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Barbaroi

Print version ISSN 0104-6578

Barbaroi  no.32 Santa Cruz do Sul June 2010

 

Razão e natureza - a cumplicidade entre as éticas de kant e sade, segundo lacan

 

Reason and nature - the complicity in ethics of kant and sade by lacan

 

 

Samuel Henrique MachadoI; Flávio WilligesII

IUniversidade de Santa Cruz do Sul - UNISC - Brasil
IIUniversidade de Santa Cruz do Sul - UNISC - Brasil

 

 


RESUMO

A pretensão central deste estudo consiste em analisar o vínculo estabelecido por Lacan entre as teorias éticas de Kant e Sade - que, numa primeira leitura, parecem-nos diametralmente opostos - , na obra Kant com Sade. O fio condutor será mostrar que, a despeito da aparente falsidade da teoria da cumplicidade entre ambos, essa tese é verdadeira. O propósito é elucidar o argumento lacaniano sui generis, no que concerne às características específicas que indicam o aspecto universalizante dos princípios éticos enunciados por Kant e Sade e o ponto culminante ou o sintoma produzido por este aspecto. Tal estratégia permitiu a Lacan uma formulação teórica instauradora da ética da psicanálise. Por fim, o propósito é demonstrar a validade para a filosofia da análise psicanalítica de Lacan acerca das formulações relativas à ética do deverlei natural libertina, assim como, e em contrapartida a essas, à ética do desejo.

Palavras-chave: razão; natureza; ética; desejo.


ABSTRACT

The intention of this study is to examine the link established between Lacan's ethical theories of Kant and Sade - which, at first glance, appear to be diametrically opposed - in the work Kant with Sade. The thread will show that, despite the apparent falsity of the theory of complicity between them, this thesis is true. The purpose falsity of the Lacanian argument sui generis with respect to the specific characteristics that indicate the universalizing aspect of the ethical principles enunciated by Kant and Sade and the peak or symptom produced by this. This strategy allowed Lacan inaugurating a theoretical formulation of the ethics of psychoanalysis. It is intended to ultimately demonstrate the validity of the philosophy of analysis Lacan's psychoanalytic formulations concerning the ethics of duty and the law natural libertine as well, and as a counter to the ethics of desire.

Keywords: reason; nature; ethics; desire.


 

 

Introdução

Este estudo é resultado de uma pesquisa que objetiva analisar a produção teórica original de Jacques Lacan (1901 - 1981), que infere uma relação estrutural entre as éticas do filósofo alemão Immanuel Kant (1724 - 1804) e do intelectual francês Donatien Alphonse de Sade (1740 - 1814), ou, Marquês de Sade.

A pretensão de Lacan é relacionar as éticas de ambos para então fundamentar a ética da psicanálise, enquanto o justo meio entre as duas. Ele afirma que tanto em Kant como em Sade há o respeito total à lei universalizante, a qual destitui a ética do sujeito desejante.

Lacan, portanto, parte das éticas kantiana e sadiana e as submete a uma análise filosófica rigorosa, para encontrar em ambas uma relação de cumplicidade: o critério de universalidade nas éticas de Kant e Sade culmina no oposto do prazer, a saber, a pena (dor).

Com tal descoberta, Lacan preconiza a destituição destas éticas e a instituição da ética do desejo - a particularidade que configura a ética da psicanálise.

 

A Moral Kantiana

A moral em Fundamentação da Metafísica dos Costumes e Crítica da Razão Prática

Segundo Kant, há uma razão intrínseca em todos os indivíduos que atua sem a interferência de quaisquer manifestações sensíveis do sujeito, pois é totalmente desvinculada do patológico1. É legisladora no sentido totalizante, ou seja, universaliza o dever. Kant a chamou de razão prática pura, porque, mesmo que intrínseca ao indivíduo, possui um caráter de objetividade, uma vez que segue a si própria, por meio de seus próprios princípios.

Nesse sentido, a razão prática pura, por se inscrever enquanto objetiva, contém em si um fundamento prático, válido para todos os indivíduos; logo, é primordial para a fundação do sujeito moral; ou seja, toda a ação humana só será qualificada enquanto moral se, e somente se, seguir os ditames da razão prática pura; do contrário, se as ações forem determinadas pelos impulsos dos sentidos, desqualificam-se do ponto de vista da moral kantiana. Por consequência, a ética enunciada por Kant é referente à renúncia total do prazer subjetivo. Eis o que está vinculado com o chamado formalismo kantiano, o qual fundamenta a moralidade num princípio formal do dever: tal princípio formal ou puro deve ser instaurado sem a dependência de nossas inclinações subjetivas e a moralidade é a concordância com o princípio.

