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Revista Brasileira de Psicodrama

versão On-line ISSN 2318-0498

Rev. bras. psicodrama vol.27 no.2 São Paulo jul./dez. 2019

http://dx.doi.org/10.15329/2318-0498.20190023 

https://doi.org/10.15329/2318-0498.20190023
ARTIGO ORIGINAL

 

Novas direções para o plantão psicológico: o psicodrama como referencial

 

New directions for psychological emergency attendance: psychodrama as a reference

 

Nuevas direcciones para la guardia psicológica: el psicodrama como referencial

 

 

Érico Douglas Vieira1,*

1.Universidade Federal de Goiás - Curso de Psicologia - Jataí (GO), Brasil

 

 


Resumo

O plantão psicológico é uma intervenção clínica que acolhe o cliente diante de alguma dificuldade circunstancial. Os desenvolvimentos teórico-práticos nessa modalidade deram-se no referencial da abordagem centrada na pessoa, predominantemente. Neste trabalho, objetivou-se investigar as possibilidades de fundamentação dos plantões no referencial do psicodrama. Os diários de campo produzidos a partir das intervenções realizadas com pessoas em situação de vulnerabilidade social foram objetos de análise qualitativa. Os resultados demonstraram que o trabalho com recursos de ação pode ser uma importante estratégia clínica para potencializar a expressão do sofrimento dos clientes, e que a construção de um campo intersubjetivo baseado no conceito de tele, permeado pela afetividade e pela autenticidade, é uma contribuição psicodramática para o trabalho com pessoas marginalizadas.

Palavras-chave: plantão psicológico; psicodrama; psicologia clínica.


Abstract

Psychological emergency attendance is a clinical intervention that supports the client in the face of some circumstantial difficulty. The theoretical-practical developments in this modality were done based on the person-centered approach, predominantly. In this work, the objective was to investigate the possibilities of development of this clinical practice in the referential of psychodrama. The field diaries produced from interventions made with people in socially vulnerable situations were the object of a qualitative analysis. The results showed that working with action resources can be an important clinical strategy to enhance the expression of clients’ suffering and that the construction of an intersubjective field based on the concept of tele, permeated by affectivity and authenticity, is a psychodramatic contribution to working with marginalized people.

Keywords:psychological emergency attendance; psychodrama; clinical psychology.


Resumen

La guardia psicológica es una intervención clínica que acoge al cliente ante alguna dificultad circunstancial. Los desarrollos teórico-prácticos en esta modalidad se basaron en el enfoque rogeriano, predominantemente. En este trabajo, se objetivó investigar las posibilidades de fundamentación de esta modalidad en el referencial del psicodrama. Los diarios de campo producidos a partir de intervenciones realizadas con personas en situaciones vulnerables fueron objeto de análisis cualitativo. Los resultados mostraron que trabajar con recursos de acción puede ser una estrategia clínica importante para mejorar la expresión del sufrimiento de los clientes y que la construcción de un campo intersubjetivo basado en el concepto de tele, impregnado de afectividad y autenticidad, es una contribución psicodramática para trabajar con personas marginadas.

Palabras-clave: guardia psicológica; psicodrama;psicología clínica.


 

 

INTRODUÇÃO

A palavra "plantão" suscita significados relativos a um tipo de serviço prestado por um profissional que permanece à espera e em prontidão em um período predeterminado e em um horário ininterrupto. A ideia de plantão foi transposta para a psicologia clínica para a construção de uma nova modalidade de atendimento. Na década de 1970, foi criado o plantão psicológico no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). Mais especificamente, estiveram envolvidos nessa criação alguns professores de orientação humanista desse instituto que fundaram o SAP – Serviço de Aconselhamento Psicológico (Schmidt, 2006). Desde então até o presente momento, as formulações teóricas e metodológicas sobre o plantão psicológico são em sua maioria referenciadas na abordagem centrada na pessoa de Carl Rogers (Mahfoud, 2012). Pode-se dizer que os atendimentos do tipo plantão psicológico são baseados fundamentalmente no aconselhamento psicológico centrado na pessoa (Gomes, 2008).

Observa-se uma lacuna de produções teóricas e metodológicas sobre plantão psicológico fundamentadas no psicodrama. É interessante que se experimentem outras formas de se conduzir essa modalidade de intervenção clínica. Dessa maneira, pretende-se avançar na construção da modalidade clínica do plantão psicológico em uma seara teórica ainda não explorada.

Originalmente, o psicodrama foi dirigido para aplicações em grupo. Mais recentemente foi adaptado para a situação de atendimento individual, sendo denominado de psicodrama bipessoal (Cukier, 1992). Os atendimentos realizados pela equipe de plantonistas desta pesquisa inserem-se no psicodrama adaptado para a situação bipessoal.

Em sintonia com o pensamento de Carl Rogers, que pretende dar ênfase aos processos autênticos da pessoa (Mahfoud, 2012), o psicodrama também possui uma fundamentação filosófica pautada na crença nos aspectos saudáveis do ser humano, concretizada no conceito de espontaneidade. Moreno buscava libertar o ser humano da robotização e contestava as instituições cristalizadas e aprisionadoras (Almeida, 2012). Em vez de representar uma relação de ajustamento à sociedade, como a ideia de adequação poderia sugerir, a espontaneidade representa uma relação de compromisso entre sujeito e mundo, um resgate de uma presença atuante e integrante nas situações (Naffah-Neto, 1997). Portanto o psicodrama possui uma visão de ser humano inserido em um contexto, capaz de exercer uma ação renovadora e transformadora de si e da sociedade.

