a irmã o motivo desse desamor. Diz que esse sentimento existe desde os seus 15 anos. Na cena que traz quando tem essa idade, seu pai, sua mãe e sua irmã estão em casa, na sala, enquanto ele está só em seu quarto, fumando maconha. Em solilóquio, fala que não tem motivo nenhum para estar naquela casa, porque só a irmã parece importar aos pais. Fala que sente ódio daqueles três e que não quer chegar perto deles porque não se interessam por ele. Ao ser indagado desde quando se sente assim, fala que não sabe exatamente, mas com certeza desde que a irmã nasceu. Traz para o palco uma cena em que tem 4 anos . Está só, na sala da casa de sua avó materna. O pai pediu que ficasse ali, enquanto iria até o hospital visitar a mãe e a criança, que nascera com problemas respiratórios. Começa a chorar quando o pai sai de cena. Sente medo porque o pai vai e demora muito para voltar. Sua avó é má e bate sempre nele. Em solilóquio, grita: "Se ele gostasse de mim não me deixaria sozinho aqui". Uma almofada é dada ao paciente, e se diz a ele que faça com o pai o que quiser. Depois de relutar, começa a gritar com o pai, dizendo que se sente muito só, amedrontado pela relação com a avó. O grupo está imóvel, cada um revisitando seus próprios dramas. O diretor traz o filho do paciente, representado por um ego auxiliar, para que ele faça o que quiser. Começa a chorar e fala, repetidas vezes, com o filho no colo, eu te amo, enquanto começa a sorrir. O diretor pede que feche seus olhos e continue abraçado ao filho pelo tempo que julgar necessário. Em seguida, o grupo começa a falar dos abandonos e dos momentos em que se sentiram solitários em suas próprias vidas. Nesse momento, alguém fala que agora não se sente mais assim, mas que, quando o processo do grupo começou, era exatamente assim que se sentia. Todos se aproximam do protagonista que continua com o filho no colo, em um abraço coletivo, enquanto vão revelando uns aos outros o quanto se sentem fortalecidos pela presença nesse grupo, em um momento forte em que o diretor chora, talvez revisitando sua própria solidão.

"A solidão é fera, a solidão devora. É amiga das horas, prima irmã do tempo. E faz nossos relógios caminharem lentos, causando um descompasso no meu coração", canta Alceu Valença (1984). "A solidão dos astros; a solidão da Lua; a solidão da noite; a solidão da rua", continua. Afinal, o que é solidão? É estar só? É estar isolado entre outros? Os astros ou a Lua? A noite ou a rua? "Solidão é lava que cobre tudo", revela Paulinho da Viola (1972) em seu samba. Cobre tudo e obriga a manter encoberto? E obriga a se manter solitário? "Solidão, palavra cravada no coração resignado e mudo, no compasso da desilusão." Resignado e mudo, sem palavras: adicto.

Abramos parêntesis para um solilóquio não do autor, nem dos pacientes de quem se relatam histórias, mas do próprio trabalho que aqui se inscreve. O texto precisa falar de si para consigo, para assim tornar mais fácil a compreensão do que ele tem a dizer.

Não vislumbro resposta única para um problema tão grande quanto ao uso compulsivo de drogas. Além disso, não quero resolver nem apresentar propostas para essa questão de saúde pública, nem problematizar essa ou aquela determinada intervenção. Tampouco, em minhas linhas, estou tentando generalizar aquilo que se descreve nas sessões para as quais tento chamar a atenção do leitor. O mais importante é que nenhum trabalho que queira ser levado a sério quando se trabalha com usuários de drogas que buscam abstinência, seja por que vias se dê, pode deixar de considerar quer seja a história anterior do isolamento sociométrico a que se expôs e que pode ter levado a um estado de isolamento atual, quer seja o isolamento a que se submete o usuário a partir de um relacionamento quase exclusivo com sua droga de preferência e que o espreme para uma solidão que não suporta. Aliás, uma exclusividade que vai se dando aos poucos e que tento responder se é resultado de um estado de isolamento, real ou imaginado, a que se acostumou, ou a que se autoimpôs, ou ainda a que se sente aprisionado, fazendo daí surgir um personagem a que se cristaliza. Ainda mais, estou pensando em minhas linhas quais são as especificidades desse isolamento sociométrico e os da solidão, esta como um sentimento próprio do humano, e ainda mais, quais são as congruências entre elas.

