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Revista Brasileira de Psicodrama

versão On-line ISSN 2318-0498

Rev. bras. psicodrama vol.26 no.1 São Paulo jan./jun. 2018

http://dx.doi.org/10.15329/2318-0498.20180003 

ARTIGOS INÉDITOS

 

O acompanhamento terapêutico como multiplicador de egos auxiliares

 

Therapeutic attendance as a multiplier of auxiliary ego

 

Acompañamiento terapéutico como multiplicador de egos auxiliares

 

 

Daniel C. R. Gulassa

Psicólogo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Psicodramatista didata e terapeuta de aluno pela Sociedade de Psicodrama de São Paulo (SOPSP). Coordenador do setor de pesquisa e tratamento de dermatotilexomania do Ambulatório Integrado dos Transtornos do Impulso (PRO-AMITI) no Instituto de Psiquiatria do HC-FMUSP. E-mail: danielgulassa@hotmail.com

 

 


RESUMO

O acompanhamento terapêutico (AT) é uma intervenção terapêutica que trabalha com o sujeito acompanhado em lócus variados - casa, trabalho etc. O ego auxiliar (EA) é um instrumento psicodramático de tratamento que ajuda a vincular, revelar situações e superar conflitos, por meio da interação entre as partes, buscando desenvolver relações mais saudáveis. Pretende-se aqui explanar sobre o AT com ênfase em sua função de EA e de multiplicador de EAs na comunidade. Para tal, será apresentada a descrição de dois casos de AT cujo processo facilitou o desenvolvimento de EAs na comunidade para que os acompanhados transitassem nesta de forma mais satisfatória. A presença de EAs na comunidade catalisou o processo de inclusão social dos acompanhados.

Palavras-chave: acompanhamento terapêutico, ego auxiliar, psicodrama, intervenção terapêutica, comunidade


ABSTRACT

The therapeutic attendance (TA) is a therapeutic intervention that works with the patient in varied locations - home, work etc. The auxiliary ego (AE) is a psychodrama treatment instrument that helps to bond, reveal circumstances and overcome conflicts through the interaction between the parties, looking for developing healthier relationships. Our goal is to explain the TA focusing on its function of AE and multiplier of AEs in the community. To this end, a description of two cases of TA will be presented, which helped the development of AEs in the community so that those who were accompanied could pass through in a more satisfactory way. The presence of AEs in the community catalyzed the process of social inclusion of the accompanied ones.

Keywords: therapeutic attendance, auxiliary ego, psychodrama, therapeutic intervention, community


RESUMEN

El acompañamiento terapéutico (AT) es una intervención terapéutica que trabaja con el sujeto acompañado en locus variados - casa, trabajo etc. El ego auxiliar (EA) es un instrumento de tratamiento del psicodrama que ayuda a vincular, revelar circunstancias e superar conflictos, a través de la interacción entre las partes en la búsqueda del desarrollo de relaciones más saludables. Se pretende aquí explicar el AT con énfasis en la función de EA y de multiplicador de EAs en la comunidad. Para ello se presentará la descripción de dos casos de AT cuyo proceso facilitó el desarrollo de EAs en la comunidad para que los acompañados transitasen de forma más satisfactoria. La presencia de EAs en la comunidad catalizó una inclusión social de los acompañados.

Palabras clave: acompañamiento terapéutico, ego auxiliar, sicodrama, intervención terapéutica, comunidad


 

 

1. INTRODUÇÃO

O Acompanhamento Terapêutico (AT) é uma intervenção terapêutica que amplia o mundo do sujeito acompanhado ao trabalhar com este em lócus variados - em casa, espaços de lazer, de estudo ou de trabalho -, o que reforça sua vinculação psicológica e geofísica com espaços para além de sua casa ou do hospital, auxiliando-o em papéis não associados ao de doente. O intuito deste artigo é apresentar o AT pela perspectiva do psicodrama e, a partir daí, dar ênfase numa função pouco explanada do acompanhante terapêutico (at) - a de multiplicador de egos auxiliares (EAs). O EA é um instrumento de tratamento do psicodrama em que se contracena com o paciente projetando seu mundo, ajudando-o a orientar-se (Moreno, 1946/2002). O at já exerce as funções de EA do acompanhado, mas pode ainda mais, com a sensibilização para novas relações ou ajuste de antigas para despertar EAs na comunidade do acompanhado. O próprio Moreno diz em sua autobiografia que:

Escapei do destino do esquizofrênico, ... fui capaz de despertar pessoas ao meu redor para se identificarem comigo e de criar, com a ajuda delas, um supramundo no qual eu podia testar meu papel profético num ambiente comparativamente seguro, feito sob medida pra mim ... (Moreno, 1989/1997, p. 44).

Logo, uma rede de EAs mobilizados na comunidade pode fazer o acompanhado exercitar sua socialização, equilibrando adequação e liberdade, afastando-o de um isolamento e mais ainda do isolamento compulsório da internação.

Esse texto trata-se de uma releitura de uma monografia realizada para a formação em Psicodrama pela SOPSP/PUC-SP apresentada em 2006. Os dois casos de AT que serão descritos referem-se a pacientes psiquiátricos crônicos, diferenciados em termos de preservação de habilidades, personalidade e diagnóstico, e que exemplificam processos distintos de multiplicação de EAs para uma vida mais saudável do indivíduo. A motivação para essa releitura foi o conhecimento de que nenhum deles voltara a ser internado, nem voltaram a ter o hospital como principal atividade social - informações confirmadas quando logradas as autorizações para esta publicação 15 anos após o término dos ATs. Seus familiares enfatizaram que Jamal continuou, ainda por muitos anos, frequentando os cursos que iniciaram durante o processo de AT aqui descrito e Artur nunca deixou de ser acompanhado por um at. Essas informações reforçaram no autor a hipótese de que os EAs, sejam ele treinados profissionalmente para tal ou não, foram importantes para a longevidade da não institucionalização desses indivíduos. Surgiu com isso a ideia de rever esses ATs, com ênfase em sua função de desenvolver ou ajustar EAs dos pacientes na comunidade.

O AT surge como um dispositivo cuja maior especificidade está em acontecer na rua, em casa, fora dos contextos institucionais de tratamento e com o objetivo de construir projetos de vida viáveis ao indivíduo com sofrimento mental grave (Sereno, 2012). A clínica do AT é uma intervenção com característica desinstitucionalizante e tem alcance não apenas técnico, mas também cultural e macropolítico, para ser capaz de expandir a reforma psiquiátrica por onde ela ainda não operava (Disconsi, Cavedon, Greff, Chassot, Galvão, Leães, & Carvalho, 2013). Sua clínica ampliada também é fortemente comprometida com a inclusão social, na luta pela diferença (no sentido da singularidade) e ao mesmo tempo pela igualdade (no sentido dos direitos e dos deveres de todo cidadão) (Batista, Flor & Silveira, 2017). O enfoque na inclusão social é fundamental no AT e se diferencia de um falso ideal de cura ou de eventual abstinência de sintomas (Silveira, 2016a).