O vínculo entre terapeuta e cliente na concepção psicodramática é considerado como um encontro existencial que busca transcender uma relação tecnicista (Cukier, 1998). É desejável que o psicoterapeuta se envolva no campo clínico como pessoa e que esteja aberto para se emocionar com o drama do cliente. Com qualidades como presença, respeito, aceitação e compromisso, o terapeuta ajuda o cliente a entrar em contato e a explorar suas feridas emocionais (Cukier, 1998). A transferência é um fenômeno relacional muito estudado pelas escolas psicodinâmicas. O psicodrama, entretanto, tem um conceito singular para a compreensão das relações interpessoais que é o fator tele. De acordo com Perazzo (1994), tele seria o fator relacional que proporciona o encontro e uma correta percepção recíproca entre as pessoas. Diferencia-se da transferência, onde há uma distorção da percepção. Tele é a estrutura relacional básica, representando a experiência de fatos relacionais autênticos e emotivos que acontecem no aqui e agora e em via de mão dupla (Fonseca, 2000). A noção de tele baliza o encontro terapêutico, tendo como meta a superação das distorções da transferência.

Para alcançar o objetivo de contribuir para a construção do plantão psicológico no referencial psicodramático, os atendimentos psicológicos realizados na instituição Nosso Lar – Casa de Apoio com pessoas em situação de rua e sujeitos em situação de vulnerabilidade social foram objetos da investigação. O Nosso Lar é uma organização filantrópica situada na cidade de Jataí-GO, sem fins lucrativos, que busca acolher com alimentação e moradia, sujeitos em situação de vulnerabilidade social. O público-alvo dos atendimentos, portanto, foram pessoas em situação de rua, sujeitos em situação de vulnerabilidade social como trabalhadores de baixa renda (garis), "trecheiros" (pessoas que percorrem várias cidades sem residência fixa), andarilhos, desempregados ou excluídos do mercado de trabalho. A vulnerabilidade social refere-se às condições desfavoráveis da exclusão social que enfraquecem as possibilidades de resposta frente a situações de risco. Fatores como trabalhos precários ou desemprego, escasso acesso a serviços básicos e relações sociais frágeis são aspectos que podem produzir vulnerabilidade (Romagnoli, 2015). A equipe de pesquisa/extensão julgou importante a disponibilização de atendimentos clínicos psicológicos a um público-alvo de pessoas em situação de vulnerabilidade social que dificilmente teriam acesso a um serviço dessa natureza. Além disso, existe a importância em se oferecer um espaço de escuta e resolução de conflitos para pessoas que trazem uma problemática relacionada ao uso e abuso de álcool e drogas, bem como um histórico de vínculos familiares e sociais rompidos, aspectos percebidos pelos pesquisadores no contato com os usuários. Refletir sobre a dependência química e expressar o sofrimento em relação à ruptura das relações sociais foram demandas significativas que circularam nos plantões psicológicos. O atendimento clínico especializado pode empoderar os sujeitos mobilizando seus recursos saudáveis e ajudar no reconhecimento e manejo dos limites pessoais. O plantão psicológico é uma modalidade de atendimento clínico que democratiza o acesso da população a um serviço de psicologia.

O plantão psicológico é um tipo de atendimento oferecido – geralmente inserido em uma instituição – que possibilita a procura de ajuda do cliente perante alguma dificuldade circunstancial. Sem necessidade de agendamento prévio, o atendimento pode ser buscado diante de uma demanda específica, como uma ferramenta que possibilita ao cliente lidar com sua ansiedade, limites e recursos pessoais (Furigo, 2006; Mahfoud, 2012). Geralmente existe uma regularidade na oferta do serviço com uma equipe de plantonistas com dias e horários fixos preestabelecidos, sem filas de espera (Vieira & Boris, 2012). Trata-se de uma modalidade de atendimento clínico reconhecida pelo Conselho Federal de Psicologia, diferenciada da psicoterapia pelo estabelecimento do foco na emergência psicológica. Não se trata de um atendimento com menos valor do que a psicoterapia, mas que possui suas especificidades (Breschigliari & Jafelice, 2015).

Perches e Cury (2013) definem o plantão psicológico como um "encontro dialógico que permite ao cliente assumir novos posicionamentos diante de si e do mundo" (p. 314). O plantonista precisa desenvolver uma atenção psicológica e uma "disponibilidade emocional autêntica" (p. 319) para se estabelecer um campo dialógico que facilita o processo reflexivo do cliente. Parece haver um estímulo à construção de um espaço de autenticidade como apontam Rebouças e Dutra (2010) quando afirmam que o plantonista precisa abdicar de uma posição de alguém que detém o conhecimento técnico e ir na direção de se inclinar na escuta do sofrimento. Para isso, o plantonista busca estar junto, deixando-se afetar pelo outro. Souza e Souza (2011) pontuam que o plantonista precisa construir um setting acolhedor, permeado de afetividade através de atitudes de empatia e aceitação positiva incondicional. Através de uma disponibilidade emocional autêntica e da escuta das vivências emocionais, torna-se possível resgatar a autonomia e a saúde dos clientes.

Como existe a possibilidade que o encontro seja único, espera-se que o plantonista desenvolva uma capacidade empática imediata para estabelecer um contato emocional com o outro. Os psicólogos e estudantes que exercem essa prática clínica podem desenvolver uma visão mais ampla da comunidade, além de terem a oportunidade de treinar o estabelecimento de uma escuta empática imediata com grande diversidade de casos atendidos. Aliada à possibilidade de maior desenvolvimento profissional do psicólogo está a oportunidade de sensibilização para incursões profissionais direcionadas para o espaço público (Furigo et al., 2008). Os plantonistas podem aprender a lidar com situações de crise e a se tornarem mais receptivos ao inesperado (Furigo, 2006).

