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Revista Brasileira de Psicodrama

versão On-line ISSN 2318-0498

Rev. bras. psicodrama vol.28 no.1 São Paulo jan./abr. 2020

 

https://doi.org/10.15329/2318-0498.19948
ARTIGO ORIGINAL

 

Psicoterapia psicodramática bipessoal com bonecos

 

Bipersonal psychodramatic psychotherapy with dolls

 

Psicoterapia psicodramática bipersonal con muñecos

 

 

Georges Salim Khouri 1,*

1. Associação Bahiana de Psicodrama e Psicoterapia de Grupo. - Salvador (BA), Brasil

 

 

RESUMO

O psicodrama com bonecos e brinquedos com adultos revelou ser um recurso poderoso na psicoterapia psicodramática bipessoal, na qual não há presença de grupo. A objetivação em cena de uma situação de conflito ou queixa subjetiva do paciente é realizada por meio de imagem psicodramática. Este artigo apresenta as possibilidades de manejo, com base em casos clínicos, tendo por referência as técnicas de Moreno e a fundamentação teórica das técnicas de construção de imagens de Rojas-Bermúdez.

Palavras-chave: Psicodrama bipessoal, Imagens psicodramáticas, Bonecos, Construção de imagens.


ABSTRACT

Psychodrama with puppets and toys with adults proved to be a powerful resource in bipersonal psychodramatic psychotherapy, in which there is no group. The objectification on the scene of a conflict situation or a subjective patient complaint is accomplished through a psychodramatic image. This article presents the management possibilities, based on clinical cases, bearing as reference Moreno’s techniques and the theoretical foundation of Rojas-Bermúdez’s image construction techniques.

Keywords: Bipersonal psychodrama, Psychodramatic images, Dolls, Image construction.


RESUMEN

El psicodrama con muñecas y juguetes con adultos ha demostrado ser un recurso poderoso en psicoterapia psicodramática bipersonal, en la que no hay presencia de grupo. La objetivación en la escena de una situación de conflicto o una queja subjetiva del paciente se logra a través de una imagen psicodramática. Este artículo presenta las posibilidades de manejo basadas en casos clínicos, teniendo como referencia las técnicas de Moreno y los fundamentos teóricos de las técnicas de construcción de imágenes de Rojas-Bermúdez.

Palabras-clave: Psicodrama bipessoal, Imágenes psicodramáticas, Muñecas, Construcción de imágenes.


 

 

INTRODUÇÃO

Não é de agora que inúmeras abordagens em psicoterapia utilizam objetos, brinquedos e bonecos, articulados ou não, como facilitadores do processo psicoterapêutico. Vejamos a seguir alguns exemplos, inclusive no psicodrama.

Margaret Lowenfeld (1929), pediatra britânica, pioneira em psicologia infantil e psicoterapia, criou um poderoso instrumento diagnóstico e terapêutico, a Word Technique, em que usava bandejas cheias de areia e coleções de brinquedos com formato de animais, pessoas, veículos, edifícios etc. Essas representações em miniatura de objetos da vida cotidiana e das imaginações das crianças permitem que retratem seus mundos internos. Em 1937, a estudiosa apresentou sua técnica na conferência da Sociedade Britânica de Psicologia, tendo sido prestigiada por Carl Gustav Jung. Posteriormente, conforme Ramalho (2010), seu método foi referência para que Dora M. Kalff (1956) - analista junguiana suíça - aperfeiçoasse e desenvolvesse a terapia de brinquedo de areia, publicada no livro Caixa de areia: Uma abordagem psicoterapêutica da psiquê. Ramalho afirma que "a sua técnica permite uma regressão criativa e facilita o processo de crescimento psicológico, através da expressão tangível, concreta e tridimensional dos conteúdos inconscientes" (2010, p. 110).

O uso de brinquedos ou bonecos não é novo no psicodrama. Kaufman (2011) revela que, quando se pensa em uso de brinquedos numa terapia de adultos, é preciso levar em consideração que os brinquedos para as crianças são construídos pelos adultos, tendo em vista os valores do "mundo adulto" ou, pelo menos, aquilo que o adulto acha que é bom para a criança brincar. Nesse caso, os brinquedos nada mais são senão concretizações de figuras do mundo interno dos adultos. Anthony Williams, psicodramatista australiano, utiliza miniaturas com ímã, que o cliente coloca em uma prancha de metal. Por meio delas, o cliente monta uma cena e move as peças como desejar. O estudioso tem uma imensa coleção de figuras, que permitem ampla possibilidade de escolha aos clientes para suas projeções, a exemplo de miniaturas de adultos, crianças, velhos, anjos, demônios, monstros, bruxas, princesas, animais etc. (Karinna, 1999).

Nogueira-Martins (2006) faz uma articulação dos contextos da produção plástica e do verbal com as técnicas do psicodrama na caixa de areia, porém com objetos sem forma definida, como blocos, pedaços de madeira, fitas etc. Cibele Ramalho (2010) denominou Sandplay Psicodramático a técnica clássica junguiana adaptada ao psicodrama. Tal técnica possibilita ao cliente utilizar espontaneidade e criatividade para criar o que desejar na caixa de areia - desde uma cena até um cenário qualquer, uma paisagem, passagens de sonhos, um determinado vínculo, um estado emocional etc. A diferença do sandplay junguiano encontra-se na ênfase dada à busca da dramaticidade, do conflito, ou do tema protagônico da sessão. Para Ramalho,

a técnica do sandplay pode ser uma excelente auxiliar no processo psicodramático. Ela pode ser um jogo dramático que encerra muitas vantagens, especialmente para o psicodramatista ou o cliente que apresenta dificuldades com a dramatização em cena aberta, que prefere não se movimentar muito ou está impossibilitado para tal. No entanto, a
mobilização do corpo ocorre de outra forma, uma vez que, ao montar uma cena ativando a memória, os registros no corpo do protagonista também são ativados (2010, p. 115).

