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Revista Brasileira de Psicodrama

versão On-line ISSN 2318-0498

Rev. bras. psicodrama vol.27 no.2 São Paulo jul./dez. 2019

http://dx.doi.org/10.15329/2318-0498.20190022 

https://doi.org/10.15329/2318-0498.20190022
RELATO DE CASO

 

No palco da psicoterapia: um adolescente, seu drama e o Psicodrama

 

On the stage of psychotherapy: a teenager, his drama and Psychodrama

 

En el escenario de la psicoterapia: un adolescente, su drama y el Psicodrama

 

 

Ariany Maçaneiro1,*, Viviane Oliveira de Almeida1

1.Viver Psicologia: Psicodrama - Tubarão (SC), Brasil.

 

 


Resumo

Este artigo tem o objetivo de evidenciar as possibilidades do psicodrama bipessoal diante do drama de um adolescente, demonstrando sua evolução. A metodologia utilizada foi a pesquisa qualitativa nas modalidades pesquisa-ação e estudo de caso. O manuscrito expõe técnicas como psicodrama em cena aberta, concretização, jogo de papéis, átomo social e psicograma, além da atividade "autor e protagonista da própria história", a qual concretizou as conquistas do paciente. Este trabalho conclui que o psicodrama bipessoal possui um vasto arsenal de técnicas, por meio das quais um adolescente passou a se reconhecer como autor e protagonista de sua história, e que o psicodramatista pode validar "seu psicodrama", ancorado por sua teoria.

Palavras-chave: Psicoterapia; Psicodrama; Psicologia do adolescente; Técnicas psicoterapêuticas; Intervenção psicoterapêutica.


Abstract

This article aims to highlight the possibilities of bipersonal psychodrama before the drama of a teenager, demonstrating his evolution. The methodology used was the qualitative research, in the action-research and case study modalities. The manuscript exposes techniques such as psychodrama in the open scene, concretization, role play, social atom and psychogram, in addition to the "author and protagonist
of his own story" activity, which materialized the patient’s achievements. This paper concludes that bipersonal psychodrama has a vast arsenal of
techniques, through which a teenager has come to recognize himself as the author and protagonist of his story, and the psychodramatist can validate "his psychodrama", anchored by its theory.

Keywords: Psychotherapy; Psychodrama; Adolescent psychology; Psychotherapeutic techniques; Psychotherapeutic intervention.


Resumen

Este artículo pretende destacar las posibilidades del psicodrama bipersonal ante el drama de un adolescente, reflejando su evolución. La metodología utilizada fue la investigación cualitativa, en las modalidades de investigación-acción y estudio de caso. El manuscrito detalla las técnicas como el psicodrama con escena abierta, la concretización, la interpretación de roles, el átomo social y el psicograma, además de la actividad "autor y protagonista de su própria historia", que materializó los logros del paciente. Este artículo concluye que el psicodrama bipersonal presenta un amplio arsenal de técnicas, por las que un adolescente se reconoce a sí mismo como autor y protagonista de su historia, y que el psicodramatista puede validar "su psicodrama", anclado por su teoría.

Palabras-clave: Psicoterapia; Psicodrama; Psicología del adolescente; Técnicas psicoterapéuticas; Intervención psicoterapéutica.


 

 

INTRODUÇÃO

Este artigo apresenta recortes do processo psicoterapêutico de um adolescente, com a descrição das intervenções psicodramáticas que o auxiliaram a produzir respostas mais adequadas diante de seu drama vivenciado, sendo tais ações parte de seu reconhecimento como autor e protagonista de sua história.

Este artigo foi escrito com base em uma pesquisa de natureza aplicada, a qual objetiva gerar conhecimentos para aplicações práticas, dirigidos à solução de problemas específicos (Gil, 1994). Trata-se de uma pesquisa científica, fenomenológica, qualitativa e exploratória. Os meios utilizados para alcançar os objetivos da pesquisa foram a pesquisa-ação e o estudo de caso (Gil, 2007).