A seguir, listamos algumas das funções do at, não como forma de restringir sua atuação, mesmo porque esta é uma intervenção que ainda não tem um consenso científico e ainda sofre alterações (Marco & Calais, 2012), mas como forma de identificar o que a literatura já mapeou para esse fim. Martin (1998) considera como algumas das principais funções do at: ser modelo de identificação; exercer a função de espelho com o objetivo de propiciar ao paciente a crítica sobre os próprios comportamentos; ser ego auxiliar, ou seja, desenvolver funções egoicas, auxiliando na organização, na apresentação pessoal e na condução de situações; reintegrar o paciente à sociedade, participando do desenvolvimento de novos papéis sociais; favorecer o desenvolvimento de perspectivas pessoais e profissionais; intervir junto ao meio familiar; ampliar a visão da equipe interdisciplinar. Neto, Pinto e Oliveira (2011) mencionam a função do at de ser um aparato terapêutico extramuros que pode oferecer uma contenção simbólica àquilo que poderia se tornar excessivo e capaz de levar o paciente a uma internação. Silveira (2016b) descreve no processo de AT o desenvolvimento do que denomina amizade-clínica, caracterizada por uma relação com maior simetria, mutualidade e proximidade do que se considera habitualmente numa relação terapêutica, rompendo-se com as relações de poder predeterminadas. Palombini (2009) enfatiza o empoderamento afetivo e político dos pacientes para rearranjar as relações de força entre loucura e cidade. Gruska e Dimenstein (2015) sugere ainda que o AT contribui na consolidação dos direitos do paciente no que se refere ao cuidado, à assistência e ao suporte social, em sintonia com as diretrizes internacionais de saúde mental que preconizam o aumento da autonomia pessoal, o funcionamento psicossocial e a integração social do sujeito com transtornos mentais.

O EA, pela perspectiva do psicodrama, é um agente terapêutico com tripla função: Ator - contracenar com o protagonista, vincular-se com este, mergulhar em seu mundo particular (Moreno, 1959/1983); Agente Terapêutico - desempenhar um ego mais estruturado que contribui na elaboração de contradições expostas dos vínculos do sujeito (Aguiar, 1990); Investigador Social - retroalimentar ideias e percepções do protagonista por meio de suas falas e suas ações (Zilberstajn, 2004), e pode ainda tornar-se auxiliar a distância, com aproveitamento da terapêutica distribuída na comunidade (Moreno, 1946/2002). Os aspectos "ator", "investigador social" e "agente terapêutico" trabalham, respectivamente, com o "vínculo", a "revelação" de novas perspectivas e a "superação" de impasses. O EA psicodramático então se torna uma extensão do paciente, do terapeuta e do grupo, jogando papéis do paciente, agindo terapeuticamente, ou dando voz a valores grupais e sociais. No Brasil, tivemos influência de dois modelos de EAs (ambos utilizados por Moreno, criador do psicodrama): os EAs profissionais e os EAs não profissionais (sem treinamento prévio), extraídos dos grupos terapêuticos (Zilberstajn, 2004). O at pode ser visto como um EA profissional que se sensibiliza no acompanhar, mas também sensibiliza a comunidade, e acompanhado por meio da elaboração conjunta de uma interação saudável entre todos. Membros da comunidade, ao aprenderem um caminho de interação saudável com o paciente, tornam-se EAs não profissionais na comunidade que, junto com o paciente - que os elege para participar de seus dramas -, fazem-se agentes de inclusão social. Para Moreno (1959/1999), a terapêutica está distribuída na comunidade e, por meio do princípio da interação terapêutica, qualquer paciente, indivíduo ou grupo tem potencial capacidade de exercer um efeito terapêutico para qualquer paciente, indivíduo ou grupo. Moreno revela sua predileção para os egos auxiliares "naturais" aos profissionais. Moreno (1946/2002) diz que o EA pode libertar, no caso de pacientes psicóticos, de uma das formas mais extremas de solidão - a alucinação, seja apoiando-o, seja construindo um mundo auxiliar. Para Goulart (1998), o louco precisa de quem o acompanhe em sua loucura, para que seu universo social seja reconstruído - e a própria estruturação do Eu pode ser medida por meio de suas relações interpessoais.