O presente trabalho relata uma pesquisa/intervenção que buscou investigar possibilidades de fundamentação dos plantões psicológicos no referencial teórico-metodológico do psicodrama. O interesse da investigação foi articular possíveis contribuições do psicodrama para uma intervenção que representa um acolhimento pontual que possui diferenças em relação à psicoterapia processual e que demanda a criação de ações singulares por parte do clínico pesquisador.

 

MÉTODO

A teoria fundamentada, metodologia de natureza qualitativa, foi adotada neste estudo. De acordo com Charmaz (2009), consiste em diretrizes que permitem coletar e analisar dados, com o objetivo de construir teorias fundamentadas nos próprios dados. Os dados foram analisados com o intuito de produzir análises teóricas desde o início da coleta. As diretrizes metodológicas da teoria fundamentada permitem que a investigação qualitativa se desloque para além de estudos meramente descritivos, em direção à produção de compreensões abstratas dos fenômenos analisados (Charmaz, 2009).

Este trabalho apresenta os resultados de um projeto de extensão e pesquisa coordenado pelo autor deste artigo. O coletivo de pesquisa, constituído por um professor/coordenador da pesquisa e por discentes do curso de graduação em psicologia da Universidade Federal de Goiás – Regional Jataí se reuniram semanalmente durante quatro horas para a discussão clínica dos atendimentos realizados, bem como para tecer um espaço de formação na teoria e no método do psicodrama. A equipe, formada pelo professor/coordenador, que tem formação em psicodrama e por discentes do último ano do curso de psicologia realizaram os atendimentos. Cada grupo de discentes permaneceu por dois anos no projeto, quando outro grupo foi selecionado pelo professor/coordenador. Os dados apresentados neste relato de pesquisa abrangem o intervalo entre 2015 e 2018, portanto com dois diferentes grupos de estudantes participantes. Nas supervisões semanais houve um espaço de formação em psicodrama como forma de apropriação pelos estudantes desse referencial para a realização dos atendimentos. A formação consistia na leitura e discussão de literatura especializada em psicodrama e na realização de role playings de atendimentos clínicos como via para exercitar o papel de plantonista e perceber as referências existenciais dos usuários. O contato com o psicodrama no curso de graduação se dá através de duas disciplinas obrigatórias: Epistemologia e Sistemas em Psicologia III: abordagens fenomenológicas e Teorias e Técnicas Psicoterápicas II.

Para o processo de coletas de dados, a confecção de diários de campo como forma de registro dos atendimentos foi o principal veículo de produção de informações. Os diários de campo foram analisados com o fim de responder à pergunta de pesquisa sobre as possibilidades de fundamentação dos plantões psicológicos a partir do psicodrama. Esses registros foram construídos semanalmente e levados para a supervisão para análise do coletivo de pesquisa. Consistem em registro dos resultados das observações clínicas, eventos não verbais e fatos ocorridos. Elaborações, dúvidas, medos, sentimentos latentes referentes ao processo clínico. Não há uma prescrição de como ele deve ser feito, somente a sugestão de que seja feito logo após a sessão para que detalhes não sejam esquecidos ou perdidos, preservando a emoção advinda da sessão. A pessoa do clínico fica em destaque, além da relação intersubjetiva entre plantonista e cliente. Nos diários de campo, há a transcrição de falas dos clientes e reflexões dos plantonistas.

Os atendimentos foram realizados nos anos de 2015 a 2018 na instituição de apoio Nosso Lar em Jataí, estado de Goiás. As intervenções fizeram parte de um projeto de pesquisa e extensão, aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Goiás. parecer número 2.595.797 e CAAE: 83273618.5.0000.5083. Os plantonistas permaneciam à espera, de segunda a sexta-feira, das 10 às 12 horas, em uma sala disponibilizada pela instituição. Os clientes/usuários podiam buscar o atendimento espontaneamente, sem agendamento, desde que os plantonistas estivessem livres no momento. Houve ampla divulgação dos atendimentos, dias e horários. Geralmente, os usuários chegavam a partir das 10 horas para a espera do almoço, o que torna a instituição um espaço de convivência. No período de atendimentos realizados, foram gerados 428 diários de campo. Esse material foi inteiramente codificado no processo de análise de dados. Em um primeiro momento a codificação inicial foi utilizada, sendo uma primeira tentativa para nomear, resumir e interpretar os segmentos de dados que são os trechos escritos dos instrumentos. A codificação pretende promover um salto dos eventos concretos para os insights teóricos (Charmaz, 2009). As narrativas foram comparadas, buscando-se os eventos principais a fim de identificar os padrões comuns. A codificação focalizada exige a tomada de decisão sobre quais os códigos permitem uma compreensão analítica acurada para caracterizar os seus dados de forma adequada. Os códigos gerados foram agrupados por afinidade temática em subcategorias e categorias que representam os resultados da pesquisa.

As categorias geradas no percurso investigativo a partir da codificação dos diários de campo pretendem representar contribuições para a construção do plantão psicológico no referencial do psicodrama como via para desenvolver o plantão em searas teóricas ainda não exploradas. As categorias construídas foram: (1) as técnicas de ação potencializam a expressão e (2) a construção do campo intersubjetivo nos plantões. Foi objeto de análise a tentativa de delimitar se a utilização do psicodrama como referência técnica e teórica contribui para que o espaço clínico se torne fértil. É importante mencionar que toda a concepção do projeto de pesquisa/intervenção foi fundamentada no psicodrama, com estudos semanais da teoria durante as supervisões. Aqui, especificamente, serão apresentados fragmentos clínicos nos quais a utilização do psicodrama é explícita e destacada. A seguir serão descritos os resultados com a apresentação de cada categoria.

