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Revista Brasileira de Psicodrama

versão On-line ISSN 2318-0498

Rev. bras. psicodrama vol.27 no.1 São Paulo jan./jun. 2019

http://dx.doi.org/10.15329/0104-5393.20190004 

DOI: 10.15329/2318-0498.20190004
Artigos Originais

 

A transmissão psíquica do medo e sua rematrização pelo método ativo

 

Psychic transmission of fear and its rematrix by the active method

 

La transmisión psíquica del miedo y su rematrización por el método activo

 

 

Simone Araújo NicastroI*; Sonia Lisboa RibeiroII

IAnimus Psicodrama e Educação – São Paulo/UF – Brasil ORCID: 0000-0003-4224-9827
IIAnimus Psicodrama e Educação – São Paulo/UF – Brasil ORCID: 0000-0001-9205-3342 

 

 


Resumo

Este artigo propõe uma reflexão sobre a transmissão psíquica de pais para filhos e a produção de sintomas e fantasias na criança. Para tanto, realizou-se uma análise sobre as alianças inconscientes estabelecidas no grupo familiar, nas quais a vergonha e os segredos são as bases primárias para a formação das patologias de transmissão do medo. Por meio de sessões de orientação a pais, adentrou-se aos espaços intrapsíquicos para facilitar a rematrização de histórias fantasísticas da criança e a desarticulação de seus sintomas. Assim demonstrou-se pelo Método Ativo, o qual integra a Psicanálise e o Psicodrama, por meio de objetos intermediários, para obter-se resultados em um caso que retrata a família como um sistema aberto em que o medo se instala em pacientes identificados.

Palavras-chave: transmissão psíquica, psicodrama, medo, família, alianças inconscientes


Abstract

This article proposes a reflection on parents’ psychic transmission to children and symptom and fantasy production in children. To this end, an analysis was made of the unconscious alliances established in a family group, in which shame and secrets are the primary basis for the formation of  the  pathologies  of  fear  transmission.  Through  sessions of  parenting orientation,  it  was introduced to the intra-psychic spaces to facilitate the rematrix of fantastical stories of the children and the disarticulation of their symptoms. Therefore, it was demonstrated by the Active Method, which integrates Psychoanalysis and Psychodrama, through intermediary objects, to obtains results in a case that portrays the family as an open system in which fear installs itself in identified patients.

Keywords: psychic transmission, psychodrama, fear, family, unconscious alliances


Resumen

Este artículo propone una reflexión sobre la transmisión psíquica de padres a hijos y la producción de síntomas y fantasías en el niño. Para tanto, se realizó un análisis sobre las alianzas inconscientes establecidas en el grupo familiar, en las cuales la vergüenza y los secretos son las bases primarias para la formación de las patologías de transmisión del miedo. Por medio de una orientación de padres, se adentró a los espacios intrapsíquicos para facilitar la rematrización de historias fantasísticas del niño y la desarticulación de sus síntomas. Así, se demostró por el Método Activo, el cual integra el Psicoanálisis y el Psicodrama, por medio de objetos intermediarios, para obtener resultados en un caso que retrata a la familia como un sistema abierto en que el miedo se instala en pacientes identificados.

Palabras clave: transmisión psíquica, psicodrama, miedo, familia, alianzas inconscientes


 

 

INTRODUÇÃO

Neste artigo, objetivamos identificar e intervir, por meio do método psicodramático articulado à Psicanálise (Kim, 2008; Dias & Kim, 2017), uma situação-problema que perpassa o grupo familiar analisado em suas relações e se personifica pelo sintoma do medo em uma das filhas do casal orientado. O medo é aqui considerado um personagem protagonista no discurso familiar.

O medo é um tema recorrente na clínica contemporânea atravessada por várias transformações sociais, que interferem na reorganização de laços culturais e familiares. Desse modo, a família vive a contradição entre sociedade de consumo, desalento e discurso produzido por uma educação baseada em princípios como amor, carinho e respeito. Contradição esta, que gera a angústia do absoluto vazio da realidade última, na qual nada falta (Dias & Kim, 2017; Moreno, 1997). Portanto, consideramos a cultura narcisista1 inserida em uma família na qual se buscou a subjetividade do medo, deslocado para a cama do casal. O contrato inicial de constituição da família analisada compreende fatos não revelados que interferem em sua dinâmica. Assim, penetramos nos segredos desse grupo familiar que abordam temas como: sexualidade e fertilização assistida, em razão da condição soropositiva do pai. Para rematrizar2 os vínculos familiares, a subjetividade manifestada por meio de medos e desejos guardados e não compartilhados que se repetiam como pulsão negativa de morte para evitar a frustração, foi abordada nas sessões de orientação a pais como forma de verificação da realidade.