O Eu, por sua vez, surge a partir do desempenho de papéis (Moreno, 1946/2002). O lócus onde nascem os papéis, e o Eu, por sua vez, é denominado Matriz de Identidade - a placenta social onde se localizam as raízes do indivíduo. Volpe (1982) explica as três fases da matriz de identidade proposta por Moreno: 1- Indiferenciação: nessa fase, não há na criança diferenciação entre interno e externo, entre psíquico e ambiente. 2- Reconhecimento do Eu: nessa fase, a criança percebe que seu corpo é próprio e diferenciado dos outros e passa a identificar as diferentes sensações corporais. O outro, no entanto, ainda é visto apenas como alguém que está em função do Eu. 3- Reconhecimento do Tu: nessa fase, cria-se condições de discriminação dos outros entre si e finalmente permite colocar-se no lugar dos outros, aprendendo uma visão espontânea e realista de si e do mundo. A superação das fases da matriz, no entanto, caso não ocorra, pode desenvolver cristalizações que geram padrões repetitivos de ações - fixações - que causam distúrbios de percepção (Volpe, 1982). Uma fixação na primeira fase se dá quando a individualidade da criança é negada, e ela se torna apenas desejo dos pais, incapaz de diferenciar-se do meio circundante (Naffah Neto, 1979). A fixação na segunda fase se dá quando os pais não dão limites que restrinjam a onipotência característica do momento em que a criança explora e se sente dona do ambiente. Ela poderá ter dificuldades em encarar limites, além de gerar dificuldades de contato com o Tu e de estabelecer relações afetivas verdadeiras (Fonseca Filho, 1980). Finalmente, na terceira fase, a criança conhece seu lugar real no mundo, criando condições de perceber a si e ao outro (Volpe, 1982). A identificação das três fases da matriz de identidade são importantes, pois para cada uma existe uma intervenção correspondente: Duplo - o terapeuta procura "dar voz" ao que o paciente tem dificuldade em expressar, sendo útil quando o paciente está indiferenciado de outro(s); Espelho - faz com que o paciente seja espectador de si mesmo, útil para sua autopercepção e redirecionamento de seu comportamento de forma consciente; Inversão de papéis - o estágio mais evoluído procura desenvolver a percepção do outro, gerando múltiplas percepções de realidade. Ou seja, o EA pode utilizar as técnicas do duplo, do espelho e/ou da inversão de papéis para buscar com o acompanhado o alcance de uma fase da matriz mais evoluída (Freitas, 2003).

O objetivo deste artigo é desenvolver uma compreensão sobre a função do at para além de ser um EA do acompanhado, ajudando-o a selecionar e adequar EAs não previamente treinados da comunidade para interações saudáveis e cidadãs nos diferentes aspectos de sua vida - caracterizando um efeito multiplicador.

 

2. MÉTODO

Trata-se de um estudo de dois casos de AT com indivíduos adultos portadores de transtornos psiquiátricos graves e crônicos (esquizofrenia paranoide e depressão psicótica). Jamal e Artur (nomes fictícios) foram acompanhados por aproximadamente um ano e meio cada, com encontros semanais e duração entre uma e três horas, a depender da proposta de cada encontro.

O registro da intervenção se deu inicialmente de maneira abrangente, considerando os comportamentos espontâneos dos envolvidos e os instrumentos sociátricos utilizados, principalmente o princípio do duplo (que ajuda o paciente a expressar-se) e o espelho (que ajuda o sujeito a se perceber agindo). Para a compreensão dos casos, consideramos e se manteve todos os recortes do acompanhamento que lançassem luz às suas funções de at e EA e sua especificidade de multiplicador dos EAs na comunidade. Os relatos foram autorizados expressamente por meio do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), mantêm o sigilo de identidade dos acompanhados e estão em consonância com a Resolução CNS 196/96 (pesquisa com seres humanos) e a Resolução CNS 510/2016 (normas de pesquisas nas áreas de ciências sociais e humanas envolvendo seres humanos).

