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Revista Brasileira de Psicodrama

versão On-line ISSN 2318-0498

Rev. bras. psicodrama vol.26 no.1 São Paulo jan./jun. 2018

http://dx.doi.org/10.15329/2318-0498.20180013 

CARTAS AO EDITOR

 

Zerka Moreno: a delicadeza do feminino, um legado

 

 

Maria Inês Tavares Pinto Coelho

Psicóloga. Psicodramatista pelo Instituto J. L. Moreno em São Paulo e Buenos Aires. Professora-supervisora pela Febrap. Coautora do livro "Simplesmente amigo..." e "Psicodrama nas instituições públicas". E-mail: inestpc@hotmail.com

 

 

Durante o 21º Congresso de Psicodrama, realizado em abril de 2018, participei de uma conferência intitulada "Encontro com Márcia Bernardes - Um tributo a Zerka Moreno e Jacob Levy Moreno", tendo sido convidados a emprestar suas falas: o filho do casal, Jonathan Moreno, e os psicodramatistas Dalmiro Bustos, José Fonseca, Sergio Perazzo e Sérgio Guimarães.

A cada um coube prestar depoimento sobre o mais significativo e marcante momento em seu convívio com Zerka.

Ouvir sobre ela me fez lembrar dos privilegiados momentos em que estivemos juntas. Além disso, fiquei a indagar o que eu teria dito sobre ela, uma das mais marcantes mulheres e profissionais que conheci em minha vida. E que olhares teriam sido revelados, minhas colegas, psicodramatistas femininas, sobre a maior expoente na divulgação do psicodrama?

Assim, passados uns dias, decidi compartilhar esses momentos por meio desta carta.

No "aqui e agora", encontro Zerka pela primeira vez em 1995. Sou uma dos 16 participantes do workshop que ela dirige em New Palz, estado de Nova York. O clima frio do outono contrasta com o aconchego que me traz a sala que abriga o palco original em madeira, idealizado por Moreno.

Após as autoapresentações, as expectativas e os motivos que nos leva a este trabalho, fico surpresa quando Zerka me convida para ser a primeira protagonista. Não há escolha entre os participantes, mas certamente uma profunda "sintonia": "Você vem de muito longe e quero compreender melhor o que a traz até aqui", diz ela, dirigindo-se a mim.

Em meu inglês primário, trago a cena que havia vivenciado no Brasil fazia pouco tempo. Meu tema é "medo" e buscava "coragem".

Durante a dramatização vou ficando muito mobilizada. As emoções intensificam-se, e começo a chorar. Surpreendo-me quando Zerka me convida a verbalizar em português, minha língua materna. Entre português e inglês seguem-se as cenas. A situação que trago exige do diretor muita perspicácia, firmeza e dinamismo. Sinto a garantia de poder prosseguir, entre pausas, incentivada pela doçura do acolhimento que apoia e protege.

No compartilhamento, assentadas ao lado, Zerka coordena a ordem das falas de meus colegas, que evidentemente se emocionaram durante a fase anterior, acrescidos agora de suas emoções advindas de situações semelhantes à minha, em algum aspecto de suas vidas. A maestria de Zerka se revela, muito além da técnica. Há uma "sabedoria empática", de quem caminhou o suficiente em sua jornada nessa existência, colocando-se agora a favor do desenvolvimento do "outro". Depois de certo tempo, apenas escuto. Palavras extrapolam o que sinto. Não é preciso nomear... O grupo cuida de mim, me leva para jantar à luz de velas em um bistrô da pacata e forte em energia, New Palz.

Em 1997, Zerka se imagina viajando em um navio, presente que se daria, por ocasião de seus 80 anos. Chega o convite para me juntar a seus "filhos psicodramáticos", tornando possível esse sonho ludicamente. Seria uma longa viagem de sete dias, em contrapartida a que fizera anos antes, quando levou sua irmã da Europa para tratar com Moreno no hospital em Beacon, nos Estados Unidos. Fui um desses filhos, junto com minha amiga Cecília Andrés Caram, também psicodramatista em Belo Horizonte, que já tinha feito dois trabalhos anteriores tendo Zerka como terapeuta. Dessa vez, conheceríamos outras de suas facetas.