Esse tema central remete a uma cadeia geracional na qual a criança é inscrita e se torna um elo: a Transmissão Psíquica Parental de pais para filhos, a qual é definida por Granjon (2000, citado por Azevedo, Féres-Carneiro & Lins, 2015, p. 58), como a concepção de “um sujeito, precedido por mais um outro, na condição de herdeiro forçado, beneficiário, mas também pensador e até criador daquilo que lhe foi transmitido”. No artigo “Sintoma infantil: efeito da transmissão psíquica?”, Meyer (1983, citado por Azevedo, Féres-Carneiro & Lins 2014, p. 177) explica que:

 

Antes mesmo do seu nascimento, o bebê faz parte das fantasias3 dos pais e é “moldado” por elas. Após o seu nascimento, surge uma nova dinâmica relativa às exigências do bebê. Contudo, a dupla parental demanda do seu recém-chegado que seja cúmplice, nas suas fantasias inconscientes.

 

Nessa linha, a dinâmica relaciona-se com o contexto sociofamiliar à definição de papéis sociais de seus membros e às bases de suas inter-relações. Em outras palavras, a filha é um produto da situação gerada pela formação de um par, que é em si mesmo uma fonte dessa dinâmica ocasionada pelo maior ou pelo menor acolhimento dos pais.

Do mesmo modo, a orientação de pais tem a função de acolhê-los em suas angústias, proporcionar maior compreensão acerca de seus filhos e da evolução do desenvolvimento dos vínculos familiares.

Supomos que, ao falar sobre sua angústia de medo, há um movimento psíquico e os pais entram em contato com suas fantasias inconscientes, que, ao serem decodificadas, permitiriam um maior contato com a realidade, além de encaminhamentos mais adequados. Dessa forma, o método ativo analisa alianças inconscientes estabelecidas nesse grupo familiar, favorece a eficácia adaptativa da família, diferencia o que pertence a cada participante e auxilia na busca de soluções que exigem de cada sujeito uma nova resposta.

 

Transmissão psíquica

Consideramos que as famílias têm seus segredos, os quais apresentam uma dimensão importante em termos da preservação da privacidade e da autonomia tanto individual quanto do grupo familiar, e que, no caso analisado, os segredos assumem uma função central entrelaçando seus membros (pais e filha) em alianças inconscientes.

Sabemos que um grupo familiar é composto a partir do casal e que daí decorre uma articulação entre várias pessoas e diversas gerações; desse modo, um espaço para a passagem da transmissão psíquica é constituído. A família torna-se, portanto, uma matriz na qual ocorre a passagem dessa transmissão, e nela são geradas identificações significativas.

Segundo Correa (2000, citado por Azevedo, Féres-Carneiro & Lins 2015, pp. 60-61):

 

A transmissão psíquica intergeracional inclui aspectos de metabolização do material psíquico transmitido por uma geração próxima que, transformado, passa à seguinte. Nesta modalidade a transmissão psíquica constitui a “herança positiva” da filiação. A transmissão psíquica transgeracional se refere a uma modalidade “defeituosa” da transmissão que inclui objetos psíquicos de uma herança genealógica mais distante. Na qual encontramos vazios e lacunas na transmissão.

 

Destacamos, também, uma dimensão da transmissão que é censurada e da qual não se fala, compreendida como “o segredo”. Dolto (1988, citado por Azevedo, Féres-Carneiro & Lins, 2015, p. 62) declara que:

 

Naquele ponto em que a linguagem termina, é o comportamento que continua a falar. Assim, a criança através dos seus sintomas pode encarnar e personificar as consequências de um conflito vivo, familiar ou conjugal, camuflado e ocultado por seus pais.

 

Correa (2000, citado por Azevedo, Féres-Carneiro & Lins, 2015, p. 63) explica:

 

Na primeira categoria de segredo “o não dito”, como interceptação do dizer, pressupõe uma interdição, e uma proibição deliberada, ou seja, “disso não se fala”. Há algo ocultado, geralmente por estar associado à vergonha e à culpa. . . A segunda categoria de segredo “o inominável” encontra-se fora do registro do inscrito. Algo não se falou por falta de palavras e, por isso, transita na descendência como indizível, não ligável, foracluído e à margem de um trabalho psíquico possível, fadado à repetição como tentativa de representação.