 

RESULTADOS

AS TÉCNICAS DE AÇÃO POTENCIALIZAM A EXPRESSÃO

Nesta categoria estão descritas algumas contribuições que a aplicação de técnicas psicodramáticas pode oferecer ao plantão psicológico. Quando o plantonista aplicou uma técnica psicodramática, houve ampliação das formas de expressão do cliente. A utilização de técnicas psicodramáticas facilitou a empatia e a aproximação do cliente, auxiliou o plantonista a sair de impasses em momentos em que a sessão parecia estagnada e proporcionou mudanças de percepção dos clientes através da experiência vivencial. O duplo foi bastante utilizado como um recurso para conhecer melhor o mundo fenomenológico do cliente. O duplo é uma técnica na qual o terapeuta busca primeiramente imaginar como é estar no lugar do cliente e expressa como se fosse o cliente seu mundo interno. A utilização do duplo proporcionou para os plantonistas maior conhecimento da estrutura de referência dos clientes tendo, portanto, uma função diagnóstica. Entrar na perspectiva dos clientes permitiu um conhecimento vivencial, sem julgamentos. Uma plantonista escreveu no seu diário de campo que estava na dúvida se o cliente estava querendo provocar compaixão com suas falas, então deliberadamente fez um duplo para tentar entender melhor a posição do cliente. A partir disso, a plantonista percebeu que o cliente se sentia muito incapaz e inseguro nas relações. Para os clientes, o duplo proporcionou um aprofundamento da experiência. Um cliente que trazia na sua narrativa muitos sentimentos de inferioridade pôde acessar sua potencialidade após a realização de um duplo. Isso ocorreu porque a plantonista expressou como se fosse ele sua visão de si mesmo como "um lixo" e, a partir de então, ele disse que conseguiu acessar "uma certa força dentro dele". É importante mencionar que essa plantonista relatou que, antes de fazer o duplo, sentiu-se momentaneamente incapaz de conduzir o atendimento diante da convicção do próprio cliente de que ele não tinha nenhum valor. A realização da técnica ajudou a plantonista a sair do impasse em que se encontrava.

A técnica da cadeira vazia também foi proposta quando os plantonistas percebiam nas narrativas que os clientes precisavam expressar significados para pessoas importantes. Então, o plantonista colocava uma cadeira em frente ao cliente, pedia a ele para imaginar que a pessoa em questão estava lá e dizia que o cliente poderia se expressar livremente. Uma cliente que relatava um conflito com outro usuário da instituição expressava em um atendimento que estava com muita raiva. A plantonista propôs a técnica da cadeira vazia. A cliente, então, se expressou com muita intensidade como se o seu oponente estivesse lá: "Me respeita, eu exijo respeito, você não passa de um moleque!". Depois ela se pôs a refletir que gostaria de ser mais respeitada em todas as relações, que se sente sempre muito desvalorizada. Alguns clientes disseram ao final de um atendimento no qual foi utilizada a técnica da cadeira vazia que se sentiam mais "leves". Essa técnica também foi utilizada para expressão do sentimento de luto com uma cliente que havia perdido a mãe. Pode-se dizer que essas técnicas puderam proporcionar uma catarse de integração que se refere a uma mudança de percepção facilitada pela mobilização e expressão vivencial.

Em alguns casos, o plantonista propôs dramatizar para a reconstituição de alguma situação problemática com o intuito de explorar mais profundamente a experiência. Por exemplo, um cliente que estava morando na Casa de Apoio relatou que estava vivendo um forte conflito com outro morador da instituição. Esse cliente, que já participava frequentemente dos plantões, relatou anteriormente várias histórias de humilhação e opressão sofridas. Em um dos atendimentos, ele refletiu que usava álcool e drogas compulsivamente todas as vezes em que se sentia humilhado e inferior. Quando a situação foi reconstituída, o plantonista fez o papel do outro morador e interagiu com o cliente. Era uma situação de humilhação na qual o outro morador se dirigia ao cliente de forma autoritária e o cliente reagia de forma muito agressiva à opressão. O plantonista sugeriu uma inversão de papéis e, desempenhando o papel de cliente, fez o seguinte duplo: "Tenho muitas feridas de ter sido humilhado, ninguém pode fazer isso comigo, eu não vou aceitar mais isso. É muito sofrido me sentir pequeno quando alguém me humilha". Depois o cliente voltou a ser ele mesmo e o plantonista sugeriu que ele tentasse dar uma resposta diferente. Então o plantonista fez novamente o papel do opressor com bastante veemência, mas o cliente reagiu calmamente sem dar a resposta agressiva e reativa habitual. Depois dessa experiência, o cliente refletiu que está conseguindo se libertar da sensação de humilhação em decorrência das experiências passadas, como ele expressou: "Eu estou conseguindo esquecer as humilhações do passado, agora penso no futuro. A responsabilidade pela minha vida é minha".

Os plantonistas estudantes utilizaram técnicas mais simples como o duplo e a cadeira vazia, por exemplo. O professor/coordenador estimulava os alunos a realizarem pequenas incursões vivenciais, através da utilização de técnicas breves, com o objetivo de explicitar sentidos ocultos quando a narração verbal parecia ser insuficiente. O trecho que descreve uma montagem de cena refere-se a um atendimento realizado pelo plantonista/professor que tinha a formação em instituto de psicodrama reconhecido. A ideia era apostar que estudantes de graduação pudessem se apropriar da teoria e de técnicas psicodramáticas, contribuindo para a construção do papel de clínico desses alunos.