 

3. DESCRIÇÃO DOS CASOS

O caso Jamal - Aos 39 anos, Jamal, filho de imigrante, tinha muitos recursos preservados - como autonomia de locomoção, um trabalho de algumas horas por dia com o pai e também alguma rede social; no entanto, mantinha certa dependência com o hospital-dia (aqui denominado HD), inserido numa instituição psiquiátrica, por não planejar um futuro sem uma frequência quase diária neste. Ele tinha um histórico de várias internações psiquiátricas e gerava significativo incômodo nas pessoas ao seu redor por seu discurso sexualizado em relação às mulheres e seus comentários sobre suas saídas com prostitutas. A avenida que ligava sua casa ao comércio do pai, onde Jamal trabalhava, estava cheia delas - o que ele chamava de "caminho da primavera". Jamal se definia como um apreciador da beleza e admirava a beleza nas artes e nas mulheres. Ele não apenas frequentava regularmente os prostíbulos e o "caminho da primavera", como também levava outros pacientes do HD com ele. Ele apresentou o at às prostitutas e por vezes ele as presenteava. Uma delas o chamava de "maridão" e o filho dela de "nosso filho" - mas que não era dele. O at presenciou Jamal levar um brinquedo para ela, que pediu em seguida um videogame, pois o aniversário do "filho deles" estava próximo. O at instigou Jamal a pensar sobre o relacionamento entre eles. Ambos conversaram sobre a diferença entre amizade, namoro, paternidade, abuso e uma relação de prestação de serviço envolvendo dinheiro. Certo dia, depois de longa caminhada, Jamal resolveu levar o at a um prostíbulo. Em um metrô no centro de São Paulo, chuviscava e começava a escurecer. O at, buscando respeitar o próprio limite daquele dia, avisou-lhe que aquele não era um bom dia para tal. Jamal abriu seu guarda-chuva dizendo que iria de qualquer jeito. A confiança no bom vínculo estabelecido com seu acompanhado fez o at coconstruir o seguinte diálogo:

At: "Jamal, todos reclamam de sua compulsão por sexo. Eu nunca fui contra irmos a um prostíbulo, mas hoje não me parece apropriado: está escurecendo, você não sabe o caminho, estamos numa região perigosa, está chovendo; além disso, andamos bastante e eu estou cansado".

J: "Justo hoje? Você não pode fazer isso comigo! Vou de qualquer jeito!"

At: "Você tem todos os dias para ir atrás disso, vai querer abrir mão da hora de seu AT?"

Por uma coincidência, uma das prostitutas que o conhecia estava na estação distribuindo filipetas e o viu. Foi direto a ele dando-lhe um abraço e dizendo: "Que sorte te encontrar! Preciso de dinheiro pra voltar pra casa! Não tenho nada!". Ele ficou parado pensativo. A amiga dela estava com pressa e queria ir embora, o que fez a primeira pressionar mais ainda Jamal pelo dinheiro. Ele comentou: "Você só me quer pra isso, né?". Ela bateu nele com uma revista e foi embora. Jamal resolveu ir com o at a outro lugar, mas lhe disse que se sentia como que montado num cavalo raivoso e sem controle. O at disse-lhe para procurar as rédeas deste e comentou o slogan de um comercial de pneu: "Potência não é nada sem controle". Esse encontro abriu a possibilidade de Jamal se questionar depois sobre o porquê de não ter abandonado o at ali naquela hora. O que poderia ser mais importante do que um encontro sexual? Havia uma pressão familiar para que Jamal largasse as prostitutas. O AT questionava, no entanto, se Jamal estaria preparado para isso, ou mesmo se seria positivo para ele. Afinal, Jamal usava camisinha e tinha o sexo como motivação que o fazia movimentar-se - característica rara nos outros pacientes do HD. Ele uma vez dissera que se escrevesse um livro, seu nome seria: "As pernas que me convidam a viver a vida". O fato de o at não tentar impedi-lo de frequentar o prostíbulo e ajudá-lo a se proteger de uma relação exploratória com as prostitutas aumentou ainda mais o vínculo at-acompanhado. Com isso, o at e o acompanhado discutiram sobre ele "ser visto como 'louco' quando se comportava como um", a exemplo de não fazer diferenciação do tratamento que ele dava as prostitutas em relação às outras mulheres da sociedade. Cada contexto deveria merecer um tipo de tratamento adequado às suas características. Eventualmente o at até o imitou, quando a circunstância permitiu, em suas diferentes formas de lidar com as pessoas, tanto nos comportamentos que geravam resultado satisfatório quanto os com resultado insatisfatório, gerando em Jamal algumas gargalhadas tensas, mas também uma compreensão melhor de suas ações e suas consequências. Com o tempo, iniciou-se um processo em que Jamal começou a fazer atividades diversificadas pela cidade - cursos de escrita e de arte em um museu e de jardinagem em um parque. Jamal foi testado em novos papéis e novas formas de lançar mão de papéis antigos: era frequentador de prostíbulo, paciente de instituição psiquiátrica, mas também aluno, cidadão, questionador, curioso. Seu comportamento perdeu aos poucos um tom quase sempre extravagante e estereotipado para tornar-se de um espontâneo-criativo cada vez mais duradouro, principalmente com as mulheres, antes sua maior dificuldade. Ele aumentou sua rede social, ao mesmo tempo em que aprendeu a ser mais seletivo. Até sua interação com suas alucinações, que nunca cessaram, passou a se dar de forma mais tranquila. Uma consequência foi que pessoas da comunidade - algumas que revelaram nunca ter tido contato com um psicótico antes - aprenderam a interagir com Jamal de forma confortável e satisfatória para ambos. No HD, outros pacientes passaram a ver Jamal com admiração por suas conquistas, e Jamal passou a se descrever como um vencedor e que estava mais apto a lidar com suas dificuldades.