 

Nessa linha, André-Fustier & Aubertel (1998, citado por Azevedo, Féres-Carneiro & Lins, 2015, p. 65) afirmam que o aparelho psíquico familiar funciona como “uma matriz de sentido, que serve de invólucro e sustentáculo primários” para seus membros, que a decodificam na construção de seu mundo interno.

Em contexto dramático, no desenvolvimento das sessões do caso analisado de Orientação a Pais (OP), por meio do uso de objetos intermediários (almofadas) e da técnica psicodramática do duplo, foi proposto um espaço de interlocução e interação para dar continência aos afetos presentificados pelo pais nas cenas dramáticas, assim como para favorecer o pensar os próprios pensamentos, diferenciando-os das fantasias da filha.

 

Angústia de medo

Segundo Freud (1926/1976), o medo é uma emoção saudável, e não patológica. Quando nos sentimos em perigo, é ele quem nos alerta e ativa nosso potencial de sobrevivência. Contudo, quando o temor se torna incontrolável e passa a prejudicar a autoconfiança e a autoestima, estamos diante de uma angústia. Nessa linha, a angústia está relacionada às situações de perigo. As fobias corresponderiam aos sintomas recalcados inconscientes, relacionados às perdas, às insatisfações e ao desamparo. O sintoma revela não a verdade da doença, mas a verdade do sujeito inconsciente. Então, no caso analisado, estivemos diante da expressão particular de um conflito psíquico, de um sofrimento familiar e sem narrativa, que denunciava movimentos psíquicos, mas do qual seus membros não tinham consciência.

Partimos da hipótese diagnóstica, que os sintomas de impotência da filha (medo de dormir sozinha, medo de ladrão) seriam uma ressonância aos processos de angústias vividas por seus pais (medo de desemprego, da separação, da morte, de doença), demandas inconscientes do casal que foram transformadas em ações ao reforçarem o comportamento da filha, permitindo que ela dormisse na cama dos pais (sintoma). O sintoma aparecia na cama dos pais e revelava um desajuste na família. Em outras palavras, existia uma necessidade velada que coagia os pais a permitirem que a menina pernoitasse na cama do casal, o que requeria uma intervenção, com foco na reorganização dos laços familiares, por meio de sessões de Orientação a Pais.

 

Método

Instrumentos

 

O Método Ativo (MA), que articula o Psicodrama à Psicanálise (Kim, 2008), possibilitou um espaço de orientação a pais (OP), de modo que o “não dito” pudesse ser pensado, revelado e elaborado. Nela, procuramos conhecer, por meio da relação do casal, os papéis desenvolvidos por cada membro do grupo familiar. Consideramos nesse processo, o confronto favorecido pela concretude do psicodrama, como uma verdade penosa e até traumatizante, que desvelava os segredos da relação dos pais, que constituía a trama principal dessa temática familiar. Em sua execução, utilizamos o método desenvolvido por Kim (2017, p. 90, citado por Dias & Kim, 2017) que consiste em adaptarmos “jogos e dinâmicas grupais como iniciadores mentais e corporais para possibilitar a emergência da percepção de qualidades oníricas e emocionais. Em seguida, essas percepções são organizadas em cenas dramáticas, que comunicam concretamente as experiências emocionais vivenciadas”, transformando esses dados concretos em insights que seriam interpretados pelo orientador, oferecendo, assim, uma abertura do campo perceptual pela técnica do duplo, que tem o objetivo de “entrar em contato com a emoção não verbalizada do paciente, e às vezes até não conscientizada, a fim de auxiliálo a expressá-la” (Cukier, 1992, p. 40). Assim, o clima emocional é decodificado em linguagem verbal que contextualiza o que o sujeito pode abstrair das cenas concretas. Segundo Kim (2017, p. 91, citado por Dias & Kim, 2017),

 

o dispositivo psicodramático, ao trabalhar com a situação-problema atual permeada pela angústia, lida com os aspectos pouco evoluídos da mente e necessariamente precisa se focar em ameaças reais do mundo interno, que se concretiza nas cenas dramáticas, no momento do encontro.