Quando recebi o adolescente sobre o qual exporei as reflexões, percebi um vasto mundo diante de meus olhos e reconheci que precisava estar bem ancorada para poder auxiliá-lo. A psicoterapia desse adolescente me mostrou o quanto o psicodrama é vasto e, se bem conduzido, pode nos levar a resultados surpreendentes, tal como afirma Moreno J.L. (1975). Assim, o objetivo deste artigo é que o leitor consiga alcançar a percepção do arsenal de possibilidades do psicodrama – nesse caso, bipessoal – diante do drama de um adolescente, apresentando sua evolução a partir da utilização das técnicas psicodramáticas.

Para Moreno J. L. (1975), o psicodrama trata-se de uma forma de terapia que pode ser amplamente aplicada, por meio da qual o paciente é colocado em um palco, onde tem a possibilidade de exteriorizar seus problemas. Pode ser adaptada a qualquer tipo de situação e é aplicável a todos os níveis de idade. A representação de papéis é um de seus traços caraterísticos e, por meio de suas técnicas, revelam-se novas dimensões da mente. De acordo com Moreno J. D. (2016), seu pai, Moreno J. L.,
reconhecia no psicodrama uma possibilidade de entrar em ação, por meio da qual, em vez de apenas falar sobre pessoas importantes de nossas vidas, podemos compreendê-las melhor e confrontá-las com imaginação ao assumirmos seus papéis, tornando-nos seres humanos mais criativos e espontâneos.

Quanto ao psicodrama bipessoal, seu objetivo básico é "conseguir a integração de um indivíduo em seus níveis afetivos, corporais, intelectuais e vinculares (sociais)" (Bustos, 1992, p. 72). Sobre o trabalho com adolescentes, exige-se um alto grau de responsabilidade, bem como a compreensão dos fundamentos teóricos, a fim de aplicá-los na prática (Bertussi, 2005). Ferreira (2010) explica que Moreno J. L. não estruturou uma teoria específica para o trabalho com adolescentes, mas os conceitos e as técnicas do psicodrama servem para esse fim.

O processo da adolescência visa à conquista de si mesmo, ou seja, afirmar-se em uma identidade própria, resultado de uma longa e penosa revisão das vivências infantis e das identificações até então estabelecidas (Enderle, 1988). Fassa e Echenique (1992) explicam que a identidade se constrói na relação, sendo o "eu" a resultante do exercício de papéis.

Muitos comportamentos são experimentados na adolescência e, por meio do psicodrama, isso pode ocorrer com segurança. Os adolescentes veem o mundo por extremos e torna-se inútil dizer "Calma, não é tudo isso!". O psicodrama é uma alternativa para auxiliar o adolescente na descoberta sobre si e sobre a vida (Cossa, 2008).

 

UM ADOLESCENTE E SEU DRAMA

Em um sábado à tarde, uma família tocou a campainha da minha casa, sendo eu uma psicóloga e psicodramatista em formação, e ali aconteceu o início de uma relação. Tratavam-se do paciente, que aqui chamarei de Guardião Perdido, e seus pais. Serão relatadas as técnicas mais relevantes, que foram utilizadas ao longo de pouco mais de dois anos em psicoterapia, no período compreendido entre setembro de 2012 e novembro de 2014, em um consultório particular de Psicologia de uma cidade do litoral catarinense.

Na primeira sessão, os pais explicaram que me procuraram pois o Guardião Perdido estava apresentando dificuldades escolares. De acordo com a orientadora escolar (visitada no início e ao longo do tratamento), o Guardião Perdido "estava distante e deprimido".

O Guardião Perdido chegou ao consultório apresentando a seguinte maneira de lidar com a vida: possuía um mundo só seu, em que tudo ocorria do seu jeito. A concretização desse mundo era seu escritório, onde guardava sua coleção de brinquedos. No início do tratamento, percebia-se que o Guardião Perdido confundia personagens da fantasia com personagens do mundo real. Um dos primeiros personagens ao qual o Guardião Perdido se referiu se tratava de alguém que um dia existiu, que era inicialmente um anjo que havia sido mandado para o inferno, e, apesar de ninguém acreditar nele, ele não desistia de fazer o bem.