Estamos aqui no centro da discussão que a meu ver é essencial para este estudo. O que penso é que esse isolamento sociométrico serve de base para a criação de um personagem que se reflete, nesse caso específico, no uso de drogas. Talvez seja aqui o locus nascendi de personagens compulsivos: dessa ânsia em preencher espaços que se fizeram desocupados por força da sociometria de um grupo primordial de sua existência. Como no caso daquele que se autointitula "o destruidor", o que destrói não apenas a matéria a seu redor, mas suas relações, as possibilidades de construção de mundos diferentes das do uso de drogas. Estamos no palco, o destruidor em cena, e, quando retiro o paciente para olhar a si mesmo em espelho, em solilóquio reconhece pela primeira vez: "Não sou eu que uso droga, mas é ele: o destruidor". A partir dessa fala, descortinam-se possibilidades para construir novos personagens e desenvolver novos papéis, livres talvez não do uso de drogas, mas preparados para respostas adequadas, novas, libertas de verdades simbólicas que obrigam esse personagem destruidor a continuar fazendo uso de drogas como forma de destruição de si, do outro e, a meu ver principalmente, de seu átomo social que sofre de forma a não se expandir. Destruidor de relações que quer viver sozinho.

Calvente (2002) esclarece que "os personagens da mente têm uma estrutura mais ou menos elaborada, mais ou menos imposta pela angústia e pelo contexto que dá validade individual-privada mas igualmente criativa". Falamos de um paradoxo, afinal. Como os exemplos clínicos aqui mencionados - entre outros tantos que não cabem no presente texto - estreitados em suas personas, cuja voz não conseguia ecoar para mais além que não fosse por aquela única saída que conseguiam ver, foram como que sendo obrigados, para que a angústia fosse possível de suportar, a desenvolver certa maneira de agir, uma resposta conservada, cristalizada, para um sentimento de isolamento. Isolamento que se define por um sentimento de não ser escolha positiva para aqueles de seu primeiro átomo social, ou sentimento de não escolher aquelas pessoas a seu redor para o projeto dramático primevo da vida, a saber, as relações familiares. Presumo que essa fala possa gerar críticas de quem vê aqui um olhar por demais familialista. Não se trata apenas disso. O vazio existencial certamente terá aqui também uma de suas fontes. Entretanto, o isolamento a que se submetem os drogadictos sempre retorna, insiste em se atualizar como se quisesse se revelar como uma causa importante, diria fundamental, na instalação desse sintoma. Resultado de sofrimentos emocionais severos que se aliam a um sentimento de solidão ou para uma posição de isolamento dentro de seus grupos, para onde foi empurrado pela realidade ou para onde foi se esconder e que encontrou alento através da escolha de uma droga. "Solidão é lava que cobre tudo", ouço mais uma vez Paulinho da Viola (1972) ensinando em sua música.

Como no caso daquele que sente necessidade em amedrontar o outro para sentir-se dominador. Está isolado, o grupo pressionando para que se submeta, enquanto vocifera que já fez de tudo que se possa fazer de errado na vida para agora ser obrigado a fazer a vontade de outros. O isolado que se defende do outro e do desespero em sentir-se só se obrigando a agredir a todos os que o cercam para encontrar justificativa para sua solidão. Já que não me querem, não serei eu a dar o braço a torcer.

 

Compartilhamento (ou coconstruindo novas possibilidades)

Não se pode deixar de considerar o isolamento sociométrico nos mais variados momentos da vida como forte indicador para o desenvolvimento da drogadição. É também evidente que, ainda que não seja determinante, o isolamento sociométrico a que foi submetida grande parte desses pacientes durante sua infância (tenha o isolamento caráter de realidade ou de percepção distorcida) aponta para dificuldades em viver em grupo, em que a drogadição, se não ajuda a superar porque, ao contrário, traz mais solidão para o adulto, de alguma forma funciona como suporte para o sentimento carregado pelo personagem conservado. Difícil paradoxo e de difícil superação - um isolado que aprende a viver só, mas sofre pela solidão, ruminando em si esse sofrimento com a ingestão diária de uma droga que o isola ainda mais. Será esse personagem conservado possivelmente o responsável por cristalizações que impedem o fluxo da espontaneidade criativa como a força motriz do surgimento de um personagem idealizado ou imaginário: "o não drogado" como sinônimo de "o não isolado" e, ainda mais, o "não solitário". Todavia, se a espontaneidade criativa não flui suficientemente para isso, parece que o impedimento não é a droga em si, mas esse tal isolamento a que foi submetido.