Bonecos ou figuras também estão sendo muito utilizados por profissionais que atuam com constelação familiar no trabalho terapêutico individual. Essa abordagem da Psicoterapia Sistêmica Fenomenológica foi criada e desenvolvida pelo alemão Bert Hellinger após anos de pesquisas em várias partes do mundo. Segundo Graça,

a constelação familiar consiste no posicionamento físico/emocional de representantes dos elementos importantes do tema do cliente. Com ajuda de um grupo terapêutico ou com bonecos, objetos ou âncoras de solo, mostram através dos movimentos, as conexões estabelecidas inconscientemente entre o tema (sintoma) e sua implicação sistêmica no grupo (2015, p. 26).

Rojas-Bermúdez (1997, p. 158) foi pioneiro na utilização de fantoches manejado por profissionais, cuja função era mediar a comunicação para a intervenção em pacientes psicóticos crônicos ensimesmados, isolados, com desatenção continua e falta de comunicação do Hospital Nacional J. T. Borda, de Buenos Aires. A partir do sucesso dessa longa experiência, o estudioso desenvolveu os conceito "objeto intermediário" (OI) e "objeto intraintermediário" (OII)1. Para Rojas-Bermúdez e Moyano,

quando falamos de OI, estamos nos referindo a um objeto real e concreto (o fantoche), que foi encontrado uma nova função, a de ser usado para restaurar a comunicação interrompida. Não para enriquecer, estimular ou modificar a comunicação. Se a comunicação pode ser estabelecida diretamente, não requer a OI (2012, p. 93).

Já o OII é um objeto que exerce efeitos sobre o cliente de várias maneiras, estimulando-o pelas características do objeto utilizado por ele. Rojas-Bermúdez e Moyano (2012) utilizaram máscaras neutras e capuzes com pacientes psicóticos (a fim de estabelecer comunicação verbal direta) e, mais tarde, com neuróticos. É frequente, no psicodrama Bermudiano, a utilização de objetos como utensílio para facilitar a comunicação ou a autorreflexão, a exemplo de "almofadas, cubos, caixas, bonecas, máscaras, fantoches, tecidos etc. Moyano  revela que:

alguns objetos são usados de modo muito geral, outros são usados como objeto intermediário. O que determina seu manejo terapêutico é a função que eles estão realizando em um dado momento, que pode mudar ao longo da(s) sessão(ões), por exemplo, um fantoche pode ser construído e usado como um objeto intraintermediário (2012, p. 101).

Seguindo os fundamentos do OI e OII, Pousada (2012, p. 137) incrementa mais um recurso técnico, denominado "politíteres" (polifantoches): fantoches de luva, elaborados pelo protagonista e compostos de corpo, rosto e cabelo, podendo incluir, em sua elaboração, emoção, idade e sexo. Os politíteres funcionam como facilitadores da comunicação e da expressão do paciente na elaboração dos seus sintomas e questões. Com base na sociometria (diagrama de relações) e nos ensinamentos de J. G. Rojas-Bermúdez, o prof. dr. Carlos Raimundo - psiquiatra, psicodramatista e coach - criou o Método Play of Life 2,em que utiliza bonecos tipo Playmobil®, articulados, além de acessórios  e cenários padronizados, com objetivo, entre outros, de ajudar o cliente a expressar como se ve numa determinada situação conflitiva relacional no aqui e agora. Esse método permite ao cliente trabalhar formas de mudança para uma situação melhor no futuro.

Rosenthal (2004 citado por Casson, 2007) desenvolveu um teatro psicodramático em miniatura. Trata-se de uma caixa de madeira portátil, que se abre para revelar um modelo em escala do teatro original de Moreno. O cliente utiliza figuras de brinquedo e objetos para representar seu drama. Casson (2007) criou o Communicube, inventado durante pesquisa com psicóticos. É um recipiente transparente, aberto e de cinco níveis, como uma série de tabuleiros de xadrez transparentes, um em cima do outro. Os clientes são convidados a escolher botões, pedras ou outros objetos pequenos e a colocá-los na estrutura, criando padrõesque simbolizam partes do eu e questões significativas em suas vidas ou relacionamentos.

São inúmeras as possibilidades psicoterapêuticas de manejo com objetos, bonecos, brinquedos, fantoches, mascaras, capuzes etc.. Neste artigo, apresento o modelo que venho manejando - bonecos articulados e não articulados - há  mais de uma década em psicodrama bipessoal com clientes que trafegam no campo da neurose. As referências teórica e prática que utilizo são o constructo da Teoria Emergentista do Núcleo do Eu, de Rojas-Bermúdez (1997), principalmente os esquemas de papéis e suas técnicas, como a história psicodramática aplicada para várias situações e, ultimamente, a técnica de construção de imagem psicodramática, utilizando bonecos articulados. Utilizo também o Psicodrama Clássico de Moreno, com suas etapas e técnicas básicas de solilóquio, duplo, inversão de papeis, átomo social, sociometria qualitativa e proxemia.