O Guardião Perdido realizava dublagens de um cantor pop em apresentações públicas e era reconhecido por esse trabalho. Em várias sessões, trouxe materiais relacionados à carreira e à história do cantor, com a qual comparava a própria história: "Ele não teve infância, então, não queria crescer para aproveitar a infância. E tinha problemas de se relacionar com mulheres. Eu estou tendo o mesmo problema que ele, mas eu tive uma infância boa". Tiba (2005) explica que, com a puberdade, o sujeito vivencia um processo complexo, com várias facetas, ocasionando uma confusão na mente de um ser que, até então, era uma criança.

Ainda sobre manifestações artísticas, o Guardião Perdido sonhava em gravar seu próprio CD, com músicas de sua autoria, e a cada sessão compartilhava uma delas. Nas letras das músicas, evidenciavam-se os seguintes temas: sentimento de exclusão, desejo de ser "um ser normal", sensação de ser diferente dos outros, necessidade de ter um lugar seu, necessidade de surpreender os que duvidavam dele. Os papéis masculinos, com toda expectativa social de sucesso, desenvoltura no mundo, competência, poder e autonomia, pesam nos ombros imaturos dos jovens que, ao passo que desejam corresponder às expectativas e assumir os papéis atribuídos ao modelo ideal de homem, não aguentam a pressão e a angústia que reforçam seu isolamento e seu senso de inadequação (Fassa & Echenique, 1992).

O Guardião Perdido não gostava de se misturar com os jovens de sua idade, ele preferia interagir com crianças. Além disso, relatava ter feito uma promessa aos 9 anos, a qual intitulava "9 anos" e, em virtude dessa promessa, estava impedido de se aproximar de meninas.

A adolescência caracteriza a época em que se desenvolve a consciência dos relacionamentos, praticando-se habilidades interpessoais que estabelecem o critério para a escolha de amigos e parceiros de vida (Cossa, 2008). Fonseca (1980) enfatiza algumas considerações de Moreno J.L., que afirmava que o ser humano sofre por não realizar todos os papéis que carrega consigo. A angústia resulta da pressão que esses papéis não desempenhados por inteiro exercem, exigindo realização.

O paciente apresentava-se como um produto, um resultado conservado de sua história, quase incapaz de visualizar novas respostas ao drama de sua vida. Em síntese, o Guardião Perdido não se reconhecia como autor e protagonista de sua história. Verificavam-se dificuldades em diferenciar fantasia e realidade, como nas situações em que o paciente relatava um personagem de suas histórias como se este existisse na realidade e pudesse, algumas vezes, estar nos ouvindo. Evidenciava-se a necessidade de o Guardião Perdido explorar suas relações sociais, contando com sua criatividade existente e abundante, até então utilizada nos papéis jogados na fantasia.

Pereira (2005) afirma que, apesar de a realidade e a fantasia ocuparem pontos extremos, ambas se articulam. Realidade é algo conservado, em descompasso com o desejo humano. Fantasia implica a possibilidade de criar por meio do imaginário, a partir de imagens subjetivas, diferentes das advindas da realidade. Por meio da fantasia, o sujeito realiza seu desejo diante de uma realidade frustrante. A fantasia, porém, precisa ter início e fim para retornar à realidade (Merengué, 2003, citado por Pereira, 2005).

 

UM PSICOTERAPEUTA E SEU PSICODRAMA

Logo nas primeiras sessões, o assunto relacionado à promessa "9 anos" ganhou destaque pelo paciente. Assim, considerei oportuno recorrer à técnica da dramatização em cena aberta, por meio da qual o Guardião Perdido teve a oportunidade de revivenciar a cena em que fez a promessa. Propiciei um aquecimento rico em detalhes e assim o paciente estava pronto para interagir com os contrapapéis. Na cena, ele dava uma resposta passiva aos amigos que dele zombavam, e, podendo repeti-la algumas vezes, experimentou novas possibilidades de resposta aos amigos, concluindo que não precisava ficar passivo nem provar algo para eles. De acordo com Moreno J. L. (1975), o protagonista recebe o desafio de responder, de maneira relativamente adequada, a uma situação nova ou, com alguma novidade, a uma situação antiga. A fim de mobilizar as experiências que ainda se encontram enterradas dentro de si, faz-se necessário recorrer a um transformador e catalisador, que opera no aqui e agora: a "espontaneidade". A espontaneidade precisa estar presente para a eficácia dos processos de cura mental. O homem reafirma sua essência, ou seja, é espontâneo, quando recupera sua liberdade ou luta por ela.

