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Revista Brasileira de Psicodrama

versão On-line ISSN 2318-0498

Rev. bras. psicodrama vol.26 no.1 São Paulo jan./jun. 2018

http://dx.doi.org/10.15329/2318-0498.20180005 

ARTIGOS INÉDITOS

 

Um caso sobre o brincar, o Psicodrama e as relações afetivas

 

A case on playing, Psychodrama and affective relationships

 

Un caso sobre el juego, el Psicodrama y las relaciones afectivas

 

 

Fábio SantosI; Tatiana Torres de VasconcelosII

IPsicólogo pela Universidade Tiradentes (UNIT). Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Sergipe (PPGPSI - UFS). e-mail: fbi-psico@hotmail.com
IIPsicóloga pela Universidade Federal de Sergipe (UFS). Mestre em Saúde e Ambiente pela Universidade Tiradentes (UNIT). Psicodramatista pela Profissionais Integrados (PROFINT). e-mail: prof.tatiana.torres@gmail.com

 

 


RESUMO

Este artigo versa em torno de um caso clínico infantil acompanhado numa clínica-escola de Psicologia. A cliente foi encaminhada para acompanhamento psicoterápico sob queixas de mau comportamento e baixo rendimento da escola em que estudava e, de acordo com sua mãe, em razão de comportamentos hostis na família. O trabalho objetiva discutir um caso clínico infantil à luz de referencial teórico do Psicodrama. Notou-se que por meio das brincadeiras de "casinha", a cliente frequentemente dirigiu atitudes agressivas e hostis de suas personagens (filha, mãe, avó) em relação ao personagem desempenhado pelo estagiário (avô/pai). Observou-se que, por somente ocorrer nessa modalidade lúdica, a "casinha" representou, dentro da realidade suplementar, um espaço singular de catarse, espontaneidade criativa, economia da ação e expressividade.

Palavras-chave: psicodrama infantil, jogos, estudo de caso


ABSTRACT

This article studies a child clinical case followed in a Psychology clinic-school. The client was referred to psychotherapy follow-up under complaints of bad behavior and underachievement from the school where she studied and, according to her mother, hostile behaviors in the family. The work aims to discuss a child clinical case in the light of theoretical background of Psychodrama. It was noted that, through playing house, the client often adopted aggressive and hostile attitudes of her characters (daughter, mother, grandmother) to the character played by the trainee (grandfather/father). It was observed that, since it only occurred in this ludic mode, playing house represented, in the supplementary reality, a singular space of catharsis, spontaneity-creativity, action economy and expressiveness.

Keywords: child psychodrama, games, case study


RESUMEN

Este artículo versa sobre un caso clínico infantil acompañado en una clínica-escuela de Psicología. La cliente fue encaminada para el acompañamiento psicoterápico debido a quejas de mala conducta y bajo rendimiento de la escuela en que estudiaba y, según su madre, conductas hostiles en la familia. El trabajo tiene por objetivo discutir un caso clínico infantil a la luz del referencial teórico del Psicodrama. Se notó que, jugando a la casita, la cliente frecuentemente dirigía actitudes agresivas y hostiles de sus personajes (hija, madre, abuela) al personaje desempeñado por el alumno (abuelo/padre). Se observó que, por sólo ocurrir en esa modalidad lúdica, jugar a la casita representó, dentro de la realidad suplementaria, un espacio singular de catarse, espontaneidad creativa, economía de la acción y expresividad.

Palabras clave: psicodrama infantil, juegos, estudio de caso


 

 

INTRODUÇÃO

O presente artigo versa em torno de um caso clínico infantil acompanhado por cerca de sete meses numa clínica-escola de Psicologia vinculada a uma Instituição de Ensino Superior (IES) privada no Nordeste. Aborda-se, por meio da literatura em Psicodrama, o fenômeno da virtualização da realidade mediante o brincar, tendo como base empírica a concretização de experiências de afeto negativas expressadas na realidade suplementar pela cliente em dramatizações lúdicas numa série de brincadeiras de "casinha", propostas por ela ao longo das sessões de atendimento psicoterápico.

A cliente apresentada neste estudo de caso é do sexo feminino e tinha nove anos à época em que foi acompanhada na clínica-escola. Ela recebeu atendimento semanal em psicoterapia psicodramática bipessoal. Esse caso, em especial, chamou a atenção dos autores por exibir uma maneira peculiar pela qual a cliente passou a expressar verbalizações agressivas e hostis, ao mesmo tempo em que determinadas informações cedidas por sua mãe acerca de sua vida intrafamiliar passaram a coincidir com seus comportamentos na brincadeira de "casinha", conduzida por ela e pelo estagiário que a acompanhou.