 

POSSIBILIDADES DE MANEJO E FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Para o psicodrama com bonecos, recomendo a utilização de uma mesa dobrável ou de um tabuleiro (38 cm × 48 cm, com 65 cm de altura) que represente um tablado ou palco e fique posicionado entre o psicoterapeuta e o cliente. Na falta desse objeto, pode-se utilizar uma folha de papel tamanho A3 ou A4, com margens bem-demarcadas. Na Fig. 1, temos exemplos dos diversos tipos de bonecos que podem ser empregados: não articulados pouco estruturados; não articulados estruturados (6 a 13 cm); articulados tipo Playmobil® (7,5 cm);  e articulados de madeira, tipo manequim, com base magnética (20 e 30 cm). A escolha do boneco a ser utilizado dependerá do que se busca na intervenção. Bonecos não articulados são feitos de biscuit, com tamanhos variados dependendo da faixa etária do cliente (adultos ou crianças), de sua estatura(altos ou baixos), e de seu tipo físico (magros ou gordos). Os bonecos podem ser pouco estruturados, expressar várias características biológicas de grupos étnicos frequentes em nossa cultura, possuir apenas a cabeça com cabelos e rosto expressivo, sugerindo variadas emoções, tronco em forma de cone e características que diferenciem sexo e idade. Podem também ser mais bem-estruturados, reproduzindo o corpo humano (cabeça, cabelos, barba, bigode, mãos, braços, pernas e pés) como um todo e tendo diferentes vestimentas, que podem demarcar identidades. Bonecos articulados permitem articulações na cabeça, nos braços e nas pernas, pelas quais mostram a configuração relacional de partes envolvidas e constroem imagens simbólicas tridimensionais, com mais de um boneco.

 

Figura 1. Modelos de bonecos não articulados e articulados para o psicodrama com bonecos.

 

A escolha da intervenção com bonecos articulados ou não é norteada pelo material que parece ser significativo ou importante em termos de esclarecimento do tema e demanda do cliente na sessão. O manejo com bonecos segue as etapas do processo psicodramático: inicia-se com aquecimentos inespecífico e específico; dramatização (montagem da cena com os bonecos e todo o seu desenvolvimento); intervenções com as técnicas básicas (solilóquio, duplo e inversão) e outras; e compartilhamento, no qual emergem as reflexões e ressignificações. Uma vez identificado o tema protagônico, progredimos para o enquadramento do tema (foco experimental e neural) e para a montagem da cena com os bonecos. A consigna, em geral, segue solicitando ao cliente identificar um lugar no "mini-palco" onde ele veja a si mesmo em relação à situação que emergiu como tema protagônico. O palco em miniatura, simbolicamente, representa o contexto de que surge a demanda, no aqui e no agora (presente). Posteriormente, pedimos para o cliente escolher um boneco que o represente e o posicionar no lugar de hoje, no aqui e no agora, procurando expressar o que ele está sentindo ao ver o boneco (ele) naquela posição. Em seguida, solicita-se que ele escolha outro(s) boneco(s) que represente(m) a(s) pessoa(s) que estava(m) na situação demandada e o(s) coloque no cenário de maneira a representar a situação. Nesse momento, se o cliente quiser dar ênfase a um aspecto significativo do que aconteceu, ele pode usar objetos na montagem do cenário. Recomendo sempre ter alguns objetos mais ou menos na escala do cenário e dos bonecos para oferecer. Na sala clinica, temos, à disposição do cliente, uma pequena caixa com vários objetos para serem utilizados, tipo Lego®, que são brinquedos cujo conceito se baseia em partes que se encaixam, permitindo muitas combinações.

Os bonecos não articulados são utilizados mais frequentemente na sociometria qualitativa, a fim de verificar relações, construir o átomo social - qualificando o afeto da relação interpessoal com o uso da proxemia (quanto mais próximo, mais afeto) - e fazer a história psicodramática do cliente ou a história psicodramática da progressão de um conflito relacional cronologicamente etc. Observamos se os bonecos estão em pé ou deitados e se estão mais próximo ou mais distantes uns dos outros (expressão plasmada do "mapa mental" daquela situação). Nessa intervenção, as técnicas de solilóquio e inversão são usadas frequentemente. Esses bonecos podem ter rostos expressivos e vestimentas diversificadas, que facilitem a identificação e o estado emocional do cliente no momento da intervenção, mas, muitas vezes, é necessário eliminar essa varável, utilizando bonecos não articulados com rosto de expressão neutra ou bonecos não articulados pouco estruturados. Os bonecos articulados tipo Playmobil® também podem ser utilizados com o mesmo objetivo, com a vantagem de possibilitarem ao cliente a construção das cenas com mais expressividade, uma vez que têm pés, braços, mãos e cintura articulados. A desvantagem é que o Playmobil® é confeccionado de acordo com a cultura americana e encontramos poucos bonecos que expressem características étnicas diversificadas, como em nosso país. A depender do contexto da queixa do cliente, podemos utilizar o Playmobil® no modelo Play of life para investigar a projeção do futuro, o primeiro passo nessa direção e a situação ideal. Nesse modelo, o manejo do primeiro passo é considerado poderoso, pois é uma ação que o cliente pode realizar por si mesmo e não projetar no outro.