A capacidade de modificar uma situação implica criar, ou seja, produzir algo novo a partir daquilo que lhe foi dado. Dessa maneira, não há como falar de espontaneidade sem mencionar a criatividade, uma vez que o que se manifesta por meio da espontaneidade é o potencial criativo, podendo o ser humano produzir uma nova realidade, a partir de uma realidade preestabelecida, modificando sua ação e, dessa forma, reafirmando sua existência (Gomes, Nations & Amato, 2005; Gonçalves, Wolff & Almeida, 1988).

Outro momento do tratamento que merece menção e que ocorreu em sessões posteriores à dramatização em cena aberta, foi o dia em que o paciente chegou à sessão vestido com uma roupa tal qual a do cantor pop, pois estava chegando de uma dublagem. Seu jeito estava diferente, estava se intitulando "o bonzão". À medida em que íamos conversando, fui colocando almofadas sobre seu colo, uma sobre a outra, e nomeando cada uma, as quais representavam figuras do "seu mundo". Ficava difícil ver o rosto do Guardião Perdido embaixo de tudo aquilo. Solicitei que fizesse um solilóquio e ele disse: "Me sinto protegido". Considerei oportuno um duplo: "Tenho medo de encarar o mundo sem essa proteção". O solilóquio aqui revelou sentimentos que ainda não haviam sido expressos e, por meio do duplo, auxiliei o paciente a acessar emoções que ainda não haviam sido verbalizadas e que provavelmente ainda não estavam conscientizadas (Cukier, 1992).

Em seguida, fui retirando cada almofada, uma a uma, até que o Guardião Perdido pôde ficar "descoberto" e então questionei quem era esse que restava após retirar tudo aquilo? E ele respondeu: "Um menino que nasceu em uma cidade e foi adotado". O Guardião Perdido falou da adoção pela primeira vez e questionou com tristeza (sobre a mãe biológica): "Por que ela fez isso comigo?". Durante o compartilhamento, o paciente falou que não esperava lembrar desse assunto, afinal, era algo "bem resolvido" em sua história. A partir da técnica da concretização, foram materializados os assuntos trazidos pelo paciente (Cukier, 1992) e, no momento da retirada das almofadas concretizadas, o Guardião Perdido foi capaz de acessar emoções com as quais não fazia contato. Isso, por si só, já se trata de um ato espontâneo, um resgate de uma espontaneidade que estava muito bem guardada e encoberta por tantos recursos criados pelo paciente para se proteger (quando ele fez isso, essa era a resposta mais adequada). O que vem a seguir é uma sucessão de respostas novas, um encontro consigo e com novos caminhos a explorar. Nas sessões seguintes, a adoção ou, mais especificamente, o "como tudo começou" foi um tema que recebeu foco por parte do paciente, que passou a querer compreender sua história desde o início.

Após o assunto da adoção ter vindo à tona, o Guardião Perdido mencionou que sentia como se sua mãe biológica o tivesse jogado no lixo. A partir de um rápido aquecimento (posto que o paciente já estava bastante aquecido), propus que dialogasse com ela e assim, desempenhando o próprio papel, o paciente pôde questionar a mãe biológica (papel então desempenhado por mim), e, tomando o papel dela (invertendo papéis comigo, que então tomei o papel de Guardião Perdido), pôde dizer que não ficou com o Guardião Perdido porque não tinha condições de criá-lo. Isso foi libertador para o paciente, que pôde olhar com novos olhos para sua história, após concluir que essa mulher lhe deu a chance de ter uma família. Por meio do desempenho e da inversão de papéis lato sensu (Fonseca, 2000), o paciente continuou a elaboração de seus registros internos, ressignificando e reintegrando partes importantes de sua vida.

