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Revista Brasileira de Psicodrama

versão impressa ISSN 0104-5393versão On-line ISSN 2318-0498

Rev. bras. psicodrama vol.25 no.2 São Paulo dez. 2017

http://dx.doi.org/10.15329/2318-0498.20170023 

ARTIGOS DE REFLEXÃO

 

Interlocuções entre Moreno e Bronfenbrenner no contexto de grupos musicais

 

Dialogue between Moreno and Bronfenbrenner in musical groups's context

 

Diálogo entre Moreno y Bronfenbrenner en el contexto de los grupos musicales

 

 

Gleidson Jordan dos SantosI; Larissa Medeiros Marinho dos SantosII

IUniversidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). E-mail: gleidson-js@hotmail.com
IIUniversidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). E-mail: larissa@ufsj.edu.br

 

 


RESUMO

Este artigo visa a um debate dos possíveis diálogos entre as ideias de Moreno e o modelo Bioecológico de Bronfenbrenner com base na discussão dos processos de interação e suas influências para o desenvolvimento da pessoa. São trabalhados conceitos como processos proximais, transições ecológicas e relações grupais utilizando como contexto os grupos musicais. Essa interlocução pode contribuir para o conhecimento dos autores e dos contextos dos grupos musicais e suas possíveis contribuições para o desenvolvimento humano.

Palavras-chave: psicodrama, música, desenvolvimento humano, grupos


ABSTRACT

This article aims at a debate on possible dialogues between Moreno's ideas and Bronfenbrenner's bioecological theory based on the discussion of interaction processes and its influences for human development. Concepts such as proximal processes, ecological transitions and group relations are worked on using as context the musical groups. This interlocution can contribute to the knowledge of the authors and contexts of musical groups and its possible contributions to human development.

Keywords: psychodrama, music, human development, groups


RESUMEN

Este artículo pretende debatir los posibles diálogos entre las ideas de Moreno y el modelo bioecológico de Bronfenbrenner a partir de la discusión de los procesos de interacción y sus influencias para el desarrollo de la persona. Conceptos tales como procesos proximales, transiciones ecológicas y relaciones grupales se trabajan utilizando como contexto los grupos musicales. Tal interlocución puede contribuir al conocimiento de los autores y de los contextos de los grupos musicales y sus posibles contribuciones al desarrollo humano.

Palabras clave: psicodrama, música, desarrollo humano, grupos


 

 

INTRODUÇÃO

A busca por encontrar pontos em comum entre teóricos, que a princípio parecem distantes, torna-se pertinente por contribuir para a compreensão aprofundada de suas teorias. Dessa forma, o objetivo deste trabalho é compreender as interlocuções entre as propostas de Levy Jacob Moreno (1946/2006) e as de Urie Bronfenbrenner (1943; 1944; 1979; 2005/2011). Trata-se de uma pesquisa teórico-bibliográfica na qual foi utilizada a produção dos próprios autores e trabalhos de terceiros que possibilitaram uma reflexão teórica sobre o tema, considerando conceitos como a socionomia, os papéis, os contextos de desenvolvimento, as transições ecológicas e os processos grupais.

A possibilidade de diálogo entre esses autores foi inspirada, inicialmente, na produção de Bronfenbrenner (1979; 2011) que, ao abordar as questões acerca do desenvolvimento social em sua tese de Doutorado, escrita em 1942, serviu-se da Sociometria de Moreno. Com base no trabalho de Moreno (1934/1978), intitulado "Who shall survive?", Bronfenbrenner (2011) afirmou que o teste sociométrico é "uma das mais hábeis ferramentas para estudo do status e da estrutura social" (p. 61), pois permite a compreensão da estrutura e da organização do grupo, das relações nele estabelecidas e da posição de cada pessoa no contexto grupal. O autor (1943; 1944; 1979; 2011) adotou formulações acerca dos relacionamentos sociais, baseadas em Moreno, para defender que o indivíduo e os grupos, nos quais estes estão inseridos, não podem ser estudados isoladamente, pois são unidades orgânicas em inter-relação. O princípio da inter-relação entre indivíduos e grupos se tornou central para toda a abordagem de Bronfenbrenner, de tal forma que os estudos de Moreno podem ser considerados base para o Modelo Bioecológico proposto por Bronfenbrenner (2011).