Portanto a adoção do psicodrama com sua riqueza de técnicas e métodos de ação promoveu um incremento nas formas de expressão do sofrimento dos clientes. A utilização das técnicas se fez potente quando havia um vínculo de confiança entre plantonista e cliente. Essa conexão foi um importante fundamento para a adoção de expressividades vivenciais como forma de ir além dos relatos puramente verbais. A partir da ação e da liberdade dada ao corpo, estados subjetivos e realidades relacionais podem se objetivar e se concretizar no espaço clínico.

 

A CONSTRUÇÃO DO CAMPO INTERSUBJETIVO NOS PLANTÕES

Nesta categoria são apresentados os resultados da investigação em que a interação entre plantonista e cliente adquiriu uma tonalidade de autenticidade. Houve situações em que os papéis de plantonista e cliente recuavam para a penumbra e o relacionamento entre duas pessoas emergia no espaço clínico. Nos plantões psicológicos, mesmo que aconteça somente um único encontro, o fator tele, importante formulação moreniana, também pode operar. A realidade imediata de cada um como pessoa faz com que se crie um vínculo próximo e afetuoso. Além da habilidade técnica e da experiência, percebe-se que se o plantonista está disponível com sua presença calorosa e envolvida, e as intervenções clínicas ganham em potencialidade.

Um forte vínculo entre plantonista e cliente promove o campo fértil no plantão psicológico, seja pelas atitudes de envolvimento e acolhimento dos plantonistas, seja pela motivação e mobilização dos clientes para se engajarem numa relação de ajuda. Os atendimentos tiveram boa fluidez quando os clientes despertavam alguma sensação de bem-estar nos plantonistas. Geralmente, quando o plantonista percebia no cliente alguma característica admirável como bondade, dignidade e força, por exemplo, estabelecia- se uma ponte de simpatia e conexão. Uma cliente que vive em um bairro periférico pobre e violento, relatando sua busca por uma vida mais organizada, despertou essa reflexão do plantonista: "A sua dignidade despertou em mim uma grande admiração, me fazendo saber que é possível ser forte e inteligente em ambientes que não estimulam isso". Outro episódio significativo ocorreu em um atendimento em que o cliente pediu ao terapeuta para tocar em uma cicatriz de ferimento de bala. Eis a reflexão do plantonista, retirada de um diário de campo:

"Ele me pediu para pegar no rosto dele para sentir vários pedaços de bala alojados. Toquei seu rosto, com ele guiando a minha mão e pude sentir alguns pontos onde estavam as balas. A aproximação física, o toque, representou para mim também uma aproximação maior. Me senti conectado com aquele homem que teve e tem uma vida tão desordenada perto das minhas referências. Senti um respeito por ele e estava feliz e realizado por termos conseguido fazer uma ponte entre duas pessoas com vidas tão diferentes."

Ao adotar a atitude de envolvimento, o plantonista obteve uma sensação de prazer e realização em ter oferecido alguma contribuição ao cliente. Ao final de um atendimento, um cliente disse que foi muito bom compartilhar suas experiências no plantão, pois ele se sentia muito sozinho e que estar ali era como "sair do escuro em direção à luz". Tal feedback trouxe uma sensação de bem-estar ao plantonista. Outro plantonista escreveu em seu diário de campo que se sentia muito realizado em poder fazer a ponte entre a universidade e a comunidade e dividir os conhecimentos da psicologia com pessoas que não teriam condições de pagar uma psicoterapia em consultório. Uma plantonista, que era estudante do nono período de psicologia, também relata ter sentido bem-estar em poder aplicar teorias aprendidas no curso de graduação na prática clínica. O plantonista se sentia gratificado em perceber que ele foi digno de confiança, em situações em que o cliente revelava experiências sofridas como abandonos, rejeições e doenças. Esses relatos foram feitos com muita mobilização por parte dos clientes. Os plantonistas sentiam esperança, bem-estar e leveza quando lidavam com relatos de clientes que queriam buscar condições melhores de vida, que se abriam para novas possibilidades durante o atendimento. Às vezes os contatos não foram únicos. Quando os clientes retornavam, tal retorno foi fonte de prazer para os plantonistas ao perceberem algumas mudanças de percepção ou de ressignificação de sentimentos dos clientes.

Houve uma ampliação da percepção dos plantonistas quando refletiram sobre aspectos saudáveis ou potentes dos clientes. Mesmo em meio a discursos de impotências e perdas, os plantonistas reconheciam alguma vitalidade ou potencialidade. Uma plantonista relatou: "Fiquei muito contente com este atendimento, tentamos sair daquela patologia (o cliente foi diagnosticado com depressão) e pensar num indivíduo que pensa, tem sentimentos e uma história". Outro plantonista parece ter ficado admirado com aspectos potentes de uma cliente que vivia em contexto desfavorável: "L. parece ser uma pessoa muito forte, saber o que quer da vida, tem valores bem definidos, mesmo tendo vivido em contextos desorganizados e tendo uma vida cheia de desvios e dificuldades". É importante que essa busca por reconhecer o cliente e se deixar atravessar por afetos de admiração faça parte do campo clínico. Pode-se pensar meios para instrumentalizar esses afetos como intervenções que seriam importantes com sujeitos que frequentemente recebem olhares desqualificadores da sociedade.