Já os bonecos articulados de madeira com base magnética, tipo manequim, não têm expressão, têm cor neutra e são utilizados sistematicamente em intervenções com o mesmo fundamento da técnica de construção de imagem psicodramática (CIPB) de Rojas-Bermudez (1997, 2012). Guimarães (2018) foi pioneira no uso da CIPB com bonecos não articulados e pouco estruturados3 e  revelou, como uma das possibilidades, sua utilização na etapa de aquecimento específico para seguimento do trabalho com imagens, com tecidos e pessoas. Observou também que o uso dos bonecos permite relaxar o campo tenso do paciente de modo que ele possa objetivar as suas questões. Na nossa prática clínica, essa mesma técnica, utilizando bonecos articulados, revelou-se poderosa, principalmente para a expressão simbólica ou real de queixas/demandas com conteúdos relacionados ao corpo, a exemplo de situações de emoções intensas (de extrema ansiedade, medo ou pânico e estresse pós-traumático), distúrbios psicossomáticos ou orgânicos, problemas alimentares (anorexia, bulimia), sintomas conversivos, hipocondria, situações com envolvimento corporal (sexual ou agressivo etc.) e dissociação. A técnica também se mostrou eficiente para facilitar a diferenciação de papéis internos quando manejamos partes (estados de ego). Cabe ressaltar que partes (estados de ego), na sua forma mais extrema, relacionam-se a pessoas com histórico de traumas complexos decorrentes de abusos, negligencia e maus-tratos contínuos (apego inseguro), as quais podem ter como consequência as dissociações.

Neurologicamente, cada estado de ego ou parte é uma rede neural que carrega um conjunto de características de personalidade registradas na região subcortical do cérebro num determinado momento traumático ou de muita tensão da história da pessoa, formando uma subpersonalidade. No campo da neurose, observamos que essas partes (papeis internos ou subpersonalidades), independentemente da história do cliente, manifestam-se, na sua totalidade, como um sistema interno que interage caoticamente entre si, afetando sobremaneira a saúde psíquica da pessoa. Van der Hart, Nijenhuis e Steele (2006 citados por Salvador, 2018, p. 96) referem-se a esse fenômeno como dissociação estrutural, o qual se relaciona a experiências traumáticas derivadas de uma deficiência na coesão e na flexibilidade da estrutura da personalidade. As intervenções com bonecos ajudam o cliente a ter consciência da dinâmica dos seus papeis internos patológicos  e do caminho da harmonização interna4.

A construção de imagem psicodramática (CIP) é a representação concreta de algum sentimento, sensação ou situação, por meio de uma forma construída pelo paciente no cenário, utilizando pessoas e/ou objetos (tecidos, bonecos etc.). É a representação simbólica de algo que já foi vivenciado pelo protagonista (Khouri & Machado, 2008).

A consigna básica do psicoterapeuta na CIP com bonecos (CIPB) é: escolha bonecos nessa caixa e construa uma imagem com eles que represente (esse aperto no peito, ou esse comportamento impulsivo, ou essa relação putrificada, ou esse sentimento de culpa, ou esse medo de morrer etc.). A imagem da queixa é elaborada pelo cliente no tablado, num espaço específico da sala clinica, ou no palco em miniatura, quando usamos bonecos. A CIPB é carregada com o conteúdo interno relacionado à queixa. Ao ser plasmada, estamos objetivando algo que estava subjetivado nas profundezas do psiquismo do cliente e que agora, em cena, é possível ser visto, revisto, explicado e ressignificado.

Manejamos sempre monitorando a resposta na fisiologia do cliente, expressa por meio das sensopercepções manifestadas no corpo durante o processo de elaboração da imagem psicodramática. As consignas são do tipo: "o que sente no corpo (sensação no corpo)" ou "o que acontece no seu corpo agora" e "o que pensa sobre essas sensações (área corpo e mente)". As emoções são voláteis e, por isso, sempre ancoramos a emoção que emerge no corpo com a pergunta: "onde você percebe essa emoção no corpo?" O rastreamento das sensopercepções corporais, a expansão das emoções e das sensações e os atos verbais (perguntas terapêuticas "cirúrgicas") que geram movimento favorecem o processamento cognitivo da cena protagônica (imagens mentais) e a reaferência, facilitando a ressignificação do vivido e a formação de novas redes de conexões neurais (Khouri, 2018, p. 57). A reaferência é um fenômeno cunhado por Rojas-Bermúdez (2012), relacionado à reorganização de conteúdos mentais por meio das imagens psicodramáticas produzidas pelo cliente. Segundo Rojas-Bermúdez,

no processo de expressar com uma imagem dramática, além das informações que acrescenta sua transformação em uma nova percepção visual que, por um lado, se compara com a imagem mental e, por outro lado, expande e esclarece sua estrutura e organização, numa espiral que aumenta a informação e o conhecimento integrados. Na reaferência, estabelece-se uma inter-relação entre imagem mental e imagem psicodramática (interação contínua entre os hemisférios cerebrais por meio do corpo e do espaço) (2012, p. 54).

O manejo com os bonecos segue os mesmos passos fundamentais da técnica de construção de imagem de Rojas-Bermudez (1997, p. 147).5 

Apesar de estarmos privilegiando mais o foco na área da Mente, espera-se facilitar que o protagonista tome consciência de sua sensopercepção corporal, originada dos diversos estímulos (das áreas da Mente, do Corpo e do Ambiente) e de suas questões/conflitos. Espera-se que ele dê novo significado a elas (ressignificação), de modo que a catarse de integração seja completa, ou seja, nos níveis cognitivo (pensamentos, crenças, interpretações e outras cognições), emocional (emoções e afetos) e sensório-motor (reações físicas e sensoriais, sensações e movimentos).