Como enfoque deste artigo, e para tornar mais prático o debate entre as abordagens propostas, o tema grupos musicais servirá de articulação entre esses dois teóricos. A interlocução será permeada pelas ideias de Moreno (2006) sobre a Psicomúsica1 e pelas contribuições encontradas em produções relacionadas ao modelo bioecológico em contextos de musicalização e grupos musicais, principalmente nas discussões sobre processos proximais e transições ecológicas.

 

O PSICODRAMA E A PSICOMÚSICA PROPOSTOS POR MORENO

Jacob Levy Moreno (1889-1975), insatisfeito com os métodos aplicados pela psiquiatria em sua época, propôs uma terapia em grupo que não objetivava apenas o tratamento de patologias psicológicas, mas abrangia também outras questões sociais de forma lúdica e universal. Em seus trabalhos o autor propôs a Socionomia, compreendida como o estudo das leis que regem o comportamento social e em grupos. Uma abordagem ampla, pois abarcava diversas áreas individuais e sociais (Moreno, 2006).

Moreno (1978) apresentou a fundamentação teórica para a sociometría, as suas técnicas, os seus usos e as interpretações a partir da sua aplicação e expos os princípios sobre a teoria de grupos e do próprio psicodrama. O autor desenvolveu teorias próprias a fim de estudar o indivíduo e as relações sociais e no Psicodrama objetivou o desenvolvimento da espontaneidade, da criatividade, a formação, habilidades lúdicas e vários outros aspectos (Moreno, 1978; 2006).

Conforme Boris (2014), Moreno descreveu, em 1910, o uso da psicoterapia em grupo, criando em Viena o "Teatro do Homem Espontâneo" que foi vinculado ao psicodrama e à representação de papéis. A proposta era desenvolver a conscientização de conflitos e propiciar sua resolução utilizando situações-problemas, que eram representadas e experienciadas pelos participantes.

No caso do Psicodrama, o psicoterapeuta age como o diretor de uma peça teatral, facilitando ao paciente uma atuação, na qual expressa, de forma espontânea, ansiedades, medos, expectativas, fantasias e sonhos. O processo terapêutico ocorre por meio da dramatização de experiências passadas ou atuais, com a cooperação dos demais participantes da sessão. Aqueles que interagem diretamente com esse protagonista são chamados de egos auxiliares, representando os papéis essenciais para a dramatização, e os demais membros do grupo atuam como a plateia (Boris, 2014; Moreno, 2012). Dessa forma, para Boris (2014), a proposta de Moreno é uma terapia exortativa que atua pelo grupo com uma estrutura fraternal, estimulando e utilizando as emoções grupais.

Calvente (2014) aponta que Moreno postulou que a espontaneidade, um dos principais conceitos morenianos, é uma qualidade da psique que tem importante função na formação do sujeito. O autor afirma que, Moreno não nega a influência das regras sociais no desenvolvimento, mas ressalta que, na espontaneidade, o papel de uma imaginação radical está patente. Para Moreno (2006, 2012), a espontaneidade é uma qualidade da imaginação em que se associam as manifestações dos papéis, sendo as representações das fantasias inconscientes vividas diariamente.

Moreno (2006) afirma que o Psicodrama devolveu a capacidade humana de autoexpressão do drama ao indivíduo enquanto agente criador, retirando todo o maquinário e as limitações culturais ou teóricas que impediam que esse processo fosse realizado por qualquer pessoa. O autor, dessa forma, fez um esforço paralelo no campo da música e propôs a Psicomúsica.

Moreno (2006) discutiu a necessidade da espontaneidade e como a música estava sendo convertida apenas em habilidades profissionais e em propriedade de uma elite. Segundo o autor, a Psicomúsica divide-se em duas formas: a forma orgânica, quando o indivíduo, isoladamente ou em grupos, como agente músico-dramático, age sem o uso de instrumentos musicais; e a forma instrumental, quando os instrumentos musicais são reintroduzidos, mas como funções e extensões da espontaneidade própria dos indivíduos, e não como limitadores desse processo.

Com base nas atividades propostas e experimentadas, Moreno (2006) constatou que é possível encontrar uma espécie de "transferência musical", em que o maestro ou o executante do primeiro instrumento (líder) sugere um tempo em comum, por exemplo, um compasso quaternário (reunião de quatro tempos). Então, a cada conjunto de compassos pode-se transferir a liderança de um instrumento para o outro, sem prejuízo do andamento da música. Para que isso ocorra, deve-se encontrar um método que seja capaz de influenciar os participantes do grupo a expressar-se livremente sem se prender às regras teóricas da música.

