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Revista Brasileira de Psicodrama

versão On-line ISSN 2318-0498

Rev. bras. psicodrama vol.26 no.1 São Paulo jan./jun. 2018

http://dx.doi.org/10.15329/2318-0498.20180009 

CARTAS AO EDITOR

 

Eu e Zerka T. Moreno

 

 

Rosa Cukier

Psicóloga desde 1974 pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Psicanalista desde 1983 pelo Instituto Sedes Sapientiae de São Paulo. Psicodramatista, professora, supervisora pela Sociedade de Psicodrama de São Paulo (SOPSP) e pelo Instituto J. L. Moreno de São Paulo. Autora de diversos livros (saiba mais em: www.rosacukier.com.br). E-mail: rosacukier@uol.com.br

 

 

Fico muito feliz em poder compartilhar minha experiência de vida com Zerka Moreno, pois foi um contato muito intenso ainda que nem sempre bom.

Primeiramente, eu a assisti, como plateia, no anfiteatro do departamento de Psicologia da USP, em 1993. Fiquei tão encantada, que escrevi um pequeno artigo sobre sua vinda1, publicado em nossa revista no ano seguinte.

Lembro-me dela destacando a importância de a psicoterapia acessar a "criança interna ferida dentro de cada adulto", o que bastou para completar meu aquecimento e me deixou pronta para começar a escrever meu segundo livro.

Zerka foi magnífica nessa palestra e nos três dias de workshop que se seguiram. Disse que vinha em nome de uma grande causa - a reedição dos livros de Moreno, pois livros que não são reeditados morrem e com eles as ideias de seu autor.

Zerka veio para imortalizar Moreno e ninguém, dentre os que a viram, teve dúvidas sobre a importância dessa tarefa em sua vida. Zerka pareceu-me frágil à primeira vista, talvez por sua silhueta magra, alta, cabelos esbranquiçados de vovó. A ausência do braço direito, amputado por causa de um câncer há muitos anos, testemunhada pela manga da camisa vazia, balançante no ar, dominou minha primeira Gestalt dela.

Tão logo se pôs a falar, entretanto, essa sensação de fragilidade se esvaneceu e fui tendo a certeza de estar diante de uma mulher segura e determinada, com um pensamento extremamente bem articulado, capaz de falar espontaneamente por três dias, sem nada escrito ou pré-preparado.

Seu encontro conosco foi se dando ao sabor do momento. Zerka falava um pouco, a plateia fazia perguntas e pedia vivências, Zerka dirigia algum trabalho, processava e novamente falava.

No final, tive a sensação de que Zerka era uma dessas deusas hindus que em vez de dois apenas, tinha inúmeros braços, e que esses braços todos alcançavam magicamente as pessoas da plateia.

Já no final do encontro a percebi um tanto ambivalente, como se seus braços acenassem em duas direções: por um lado, nos convidavam para ir a Beacon em julho próximo aproveitar os nove dias de treinamento para diretores de psicodrama; por outro, nos acenavam adeus, um adeus triste e definitivo das pessoas que se vão com a idade.

Para minha e nossa sorte, ela não foi, e eu aceitei seu convite e fui encontrá-la no ano seguinte para experimentar um grupo de final de semana dirigido por ela em Boughton Place, o lugar onde o teatro de Moreno foi reconstruído.

Fui acompanhada da Dra. Maria Margarida de Carvalho, psicóloga imortal da Academia Brasileira de Psicologia e uma das fundadoras da Faculdade de Psicologia da USP, que já havia estado em Beacon alguns anos antes. Na realidade, nós duas fomos para um Congresso do Instituto Milton Erickson no Arizona e resolvemos fazer o workshop de Zerka nessa mesma viagem.

Foi um fim de semana mágico onde, entre lágrimas e risos de um intenso trabalho psicodramático, fomos recepcionadas e mimadas por Zerka, que nos buscou com o próprio carro na estação de trem e nos levou para almoçar e nos guiou na volta. Em nosso grupo de vivência, haviam vários colegas americanos, uma francesa e, pasmem, Regina Moreno, filha de Moreno com Florence.

Nosso colega José Fonseca tinha uma hipótese que frequentemente expunha em nosso grupo do GEM. Ele achava que Florence tinha ajudado Moreno a configurar a Teoria da Matriz de Identidade. Pois bem, escrevi uma cartinha para Florence, que Regina se encarregou de levar, com a dúvida do Fonseca e pedi que ela me escrevesse de volta.

Logo que cheguei ao Brasil, recebi a resposta de Florence. Ela negava que a ideia da Matriz de Identidade fosse dela, diz que era do próprio Moreno. Teceu muitos elogios a ele, dizendo que era um homem maravilhoso, que lia e estudava o tempo todo e era o autor das próprias ideias.

Meu terceiro momento com Zerka foi como sua intérprete e auxiliar no 11º Congresso Brasileiro de Psicodrama / 4º Encontro Latino-Americano de Psicodrama. Não sei como isso aconteceu, acho que a FEBRAP me pediu para traduzir a Conferência Magna de Zerka e a própria Zerka me pediu para ajudá-la na vivência que dirigiu. Sei que foi uma experiência ótima, o inglês de Zerka era muito fácil para mim e, como eu conhecia os termos, a tradução foi muito harmoniosa. Muitos colegas elogiaram e fiquei muito feliz de ter tido essa honra.

Meu último contato com Zerka foi virtual por e-mails, quando lhe enviei uma cópia em inglês2 de meu livro "Palavras de Jacob Levi Moreno, vocabulário de citações do Psicodrama, da Psicoterapia de grupo, do Sociodrama e da Sociometria".

Em sua carta, Zerka pareceu-me contrariada, pois achava que eu não deveria assinar como autora desse livro, uma vez que a obra era de Moreno. Eu contra-argumentei, mostrando-lhe que havia trabalhado nove anos recortando as citações e localizando-as nos livros em espanhol e em inglês, e que na introdução mencionava todas as obras de Moreno que havia consultado. Eu era autora dessa compilação, não das palavras dele.

Parece que ela compreendeu e, na realidade, gostava do livro. Dr. Bustos, que esteve com ela em seguida, me mandou a foto de meu livro na estante de Zerka, bem na frente dela. Ele estava orgulhoso, e eu fiquei menos chateada com essa história.

Enfim, Zerka era apenas um ser humano como todos nós e que defendia a obra de seu amado e admirado marido. Acho que tive muita sorte de tê-la conhecido, vivenciado seus ensinamentos e constatado a pessoa maravilhosa que era.

São Paulo, 22 de maio de 2018

 

 

1 "E a Zerca veio...". Revista Brasileira de Psicodrama, fascículo II, 1994.         [ Links ]
2 Words from Jacob Levi Moreno: vocabulary of Quotations from Psychodrama, Group Psychotherapy, Sociodrama and Sociometry.         [ Links ]

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