Na sessão seguinte, o paciente começou a apresentar resistências quanto à continuidade da terapia, pois, conforme afirma Miller (1986), a verdade sobre nós mesmos, antes de nos libertar, nos causa muita dor e, por isso, é concebida como uma ameaça, sendo por muitas vezes evitada. Esclareci meu papel e que minha função não seria "tirar dele algo que lhe fosse tão importante" (esse era seu medo), e então ele decidiu continuar o processo.

Em uma sessão seguinte às já relatadas, aqueci o paciente para montar um átomo social "usual", utilizando almofadas. Conforme ele foi posicionando as almofadas em relação à almofada que o representava, percebi que alguns personagens citados se tratavam de personagens da fantasia. Então, solicitei que ele fizesse outro arranjo, utilizando pedrinhas, representando suas relações dentro daquilo que ele chamava de "seu mundo". Após explorar junto ao paciente o átomo social e aquele que nomeei "átomo da fantasia", o paciente concluiu: "Há dois Guardiões Perdidos, o da realidade e o da fantasia". Evidencia-se que o paciente pôde verificar concretamente a delimitação e a diferença entre fantasia e realidade.

Outra atividade marcante que reafirmou os avanços do paciente foi o desenho com o tema "quem sou eu". Cukier (1992) menciona que Luís Altenfelder Filho chamou esse tipo de atividade de psicograma. Em uma folha A4, o Guardião Perdido desenhou uma esfera dentro de outra esfera. À esfera interior (menor), chamou de SMS (sentimentos). Esta continha os sentimentos (amor, ódio) e as sensações (fome). À outra esfera (maior), denominou VDI (vida imaginária), a qual revestia a esfera dos sentimentos e era composta de diversos personagens do "seu mundo". O restante da folha (que ficava fora, ao redor das duas esferas) foi nomeado de VDR (vida real). Compunham essa parte: mãe, pai, amigos (refere-se aos colegas de 9 a 12 anos) e família. No verso da folha, ele fez um grande símbolo da música. Relatou que se tratava do "link" entre todos esses espaços. Além de se reconhecer, por meio do desenho, o paciente definiu o que faz parte de suas sensações, suas necessidades e seus sentimentos, de sua vida imaginária e de sua vida social. Em outras palavras, passou a diferenciar papéis psicossomáticos, papéis psicodramáticos e papéis sociais. Além disso, a música aparece aqui como elemento de síntese na vida do paciente.

Em sessão seguinte, busquei auxiliar o Guardião Perdido a ampliar seus papéis sociais, uma vez que a partir de seu relato verificava-se que ele vivenciava uma relação empobrecida com os colegas de sua idade. A capacidade de se colocar no lugar do outro é necessária para que haja reciprocidade na relação. Assim, explorei se havia e como estava essa capacidade. Ele entrou no papel de pessoas de seu convívio e experimentou ser elas e sentir o que elas sentiam. Quando tentei fazer o inverso e me colocar no lugar do paciente, ele ficou extremamente incomodado e pediu para que eu parasse. O Guardião Perdido estava se reconhecendo em uma relação social, passando a falar de seus medos e suas inseguranças, como a de ver o outro em seu lugar, e conseguindo visualizar uma forma de contar com seus personagens internos para melhorar seu desempenho em uma relação social.

O Guardião Perdido passou a pensar mais sobre suas "formas de ser", tanto que na sessão seguinte pediu para falar sobre a diferença entre o Guardião Perdido na vida e o Guardião Perdido artístico (aquele que faz apresentações). Durante o próprio relato, ele percebeu e verbalizou que estava falando de dois papéis e que poderia usar as características mais desenvolvidas de um no auxílio do outro. Após essas sessões, nas quais foram abordados seus papéis e suas relações, o Guardião Perdido passou a se adequar à situação e às pessoas envolvidas. Passou, inclusive, a justificar sua falta à sessão, quando essa precisava ocorrer, chegando a dizer que sabia que eu estaria esperando por ele (nada próximo disso acontecera durante todo o tratamento até então).