Conforme Rodrigues e Rosin (2011), por meio do contato com a música em grupos musicais, o sujeito exercita a convivência com o outro, estabelecendo um diálogo mais harmonioso que, consequentemente contribui para as relações interpessoais e para o convívio em sociedade. As autoras afirmam que a música promove o desenvolvimento do senso de colaboração e do respeito mútuo, uma vez que proporciona mais segurança emocional e confiança, pois permite que a pessoa libere suas angústias ao praticá-la.

Em relação ao instrumento, Moreno (2006) afirma que este é exterior ao músico. Inicialmente é um organismo estranho, que acaba incorporado pelo aluno como uma parte de si mesmo. É como se o indivíduo precisasse ajustar-se ao instrumento, convertendo-o em algo semelhante à própria voz ou às suas pernas. Tal como o medo de andar e de falar, o mesmo pode ocorrer com relação ao instrumento, e o músico pode desenvolver o medo de se expressar. Tocar um instrumento requer o desenvolvimento de habilidades em uma relação carregada de afeto e pode gerar ansiedade que interfere e dificulta o desempenho eficiente do instrumentista.

Outra questão abordada por Moreno (2006) refere-se à posição do músico dentro do grupo, mais especificamente de uma orquestra na qual ele e seu instrumento fazem parte de um grupo maior. Nesse contexto, existe a posição simbólica atribuída ao instrumento pelo próprio compositor da música que será executada e dificilmente haverá espaço para a criação. Isso ocorre, levando-se em conta a interdependência com os outros instrumentos, definida no processo de composição. Essa inter-relação é denominada pelo autor de "tele" (transferência) musical que também interfere nos processos grupais. Dessa forma, o maestro dirige, e essa interação coletiva produz o universo musical, além de acontecer a posição real do músico enquanto indivíduo e, ao mesmo tempo, como artista que faz parte da orquestra.

 

O MODELO BIOECOLÓGICO DE BRONFENBRENNER

Bronfenbrenner é conhecido pela formulação do Modelo Bioecológico do Desenvolvimento Humano (Ceci, 2006), uma evolução do sistema teórico para o estudo do desenvolvimento humano ao longo do tempo (Bronfenbrenner, 1979; Bronfenbrenner & Morris, 1998, 2006). O desenvolvimento é definido como o fenômeno de continuidade e de mudança das características biopsicológicas dos seres humanos como indivíduos e/ou grupos. Quando ocorre uma mudança nos processos vivenciados por uma pessoa, o desenvolvimento é indicado pela manutenção dessa modificação ao longo de certo período de tempo.

Bronfenbrenner (1995) inicialmente enfatizou a importância da mudança social, não apenas como uma espécie de chave para a compreensão das origens dos padrões contemporâneos de desenvolvimento, mas para a contribuição com a política e com a ação social. Para o autor, os dois principais elementos que direcionam o percurso do desenvolvimento são os objetivos e os subjetivos, devendo-se compreender a natureza de cada uma dessas forças, iniciando pela força fenomenológica ou experiencial.

A força fenomenológica está mais relacionada ao ambiente e à maneira como o indivíduo o percebe e o modifica durante as fases de sua vida: da infancia à velhice (Bronfenbrenner, 2001a). O termo experiência refere-se à esfera subjetiva dos sentimentos, relacionados ao self ou aos outros, principalmente às pessoas mais próximas. Pode também ser vinculado a atividades em que um sujeito se engaje (Bronfenbrenner, 2001b). Pode-se pensar nas atividades em grupo com um objetivo significativo para o indivíduo, o que pode facilmente acontecer nos grupos musicais, uma vez que permitem a vinculação emocional e a motivação. E a partir de Bronfenbrenner (1979), O'Nell (2012) aponta as atividades de aprendizagem musical como um dos contextos experienciados pelo aprendiz que pode influenciar em outros contextos.

Bronfenbrenner e Morris (1998, 2006) e Bronfenbrenner (2011) afirmam que o desenvolvimento humano ocorre por meio de processos de interação recíproca, em longos períodos de tempo - denominado processos proximais. Esses processos são considerados a força motriz primária do desenvolvimento humano, sendo a forma, o poder, o conteúdo e a direção produtores desse desenvolvimento.