O caso Artur - Com seus 54 anos, aspecto envelhecido e voz grossa, Artur falava pouco, em geral da culpa que sentia por sua situação e agradecia a todos pelo trabalho que tinham com ele. Sua participação no HD estabilizara seu quadro, após 28 internações durante mais de três décadas. O HD passou a significar toda a vida de Artur fora de sua casa e de seu ambiente familiar. Sua dependência para com este era tamanha que sua grade de atividades era plastificada. Sua eventual alta era associada pela família e pela própria equipe do HD a uma reinternação eminente. No início do AT, as conversas eram um misto de animação, boa educação e respeito. Descobriu-se que ele gostaria de ter autonomia de ir e vir sozinho do hospital, pois vivera próximo dali toda sua vida, mas sua família, no intuito de ajudá-lo, o levava pra lá. Sua mãe achava que, como ela já não tinha forças pra ir ao HD andando, Artur também não teria, mas ela nunca lhe perguntou, nem ele nunca expressou seu desejo. Artur e o at começaram a sair do HD a pé. Artur olhava o chão constantemente, onde achava e recolhia pequenos objetos. Era matéria-prima para a arte que produzia em seu quarto. Artur também ficava muito cansado, não conhecia ou respeitava o próprio ritmo. O at disse-lhe que poderiam andar mais lentamente e foi apontando quando achava que ele estava cansado, até ele poder pedir sozinho para descansar, quando precisasse. Ele também, de início, queria que o at ditasse o caminho, até que se permitiu sugeri-lo, tornando-se em seguida o condutor da dupla. Em sua casa, criaram-se reuniões familiares mensais para Artur se expressar para com sua mãe. A mãe negou de início as percepções de Artur e as desqualificou, mas aos poucos aprendeu e até passou a querer ouvi-lo, pois a fez conhecê-lo melhor. Essa mãe ainda, quando limpava o quarto de Artur, jogava fora "algumas coisas inúteis" - os tais objetos recolhidos na rua e transformados em arte que tinham grande importância para ele. O at questionou sobre a opinião de Artur, visto que era o quarto dele, e iniciou-se ali um processo de negociação familiar sobre o que ficava ou não em seu quarto (já que este também não poderia ficar cheirando mal). Como Artur gostava de plantas e colecionava sementes, o at sugeriu que eles plantassem algumas destas em algum lugar fora de sua casa, o que os levou até uma Associação de Moradores de uma praça na região. A dupla apresentou-se à secretária da associação e explicou - um pouco o at, um pouco Artur - sobre quererem plantar sementes na praça. A secretária sensibilizou-se com a iniciativa e sugeriu que Artur cuidasse das plantas da associação. Ele gostou da proposta, mas ambos confidenciaram depois ao at o medo de falhar com o outro. O at então sugeriu a ambos que confiassem em suas habilidades sociais, afirmando que estaria próximo para qualquer auxílio, caso necessário. À secretária foi enfatizado sempre buscar ativamente incentivar Artur a se expressar, o que ela passou a fazer sempre. Ela também foi convidada a participar de uma reunião no HD para consolidar essa parceria. Quando isso ocorreu, ela participou de uma sessão de psicodrama em que um dos pacientes representou a única atividade que sabia fazer - engraxar sapatos. A secretária, sensibilizada novamente, propôs aos pacientes que, caso eles arrumassem uma caixa de engraxate, ela disponibilizaria um local na feira da praça para que pudessem trabalhar. Os pacientes (entre eles, Artur) construíram a caixa e ainda criaram uma cooperativa para organizar o revezamento dos engraxates e também para vender artigos feitos pelos pacientes na feira. O at auxiliou brevemente na mediação entre a associação da praça, a cooperativa de pacientes e o HD, até que uma psicóloga que se sensibilizou com a cooperativa se empenhou para sua consolidação. Uma senhora, sensibilizada com a busca dos pacientes de inclusão social por meio do trabalho, cedeu uma casa para ser a sede da ONG. Artur permaneceu como jardineiro da Associação e membro da cooperativa. Sua relação melhorou em casa, e no HD suas atividades foram se reduzindo até se tornarem apenas um acompanhamento medicamentoso.

