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Revista Brasileira de Psicodrama

versão impressa ISSN 0104-5393versão On-line ISSN 2318-0498

Rev. bras. psicodrama vol.25 no.1 São Paulo jun. 2017

http://dx.doi.org/10.15329/2318-0498.20170014 

RESENHAS

 

Impromptu Man: J.L. Moreno e as origens do psicodrama, da cultura do encontro e das redes sociais

 

Impromptu Man: J.L. Moreno and the origins of psychodrama, encounter culture, and the social network

 

Impromptu Man: J.L. Moreno y los orígenes del psicodrama, la cultura del encuentro y la red social

 

 

Lucas França Garcia

Hospital de Clínicas de Porto Alegre. E-mail: lucasfgarcia@gmail.com

 

 

Moreno, J. D. (2016). Impromptu Man: J.L. Moreno e as origens do psicodrama, da cultura do encontro e das redes sociais. São Paulo: Febrap.

Impromptu Man: J.L. Moreno e as origens do psicodrama, da cultura do encontro e das redes sociais, de Jonathan D. Moreno (2016a), lançado em 2014 em língua inglesa e traduzido em 2016 para a portuguesa, é uma obra biográfica sobre a trajetória e as contribuições do psiquiatra Jacob Levy Moreno. De agradável leitura, o livro é escrito por Jonathan D. Moreno, filho de J. L. e renomado professor de Bioética e História e Sociologia da Ciência da Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos. Como bom historiador, Jonathan lança mão dos métodos da História e das Ciências Sociais e apresenta uma biografia baseada em observações realizadas a partir de diferentes fontes históricas, como documentos, entrevistas, relatos orais, e obviamente de sua própria memória, sobre fatos marcantes na formação da Psiquiatria, Psicologia e Ciências Sociais do início do século XX e que ainda fazem parte da cultura contemporânea.

Basicamente, o livro pode ser dividido em duas partes, uma propriamente biográfica sobre a trajetória de J. L., desde o episódio "brincando de Deus", sua formação na Faculdade de Medicina em Viena, na Áustria, até sua migração para os Estados Unidos e os diferentes acontecimentos históricos e interpessoais marcantes de cada época. Além disso, segue uma linha de pensamento em que são apresentadas as origens históricas do pensamento de J. L., seu impacto na formação de diferentes esferas da vida social, assim como exemplos práticos e contemporâneos de sua influência, como no capítulo introdutório, em que aborda o famoso episódio da "cadeira vazia" na Convenção Republicana de 2011.

Com relação à parte biográfica propriamente dita, Jonathan apresenta o curioso episódio da juventude de J. L. em que este representa o papel de Deus junto aos seus amigos - e que terá importante impacto na formação de J. L. e nas escolhas que serão realizadas posteriormente; os anos na Faculdade de Medicina em Viena e a posição de J. L. em relação à obra de Freud, seu professor e celebridade naquela época no círculo vienense. Diferentemente da abordagem de Freud, J. L. acreditava, resumidamente, que a origem dos transtornos mentais e, portanto, do próprio tratamento destes, estava relacionada à vida em grupo, na relação dos indivíduos com eles mesmos e com os outros indivíduos, diferentemente de Freud, que acreditava que as causas e o tratamento dos transtornos mentais ocorreriam através de abordagens exclusivamente individuais. É durante esse período inicial de sua vida profissional que J. L. começa a desenvolver suas ideias a respeito do Teatro da Espontaneidade, do teatro terapêutico e do Psicodrama, por meio do contato com outros intelectuais e artistas importantes da época. Além disso, é importante destacar, com relação a esse período, a participação de J. L. em um campo de refugiados da I Guerra Mundial, a fundação de um albergue para desabrigados, a organização de um grupo de trabalhadoras do sexo, o delineamento de um novo palco para o desenvolvimento de suas atividades no Teatro da Espontaneidade e a coparticipação na invenção de um dispositivo chamado "rádio-filme". Essas experiências tiveram importante impacto na formação de J. L., além de terem sido oportunidades nas quais pôde aplicar e desenvolver suas técnicas, ainda em construção (Moreno, J. D., 2015).

É nesse contexto de Viena, até então polo intelectual e cultural da Europa, que J. L. desenvolve suas primeiras ideias a respeito do teatro e do impacto que este pode ter, em termos terapêuticos, quando aplicado a situações nas quais existem dificuldades nos relacionamentos interpessoais, tendo a espontaneidade como princípio fundamental e orientador de suas técnicas. É em Viena também que ganha reputação por ter fundado e ter sido o diretor do "Teatro da Espontaneidade", além de ser o editor do periódico literário Der Daimon, o qual teve a participação de importantes intelectuais da época, como Martin Buber, Heinrich Mann, entre outros.

No primeiro quarto do século passado, J. L. emigra para os Estados Unidos a procura de oportunidades. Após algumas tentativas frustradas no mundo dos negócios, como a venda não concluída de um dispositivo chamado "rádio-filme", que tinha como objetivo fazer transmissões de rádio independentemente de quando tinham sido gravadas, uma inovação para a época. Após uma década em território norte-americano, J. L. adquire uma pequena propriedade em Nova York, que se transformará em Beacon Hill Sanitarium. É nessa instituição que J. L. desenvolve sistematicamente o seu programa de Psicodrama, ou seja, o uso sistemático do role playing para explorar e resolver conflitos interpessoais. Com intenso ambiente cultural, Nova York também parece ter sido o contexto adequado para que J. L. desenvolvesse suas ideias a respeito do Teatro da Espontaneidade, tendo diversas vezes tentado fomentar e desenvolver essas ideias com diferentes colaboradores. É nos Estados Unidos também que participa do famoso episódio, durante congresso da Associação Americana de Psiquiatria, em 1931, a respeito das discussões sobre possíveis diagnósticos psiquiátricos do 16º presidente dos Estados Unidos, Abraham Lincoln. Esse episódio o coloca ainda em maior evidência dentro da comunidade científica da época, traçando o que nos anos 1970 será incorporado no Código de Ética da mesma associação, conhecido como Goldenwater Rule, ou seja, proibição ética de fazer diagnósticos em saúde mental de personalidades públicas sem o seu devido consentimento, discussão que foi novamente resgatada durante as últimas eleições norte-americanas, em que diversos meios de comunicação consultaram profissionais da saúde para diagnosticar os candidatos à presidência (Moreno, J. D., 2016b).