Considerando-se que o psicodrama é um corpo teórico com pressupostos e métodos, sua adoção como referência transcende a mera utilização de técnicas. Dentre as estratégias adotadas pelos plantonistas, a atitude de inversão de papéis teve destaque como via para alcançar melhor compreensão e maior conexão com o cliente. O psicodrama inspirou atitudes nos plantonistas que contribuíram para a construção de um vínculo positivo com os clientes. Nem sempre foi utilizada a técnica do duplo, pois inverter os papéis, tentar se colocar no lugar do cliente também permitia uma ampliação da percepção sobre o cliente. Uma plantonista disse que sentiu mais empatia ao se imaginar no lugar do cliente e perceber suas dificuldades de mudança. Houve relatos de dois plantonistas que sentiram admiração ao se imaginar no lugar dos clientes e pensarem que eles apresentavam otimismo apesar de terem passado por situações difíceis. Outra plantonista disse ter sentido muita compaixão ao se imaginar no lugar de uma mulher que sofreu violência doméstica, tendo sido ameaçada de morte e muito oprimida na relação com o ex-companheiro.

A fertilidade do espaço clínico se manifesta quando plantonista e cliente se mostram como pessoas, transcendendo os papéis de quem oferece ajuda e de quem busca ajuda. Tais papéis são importantes para que os sujeitos se engajem no trabalho de escuta das narrativas de sofrimento, mas é necessário que se estabeleça um vínculo de calor e proximidade através da percepção da realidade imediata de cada pessoa presente. Os plantonistas e terapeutas podem maximizar suas contribuições ao buscarem promover, de forma autêntica, relações télicas no espaço clínico.

 

DISCUSSÃO

A investigação das possibilidades de contribuições do psicodrama como corpo teórico-metodológico para os atendimentos do tipo plantão psicológico resultou em um percurso de construção de dados que passaram pelo uso de técnicas de ação e pela descrição de fragmentos clínicos nos quais foi possível um encontro autêntico entre plantonista e cliente.

A dramatização representa um aspecto que caracteriza fortemente o psicodrama que, via de regra, é reconhecido mais por suas possibilidades vivenciais do que pelo seu arcabouço teórico. O psicodrama tem como foco a objetivação de elementos subjetivos, através da liberdade de ação dada ao corpo, na busca de respostas criativas e inovadoras (Vieira, 2009). A dramatização consiste na exteriorização e concretização de realidades subjetivas e relacionais. Podem ser representadas situações passadas e futuras, além de realidades imaginárias que são significativas para os sujeitos. As possibilidades de movimentação espacial que coloca o corpo em ação podem revelar aspectos que ficariam encobertos quando se acessa somente a comunicação verbal. O corpo em movimento pode expressar intensidades que o trabalho meramente verbal não consegue alcançar.

Durante as dramatizações, a equipe utilizou-se de técnicas de ação como o duplo, a cadeira vazia e o solilóquio. O caráter vivencial propiciado pela ação contribui para a ressignificação de experiências e mudanças de percepções. Moreno (1975) argumenta que o desempenho de papéis e as técnicas psicodramáticas contribuem para o "crescimento mental do indivíduo" (p. 28). O sujeito pode reordenar e reintegrar elementos dispersos, ganhando uma sensação de força e alívio, processo descrito como a catarse de integração (Almeida, 2012). Nos atendimentos realizados, as técnicas contribuíram para uma ampliação das potencialidades dos sujeitos, como quando um cliente diz que acessou "uma certa força dentro dele" após o plantonista fazer seu duplo que expressava seus sentimentos de inferioridade. O mesmo ocorreu quando a cliente refletiu que gostaria de ser mais respeitada nas relações após expressar seu incômodo diante de um conflito durante a realização da técnica da cadeira vazia. Ainda, quando um cliente pôde ressignificar suas experiências passadas de humilhação após uma dramatização em que uma situação em que ele se sentiu oprimido foi reconstituída. As técnicas e métodos de ação tiveram função de possibilitar uma escuta dos elementos excluídos da experiência. Os aspectos da experiência que não encontram espaço de expressão nos espaços sociais retornam como avessos vivenciados como estranheza, mal-estar ou sofrimento (Figueiredo, 2009). O psicodrama pode, através de seus aspectos vivenciais, contribuir para trazer à tona aspectos que não puderam ser expressos. Esses avessos da experiência denunciam o que não pode ser dito nos contextos sociais.

O emprego de técnicas psicodramáticas mostra-se apropriado em atendimentos do tipo plantão psicológico. A formação ocorrida durante a realização do projeto pôde permitir que os estudantes construíssem intervenções criativas e vivenciais, transcendendo o trabalho estritamente verbal. As técnicas de ação estão em consonância com uma importante diretriz dos plantões psicológicos: "facilitar ao cliente uma visão mais clara de si mesmo e de sua perspectiva ante a problemática que vive e que gera um pedido de ajuda" (Mahfoud, 2012, p.18). A mobilização facilitada pelas vivências propostas pôde contribuir para o surgimento de recursos pessoais para lidar com a problemática apresentada. Como coloca Furigo (2006), a crise que leva os sujeitos para os plantões mobiliza e coloca o sujeito diante de limites que fornecem uma abertura para o novo e o inusitado. Dessa forma, o plantão pode ativar as forças criativas do cliente. Perches e Cury (2013) apontam que "o plantão psicológico se mostra rico em potencialidade, exatamente por não assumir um contorno rígido e permitir inserções criativas quando aplicado a contextos e a pessoas diferentes" (p. 314). A dramatização é um meio criativo de contribuir para que o cliente possa alcançar uma melhor visão de si e da realidade.