 

4. DISCUSSÃO

A clínica ampliada do AT, com sua visão in loco do universo social do sujeito, associada a uma leitura diagnóstica psicodramática, no caso Jamal, indicou uma fixação deste na segunda fase da matriz - de reconhecimento do Eu -, pois buscava uma afirmação no mundo, mas necessitava de limites saudáveis para si e para outros. A ferramenta principal para manejar esse desafio é o espelho - a técnica psicodramática que auxilia com o intuito de que o sujeito se enxergue com certo distanciamento, para que se perceba agindo. Jamal não apenas percebeu que sua forma de agir gerava consequências insatisfatórias para si, mas também viu o at como um novo modelo de conduta, e que os limites que o at colocou na relação deles - de não aceitar a fazer tudo o que ele queria, na hora que queria, ou de não aceitar a sair com uma prostituta ali, pois não era a proposta do AT - não tinham uma intenção punitiva, mas sim de discriminação de papéis, até mesmo para não desviar o foco do objetivo daquela relação. Os limites que mantinham o at em seu papel profissional, e não de amigo, provavelmente ajudaram Jamal a entender o sentido do papel de prostituta como profissional, e não de alguém da família, e que as mulheres da comunidade tinham papéis bem distintos ao de prostituta. Ou seja, cada papel desempenhado, tendo respeitado suas características, sua proposta, seu limite e seu manejo específicos, nutriu um conforto e um resultado mais satisfatório na relação. Essa diferenciação teve consequências positivas, fazendo com que as contrapartes da relação pudessem desempenhar a função de EAs, por exemplo, com as prostitutas não o explorando mais financeiramente e o descapitalizando, ou as mulheres na comunidade não se sentindo constrangidas por um comportamento sexualizado descontextualizado. Tudo isso gerou uma ampliação da variedade de papéis que ele passou a exercitar no dia a dia, fazendo cursos e outras atividades, para muito além de seu papel de paciente psiquiátrico.