 

Para isso, é preciso que o orientador de pais, segundo Bion (1977, pp. 124-125, citado por Dias & Kim, 2017, p. 91):

 

. . . aprenda a lidar com o acaso, aquilo que não sabe, desconhece e inspecione cada situação específica para oportunizar eventos disponíveis na turbulência: oportunidade de ver qual interação existe entre a situação emocional que aparentemente se restringe ao indivíduo e o modo como ela se espelha e afeta outros indivíduos.

 

Nessa intervenção, nos apoiamos também na técnica de Construção de Imagens Psicodramáticas (CIP), uma metodologia criada por Bermúdez (1966, citado por Guimarães, 2018, p. 42) com o objetivo de transformar as imagens mentais em imagens psicodramáticas por meio de pessoas (na função de ego auxiliares) ou de objetos bidimensionais como tecidos e almofadas. Esses objetos foram conceituados pelo autor como Objetos Intermediários (OI) e, nesse caso, usados pelo orientador de pais para reestabelecer a comunicação interrompida. Assim, os objetos intermediários foram utilizados como recursos técnicos do Psicodrama e com uma função denominada por Moyavo (2012, citado por Guimarães, 2018, p. 43) de “mediadora, onde a presença do objeto é determinante para o surgimento de condutas comunicacionais e expressivas”.

Percebemos que as almofadas se mostram úteis para uma abordagem dinâmica no trabalho com Imagem da Família ou Átomo Sociofamiliar, porque favorecem a definição de uma produção íntima dos pais, que possibilitam nosso acesso ao mundo interno do casal. Moreno (1975, citado por Cukier, 1992, p. 75) define átomo social como “o núcleo de todos os indivíduos com quem uma pessoa está relacionada emocionalmente ou que, ao mesmo tempo, estão relacionados com ela”. Nessa linha, a investigação dramática do átomo social no caso analisado visou explorar o contexto sociométrico familiar.

Por meio desse instrumento, foi-nos permitido obter uma avaliação global das imagens propostas pelo grupo familiar para compreendermos os conteúdos específicos em relação às formas construídas, a suas relações e inter-relações, aos sentimentos envolvidos, às fantasias e às interconexões entre e referentes ao passado, presente e futuro dos indivíduos envolvidos.

 

Procedimento

 Incluímos a entrevista familiar diagnóstica por compreender que “o sintoma da criança é emergente de um sistema intrapsíquico que está, por sua vez, inserido no esquema familiar também doente” (Arzeno, 1995, p. 167, citado por Sei, Souza & Arruda, 2008, p. 198).

Durante as quatro sessões individuais do processo psicodiagnóstico, M, nome fictício atribuído à filha, apresentou a necessidade de reorganizar o que pertencia a ela, “filha”, e o que seria pertencente a seus “pais”. Considerando esse fato, as intervenções de OP foram realizadas com o objetivo de trabalhar a real situação-problema que permeou a inter-relação familiar e se personificou na filha, identificando as áreas disfuncionais afetadas pelo sintoma.

O processo de Orientação a Pais (OP) pelo Método Ativo (MA) foi desenvolvido em cinco sessões de periodicidade quinzenal, sendo apenas a terceira e a quarta sessões realizadas com cada um dos pais. Nesse período, M iniciou o processo de psicoterapia individual com a mesma psicóloga orientadora de seus pais.

 

Descrição e síntese analítica dos dados obtidos nas sessões de OP

No primeiro momento, realizamos uma entrevista com os pais. A queixa estava relacionada ao fato de a filha M (9 anos) não dormir sozinha no próprio quarto, desde o nascimento. O grupo familiar tem histórico de fertilização assistida com sete inseminações artificiais até a fecundação da primogênita M. A outra filha do casal (4 anos) foi concebida cinco anos após o nascimento de M em uma única tentativa de fertilização. O pai tem diagnóstico de soropositividade e a mãe, ciente, aceitou o casamento com a condição de gerarem filhos. Eles construíram na relação com a filha M uma rede de sustentação para o casamento. A mãe é professora bilíngue assalariada e mantém a família, e o pai está desempregado.

O tema psicodramático central trabalhado nas sessões de OP foi “O medo mora lá em casa... E dorme na cama de quem?”.

Na primeira sessão de OP, iniciamos com uma cena, em que os elementos “cama e três travesseiros” formaram o cenário. Na dramatização, os pais ocuparam a posição dos três travesseiros e vivenciaram os sentimentos: medo de morrer, de não conseguir ver as filhas crescendo, de pensar e até de conversar.