A dramatização pode apresentar recursos que o plantonista pode utilizar para acessar melhor a estrutura de referência do cliente, tendo em vista que o encontro pode ser único. A utilização do duplo, por exemplo, revelou-se como um importante recurso para lidar com a prescrição de Mahfoud (2012) sobre a necessidade do plantonista em desenvolver uma capacidade empática imediata para o contato emocional com o cliente. Quando os plantonistas utilizaram o duplo, foi possível um refinamento da capacidade diagnóstica, no sentido amplo de se conhecer o mundo do cliente. Moreno (1983) descreve as técnicas do duplo e do solilóquio como "técnicas interativas" (p. 72), nas quais o terapeuta é um observador ou um ator participante que investiga e vivencia os processos que acontecem no campo relacional.

A proposta de dramatização se revelou uma importante estratégia no plantão psicológico fundamentado na busca de um bom vínculo entre plantonista e cliente. O conceito psicodramático de tele norteou as ações dos plantonistas. De acordo com Almeida (2006), as aplicações das técnicas psicodramáticas são mais eficazes quando o vínculo terapêutico é télico e não transferencial. O fator tele refere-se aos aspectos autênticos da relação entre terapeuta e cliente na qual há uma percepção mútua da realidade de cada participante (Moreno, 1983). Diferencia-se da transferência em que distorções perceptivas sobre o outro estão envolvidas. A tele representa uma força de coesão e de integração na relação terapêutica (Fonseca, 2000). A psicoterapia seria a influência benéfica de uma relação humana para produzir mudanças a partir do fator tele. Portanto as escolas de psicoterapia utilizam-se da tele, mesmo não adotando o conceito (Oliveira & Vieira, 2015). Os psicodramatistas admitem que há uma diferença de papéis, mas, ao mesmo tempo, há uma busca de uma horizontalidade no encontro humano através da superação dos fenômenos transferenciais. Assim, são abertos canais de comunicação nos quais fluem os interditos, tudo o que não pode ser dito nos espaços sociais convencionais (Almeida, 2006; Fonseca, 2000).

O setting acolhedor ou campo dialógico que a literatura sobre plantão psicológico aponta tem ligação com a busca de uma relação télica nas formulações do psicodrama. A tele é uma comunicação interpessoal autêntica e imediata, que integra os sujeitos envolvidos e sensibiliza os participantes para uma boa percepção mútua (Moreno, 2012). Portanto o plantão psicológico baseado no psicodrama tem como estratégia clínica a busca do plantonista em construir um campo télico ou intersubjetivo. No caso das intervenções aqui analisadas, houve a emergência de um clima afetivo e de proximidade entre plantonistas e clientes. A abertura para se deixarem ser afetados e se emocionarem com as narrativas dos clientes foi marcada por momentos em que os plantonistas se sentiram comovidos e sensibilizados no espaço clínico. Os afetos de admiração que os plantonistas sentiram quando acessavam as referências existenciais de pessoas que vivem condições precárias e que, mesmo assim, apresentavam força, dignidade, inteligência, desejo de crescimento, foram elementos importantes para a construção do campo intersubjetivo. Esse espaço télico transformou os plantões em uma referência na qual alguns clientes puderam retornar para compartilhar não somente queixas, mas também como um espaço de busca de crescimento e de melhor luminosidade das vivências. Por exemplo, quando o cliente disse que estar nos plantões era como "sair do escuro em direção à luz" ou quando uma cliente comparecia regularmente aos plantões disse que estava diminuindo a quantidade de medicamentos psicotrópicos.

As pontes estabelecidas entre pessoas de classes sociais distintas foi um fator promotor do encontro, como ilustra o momento em que um plantonista toca as cicatrizes/marcas de violência de um cliente que era morador de rua. Essa ponte foi vivida como bem-estar pelos plantonistas em se perceberem como dignos de confiança para o compartilhamento de relatos de vivências de desamparo, abandonos, abusos e violências. Os benefícios não foram direcionados somente para os clientes, mas os plantonistas relataram nos diários de campo experiência de ampliação da percepção no contato com o outro. O contato com outras referências existenciais e sociais trouxe uma expansão de entendimento sobre trajetórias de rua, dependência química, violência, perpassando um não julgamento diante das vivências de populações vulneráveis. Esse campo de afetividade, admiração, acolhimento e bem-estar foram aspectos importantes na perspectiva de se trabalhar clinicamente com pessoas que fazem parte de grupos sociais que Moreno (1975) denominou de proletariado sociométrico. Seriam grupos de pessoas isoladas, negligenciadas, rejeitadas e desconsideradas, cujos sentimentos não encontram reciprocidade (Cukier, 2011). Os plantões foram oferecidos para moradores de rua, andarilhos, trabalhadores com contratos precários, excluídos do mercado de trabalho, pessoas com transtornos mentais, enfim, sujeitos que representam um proletariado sociométrico. Representam atualmente sujeitos desviantes da sociedade de consumo, pois não estão à altura dos valores neoliberais que determinam como dignas as pessoas com poder de consumo (Colombo, 2012).