Já Artur estava fixado na primeira fase de sua matriz de identidade - de indiferenciação - sendo esta denunciada por sinais de simbiose com a mãe, além de poucos e desvalorizados canais de expressão. O instrumento essencial para trabalhar com esse tipo de desafio é o duplo - técnica psicodramática que auxilia o sujeito a discriminar e externar seus desejos e sua individualidade. O processo terapêutico com Artur teve então como mote o emprestar força e confiança para ele expressar-se, e a partir de seus desejos, sempre a partir de dados de realidade, galgar-se algumas realizações, respeitando um ritmo de viabilidade para tal. Tão importante quanto isso foi motivar os membros interessados da comunidade a seguir também um caminho de confiar em si, expressar-se, favorecer uma voz ativa de Artur, visando à realização de propostas em conjunto. A resultante foi uma sensibilização e uma mobilização de uma ampla rede de EAs, incluindo profissionais da instituição psiquiátrica que ele frequentava, participantes de uma associação de moradores e depois envolvidos com uma ONG. Essa mobilização articulou-se e tornou-se maior que o próprio caso do Artur, tendo como foco a inclusão social de pacientes psiquiátricos. Aos poucos Artur foi mudando a própria compreensão sobre si, de um zé-ninguém cujas conquistas jaziam num passado distante para um sujeito ativo, que escolhe, se expressa e realiza no aqui e agora. Seu papel de paciente deixou de ser sua única forma de ser no mundo e adquiriu uma importância menor em sua vida.

Se a multiplicação de EAs no AT de Artur se deu por meio de intervenção direta do at a membros da comunidade via aproximação e sensibilização, para Jamal esta se deu de forma indireta, pois esteve mais voltada ao aprendizado do acompanhado e à discriminação do modus operandi de cada papel desempenhado para que este mesmo elegesse e ampliasse os próprios EAs na comunidade.

Foi imprescindível, para o sucesso dos ATs descritos, um bom vínculo estabelecido entre paciente e at, além da identificação e da busca de aprimoramento de aspectos saudáveis e verdadeiros dos acompanhados em suas singularidades. Jamal, depois de ajustados certos limites, revelou suas qualidades de ser perspicaz, sociável e bem-humorado. Artur, sensível e educado, ao se expressar, não teve dificuldades em sensibilizar indivíduos da comunidade com o intuito de ajudá-lo. Foi fundamental ainda, para despertar os EAs da comunidade, acreditar e incentivar o princípio da interação terapêutica, que considera e estimula o potencial terapêutico de todos os envolvidos.

Se a estruturação do Eu pode ser medida por suas relações interpessoais (Goulart, 1998), ambos os casos descritos ampliaram seus espaços de circulação e diversificaram papéis saudáveis com base na interação com EAs na comunidade, a ponto do papel de paciente psiquiátrico tornar-se algo secundário - Artur com uma estrutura mais organizada e centralizada de EAs, e Jamal com EAs dispersos em vários espaços públicos na cidade de São Paulo. Muitos dos EAs da comunidade relataram nunca ter tido contato direto com indivíduos com transtornos psiquiátricos antes e declararam se sentir motivados a interagir com outros de mesma condição. O at, oferecendo suporte, motivação e sensação de segurança, facilitou no desenvolvimento das funções de EA nesses membros, para contracenar, elaborar e retroalimentar experiências saudáveis para todas as partes envolvidas, tornando-se todos participantes para ampliar a reforma psiquiátrica de desinstitucionalização de pacientes psiquiátricos.

 

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Enfatiza-se aqui a função do at de ser EA do acompanhado e - talvez mais importante - ajudar membros da comunidade a se tornarem EAs, possibilitando ao acompanhado escolher e modular seus EAs na comunidade. Nos casos descritos, ambos os acompanhados permaneceram com quadros e sintomas psiquiátricos graves, mas tiveram as consequências negativas diminuídas, e uma apropriação de suas vidas aumentada, reiterando a maior importância da saída do isolamento social do que da remoção dos sintomas. Os acompanhados tiveram suas relações transformadas, quando na comunidade, tornando-se mais desenvoltos, confiantes, cidadãos e espontâneo-criativos. A comunidade, principalmente por meio dos EAs não profissionais, também se transformou, tornando-se mais familiarizada, confiante, receptiva a se relacionar com pacientes psiquiátricos, enfim, verdadeiros agentes políticos na reforma psiquiátrica de desinstitucionalização.

 

6. REFERÊNCIAS

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Recebido: 06/04/2017
Aceito: 20/08/2018

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