Tudo pode ser representado por meio de uma construção de imagem com bonecos: uma situação, um conflito relacional, um sintoma, uma ideia, partes do corpo, partes internas dissociadas (estados de ego), uma metáfora, um sonho etc. Se a imagem construída com os bonecos remete a questões temporais ou cronológicas, podemos, como na técnica de construção de imagem com tecidos (CIT), solicitar a elaboração da imagem anterior e posterior à realizada, para investigarmos a dinâmica temporal do conflito. A partir dessa imagem inicialmente feita (T0), devemos construir a imagem que vem antes (-1) e depois (+1) no tempo, a fim de observarmos a ideia do cliente sobre a evolução da situação levantada (fantasias sobre a origem e o futuro esperado da situação plasmada; desfecho). A partir da imagem original, devemos realizar as imagens da evolução mais provável. Se temos imagens em sentido evolutivo (-3, -2, -1, 0, +1, +2, +3...), o protagonista também pode contar uma "história infantil" (o mais longe do cotidiano real, com seres ou animais fantásticos). Em algumas situações, são apresentados os vários tipos de bonecos ao protagonista e é solicitado que o cliente, como parte do aquecimento, escolha qual(is) boneco(s) quer utilizar para montar a cena.

A CIP tem por objetivo a observação e a elaboração da configuração global dos elementos que compõe a imagem e a relação entre partes. Ela combina a criação de imagens (hemisfério direito) com os aspectos verbais (hemisfério esquerdo). Na intervenção com bonecos na psicoterapia psicodramática bipessoal, teremos um simulacro da situação relacional ou da expressão corporal da imagem representada como se estivéssemos num grupo.

A CIP do protagonista seria feita utilizando o(s) corpo(os) do(s) ego(s) auxiliar(es). A técnica de construção de imagem com bonecos articulados ou não, dado que tais bonecos são tridimensionais e mais socializados, privilegia o hemisfério cerebral esquerdo. Minha hipótese é que o acesso às regiões subcorticais, nas quais temos os registros das memórias profundas significativas ou traumáticas, não seja tão efetivo quanto na técnica de construção de imagem com tecidos, que é bidimensional, maleável e disforme. Como é pouco socializada na sua execução, privilegia o plástico e a ativação do hemisfério cerebral direito.

Numa sessão de psicoterapia psicodramática, as várias técnicas são, muitas vezes, utilizadas de modo complementar ou suplementar, e não poderia ser de outra maneira com o manejo dos bonecos, o qual, muitas vezes, funciona como aquecimento para a dramatização e/ou para intervir com a construção de imagens com tecidos.

 

MÉTODO UTILIZADO

O presente artigo trata de relato de experiência prática em ambiente de sala clínica a partir da observação das intervenções com bonecos. Essas intervenções foram efetuadas com clientes que apresentavam demandas diversas. Alguns exemplos de manejo serão descritos posteriormente. Os registros da produção e da elaboração dos clientes foram feitos em notas, imagens ou gravações de observações do terapeuta durante as intervenções, bem como em notas da observação dos resultados finais dessas. Finalizando a coleta de dados, foi solicitado a cerca de dez pacientes, todos de formação universitária (psicologia, enfermagem, contabilidade etc.) e na faixa etária de 25 a 55 anos, que respondessem à seguinte questão aberta: "Qual é sua percepção do uso de bonecos na(s) sua(s) sessão(ões) de psicoterapia?"

 

EXEMPLOS DE CASOS CLÍNICOS E MANEJO

Exemplo 1: Átomo familiar com bonecos

Esse caso trata de uma mulher de 24 anos com queixa de insegurança e medo de dar seguimento à sua vida profissional por não se achar capaz. Na sua história, queixa-se que, durante toda a sua vida, a mãe sempre a desqualificou em vários aspectos e enalteceu o irmão mais velho, que era muito inteligente. A intervenção com átomo familiar com bonecos fez parte das entrevistas iniciais e tinha objetivo de compreender a dinâmica da família e o quanto a paciente foi afetada por essa dinâmica.

A consigna segue da seguinte maneira: nessa caixa, você vai encontrar vários bonecos tipo Playmobil®. Aqui no centro da mesa, tem um pequeno tablado de papel onde você vai representar o que vou pedir. Escolha um boneco para representar você e coloque no centro do tablado. Agora, você vai colocar um por um os membros da sua família. Escolha bonecos que representem pessoas significativas da sua família nuclear e posicione-os mais próximos ou distantes de você segundo uma escala subjetiva que indica que, quanto mais próximos, mais afeto na relação e, quanto mais distantes, menos afeto (proxemia).

A Fig. 2 apresenta a configuração sociométrica elaborada, que ressalta dois aspectos aprofundados durante a sessão. O primeiro tratou do significado da distância da mãe. Já o segundo disse respeito aos motivos pelos quais todos os bonecos estavam voltados para o mesmo lado. Em geral, na intervenção, respeita-se a sequência da escolha sociométrica dos bonecos representantes dos membros da família. Contudo, a sequência pode ser feita em qualquer ordem, conforme a sensibilidade télica do psicoterapeuta. Em seguida, propõe-se à cliente CX que, em sequência, observe cada boneco representante de um membro da família, faça um solilóquio do que ela diria para ele naquele momento da sessão, inverta o papel e responda como se fosse o membro da família em questão (solilóquio).

 

Figura 2. Átomo social com bonecos, elaborado por cliente mulher de 24 anos.