 

AUTOR E PROTAGONISTA DA PRÓPRIA HISTÓRIA

Considerando que o Guardião Perdido guardava em sua imaginação uma série de personagens, que seu funcionamento sempre foi bastante concreto e que ele não era muito adepto a dramatizar, concluí que escrever a história de seus personagens seria uma forma de reafirmar a delimitação entre fantasia e realidade, bem como de abrir espaço para o novo. Além do mais, ficou evidente que, naquele momento, escrever seria a melhor forma de dramatizar. Essa atividade ocorreu ao longo de várias sessões: o paciente chegava, trabalhava as questões trazidas naquele dia (alguns momentos foram descritos neste trabalho) e nos últimos dez minutos (aproximadamente) nos dirigíamos a uma mesa na qual o paciente escreveria suas histórias.

O Guardião Perdido iniciou escrevendo sobre um de seus personagens, contando que ele havia sido abandonado. De repente, se deu conta de que as histórias falavam dele, então exclamou: "eu quero escrever a minha história!". Ouvir e sentir essa força vinda do paciente, desejando ser o autor da própria história, me emocionou. Para aquele momento, não haveria resposta mais catártica por parte do paciente, que começou, então, a escrever a "sua história" e optou por dividi-la em subcapítulos, cada um representado pelo título de uma de suas músicas. Eis a importância das músicas produzidas pelo paciente: por meio delas, ele conseguia se compreender, se reconhecer e se reintegrar.

Na sessão seguinte ao término da "Biografia" (assim chamada pelo paciente), o Guardião Perdido relatou que estava se preparando para a última apresentação como cover de um cantor pop. Apesar de compreender que ser o cover do cantor era parte de quem ele era, ele preferiu passar a explorar seu "eu artístico". O paciente explicou: "tudo na vida tem seu momento. Agora, quero me dedicar à minha carreira, gravar minhas músicas. Quero ser mais eu. Não tem mais porque continuar fazendo o cover de alguém". Nessa etapa, o Guardião Perdido iniciou a gravação de seu CD em estúdio e, a cada sessão, trazia um pedacinho desse "todo" esperado.

O psicodrama propõe que as pessoas deixem de repetir scripts prontos e comecem a desempenhar os papéis no palco e na vida, com consciência crítica da situação vivenciada (Aguiar, 1998; Naffah, 1997, citado por Mazzotta, 2010). A possibilidade
de trabalhar no aqui e agora, incluindo e/ou desbloqueando a espontaneidade e a criatividade, é fundamental para a psicoterapia com adolescentes (Ferreira, 2010). O psicoterapeuta tem a missão de ajudar seu paciente a descobrir sua própria
ideologia, pois o contrário seria doutrinar dogmaticamente, sendo, como terapeuta, o dono da verdade ideológica (Bustos, 2005, citado por Ferreira, 2010).

O paciente aprendeu a lidar consigo mesmo de maneira mais adequada, concluiu a gravação e lançou seu CD, produziu clips, criou um canal no YouTube, no qual "dá vida" aos seus bonecos de brinquedo, produziu e protagonizou um curta-metragem e promoveu algumas sessões de cinema em sua cidade e nas cidades vizinhas. O Guardião Perdido me autorizou a compartilhar esses avanços junto à comunidade psicodramática, mesmo que tenham ocorrido três anos após o término do processo psicoterapêutico. Fiz questão de compartilhá-los aqui, pois além de sentir um enorme orgulho do paciente, quis evidenciar o quanto um trabalho bem conduzido pode continuar reverberando e produzindo respostas novas mesmo depois de findado.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo demonstrou os caminhos técnicos utilizados durante as sessões de psicodrama bipessoal que permearam a evolução de um adolescente diante de seu drama, o qual passou a se reconhecer como autor e protagonista de sua história. A conquista da autoria e do protagonismo do paciente Guardião Perdido foi estruturada pelo desenvolvimento de seus potenciais espontâneo e criativo, pela conquista de um novo conhecimento referente à delimitação entre fantasia e realidade e pela aprendizagem sobre a utilização da espontaneidade já existente nos papéis jogados na fantasia para a ampliação de seus papéis sociais.