Quando entramos na parte das contribuições de J. L. para a cultura contemporânea, podemos destacar o pioneirismo da análise de redes sociais para a resolução de conflitos sociais; os trabalhos realizados em ambientes prisionais e nos chamados reformatórios juvenis; o aperfeiçoamento de uma série de técnicas terapêuticas relacionadas ao Psicodrama, como o role playing, a cadeira vazia, entre outras já relacionadas anteriormente; e também outra importante contribuição, que não pode ser deixada de lado: a incansável busca de J. L. pela aplicação prática de suas criações. Como Jonathan D. Moreno observa, para J. L. conhecimento sem aplicação prática na vida real, sem aplicação para a resolução de problemas, é um conhecimento perigoso, no sentido de que não traz benefícios associados à vida das pessoas.

A contribuição de J. L. para o campo das Ciências Sociais, em especial aquela que hoje é conhecida como Sociometria, ou seja, o estudo das redes sociais, é tão importante que mereceu destaque na revista Science, em 2009, quando abordou a história e as potencialidades da análise das redes sociais para compreender a dinâmica social em um mundo globalizado (Borgatti, Mehra, Brass, & Labianca, 2009).

Outra contribuição importante de J. L. para a cultura contemporânea, e que muitas vezes passa despercebida, é o impacto que suas ideias de terapia em grupo, da espontaneidade e do aqui-agora tiveram em diferentes movimentos sociais durante a história recente. Um exemplo disso são os movimentos da cultura do encontro nos Estados Unidos, como a fundação do Instituto Esalen, na Califórnia, e a Est, fundada por Werner Hans Erhard, a qual terá impacto na formação de uma geração de pessoas que buscavam o encontro com o outro, o conhecimento de si mesmo e o aperfeiçoamento do potencial humano, por meio de sessões que duravam longos períodos de tempo e, às vezes, envolviam apenas olhares, toques, dispensando conversas, em um primeiro momento. Essa cultura do encontro pode ser bem observada em documentário recente lançado sobre a trajetória de Werner Erhard.

Outras apropriações contemporâneas introjetadas em nossa cultura das contribuições de J. L. estão no treinamento de pessoas por profissionais de recursos humanos, na formação de advogados, no treinamento de funcionários de setores de inteligência e de militares, por meio de diferentes colaborações que manteve durante a sua vida. É importante observar, entretanto, que todas as colaborações e apropriações não foram realizadas sem polêmicas, pelo contrário, muitas delas geraram polêmicas diversas, das quais J. L. não se furtava de respondê-las.

Como podemos notar, são diversas as contribuições desta que foi uma das mentes mais ativas do início do século XX. Como bem colocado por Jonathan D. Moreno, ainda hoje podemos perceber os traços das contribuições de J. L. na cultura contemporânea, por meio dos grupos de encontro, dos grupos de mútua ajuda, na utilização do teatro e de técnicas de grupo para o enfrentamento dos conflitos interpessoais e de transtornos mentais. Além disso, é notável a contribuição inovadora da análise das redes sociais para a resolução de conflitos e que adquire importância sui generis em mundo altamente globalizado e multicultural.

Dessa maneira, o livro é um convite à leitura da biografia de um dos intelectuais mais importantes para diferentes áreas do conhecimento, sem deixar de levar em conta as peculiaridades da personalidade de J. L., tão bem exploradas por Jonathan D. Moreno. Além disso, o livro é um chamado para resgatar algumas ideias fundamentais de J. L., tais como o viver o aqui-agora e a busca incansável pela aplicação do conhecimento científico na resolução de problemas na vida real, sobretudo para o campo das Ciências Sociais.

 

REFERÊNCIAS

Borgatti, S. P., Mehra, A., Brass, D. J., & Labianca, G. (2009). Network Analysis in the Social Sciences. Science, 323(5916),892-895. doi: https://doi.org/10.1126/science.1165821        [ Links ]

Moreno, J. D. (2015). From bedlam to bioethics: Where did my psychodramatic childhood lead me? Canadian Medical Association Journal, 187(15),1163-1164. doi: https://doi.org/10.1503/cmaj.141235        [ Links ]

Moreno, J. D. (2016a). Impromptu Man: J.L. Moreno e as origens do psicodrama, da cultura do encontro e das redes sociais. São Paulo: Febrap.         [ Links ]

Moreno, J. D. (2016b). The real story behind the Goldwater Rule - The Hastings Center. Recuperado em 10 de janeiro de 2017 de http://www.thehastingscenter.org/real-story-behind-goldwater-rule/        [ Links ]

 

 

Recebido: 19/02/2017
Aceito: 19/02/2017

 

 

Lucas França Garcia: Sociólogo e etnógrafo. Doutor em Medicina: Ciências Médicas (Bioética). Pesquisador do Laboratório de Bioética e Ética na Ciência do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Rua Ramiro Barcelos, 2350, LAB12213, CEP 90035-903. Porto Alegre, RS. Tel.: (51) 3359-7615.

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