A inversão de papéis como atitude clínica foi uma estratégia de destaque adotada pelos plantonistas como via para se estabelecer uma conexão com os clientes. Houve uma intensa mobilização da equipe de plantonistas para o cultivo de uma atitude de buscar imaginar e sentir como seria a experiência do outro, tentar se colocar no lugar do cliente. Seria uma disposição permanente de olhar pela perspectiva da alteridade. Moreno (1983) aponta que "a empatia dos terapeutas aumenta com seu treinamento em percepção de papel e em inversão de papel" (p. 172). De acordo com essa prescrição moreniana, seria interessante que houvesse um treinamento através de métodos psicodramáticos para que os psicoterapeutas sejam sensibilizados a acessar pensamentos, sentimentos e percepções do outro. Nas supervisões foram feitos alguns exercícios para se buscar o acesso à experiência do cliente. Durante o relato do atendimento, o supervisor solicitava que o plantonista desempenhasse o papel do cliente, expressando queixas e narrativas a partir da experiência do outro. Essas experimentações colocavam o clínico mais implicado com a experiência do cliente, de modo mais ampliado do que quando somente narrava os conteúdos do atendimento. Durante os plantões, o uso da inversão de papéis facilitou não somente a empatia e uma postura de não julgamento, mas promoveu outros sentimentos nos plantonistas como admiração e compaixão.

O uso da inversão de papéis ou de seu princípio é a maneira psicodramática de realizar algumas prescrições contidas na literatura especializada sobre plantão psicológico, como a diretriz de Mahfoud (2012) de que o plantonista deve buscar acolher a experiência do cliente, em vez de enfatizar o problema ou a queixa. Furigo (2006) argumenta que a empatia e a aceitação positiva promovem no cliente um sentimento de relaxamento, uma sensação de liberdade e uma abertura para explorar-se e vislumbrar novas possibilidades de pensamentos e escolhas. A autora também aponta que o "plantão para ser eficaz deve atender às expectativas de ajuda do cliente, deve responder a uma demanda que nem sempre é claramente expressa ou totalmente identificável" (p. 89). A inversão de papéis pode colocar o plantonista capaz de acessar a estrutura de referência do cliente e perceber mais claramente sua problemática. A oferta de uma escuta imediata ao receber a pessoa no momento de mobilização é uma questão central quando se pensa nas especificidades do plantão (Breschigliari & Jafelice, 2015). A ponte para a alteridade promovida pela inversão de papéis coloca o plantonista disponível para uma atenção qualificada ao sofrimento ou à angústia como símbolo de um mal-estar que requer cuidados (Perches & Cury, 2013; Furigo, 2006).

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os plantões psicológicos são apontados por Mahfoud (2012) como desafios de uma psicologia humanista dentro das instituições, que busca enfatizar a centralidade da pessoa e seus processos autênticos. O aconselhamento psicológico centrado na pessoa foi uma forte influência para a construção dessa modalidade de atendimento clínico. Geralmente, os plantonistas buscam ouvir e acolher o cliente, ajudando-o a lidar com o sofrimento, pautados pela crença nos potenciais de crescimento dos sujeitos.

A partir do itinerário dessa investigação, sugere-se que os plantões psicológicos no referencial do psicodrama possam ser realizados fundamentados em dois eixos: o uso de recursos de ação no espaço clínico e a busca do plantonista em construir um campo intersubjetivo. A dramatização possibilita recursos criativos que facilitam a expressão de aspectos excluídos da experiência. Como a situação de crise ou emergência constitui uma marca dos plantões psicológicos, a dramatização ajuda na expressão vivencial de fluxos de emoções e significados que a situação de intensa mobilização requer. Sugere-se como agenda de pesquisa a investigação das possibilidades de aplicações de outras técnicas psicodramáticas, além das descritas neste artigo. Outro eixo importante que emergiu das intervenções e da pesquisa foi a contribuição do conceito de tele para o estabelecimento de um campo intersubjetivo permeado pela afetividade, pela autenticidade e pela busca de horizontalidade. Essa busca ética de uma postura humanizada e autêntica, calcada no envolvimento e na proximidade com o cliente, constrói um campo de aceitação e de liberdade para que o cliente explore com amplitude suas experiências. Portanto o método de intervenção nos plantões psicológicos pode se pautar nos dois eixos: utilização de recursos de ação e construção de um campo intersubjetivo baseado na tele. Refinar o método torna-se importante tarefa para as próximas intervenções e pesquisas.

A principal contribuição científica pretendida no artigo é a expectativa de que esta pesquisa possa colaborar para a construção do plantão psicológico em um referencial ainda pouco explorado: o psicodrama. Dessa forma, a comunidade de profissionais psicodramatistas é convidada a adotar uma nova possibilidade de intervenção, abrindo uma nova frente de atuação profissional e um novo campo de futuras pesquisas. Além disso, pretendeu-se contribuir para o avanço de uma proposta de um tipo de atendimento que democratiza o acesso da população a um serviço especializado de psicologia. No âmbito da psicologia como ciência e profissão, o plantão psicológico auxilia no reposicionamento da psicologia clínica. Esse campo busca construir críticas aos modos hegemônicos de subjetivação na medida em que existe a busca de escuta do interdito social. A psicologia clínica tenta responder às demandas do mundo contemporâneo na escuta dos elementos estranhos da experiência, como aponta Figueiredo (2009): "Talvez o clínico seja a escuta de que o nosso tempo necessita para ouvir a si mesmo naquilo em que lhe faltam as palavras" (p. 63). O plantão psicológico, nesse sentido, pode afirmar a função política e social da escuta clínica (Vieira & Boris, 2012).

 

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 *Autor correspondente: ericopsi@yahoo.com.br

Vieira ED https://orcid.org/0000-0002-9845-2245

Recebido: 07 Maio 2019 – Aceito: 15 Nov 2019

Editora de Seção: Márcia Almeida Batista

Trabalho apresentado no XXI Congresso Brasileiro de Psicodrama – 2018

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