 

 

Exemplo 2: História psicodramática com bonecos

O manejo da história psicodramática pode ser realizado para diversas situações da vida do cliente que tenham sequência cronológica para o desfecho no aqui e no agora (situação atual). Iniciamos da mesma maneira que no átomo social. Definimos um trajeto que, em geral, segue a borda de uma área demarcada na mesa, como um pequeno tablado. Define-se, no minipalco, o ponto de início do trajeto. Pedimos para o cliente escolher um boneco para representar a ele mesmo e posicioná-lo no início do trajeto, que é o tempo zero do que vai ser relatado. Solicitamos ao cliente que posicionasse um ou mais bonecos, construindo imagens que representem os momentos mais significativos da história a ser relatada. Essa construção deve ser feita em silêncio. Após a construção, retoma-se cada imagem em cada momento e solicita-se ao cliente que verbalize o que construiu. A depender da forma e do conteúdo, é preciso realizar uma intervenção com solilóquios dos bonecos, entrevistas, duplos e inversão. As indagações/perguntas que geram movimento são fundamentais para um melhor resultado clínico, uma vez que, após a montagem da história, estamos privilegiando a área da Mente.

 

Exemplo 3: História psicodramática - vida de casal da cliente XT

Neste exemplo, apresentamos o manejo da história psicodramática de um casal, contada pela cliente, com demanda de angústia por dúvidas sobre o término da relação com o namorado após um ano e meio de convivência graças a uma vida sexual ruim (em detrimento de muitos fatores positivos da relação a dois, como companheirismo e convergência de interesses em vários setores da vida). A proposta dessa intervenção foi fazer com que a cliente revisasse os aspectos significativos na construção dessa relação, desde o início, para que pudesse refletir sobre seus vários aspectos e tomasse decisões elaboradas sobre o futuro da relação. Na Fig. 3, mostramos toda a elaboração, que pôde ser dividida em três momentos. A elaboração da história psicodramática permitiu a emergência de muitos conteúdos e facilitou a reflexão e o processamento, pois, após a construção das imagens com os bonecos, tivemos uma representação concreta, real ou simbólica, da situação vivida, com todos os sentimentos e sensações envolvidos em cada cena experienciada pela protagonista.

 

Figura 3. Historia psicodramática da relação de um casal, contada pelo olhar da cliente CX, com demanda de interromper o relacionamento por conta de uma vida sexual ruim em detrimento da ótima relação

 

 

Momento 1 - Elaboração da história: A cliente construiu a história com intervenções de solilóquios em várias cenas e concluiu que o que sustentava a relação era o quanto eles eram parceiros em outras áreas. Independentemente disso, para ela, a maneira como se encontrava naquele momento a vida sexual do casal fazia como que a relação não fosse a lugar nenhum. Disse ela: "Já cheguei ao meu limite [...] nem sei mais se quero resolver!" Diante disso, propusemos um segundo momento, como descrito a seguir.

Momento 2 - Elaboração da visão do futuro da relação: Consigna do terapeuta (CT): "aqui neste espaço (8), construa uma imagem de como você desejaria o futuro dessa relação, considerando daqui a um ano." Ela relutou e disse não saber o que desejava para dali a um ano. Disse estar muito contaminada com o que estava acontecendo naquele momento e não conseguir ver o futuro. Relatou não conseguir imaginar aquela situação dali a um ano, porque, desde o início, vinha tentando melhorar e não havia conseguido até aquele momento. Apesar de resistir, a cliente elaborou a imagem e disse, ao fim da etapa: "É isso, meu desejo é estarmos juntos de bem em todas as áreas." Diante disso, foi solicitada outra etapa, representando a ação do meio: ou seja, o que fazer para alcançar o desejo.

Momento 3 - Elaboração da cena do primeiro passo para o futuro projetado: (CT): "neste outro espaço (7), qual o primeiro passo que você deve dar para chegar a essa projeção?" A cliente elaborou a imagem do primeiro passo. Disse que o primeiro passo seria uma conversa definitiva e, até mesmo, procurar terapia de casal. Sugeri a ela que tal conversa deveria ser diferente das outras, buscando um sentido compartilhado para chegar à projeção de futuro. Ela compreendeu que, se propuser uma conversa para fechar a relação, então não estaria buscando um sentido compartilhado, porque já havia definido o que desejava. Dessa maneira, a cliente concordou com a ideia de buscar um diálogo com o namorado, procurando solução com ações que fossem executáveis pelos dois.

 

Exemplo 4: Situação de conflitos em contexto de trabalho

Na Fig. 4, apresentamos a situação no presente, a projeção no futuro, segundo a visão do cliente, e o primeiro passo a caminho desse futuro (modelo Play of life). A cena 1 representa o aqui e o agora no contexto de trabalho de M. Ele é sócio minoritário de uma empresa construída por ele e seu sócio juntos. Apesar de amigo de seu sócio e de reconhecer a competência técnica de SM, o cliente não aceita o comportamento autoritário do outro e se coloca num lugar de assimetria na relação. A cena 2 é a projeção no futuro de M no contexto de trabalho. Ele e SM encontram-se numa posição circular com os demais membros da equipe no debate de temas relevantes para o negócio. O clima é fraterno e democrático, apesar da responsabilidade dele e de SM nas tomadas de decisão. A cena 3 mostra as primeiras iniciativas no contexto de trabalho de M para se colocar numa posição simétrica à de SM e procurar desenvolver um diálogo para conseguir um sentido compartilhado em relação às ações de melhoria da empresa. Essas iniciativas foram estratificadas em ações executáveis definidas por M para alcançar seu objetivo. A psicoterapia se desenvolveu a partir dos temas protagônicos que emergiram nesse percurso.

 

Figura 4.Situação de conflitos em contexto de trabalho.