Uma proposta de pesquisa nessa abordagem deve levar em consideração o processo, a pessoa, o contexto e o tempo (PPCT) para uma compreensão efetiva dos fatores motivacionais do desenvolvimento. O Processo diz respeito às ligações entre os diferentes níveis de interações entre o organismo em desenvolvimento e os objetos e os símbolos presentes no contexto em que ele se desenvolve, tal como os papéis, as interações e as atividades diárias do sujeito, incluindo os processos proximais. O conceito de Pessoa está relacionado às constâncias e às mudanças do sujeito em desenvolvimento, ao longo de sua vida, devendo-se considerar suas características individuais em interação com o contexto. Na Pessoa, estão incluídas suas convicções, seu temperamento, o nível de atividades, suas metas e suas motivações. O Contexto está ligado ao meio ambiente global em que o sujeito se encontra e onde se desenrolam os processos de desenvolvimento, desde os ambientes mais imediatos (o microssistema), como os mais remotos (os macrossistema), que se relacionam e são capazes de influenciar o curso de desenvolvimento. Por fim, o Tempo pode ser entendido tanto como o desenvolvimento da pessoa no decorrer de sua vida (microtempo), quanto no sentido histórico. Considera-se que as mudanças ocorrem, no decorrer do tempo, em razão das pressões internas (como modificações biológicas) e externas sofridas pela pessoa em desenvolvimento. Podem ser citados como exemplo os eventos familiares, ou as mudanças culturais ao longo dos anos, que influenciam o curso do desenvolvimento humano (Bronfenbrenner, 1979; Bronfenbrenner & Morris, 1998, 2006).

As mudanças podem ser relacionadas ao conceito de transições ecológicas que é importante para compreender as mudanças geradoras de desenvolvimento (Bronfenbrenner, 1979, 2011). Transições ecológicas são mudanças nos papéis ou nos contextos que ela se insere. Sua importância se relaciona ao fato de que, seja em relação à pessoa ou ao contexto, as transições ecológicas geram mudança dos papéis "das expectativas por condutas associadas a determinadas posições na sociedade" (2011, p. 89), e estas, por sua vez, geram modificações na forma como as pessoas são vistas e socialmente tratadas e como elas pensam e se sentem.

A inter-relação entre as crianças e seu grupo social é essencial para Bronfenbrenner (2011). Segundo o autor, toda criança precisa participar de atividades progressivamente mais complexas, que ocorram de forma regular por longos períodos de tempo, ao lado de uma ou mais pessoas com as quais ela tenha vínculos emocionais, de forma mútua para que possa se desenvolver intelectual, emocional, moral e socialmente. Essas pessoas devem, preferencialmente, estar comprometidas com o bem-estar e com o desenvolvimento para a vida toda da criança (Bronfenbrenner, 2001b).

Bronfenbrenner (2001b) afirma que o estabelecimento de um forte apego emocional mútuo conduz à internalização das atividades e dos sentimentos expressados pelos pais. Bronfenbrenner, McClelland, Wethington, Moen e Ceci (1996) trazem também a importância do envolvimento de um terceiro responsável como um colaborador nos processos de desenvolvimento da criança, que pode ser um parente, ou mesmo outro indivíduo que demonstra apego e preza por seu desenvolvimento, ou seja, um professor ou um coordenador de um grupo em que essa criança esteja engajada também pode assumir esse papel.

Conforme Brito e Koller (1999), a partir da perspectiva bioecológica, uma das mais importantes dimensões do desenvolvimento humano e do bem-estar é o apoio social e afetivo, por se tratar de uma interface entre a pessoa e o contexto do qual ela faz parte, influenciando diretamente em seu desenvolvimento. A rede de apoio social é definida como o conjunto de sistemas e de pessoas significativas que compõem os elos de relacionamento recebidos e percebidos do sujeito. Compreender essa rede exige uma complexa e constante avaliação do contexto ambiental no qual a pessoa se desenvolve, que inclui sua história, seu momento atual e as pessoas a ele vinculadas e as características individuais de todas elas.