Duplo com a mãe: “Tenho medo de M sair da cama e sobrar um espaço vazio . . . medo de olhar para o meu marido e saber que não temos relação sexual desde o casamento”. Duplo com o pai: “Sou arrimo desta família, não entendo o que vocês estão falando . . . Isso não basta! Não acredito na terapia”.

Síntese analítica: Os pais confirmaram a hipótese levantada pela orientadora, por meio de um duplo direcionado a eles: “Filha, não cresça, não suportaríamos ter que rever nosso casamento”, de que M está correspondendo ao desejo inconsciente dos pais para permanecer na cama deles e apresenta o sintoma “medo de ladrão” como forma de defesa psíquica. Compartilhamos a necessidade de os pais estimularem o comportamento da filha M para sair da cama deles.

Na segunda sessão de OP, os pais contaram que M estava passando as noites no próprio quarto, dormindo em sua cama sozinha e a cena trabalhada foi: “cama com apenas dois travesseiros” (sem o travesseiro de M).

Fragmentos importantes da dramatização ocorreram quando a mãe olhou para o pai e perguntou: “Por que você não me ajuda? Faço tudo sozinha. Sei que você está deprimido, desempregado. Você continua muito cabeça dura, só faz o que você quer. Passa o dia assistindo Netflix e à noite foge de nós”. Duplo com a mãe: “Estou cansada de levar esse casamento sozinha. Você pode me ajudar?”. O pai respondeu: “Está tudo bem. Não tenho força para fazer na hora que você quer. As contas estão pagas. Tudo em ordem”. Duplo com o pai: “Sou o provedor, isso não basta? Se eu morrer, como vocês vão se virar?”. A mãe respondeu: “Vou para os EUA com as meninas e de fome não morreremos”.

 Síntese analítica: Evidenciadas as dificuldades apresentadas pelos pais para lidar com o espaço vazio na cama e que possivelmente sentem medo dos próprios pensamentos (morte, separação, desemprego, doença), eles foram encaminhados para realizarem seus processos de psicoterapia, individualmente.

Na terceira sessão de OP, optamos por trabalhar com o pai e a mãe separadamente, em sessões individuais.

 

1. Sessão individual com o pai

Na sessão com o pai, direcionamos o aquecimento para a história do nome (pai e filha têm o mesmo nome). Trabalhamos com duas almofadas (pai e filha). A orientadora iniciou a dramatização com a almofada de M: “Você pode me contar a história do meu nome, pai?”. Pai: “Eu escolhi seu nome. Orientadora no lugar de M: “Você queria que eu fosse igual a você?”. Pai: “Nunca tinha pensado nisso”. Orientadora no lugar de M: “O que eu tenho parecido com você?”. Pai: “Não sei, acho que você é boazinha, eu sou bonzinho, meu pai era bonzinho, não sabemos dizer ‘não’, fazemos tudo para agradar, não pensamos em nós... Passei fome quando criança. Meus irmãos não estudaram, fui o único que estudei... Meu pai me chamou e disse que tinha que ajudá-lo.... Quando fiquei mais velho, ajudei, comprei um apartamento popular... Com muito esforço, consegui dizer ‘não’ à demanda que só crescia e organizei minha situação financeira, mas isso me custou uma depressão... Chorava à noite e tampava a boca para ninguém ouvir... Tinha medo, me isolava”. Duplo com o pai: “Filha, eu te entendo, entendo seus medos, é muito difícil ter que segurar uma família unida”. O pai chora e continua: “Eu faço isso com você? Você sabe de alguma coisa?”. Nesse momento, a orientadora fez uma inversão de papéis e o pai respondeu na almofada de M: “Eu não sei nada, tenho medo de ladrão”. Duplo no lugar de M: “Eu não sei, mas sinto que tem algum segredo, que vocês não são um casal de verdade”. No último diálogo, a resposta do pai foi: “Filha, eu vou me cuidar, já comecei a terapia. Pode dormir sossegada”.

A orientadora perguntou como o pai se sentia atualmente nessa família, se existia algum projeto. Ele respondeu que se sentia confortável, que seu projeto seria conseguir um emprego, melhorar e que precisava enxergar a esposa como uma mulher atraente. Fala do pai: “Tenho que recuperar o tempo perdido, não sei se vou conseguir”. Orientadora: “Você compreende que vocês têm que liberar M desse segredo? Que ela precisa sair desse lugar de guardiã dessa relação? Que o medo dela de ladrão é a forma que encontrou para nomear esse medo de que aconteça alguma coisa (ruptura da relação)?”. Pai: “Agora estou percebendo!”.