 

Exemplos de construção de imagens com bonecos articulados e não articulados

A seguir, apresentaremos imagens de dois casos clínicos com exemplos de manejo, mostrando as possibilidades da intervenção com a técnica de construção de imagens com bonecos. Na Fig. 5, temos exemplo de CIPB articulados da cliente Rose, que depara com seus papéis internos (partes), os quais se ativam quando lembra o acidente de carro no qual a mãe e a irmã morreram. Sobreviveram ela, com 18 anos, e o pai. De T0 a T1, passaram-se 20 anos, período em que a cliente "congelou" seus sentimentos para poder sobreviver: "No outro dia, era como se nada tivesse acontecido e eu toquei a minha vida." Em T1, aparecem sintomas de depressão e, em T2, a cliente mostra-se sempre carente de afeto, pelo que sedimenta uma crença negativa, que organiza seu comportamento. Ela diz: "Para ser aceita, tenho agradar a todos.". Em T3, emerge uma variante dessa crença: "eu não sou cuidada, mas posso cuidar para compensar. Eu mostro meu afeto ao outro para, em troca, ter o afeto do outro." Isso denota amor condicional, com dependência relacional. Após a sessão, a cliente revela que ficou mais clara e evidente a consequência do acidente e do mecanismo que ela utilizou para suportar as perdas significativas. O que, muitas vezes, ela processava como culpa passou a ser entendido como a alternativa de autodefesa inconsciente que aquela adolescente de 18 anos "produziu" para sobreviver emocionalmente. Foi como ela podia se defender naquela época.

 

Figura 5.Exemplo de construção de imagem psicodramática com bonecos articulados da cliente Rose, refletindo sobre sua vida após acidente trágico com sua família.

 

No exemplo da Fig. 6, temos uma cena do cliente X que representa partes internas do seu eu. A cena é elaborada com bonecos não articulados e com blocos tipo Lego® na  construção da imagem do processo interno de ativação de cada parte. O cliente X representou uma parte pessimista, que é ativada quando assume qualquer responsabilidade que envolva prazo; uma parte que não se cuida, autossabotadora e autodestrutiva; uma parte procrastinadora, que adia qualquer ação de autobenefício; e uma parte adulta e equilibrada, capaz de entender toda a dinâmica interna e atuar muito bem no contexto de trabalho, mas que ainda não consegue harmonizar essas partes em conflito interno para um bem estar mais perene. A escolha dos bonecos, com os seus artefatos, reflete o estado emocional de cada parte. Essa dinâmica das partes internas do cliente X já foi trabalhada em algumas sessões com dramatização em psicodrama de grupo e foi, novamente, retomada na psicoterapia bipessoal. A compreensão processual dessa dinâmica permitiu a X administrar melhor suas tensões subjetivas, buscando chegar à plena harmonização dessas partes internas.

 

Figura 6. Exemplo de construção de imagem psicodramática com bonecos não articulados e brinquedos tipo Lego® para representar o processo interno de cada parte.

 

RESULTADOS E CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os relatos da experiência dos clientes revelaram que os resultados, após as intervenções, foram o melhor entendimento da questão demandada, com apaziguamento da tensão, relaxamento e bem-estar. Um deles revelou que a utilização de bonecos permitiu-lhe compreender mais profundamente o incômodo e o direcionamento que ele estava dando a tal incômodo. Antes, esse cliente imaginava e tentava construir mentalmente o acontecido em paralelo ao que sentia, mas, ao utilizar bonecos, ele pôde: "tirar do meu peito o acontecido, olhar de fora e voltar a tomar aquilo, porém de forma mais equilibrada, estruturada, com nomes e sentires."

Vejamos outros recortes de depoimentos de clientes que experimentaram a intervenção com bonecos:

"Quando projetei a minha cena nos bonecos, pude perceber a figura praticamente em movimento, graças às articulações. Pude atribuir a momentos, fases, cenas da minha vida e o resultado foi uma compreensão mais profunda de mim mesmo e desses momentos";

"Quando vi aqueles bonecos, sem expressão facial, mas desconcertantes por serem muito presentes no ambiente... sei lá... aquilo foi um ‘túnel do tempo’... Pareceram vários ‘eus’ aguardando apenas para serem usados... para alguma coisa ser trabalhada... Durante a sessão, percebi que algumas perguntas tinham o poder de provocar reflexões e me vi respondendo com a boca e sem controle das respostas... vixe! Pensei: esses brinquedinhos estão me fazendo falar coisas MUITO, muito, muito minhas"... De forma poética e profunda, essa cliente sintetiza dizendo: "Saramago diz que é necessário sair da ilha para ver a ilha. Não nos vemos se não saímos de nós. Aceitar o convite à técnica dos bonecos é sair de si mesmo, tomar distância, do lado de fora e olhar de novo. Mais que sentir, é observar o que se sente, contextualizar, fundamentar historicamente. Em nós mesmos, estamos ilhados, do lado de fora, dá pra ver melhor, bem melhor".