Este trabalho também expõe a possibilidade que o psicodramatista tem de fazer o "seu psicodrama", acreditando na sua verdade, sempre referendado na teoria psicodramática. A atividade "autor e protagonista da própria história" recebeu destaque, pois colocou o paciente nos papéis que ele precisava e aos poucos ousava desempenhar: autor e protagonista de sua história. O fato de ter ocorrido longitudinalmente foi fundamental para que o paciente fosse trabalhando em sessão as questões que aconteciam no cotidiano, a partir da escrita da própria história, a qual efetivou uma sucessão de cenas em que o Guardião Perdido se descobria como alguém ativo em sua vida. Assim, essa atividade foi um exemplo de como o psicodramatista pode criar, baseado nas técnicas já existentes, confiando naquilo que surge no aqui e agora e que é único àquela relação. O mesmo pode ser verificado em uma das técnicas anteriormente descritas, por meio da qual ocorreu um desdobramento do átomo social, produzindo o "átomo da fantasia" do paciente. Como diria Moreno
J. L., "eis o Psicodrama"!

Para futuros trabalhos, sugiro novos estudos sobre a adolescência, pois esse tema merece ser mais explorado pela comunidade psicodramática. Dependendo do caso, pode-se dar continuidade à atividade "autor e protagonista da própria história", propondo que o adolescente escreva sobre o futuro, como se este já tivesse passado, continuando a história que termina no momento atual, com o intuito de auxiliá-lo a reconhecer seus planos e suas expectativas e o que pode fazer para torná-los reais. Seria uma espécie de projeção do futuro escrita. Se o paciente tiver facilidade em dramatizar, pode ser realizado em consultório, um teatro espontâneo, com vários atos, cada um representando uma etapa de sua vida.

Na época em que atendi o Guardião Perdido e escrevi este trabalho como monografia, também conquistei meu reconhecimento, como uma psicodramatista apaixonada pelo que faz. Mais adiante, ao longo da produção deste artigo, reafirmou-se para mim meu papel de psicoterapeuta, bem como vem se estabelecendo meu papel de didata. Em todos esses momentos, evidenciou-se a vastidão do psicodrama. As técnicas psicodramáticas se demonstraram excelentes ferramentas para auxiliar um adolescente a acessar dados "esquecidos", com leveza e cuidado, sem que se precisasse "arrancar" uma resposta ou oferecer uma interpretação. Todos os resultados aconteceram espontânea e criativamente, demonstrando o quanto o psicodrama é inclusivo, uma vez que dá lugar aos pacientes mais difíceis e oferece a cada um deles a chance de se tornar um alguém para si mesmo.

 

AGRADECIMENTOS

Ao Guardião Perdido e seus pais, pela confiança e pelo engajamento no trabalho, à Eliane Clemes (in memoriam), por ver uma autora e protagonista e ser lugar de reconhecimento, ao Artur Fabeni, por oferecer apoio, confiança e amor e à Laurita Maria (in memoriam), por ser presença, força e amor.

 

CONTRIBUIÇÃO DOS AUTORES

Conceituação, Maçaneiro A.; Metodologia, Maçaneiro A.;Investigação, Maçaneiro A.; Escrita - Primeira Redação, Maçaneiro A.; Escrita - Revisão e Edição, Maçaneiro A.; Supervisão, Almeida VO.

 

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*Autora correspondente: ariany_psi@yahoo.com.br

Maçaneiro A   https://orcid.org/0000-0002-5036-2232

Almeida VO https://orcid.org/0000-0001-6289-8432

 

Recebido: 24 Jan 2019 – Aceito: 19 Jul 2019

Editor de Seção: Rosalba Filipini

 

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