Por condições éticas, a cliente terá seu nome real ocultado e será, ao longo de todo o texto, identificada como Fille. As demais pessoas que estiveram envolvidas não receberão nomes próprios, sendo identificadas neste trabalho com base em seu papel familiar ou funcional.

 

PSICOTERAPIA PSICODRAMÁTICA INFANTIL

De modo geral, a psicoterapia é destinada a atender pessoas de diferentes faixas etárias que estejam ultrapassando algum conflito pessoal, de ordem emocional ou comportamental, que não lhe é totalmente acessível, mas que se imagina ser possível enfrentar no processo psicoterápico (Tavora, 2001). Em razão das diferentes linhas teóricas, escolas de pensamento e abordagens psicoterápicas existentes, torna-se difícil produzir uma uniformização metodológica nesse campo (Barreto & Barletta, 2010).

Uma dessas abordagens psicoterápicas, o Psicodrama, entende o ser humano como ser de relações que é naturalmente espontâneo, criativo e sensível o suficiente para modificar sua relação com aspectos insatisfatórios da vida (Lopes & Dellagiustina, 2017). Para isso, investe-se na reedição de experiências, revividas em dramatizações, em vez de se fixar unicamente no material verbal trazido pelos pacientes (Lepsch, 2015). Na concepção de Almeida (2010), aproveita-se justamente do método teatral para permitir a livre expressão de sentimentos e emoções relacionados às cenas dramatizadas, visando à catarse de integração (atinente a mais alta percepção afetiva e intelectual do que se vive) como desfecho principal esperado no tratamento psicodramático.

As psicoterapias também se diferenciam no que se refere ao tratamento infantil, pois crianças não são "adultos em miniatura" como se convém afirmar, o que exige um manejo e concepções particulares sobre o infante, sobretudo se consideradas as especificidades e as limitações da infância. Apesar disso, subentende-se que características como empatia, interesse genuíno e elaboração de estratégias de ação sejam mantidas, na psicoterapia adulta ou infantil (Patterson & Eisenberg, 2013). No trabalho com crianças, a psicoterapia psicodramática explora a imaginação do infante ao mesmo tempo em que requer a criatividade do psicoterapeuta, de tal modo que por meio dessa combinação seja possível ter acesso à sua visão de mundo, com suas vivências, suas recordações e seus aprendizados (Lepsch, 2015). O Psicodrama favorece também a oportunidade de as crianças liberarem suas emoções e alcançarem papéis positivos de seu repertório (Amatruda, 2008).

É requerido ao psicoterapeuta de base humanista-existencial garantir que a criança possa reencontrar a si mesma e consiga ressignificar seu sofrimento, havendo necessidade de que haja abertura e espaço para o conteúdo não verbal que ela comumente traz (Costa & Dias, 2005). Uma das vias mais oportunas para isso estaria no brincar: por ele, a criança é capaz de explorar a si própria, pode (re)examinar situações tensas e conflituosas e responder de modo criativo a elas (Carvalho & Queiroz e Melo, 2017).

Conforme apontado por Motta (2002), o jogo possui um importante papel no Psicodrama, pois é um meio pelo qual o infante estimulará sua espontaneidade criativa e sua capacidade imaginativa e fantasiosa, além de poder compensar limitações, resolver impasses e resgatar o equilíbrio que o liga a si mesmo e ao seu ambiente. A autora afirma ainda que a característica lúdica natural da infância é estimulada para fins terapêuticos e de investigação. Ao se aproveitar dessa natureza infantil, o psicodramatista torna a brincadeira uma relevante ferramenta de trabalho, que pode ser efetiva na produção de uma espontaneidade criativa, bem como capaz de propiciar o contato com "verdades internas".