Síntese analítica: Pontuamos a importância da permanência do pai no processo psicoterapêutico individual para sentir-se mais confiante nesse momento de transformação profissional e afetiva.

 

2. Sessão individual com a mãe

O aquecimento realizado com duas almofadas configurou uma conversa entre mãe e filha sobre a história familiar. A mãe relatou que se casou com a finalidade de ter filhos e segurança. Proveniente de uma família de pais separados, sofreu muito, sua vida foi difícil. O marido sempre representou segurança, mas hoje encontra-se desempregado, deprimido. Ela está se sentindo muito sozinha. Não quer se separar, acha que ele poderia se suicidar e ela não aguentaria viver com essa culpa. Duplo com a mãe: “Filha, não sei o que fazer. Se me separar, você poderá sofrer o que sofri; se ficar casada, você não poderá crescer.” A mãe complementa: “Ai, que alívio! Não posso falar isso para ninguém. Sou portadora do segredo do meu marido (soropositivo). As pessoas acham que ele é um marido maravilhoso. Quando falo que não temos relação sexual, ouço que ‘não se pode ter tudo!’”.

Síntese analítica: Concluímos que é importante para a mãe ter um espaço terapêutico que acolha essas queixas e angústias, para que consiga nomeá-las e repensá-las para então permitir o desenvolvimento emocional saudável da filha.

Na última sessão de fechamento do processo, voltaram para o cenário as três almofadas. Retomamos como foi o início da OP e realizamos a técnica da linha do tempo, na qual os pais traçaram uma linha cronológica contando os principais fatos marcantes de suas vidas e depois refletiram sobre o aprendizado e como incorporaram essas respostas às suas matrizes de identidade no papel de pai e mãe.

Duplo com os pais: “Precisamos olhar a realidade atual e definirmos se continuaremos casados”, “M está ótima, mas precisa de uma família de verdade”, “Existe um espaço vazio que podemos preencher com um movimento de vida”.

Síntese analítica: Ressaltamos a importância de os pais permanecerem em suas terapias individuais para que cada um, em sua singularidade, compreenda e elabore o sentido do estar e continuar casados. Analisamos que “o medo” era de fato “a terceira almofada” que configurava na cama do casal e que, com o direcionamento de M para a própria cama, as questões inerentes à relação deles ganharam protagonismo e espaço para serem trabalhadas.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Identificamos no espaço de OP o papel fundamental da família em relação à “transmissão psíquica intergeracional” e verificamos sintomas produzidos e passados dos pais para a filha.

Constatamos a contribuição das histórias, dos discursos e dos desejos no sistema familiar desses pais, como categoria de segredos que foram fundantes nas construções fantasísticas (medo de ladrão) da filha. Verificamos que as angústias da filha M estavam relacionadas aos conflitos intrapsíquicos dos pais e entrelaçavam pais e filha em alianças inconscientes.

Verificamos que houve uma real articulação entre os sintomas identificados nos pais e os sintomas apresentados pela filha. Trabalhamos para codificar as “angústias de medo” do casal parental e captamos as ramificações desse medo no contexto familiar.

Ratificamos a importância da transmissão psíquica intergeracional na formação da angústia de medo da filha. E concluímos que esse medo da filha respondeu diretamente à demanda inconsciente de seus pais.

Percebemos a necessidade de estabelecermos um olhar para essa questão e criamos uma estratégia de intervenção em dois espaços: psicoterapia individual com a filha e cinco sessões de orientação com os pais.

Direcionamos, nesse caso, para a possibilidade de ressignificar as dificuldades apresentadas e libertar, por uma via significante, a repetitiva insistência que havia nos sintomas e as verdades ocultas.

Consideramos que a OP, por meio do MA articulado ao OI (almofadas), foi uma intervenção breve, focada e centrada no tema “angústia de medo” que permeou a inter-relação familiar e favoreceu o conhecimento do desconhecido, revelando nas cenas, por meio das técnicas psicodramáticas (especialmente o duplo com função interpretativa), a nomeação dos segredos e a remissão dos sintomas.