Nesses intensos sete dias e sete noites nos nove andares do Royal Caribean, indo em direção às Ilhas Bermudas no Atlântico, visitamos Zerka em sua cabine luxuosa. Para nós, "filhas", o espelho logo se apresentava para ajeitarmos nossos cabelos e maquiagem. A "Zerka pessoa" recebia-nos sem pretensão alguma. Delicadeza e simplicidade. Otimista. Bem-humorada. Suave no tom de voz. Elegante em seu saltinho 2. Batom, rouge, cabelo liso penteado, mas solto ao vento diante da piscina, no bar dos cafés das manhãs. Risonha, contava casos, trazendo para perto lugares e lembranças das guerras que presenciara, de sua família europeia, seus sentimentos junto a Moreno, despretensiosamente. Espontânea, genuinamente. Nós, mulheres, mães, esposas, sabemos o que ela conta de verdade.

Zerka afetuosa e feliz por estar perto do grupo, em seu desejo maior de celebração pela vida em sua iniciante década.

O combinado é alguém dirigir uma sessão de psicodrama pela manhã e à tarde, no salão envidraçado com vista de 360 graus para o mar. As refeições são saboreadas no "canto do grupo esquisito" do navio, que viaja trabalhando e trabalha distraindo-se.

O navio atraca em St. George's. Vou conhecendo Zerka mais uma vez: passeio com ela e sua prima Nelly. Ela me diz: "Quando fui levar minha irmã para tratar com Dr. Moreno, eu que era estilista não podia comprar nada, pois não tinha dinheiro. Como toda jovem, também gostava de desenhar e fazer minhas roupas, mas não podia me dar a esse luxo. Hoje posso comprar o que quero, mas, na realidade, não tenho mais vontade! Mas um perfume vou levar para mim!". Passo a saber mais uma de suas sábias reflexões sobre as prioridades de cada fase de vida, tão bem explícitas...

Histórias e casos vão me dando a chance de conhecer as facetas dessa pessoa que se torna cada vez mais nossa amiga (e que sabe focar no papel de diretora sem pestanejar): seria o tema da noite "Zerka, o feminino em questão?". Zerka guerreira, Zerka heroína, Zerka resiliente, Zerka intuitiva, Zerka que erra e aprende com as limitações, Zerka buscadora, Zerka mulher-esposa-mãe-terapeuta em conciliação, escritora-supervisora-cozinheira-filha-vizinha que ensina a ser amada como gostaria que fosse pela mãe, equilibrista em situações conflituosas...

Meu último encontro com ela se deu em Charlottesville, Virgínia, Estados Unidos, em 2010. O "cenário" é outro, aqui e agora. Estamos eu e meu marido. Ela agora numa casa de repouso, na cadeira de rodas ajudada por uma acompanhante. Ao nos ver, levanta o braço e diz: "Hi Maria Inês!" com seus olhos claros, sempre brilhantes. Difícil expressar em palavras a comoção desse momento. Estamos indo em direção a uma pequena sala, com duas cadeiras vermelhas: uma para mim, outra para ele. Na parede um quadro pintado por ela, uma cadeira vazia que foi inspirada em Van Gogh. Mais uma vez é impossível absorver o impacto desse encontro destinado primordialmente a uma sessão de casal. Depois de várias correspondências com ela por e-mail, continuo ouvindo: "A cadeira vermelha está aqui sempre que quiser. Lembro-me de você com muito carinho e saudade". Gosto de sentir que em mim, agora, predomina o papel de amiga.

Em outubro de 2014, envio-lhe um e-mail solicitando um artigo para o livro "Simplesmente amigo...", que estava organizando em coautoria com Mariana Bertussi. Escrevi pela manhã e à tarde seu artigo chegou como um presente em exata medida, me deixando tão emocionada, mais dessa vez.

Mas, no Natal, já não se repetiu a mesma prontidão. Mais tarde fiquei sabendo que minha amiga terapeuta mulher havia se mudado para outra casa de idosos em Washington DC e que seus e-mails estavam restritos. O meu foi um dos últimos artigos que escreveu, pude confirmar com Jonathan no congresso a que me referi no início desta carta.

Em 2016, fui a Boston, onde procurei na biblioteca de Harvard, orientada por Sérgio Guimarães, uns documentos de Moreno, lá arquivados. Qual não foi minha surpresa ao deparar com a letra de Zerka em cada um deles; na verdade, eram suas cartas a seu grande amor nessa vida, escritas por ocasião em que viajava sem sua companhia. Este é o legado de Zerka Moreno.

Além de psicodramatista, musa de Moreno, um exemplo de afeto, delicadeza, gentileza, fidelidade e tantos outros predicados, abrindo seu coração para o infinito. Simplesmente uma mulher...

São Paulo, 4 de junho de 2018.

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