Em determinadas circunstâncias e alguns momentos da vida, a necessidade de apoio social aumenta, e há uma exigência maior de estratégias de enfrentamento. No contato com a própria rede, as pessoas podem adotar atitudes pró-sociais e efetivas para seu desenvolvimento. O bom desenvolvimento social, emocional e escolar está relacionado a fortes redes de apoio social e afetivo, com potencial para fortalecer o sujeito, os vínculos pessoa-ambiente, e para melhorar a qualidade da saúde, do bem-estar e das inter-relações pessoais (Brito & Koller, 1999). Neste trabalho, considerar grupos musicais pode ser essa rede de apoio e aprendizagem (O'Nell, 2012).

 

INTERLOCUÇÕES TEÓRICAS

Como justificativa da escolha dos grupos musicais e da música para concretizar essa interlocução, é possível citar Mattos (2015) que afirma que, em contato com o meio musical, o indivíduo pode se concentrar e extrair algo de bom em si mesmo e/ou em seu ambiente, encontrando um suporte para desenvolver suas características positivas. Com isso, amplas possibilidades estarão abertas, não permitindo o foco voltado apenas para o que há de negativo e ruim em seu contexto (Ávila, 2009; Araújo & Andrade, 2011).

Diálogo: desenvolvimento da criatividade e a interação social

A primeira interlocução entre Moreno e Bronfrenbrenner (1943; 1944; 2011) pode ser identificada nos estudos do segundo, quando investigou o modelo sociométrico, com o intuito de aprimorar a técnica de acordo com os grupos por ele investigados, e a considerou uma ferramenta possibilitadora de análises de status individual e da coerência grupal. Para o autor, uma boa avaliação dos resultados exige a visão do indivíduo e do grupo como unidades orgânicas em desenvolvimento.

Para além da questão da sociometria, outro ponto de destaque na interlocução entre as teorias relaciona-se com a questão da Criatividade. Para Bronfenbrenner (1979), a imaginação não é um mero reflexo da realidade, mas uma forma de conexão entre os diferentes contextos em que vivemos. A imaginação é aspecto ativo e criativo ligado à importância da expressão artística no desenvolvimento da subjetividade, tanto pessoal quanto coletiva. Para Moreno (2006), a criatividade é inata ao ser humano e esta complementa a espontaneidade, e não podem ser dissociadas. Moreno afirma que a criatividade pode se beneficiar da interação social em um ambiente onde possa ser apoiada e incentivada.

A questão da interação e do afeto é bastante relevante para o desenvolvimento humano nas proposições dos dois autores. As pessoas têm a necessidade de ser acolhidas e pertencer a algum grupo, e também requerem a aprovação de seus pares. No caso dos grupos musicais, considera-se que a criação de vínculo entre os participantes é favorecida, pois estes se voltam para o fortalecimento das relações interpessoais em prol da manutenção e da continuidade do grupo para que a música ocorra. O fator que mais se destaca para a motivação nessas situações é a convivência com os colegas. Joly e Joly (2011) apontam que a característica essencial de uma orquestra comunitária é que as pessoas que a constituem estão ali por uma escolha pessoal de fazer música em conjunto.

Conforme Rodrigues e Rosin (2011), as crianças podem encontrar na música um apoio para um enfrentamento mais positivo dos problemas vivenciados, incluindo a falta de estrutura familiar. As autoras afirmam que as atividades musicais motivam e são capazes de desenvolver esperança, ajudando a minimizar os efeitos negativos que integram o contexto do sujeito, promovendo o resgate social e emocional, além de ser uma forma de ampliar o conhecimento cultural, despertar a sensibilidade musical, o desenvolvimento cognitivo, o afetivo e as relações interpessoais (Rodrigues & Rosin, 2011).

A questão dos contextos sociais

Como afirmado no Modelo Bioecológico de Bronfenbrenner, os contextos, como os ambientes onde ocorrem nossos processos proximais, influenciam fortemente o desenvolvimento humano (Bronfenbrenner, 2011; Bronfenbrenner & Morris, 1998, 2006). Em Moreno (2006), apesar de não elaborar diretamente a questão dos contextos e dos processos proximais, está claramente apresentada a importância das interações. No Psicodrama, os contextos são representados no setting psicodramático onde ocorrem as interações da pessoa com os egos auxiliares (processos proximais). O ego auxiliar pode ter a função de ator, assumindo papéis que refletem relações importantes para o sujeito. O autor cita também a relação entre a mãe e o bebê, em que a mãe é um ego auxiliar ideal.