Essas "verdades" se manifestariam no plano da fantasia, por meio do qual as crianças têm de lidar com emoções atrativas e/ou repulsivas e desempenhar papéis condizentes com suas experiências no limite do real e do imaginário (Pinto, Lima, & Costa, 2009). Mesmo o contato com o patológico, na forma de papel complementar nocivo, pode adquirir um sentido salutar, especialmente quando permite ao infante ser criativo interpessoalmente e capaz de experimentar novas experiências (Wechsler, Santos, Santos, & Silveira, 2014). Concordando com Moreno (1997) sobre a solução de problemas com clientes infantes, Amatruda (2008) considera que o Psicodrama é, em si mesmo, um método efetivo no tratamento de crianças tanto por sua capacidade cognitiva em desenvolvimento, aliada ao interesse pelo novo, como pela liberdade para expressar sentimentos e pelo "amor à ação".

Baseando-se nisso, seria uma (quase) "perfeita verdade" a conclusão de que na maioria dos atendimentos psicológicos com crianças a dramatização dure praticamente toda a sessão, em razão de a estrutura pragmática infantil não permitir a mesma vazão de material interno mediante a verbalização (Alegre, 1982). Talvez por essa condição clínica os clientes infantes se apossem com tanto domínio do espaço psicoterápico e o tornem seu ambiente de manifesto pessoal daqueles sentimentos e emoções silenciados, constrangedores ou reprimidos que afetam o bem-estar se não drenados por meio da expressão (Kellermann, 1998).

O referido controle infantil requer um novo dimensionamento às práticas do psicoterapeuta de inclinação psicodramática que atende crianças: com sua capacidade diretiva comprometida, é crucial não ficar à margem da dramatização (Alegre, 1982). Algo que Lepsch (2015) ressalta quando afirma que a psicoterapia infantil exige um resgate pessoal da criança interior do psicoterapeuta, que se unirá à criança atendida e fortalecerá a relação de confiança e naturalidade necessária ao processo psicoterápico. A autora aponta, ainda, que, por meio de técnicas e instrumentos, pode-se permitir ao infante o desempenho de papéis evitados, a fim de aproveitar do lúdico os conteúdos que permitam o confronto com os conflitos subentendidos na brincadeira.

Nesse universo lúdico, os brinquedos também são ferramentas importantes (Lopes & Dellagiustina, 2017). Patterson e Eisenberg (2013) asseveram que o brinquedo assume uma função comunicativa sobre a própria vida real da criança, que não se inibe, pois adquire segurança com esse objeto. Segundo os autores, é observável, portanto, que a brincadeira infantil leve à catarse: no desenhar e no brincar com bonecos, por exemplo, podem-se exprimir emoções ou comunicar sobre a dinâmica familiar, ou seja, a brincadeira deve ser vista com base nos significados pessoais que acarreta. Assim, no Psicodrama, essas e outras figuras inanimadas passam a ser uma representação viva dos personagens existentes na vida real mediante o contexto dramático encenado (Carvalho & Queiroz e Melo, 2017).

Independentemente das idiossincrasias pertinentes às artes psicoterápicas existentes e, igualmente, ao diferencial manejo no tratamento à criança em sessão psicodramática, subentende-se que a inclusão colaborativa dos pais/responsáveis no processo psicoterápico é um catalisador ao seu progresso, uma vez que eles, muitas vezes, dispõem de recursos naturais extremamente úteis à tríade família, infante e psicoterapia (Costa & Dias, 2005). O desenvolvimento emocional da criança, suas ações posteriores e o bom desempenho de papéis dependem de uma relação familiar saudável (Carvalho & Limaverde, 1994).

São as relações em sua dimensão de reciprocidade que modelam e expandem os papéis das crianças em seus átomos familiares e sociais. Essas relações têm uma importância que vai além do agregar de papéis, pois representam, do mesmo modo, fontes de saúde psicológica (Amatruda, 2008). Quando os pais se percebem incapazes de desempenhar seus papéis adequadamente, a psicoterapia surge como um caminho de se restabelecer dos conflitos não resolvidos que geralmente envolvem o pai, a mãe e o filho (Carvalho & Limaverde, 1994), cabendo à criança "denunciar", simbolicamente, as disfuncionalidades existentes nesse sistema (Costa & Dias, 2005).

 

APRESENTAÇÃO DO CASO

A princípio, a mãe de Fille buscou acompanhamento psicológico para sua filha queixando-se da mudança de comportamento que ela vinha demonstrando há cerca de um ano e que estava prejudicando seu desempenho na escola: sua média escolar havia declinado significativa e rapidamente; ao mesmo tempo, seu comportamento em sala de aula chamava a atenção por ser estereotipado em determinadas circunstâncias. Além disso, na relação com sua irmã mais nova percebiam-se atitudes de rejeição, principalmente agressões físicas e declarações hostis. Durante o segundo semestre de atendimentos a Fille, sua mãe apresentou como principais demandas o desleixo, a desorganização, a rebeldia e a agressividade da cliente. As duas primeiras características eram, amiúde, manifestadas em comportamentos escolares, e as duas últimas, em relação à mãe da cliente.