Com base nas observações na prática clínica, podemos chegar a alguns aspectos importantes quanto ao fundamento e manejo da técnica, a saber:

os depoimentos dos clientes confirmam que o processo de elaboração da cena ou da imagem psicodramática com bonecos, que fica objetivada concretamente durante toda a sessão, aliado ao rastreamento das sensopercepções corporais com a expansão e/ou a "ancoragem" das emoções no corpo, favorece o processamento cognitivo da cena protagônica, facilitando reaferência e ressignificações da demanda/queixa, com a formação de novas redes de conexões neurais;

a utilização dos bonecos para a elaboração do átomo familiar, do átomo social em vários contextos, da história psicodramática do protagonista, da história psicodramática de uma situação que tenha desenvolvimento cronológico (investigação de passado, presente e futuro) e da CIPB trouxe resultados significativos e promissores em todos os casos clínicos. Na intervenção com CIPB, recomendamos seguir o mesmo procedimento das técnicas de CIP tridimensionais e com tecidos, com a utilização frequente de solilóquios dos personagens encarnados nos bonecos nas cenas significativas do protagonista;

o tipo de boneco utilizado pelo protagonista na elaboração das cenas exerce seus efeitos de várias maneiras e de acordo com as características do boneco. Uma CIPB com boneco articulado permite maior manuseio das articulações (cabeça, pescoço, mãos, pernas e pés) na elaboração das expressões, focando a atenção na manipulação e na reflexão. Observamos que, durante esse processo, ocorre uma gradativa diminuição do campo tenso, com um aumento das capacidades criativa e reflexiva e uma conexão mais profunda com a queixa subjetiva. Com os bonecos não articulados pouco estruturados, o protagonista pode vir a se identificar com expressão, forma, artefatos e cores das vestimentas etc., abrindo caminhos para sua autorregulação, a exemplo de uma cliente que, após a montagem de cenas com seus papeis internos, ficou muito conectada com a o boneco que escolheu e pediu para levá-lo para casa e colocá-lo num lugar visível, de modo que, nos momentos de baixa de energia e de humor, pudesse se conectar com essa parte positiva. O cliente se empodera quando manuseia e elabora a cena da queixa, pois, nesse momento, torna-se um "hibrido" de protagonista, diretor, roteirista e público, possibilitando novos insights da situação e a descoberta de novos recursos e resoluções para seus problemas. O processo de construção da cena/imagem facilita pensar, ponderar, raciocinar, cogitar, contemplar etc., promovendo, assim, uma diminuição da racionalização sobre seu próprio conteúdo. O que é elaborado e o modo como é elaborado é mais espontâneo, criativo e pessoal. Isso confere ao psicodrama com bonecos, na forma que manejamos, uma função que promove autorreflexão intrapsíquica, com característica similar aos Objetos Intraintermediarios (OII), promovendo, dessa maneira, o desenvolvimento neurobiológico do neocórtex medial orbitofrontal por ampliar sobremaneira a nossa capacidade de olhar para dentro de nós mesmos (desenvolvimento do Eu Observador [Eu Essencial]), fundamental para o processo de autocura;

essas intervenções podem ser integradas com técnicas que favoreçam a completa catarse de integração, ou seja, o reprocessamento em níveis cognitivos, em nível emocional (emoções e afetos) e em nível sensório-motor (reações físicas e sensoriais, sensações).

 

AGRADECIMENTOS

Aos pacientes e supervisando que em nome da ciência me autorizaram a compartilhar seus casos em texto e imagens nesse artigo.  Ao  Dr Waldeck D’ Almeida por ter me apresentado inicialmente o modelo  de Rojas-Bermudez e ter me supervisionado por alguns anos,  a Thereza Valadares por ser  minha maior referencia de manejo do psicodrama Bermudiano.  Finalmente a Heloisa Fleury sempre ressonante e entusiasta do psicodrama integrativo com a neurociências.  Quero destacar os ensinamentos do mestre Dr Jaime Rojas-Bermúdez e Graciela Moyano desde as oficinas realizadas em Salvador-Bahia, que me colocou no caminho da neurobiologia do psicodrama e fundamenta o meu manejo clinico até hoje.  Destaque também para Mario Salvador, psicólogo,  mestre e amigo que me apresentou com le veza e h umanidade como manejar no caminho da cura a força de influência dos papeis  ou partes internos (estados de egos ) nas relações patológicas que tanto angustia os meus clientes.

 

REFERÊNCIAS

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1.Recomendamos aprofundamento dos conceitos de objeto intermediário e intraintermediario em Rojas-Bermudez.

2.Para maiores informações, ver https://en.playoflife.com/.

3.Guimarães (2018) identifica como bonecos pouco estruturados aqueles que tenham apenas a cabeça semelhante à humana e sejam confeccionados de maneira artesanal, a partir de 3 (três) elementos básicos: cabeça, tronco e adornos (os quais identificam sexo, idade, gênero e etnia).

4.A teoria dos estados de ego tem abordagem ampla na psicologia. Segundo Maquiera (2007, p. 143), seus primeiros antecessores foram W. James (1890), A. Binet (1890 e 1896), P. Janet (1893), J. Breuer e S. Freud (1893). Em seguida, P. Federn (1952), C. G. Jung (1969), E. Berne (1964), R. Assaglioli (1965) e J. F. Kihlstrom (1987). Para aprofundamento, além de Maquiera, consultar o livro citado por ela, de Watkins e Watkins, Ego States Theory and Therapy (1997). Além desses, consultar também Salvador (2018, p. 91) e Schwatz (2004), criador da Terapia dos Sistemas Familiares Internos.

5.Para aprofundamento ver a técnica de construção de imagem de Rojas-Bermudez (1997, p. 147). Ver também Khouri & Machado (2008, p. 107) e Khouri (2008, p. 129).

 

 

 

Khouri GS https://orcid.org/0000-0002-1259-2352

*Autor correspondente: gskhouri@uol.com.br

Recebido: 15 Fev 2020 - Aceito: 24 Mar 2020

Editora de Seção: Liliana Ribeiro

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