Moreno (2006) leva em consideração a influência dos contextos na produção e na prática musical. O desenvolvimento de uma performance musical, por exemplo, é moldado em relação ao contexto histórico, às relações sociais internas e externas e ao próprio desenvolvimento humano. O autor destaca também que essa significativa influência se destaca na improvisação musical, quando não existe produto acabado, sendo o compositor e o executante uma unidade.

Moreno (2006) fala das experiências prévias e com outras pessoas para a produção musical, quando cita como exemplo Beethoven e Bach, levantando a questão de como puderam ser influenciados por seus pais, professores e até mesmo ídolos. O autor aponta que as associações, que esses compositores produziram durante toda a vida, não estavam somente relacionadas por uma pura transferência musical, mas também pela soma total de suas experiências. Para Bronfenbrenner (2011) e Bronfenbrenner et al. (1996), o desenvolvimento só é possível com base nas interações com os pais e terceiros em seus contextos e com base nos processos proximais, ou seja, na soma total das experiências.

Moreno (2006) também afirma que, por mais que a música produzida possa constituir um mundo separado, com seu vocabulário próprio, tanto o produto final quanto o ato da criação musical estão cercados por influências que não são puramente musicais, mas religiosas, éticas, sociais e psicológicas. Do microssitema ou macrossistema, do microtempo ou macrotempo (Bronfenbrenner & Morris, 1998; Bronfenbrenner, 2011). Apesar das características citadas serem dificilmente encontradas no resultado final da música produzida, exerceram um papel significativo para a inspiração dos compositores.

Finalmente, é possível relacionar o conceito de transições ecológicas (Bronfenbrenner 1979, 2011) aos papéis morenianos e suas modificações de acordo com o setting, como os papéis assumidos em uma orquestra (Moreno, 2011). Pensar nas relações entre os contextos musicais e os papéis nele assumidos, assim como nas possibilidades de mudanças que ocorrem nesses contextos permite pensar a pessoa e o potencial desses grupos enquanto contextos de desenvolvimento (O'Nell, 2012).

Não se deve deixar de lado a influência do contexto e do tempo histórico no fazer musical, uma vez que a música é criada por indivíduos distintos em seus respectivos contextos sócio-históricos, e é a expressão de sentimentos e o reflexo de acontecimentos que os geraram. Desse modo, pode-se notar mais um vínculo entre o estudo da música e o Modelo Bioecológico, bem como os ideais da Psicomúsica, visto que, para se compreender o sentido de uma performance musical, é necessário entender a pessoa ou o grupo que a criou, o processo de criação, seu contexto e o tempo ao qual ela pertence ou pertenceu.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A interlocução entre a perspectiva moreniana e o modelo bioecológico de Bronfenbrenner permite um aprofundamento na própria compreensão das teorias, particularmente no que se refere à segunda. Essa afirmação se deve ao fato de que um dos autores de inspiração para Bronfenbrenner foi Moreno (2011) e sua abordagem sobre os processos grupais.

O Modelo Bioecológico de Desenvolvimento Humano, o Psicodrama e a Psicomúsica são abordagens que se complementam e que permitem o estudo da relação que ocorre em diversos contextos, até mesmo, como proposto neste trabalho, dos grupos e das atividades musicais e dos processos desenvolvimentais das pessoas neles envolvidas. Considera-se que, com base nessa interlocução, é possível a compreensão de que os contextos influenciam fortemente no desenvolvimento da pessoa e que esses processos influenciam o próprio ambiente.

Pensar nas aproximações ecológicas, na teoria dos papéis e nas relações grupais permite compreender a interconexão dinâmica entre os contextos e a complexidade das relações nele estabelecidas. As informações levantadas dão margem para futuros aprofundamentos teórico-metodológicos. Dada a riqueza das contribuições de Bronfenbrenner e Moreno e a vinculação de suas teorias, é possível realizar aprofundamentos, incluindo as questões relacionadas à socionomia e à teoria da espontaneidade.

 

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Recebido em: 02/01/2017
Aceito em: 20/11/2017

 

 

Gleidson Jordan dos Santos. Graduado em Música pela Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). Mestre em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ).
Larissa Medeiros Marinho dos Santos. Professora Adjunta do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ).

 

 

1 Neste texto, trabalharemos com a Psicomúsica de J. L. Moreno, mas não ignoramos a existência do trabalho de Joseph Moreno, citado em Moreno, J. (2012). Os feitos do meu Pai: William L. Moreno. Revista Brasileira de Psicodrama, 20(1), 219-227.

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