Anteriormente a essa intervenção, os pais não falavam do problema, não podiam entrar em contato com a realidade e assim sendo não percebiam alternativas de resolutividade. Havia um casal delirante, com um segredo, que projetava seus medos na filha. A configuração das “almofadas” nos indicava a atuação de um pai desempenhando o papel de “irmão” da filha e de uma mãe desempenhando o papel de “viúva” do marido vivo.

Ao término dessa orientação, ficaram evidenciados os papéis de cada indivíduo; por meio das análises interpretativas, foi possível facilitar a rematrização desse modelo intergeracional. Indicamos que permanecessem em suas terapias individuais para refletirem o que fariam com esse contrato conjugal. Ficou explícita a necessidade de enxergarem a condição atual, isto é, enxergar as causas que mobilizaram a sintomatologia manifestada na criança.

A OP aplicada consistentemente pode ajudar eficazmente na remissão dos sintomas da filha e na busca de soluções mais adequadas das situações-problemas apresentados pelo grupo familiar. Contudo, para haver remissão do sintoma, precisa antes haver investigação e identificação das causas que o promoveu, para, então, serem trabalhadas terapeuticamente e elaboradas. Esse foi o caminho seguido nesse caso de Orientação a Pais.

  

REFERÊNCIAS

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Azevedo, L., Féres-Carneiro, T., & Lins, S. (2015). A família e a transmissão psíquica. Psicanálise & Barroco em revista, 13(1), 57-71.         [ Links ]

Cukier, R. (1992). Psicodrama bipessoal: sua técnica, seu terapeuta e seu paciente. São Paulo, SP: Ágora.

Dias, E. T., & Kim, L. M. (2017). Angústia de separação e capacidade de simbolizar, na interrelação entre o professor e a turma de alunos. In E. T. Dias, L. M. Kim, & M. M. Baptista (Orgs.). Polifonias psicológicas e educacionais: vozes e olhares dirigidos à escola e à cultura (pp. 83-120). Jundiaí, SP: Paco Editorial.         [ Links ]

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Freud, S. (1976). Inibições, sintomas e ansiedade. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas de Sigmund Freud (vol. 20, pp. 107-180). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1926)

Guimarães, L. (2018). As imagens psicodramáticas com bonecos. Rev. Bras. Psicodrama, 26(1), 41-50. doi: 10.         [ Links ]15329/2318-0498.20180017.

Kim, L. M. (2008). Estudo da contratransferência do professor na inter-relação com o grupo de alunos. (Tese de Doutorado). Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, São Paulo.

Laplanche, J. B., & Pontalis, J. (1991). Vocabulário de Psicanálise. São Paulo, SP: Martins Fontes.

Moreno, J. L. (1997). Psicodrama. São Paulo, SP: Cultrix.

Sei, M., Souza, C., & Arruda, S. (2008). O sintoma e a dinâmica familiar: orientação de pais na psicoterapia infantil. Vínculo – Revista do NESME, 2(5), 101-219.

 

Recebido: 14/11/2018
Aceito: 21/5/2019

 

*Autora correspondente: simone.nicastro@terra.com.br

 

Simone Araújo Nicastro. Psicóloga pela Universidade de Santo Amaro (Unisa) com especialidade em Saúde Mental. Psicodramatista pela Animus Psicodrama e Educação. Formada em Artes Cênicas pelo Teatro da Universidade Católica de São Paulo (TUCA/PUCSP). Formada em Coaching com Psicodrama pela Potenciar Consultores Associados.

Sonia Lisboa Ribeiro. Psicóloga pela Universidade Paulista (Unip). Psicodramatista pela Animus Psicodrama e Educação. Professora didata. Terapeuta floral pelo Instituto Edward Bach.


1 Narcisismo – por referência ao mito de Narciso, é o amor pela imagem de si mesmo. Freud designa o primeiro narcisismo sendo o da criança que toma a si mesma como objeto de amor, antes de escolher objetos exteriores (Laplanche & Pontalis, 1991, pp. 287-290).

2 Rematrizar – é ter uma nova chance de reviver de forma diferente e reorganizar a matriz anterior, dando espaço para a espontaneidade (Drummond, Boucinhas & Bidart-Novaes, 2012, p. 71).

3 Fantasia – I. Designa mundo imaginário, seus conteúdos e sua atividade criadora que os anima; II. O termo “fantasístico” evoca a oposição entre a imaginação e a realidade (percepção) (Laplanche & Pontalis, 1991, p. 169).

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