Fille foi filha única durante pouco mais de dois anos. Após o nascimento de sua única irmã, ela passou a receber menos atenção da mãe, que concentrou seus cuidados à caçula, ainda bebê. Nesse período, a cliente vivenciou a separação dos pais, conturbada por brigas e discussões, e ficou sob a guarda da mãe na casa dos avós paternos, onde residia na época em que o acompanhamento psicoterápico ocorreu. Depois de se separar, o pai de Fille foi se tornando mais ausente em relação a ela e sua irmã e mais agressivo e hostil em relação à mãe da cliente. Um ano antes de ser acompanhada na psicoterapia, Fille presenciou uma luta física entre o pai e o avô paterno em sua casa. A partir desse evento, a cliente começou a reagir a situações de conflito, como discussões ou mesmo o barulho ambiente produzido pelos colegas de sala de aula, tapando os ouvidos com as próprias mãos ou com bolinhas de papel feitas por ela mesma.

Em virtude do trabalho, a mãe da cliente tornou-se demasiado ausente em relação a Fille e sua irmã, acompanhando o desenvolvimento das crianças raramente. Os cuidados, dessa forma, recaíram sobre a avó paterna das crianças. A relação da cliente com seus familiares nucleares apresentava conflitos latentes e outros aparentemente abertos. Segundo avaliação psicopedagógica solicitada pela escola onde a cliente estudava, formulada meses antes do acompanhamento psicoterápico, a dimensão afetivo-social era marcada por sentimentos positivos em relação à mãe, aos avós e à irmã e negativos a respeito do pai.

A relação com sua irmã parecia ambígua: considerando o relato materno, Fille tinha atitudes hostis, agressivas e de rejeição; contudo, baseado em observações feitas na instituição de atendimento psicológico e nos relatos da cliente, o relacionamento demonstrou certa amorosidade e senso de proteção. De acordo com a avaliação da cliente, metaforicamente desenvolvida por ela mesma utilizando desenhos de animais, o avô paterno e a mãe tinham como principal característica a agressividade e a impaciência; enquanto a irmã e a avó paterna tinham característica não ofensiva. Na escola, Fille tinha poucos relacionamentos interpessoais com crianças de sua classe, além de não costumar interagir nos períodos de intervalo (recreio) com outros colegas. A cliente não faltou a nenhuma das sessões durante todo o período de acompanhamento psicoterápico.

 

DISCUSSÃO DO CASO

Nenhuma outra atividade lúdica - escolhida pelo estagiário ou pela própria cliente - permitiu maior ou igual aproximação com sua situação íntima quanto a brincadeira popularmente chamada de "casinha". Essa brincadeira não sofreu interrupções em nenhuma situação e manteve constantemente alguns personagens fixos à história, entre eles a "filha", a "mãe" e a "avó", desempenhadas por Fille, e o avô/pai, desempenhado(s) pelo estagiário1. Os bonecos que representavam esses personagens amiúde eram os mesmos em todas as sessões em que a "casinha" acontecia, embora personagens "coadjuvantes" tivessem sido incluídos ou excluídos ao longo dos atendimentos.

A relação de Fille com o avô paterno, considerado "bravo" por ela, demonstrava situar o locus nascendi de um conflito interpessoal não suportado pela infante, que parecia torná-la incapaz de se impor à autoridade do patriarca de sua família. Na "casinha", a principal personagem de Fille, a "filha", frequentemente tinha atitudes hostis ou com explícita intenção de prejudicar o avô/pai. Percebeu-se, ao longo do processo psicoterápico e dessa brincadeira específica, que haviam sentimentos negativos destinados à figura adulta do sexo masculino mais próxima à cliente, representados no seguro clima lúdico de comunicação por meio de um brinquedo, e que eram concretizados em personagens de um conflito aparentemente fictício (Carvalho & Queiroz e Melo, 2017; Lopes & Dellagiustina, 2017; Patterson & Eisenberg, 2013).