Os excluídos que se encontram e se aproximam por identificação formam grupos de isolados. "A solidão da rua", ainda canta Alceu Valença (1984). No entanto - é importante ressaltar -, o grupo psicoterapêutico tem, como uma de suas funções preponderantes, tornar-se facilitador para a introjeção de novo modelo relacional. Uma vez que na drogadição se observa um estado de isolamento sociométrico, histórico ou não, que será um dos determinantes do modo de se relacionar pautado em desconfiança, necessidade de se sobrepor ao outro, dificuldades em perceber e se situar no lugar do outro, que se demonstra a partir de um personagem solitário e que se repetirá nas relações do grupo, é indispensável que se apresente um novo modelo para a construção das relações. Assim, o psicoterapeuta precisa oferecer uma escuta baseada na confiança, e não ter medo de manter uma relação que, se não extrapola o papel do qual está investido, pode trazer referências afetivas que o aproximem dos membros do grupo. Isso, aliás, é uma forma de fazer psicoterapia proposta pelo Psicodrama, que reconhece o terapeuta como parte integrante daquela unidade grupal. Como diz Luís Russo (2014, informação verbal), "o terapeuta e o paciente (no caso, o grupo) em relação horizontal de papéis diferentes".

Por último, a instigante questão que mostra um rumo interessante para estudos posteriores: a drogadição está aliada a ansiedades que estão, aparentemente, ancoradas em questões que se relacionam a um estado de isolamento sociométrico e a um sentimento de solidão. O fato principal observado a partir dessa prática que, apesar de ter como objetivo primário ser psicoterapia psicodramática de grupos de pessoas que fizeram ou faziam uso compulsivo de drogas, pretendeu também se tornar pesquisa é que, ao se oferecer escuta adequada, devolvendo a voz a quem a perdera, oferecendo possibilidades de construção de novas famílias sociométricas, a partir de vínculos desenvolvidos por escolhas positivas para projetos dramáticos que se relacionam à reconstrução de vida, essas ansiedades diminuíram consideravelmente, a ponto de se poder, enquanto inserido nos grupos terapêuticos, abandonar aquela que parecia a única forma de viver (ou de não viver), colocando no lugar do personagem solitário e isolado um novo homem, espontâneo, criativo, fortalecido e confirmado pela presença do outro e que assume a responsabilidade do cuidado de si.

 

REFERÊNCIAS

Bustos, D. M. (1979). O teste sociométrico: Fundamentos, técnica e aplicações. São Paulo: Brasiliense.         [ Links ]

Calvente, C. (2002). O personagem na psicoterapia: Articulações psicodramáticas. São Paulo: Ágora.         [ Links ]

Knobel, A. M. A. A. C. (1999). Estratégias de direção grupal. In J. Fonseca, Psicoterapia da relação: Elementos de psicodrama contemporâneo (pp. 338-351). São Paulo: Ágora.         [ Links ]

Moreno, J. L. (1992). Quem sobreviverá? Fundamentos da sociometria, psicoterapia de grupo e sociodrama. Goiânia: Dimensão.         [ Links ]

Olievenstein, C. (1977). Os drogados não são felizes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.         [ Links ]

Perazzo, S. (2010). Psicodrama: O forro e o avesso. São Paulo: Ágora.         [ Links ]

Valença, A. (1984). Mágico. Rio de Janeiro: Polygram.         [ Links ]

Viola, P. (1972). Dança da solidão. Rio de Janeiro: Universal.         [ Links ]

 

 

Recebido: 14/11/2016
Aceito: 23/06/2017

 

 

Paulo Cesar de Oliveira: Psicólogo e Psicoterapeuta. Membro da Diretoria Executiva da Sociedade de Psicodrama de São Paulo (SOPSP), de 2014 a 2016. Psicodramatista pelo convênio entre Sociedade de Psicodrama de São Paulo (SOPSP) e Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Rua Vasco da Gama, 277, casa 65, CEP 86036-010. Londrina, PR. Tels.: (43) 3339-5432 e (43) 99916-9935.

 

 

1 Texto apresentado no 20º Congresso Brasileiro de Psicodrama - 2016.

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