Bermúdez (1975, como citado em Soliani, 1993) justifica que a existência de dificuldades em representar cenas reais temidas facilita o deslocamento do enfrentamento do conflito para dramatizações virtualizadas com novos personagens, inclusive o protagonista, porém, num mesmo enredo dramático. Essa possibilidade de exprimir sentimentos e emoções por meio da brincadeira, qualidade tão característica no lúdico em psicoterapia (Patterson & Eisenberg, 2013), foi essencial para que Fille pudesse assumir posturas de dominação daquele "mundo" e de transgressão ao possível controle e restrição vividos com os adultos fora daquele âmbito (Lepsch, 2015). Tanto o desempenho desses novos papéis como o desenvolvimento de novas respostas só foram possíveis pela realidade suplementar (Carvalho & Queiroz e Melo, 2017; Pinto et al., 2009).

O espaço psicodramático demonstrou ser singular para os destacados sentimentos negativos e agressivos, em virtude da possibilidade de a cliente poder viver a imaginação da realidade (Motta, 2002) e, quiçá, obter prazer (Monteiro, 1993). Na "casinha", Fille podia agir e sentir-se "blindada", ou seja, sem receio das reações daquele que ela conduzia à brincadeira: o avô/pai. Não obstante, esse sentimento de retaguarda permitido pela brincadeira parecia ser consonante à satisfação em poder agredi-lo. Não era incomum que ela dirigisse o comportamento do personagem desempenhado pelo estagiário e buscasse controlar suas ações em direção à reação que desejasse, ainda que nesses casos o objetivo fosse desempenhar os contrapapéis esperados numa relação menos persecutória no "como se" (Alegre, 1982).

A conduta vingativa direcionada ao avô/pai dava-se por meio da ludibriação: por vezes, esse personagem era estimulado, solicitado e, por força da direção de Fille, coagido a ir ao banheiro e se banhar, tendo a repetida surpresa de que o personagem se molhava com molho de tomate, e não com água. Ao satisfazer o plano arquitetado pela "filha" da família virtual, a cliente manifestava contentamento e alegria. Pôde-se criar a hipótese de que eram "retaliações infantis", ainda não elaboradas, uma vez que poderiam estar sendo expressas somente ali - e quando não, eram reprimidas. Esse, porém, não era o único comportamento hostil de Fille por meio das personagens. A violência concretizava-se por meio de xingamentos, verbalizados pela "filha" ou pelo grupo familiar da personagem.

Ao dirigir a cena dramática, a cliente parecia buscar romper a relação assimétrica com as figuras familiares ali presentes como desejava fazer com o avô e, talvez, o pai, como se quisesse não reproduzir o simbolismo familiar a respeito da hierarquia nas relações do átomo social de onde pertencia, mas que não tinha sido criado por ela; afinal, nenhuma criança nasce simbolizando (Soliani, 1993). Entretanto, a expressão da demanda afetiva por Fille deu-se pelo simbólico. Dois motivos reforçam essa concepção: por um lado, enquanto criança, ela era praticamente incapaz de verbalizar o que lhe causava sofrimento, assim como formalizar uma "demanda" explícita (Alegre, 1982; Patterson & Eisenberg, 2013); por outro, era mais fácil se comunicar por meio da fantasia, representando seus dilemas metaforicamente (Amatruda, 2008).

A violência durante a "casinha" era uma forma de comunicação e subentendia uma retaliação, não uma conduta antissocial por parte de Fille, sendo sua agressividade uma expressão de desamparo (Pinto et al., 2009), especialmente em relação à figura do pai que a abandonou e foi substituída pelo avô como modelo masculino. Todavia, diante do padrão reativo (Tavora, 2001) assumido por Fille para sustentar a saúde da relação afetiva em sua família, especialmente no que tange à situação de autoridade, surgiu o questionamento: as dramatizações lúdicas concretizavam acting outs ou experiências emocionais corretivas? Aparentemente ambas: por vezes, a dinâmica da brincadeira revelava algo tácito, oriundo de um conflito de difícil acesso que precisava de uma passagem ao ato (Moreno, 1997), mas que também adquiria abertura para expressar a agressividade da "filha" ao avô/pai e de Fille a alguma figura masculina com facilidade e à vontade (Fleury, 1999).

Alegre (1982) aponta que o papel social do brincar torna o psicoterapeuta apto a participar como personagem na perspectiva das crianças. O que é algo profícuo, uma vez que ao fazê-lo investido num papel o psicoterapeuta pode desempenhar papéis complementares que favoreçam a saliência das fantasias agressivas que têm relação com aquele papel (Batman e Pinguim, polícia e ladrão etc.), bem como a manifestação de fantasias imaginadas (Carvalho & Queiroz e Melo, 2017) e comportamentos que não seriam notados em circunstâncias reais (Lepsch, 2015). Poder expressar suas fantasias, seus comportamentos e seus sentimentos sem qualquer censura tornou a "casinha" uma experiência catártica (Kellermann, 1998). Desse modo, não cabe indagar quanto a "casinha" respondia como atividade exclusivamente lúdica, fantasiosa ou terapêutica.

A forma subjaz com que Fille dirigia o enredo, as cenas e os personagens destacava o plano consciente de um devaneio comum ao lúdico na infância. A similaridade de características do personagem assumido pelo estagiário aproximava a criação da cliente às figuras reais que pareciam estar ali: o avô ora era tratado como pai, ora chamado de "vovô"; sua única e principal característica era ser rabugento, bravo e/ou raivoso; em dados momentos de insatisfação da "filha" ao personagem do estagiário, o então avô se tornava "o pior pai do mundo" (parte de uma exclamação realizada por Fille numa espécie de insulto coletivo de toda a família da "casinha" ao personagem do estagiário em certa sessão).

Esses momentos de coalizão entre aquela família fantasiosa e de possíveis membros de sua família real (Monteiro, 1993) tornavam Fille uma criança com "momentos de jogo", cuja habilidade em se manter espontânea era influenciada por estressores internos, manifestados, por exemplo, pela repetição (retaliações, bonecos, enredo) que exteriorizava um conflito iminente capaz de romper com sua espontaneidade (Ferrari, 1980). Assim, ao emitir suas frustrações e seus conceitos negativos sobre o avô/pai, Fille saía do papel assumido e deixava o jogo. Apesar disso, esse movimento também pode ser entendido como terapêutico, pois ela buscava uma forma de desconstruir o padrão reativo de obediência que provavelmente se cristalizou em função de uma ou mais vivências perturbadoras (Tavora, 2001).

Escolher o jogo - que já não era apenas uma atividade motora ou uma brincadeira puramente lúdica e inocente - lhe favorecia ter uma alternativa econômica do ponto de vista da ação: a substituição de uma atitude agressiva desejável, como insultar ou zombar do avô na vida real, por atitudes simbólicas que representassem seus sentimentos negativos em relação a essa figura na cena dramática (Motta, 2002). Essa redução da ação apenas foi possível com a vivência em realidade suplementar: poder viver na "pele" de outrem, figura real ou aparentemente similar, algo que permitisse à cliente-protagonista alcançar o sucesso com base nas dramatizações (Soliani, 1993).

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Mesmo o período de hiato que fez a cliente não escolher a brincadeira de "casinha" por algumas sessões não impediu que ao retomá-la a dinâmica já apresentada fosse repetida. Grande parte do conflito vivido por Fille pareceu ter fonte na dificuldade dela em se relacionar com a figura de autoridade do avô, que possivelmente se porta com parte da agressividade denunciada por ela em outros momentos. Todavia, entende-se que o desgaste emocional a desamparava e a tornava suscetível a reagir sem um sentimento de suporte que poderia encontrar no pai ou na mãe, ambos ausentes por diferentes motivos.

Se, como apontado por Alegre (1982), Fille sabia que estávamos tratando dela ao desenvolver a "casinha", poder-se-ia considerar o aspecto positivo e psicodramático objetivado nessa abordagem: a consciência do próprio conflito, do "eu" e das respostas livres e latentes existentes.

Portanto, destaca-se a relevância da experiência lúdica no desenvolvimento do processo psicoterápico infantil. Para o psicoterapeuta, o contato com esse canal de comunicação pode significar a única chave que o liga à vida afetiva, psicológica e conflituosa da criança. É a única forma de ter acesso a seu material genuíno sem se servir absolutamente dos dados fornecidos por seus responsáveis, seja em termos de patologia e saúde, problemática, vícios e virtudes, entre outros. No presente caso, pôde-se entender com o passar das sessões que a brincadeira de "casinha" não era mais um jogo qualquer, cristalizado; pelo contrário, revelava algo interno, provavelmente revivido em cada sessão.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido: 12/12/2017
Aceito: 04/07/2018

 

 

1 Personagem único que ora era chamado de "avô", ora de "pai".

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