Entende-se, pois, em Kant, uma preconização ao abandono voluntário do que se enquadra no princípio do prazer2, para assumir, de todo, o princípio do dever, que se radica na sujeição total à lei moral, a qual tem seu fundamento na razão prática pura. No entanto, tal princípio do dever não se refere ao agir em conformidade com o dever, mas, sim, ao agir por dever. Por exemplo: se um empresário age com dedicação em seu ramo, e focando o bem, assim o faz em conformidade com o dever, pois sua ação é benfazeja por prazer. No mesmo sentido, se um indivíduo investe em ações filantrópicas, por amor ao próximo, assim o faz em conformidade com o dever, pois pratica um interesse particular que lhe causa prazer, ou seja, trata-se de uma ação intimamente ligada às inclinações do sujeito e direcionada para o bem. Entende-se, pois, em ambos os casos, que a ação é conforme o dever, mas não pode ser dita moral, pois a prática moral em Kant só é possível se a ação é realizada por dever.

Agir por dever é agir, objetivamente, por respeito à lei; logo, pratica-se o bem, não por inclinação, mas por dever:

Ser benfazejo, quando se pode, é um dever; contudo há certas almas tão propensas à simpatia que, sem motivo de vaidade ou de interesse, experimentam viva satisfação em difundir em volta de si a alegria e se comprazem em ver os outros felizes, na medida em que isso é obra delas. Mas afirmo que, em tal caso, semelhante ação, por conforme ao dever e por amável que seja, não possui valor moral verdadeiro; é simplesmente concomitante com outras inclinações, por exemplo, com o amor da glória, o qual, quando tem em vista um objeto em harmonia com o interesse público e com o dever, com o que, por conseguinte, é honroso, merece louvor e estímulo, mas não merece respeito; pois à máxima da ação falta o valor, que só está presente quando as ações são praticadas, não por inclinação, mas por dever (KANT, 1964, p. 08).

Assim, o sujeito que obedece ao princípio do dever (o agir por dever), segundo Kant, é um sujeito moral, porque assume a lógica do agir em respeito à lei. Contudo, para que haja a devida compreensão deste sujeito moral, é necessária a elucidação do que Kant entende por vontade boa.

Em a Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Kant insiste no conceito de vontade boa, ou seja, toma-o como foco principal. Segundo suas formulações, há duas vontades: uma entendida enquanto arbítrio (Willkür), que está intimamente ligada às inclinações sensíveis, ou seja, totalmente dependente da coação dos impulsos subjetivos; e outra entendida enquanto vontade boa (Wille), que é fundamentada na razão prática pura. "É boa tão somente pelo querer consistido na representação da lei em si mesma, desvinculado de todas as inclinações do sujeito" (KANT, 1995, SEÇÃO I, §3). Em outras palavras, a vontade boa tem em si mesma a pretensão de fazer o bem, porque determinada por uma lei universal; logo, o sujeito que realiza o mal, assim o faz porque responde à vontade enquanto arbítrio, particular, que não possui um valor em si mesma, mas sim, um valor subsidiário. Contudo, se o sujeito responde à vontade boa, que se institui enquanto universal, não pode ser patologicamente afetado, pois tal vontade, repita-se, é determinada pela razão prática pura que é superior às inclinação subjetivas, e totalmente desvinculada destas.

A vontade boa encerra em si própria o querer agir para o bem; portanto, não pode ser considerada apenas como um meio para as ações do sujeito, mas, também, como um fim, porque encerra um fim em si mesma.

A razão prática pura é causadora da vontade boa, e esta é quem fundamenta o princípio do dever. O sujeito que age fundamentado nestas, segundo Kant, age não em conformidade com, mas em nome da obrigação. O agir deste modo está em perfeita harmonia com o princípio supremo da moralidade, ou seja, o "princípio da dignidade da natureza humana, bem como de toda natureza racional" (KANT, 1964, p. 21), tal dignidade legitima-se enquanto um valor intrínseco ao sujeito, qual seja, a autonomia, a qual o possibilita ser autor de sua própria lei. No entanto, como tal valor é universal, sua legislação dar-se-á em nível também universal.

Em Crítica da Razão Prática, Kant se detém neste sujeito autônomo, que é ser capaz de legislar, de criar regras básicas para todos os seres racionais, as quais são princípios práticos objetivos. Tais regras assumem a forma de imperativos categóricos, pois exprimem seu caráter necessário, completamente independente das disposições patológicas do sujeito.3

Kant entende que tal imperativo, que enuncia a lei moral, pode ser descrito enquanto proposição que exprime a obrigação universal da ação, a saber: eis a "lei fundamental da razão prática pura: age de tal modo que a máxima da tua vontade possa valer sempre ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal" (KANT, 1989, p. 42). Contudo, a mesma só tem sentido se assumir o caráter de conivência, e, para tanto, o sujeito tem de ser livre. Contudo, uma vez que a condição do sujeito autônomo é entendida enquanto respeito total à lei, como conceber a liberdade do mesmo, se, pois, por enunciação do senso comum, o conceito de liberdade apresenta-se enquanto heterônomo, ou seja, delineado por nossas necessidades patológicas? Kant responde, afirmando que a liberdade só é legítima se fundamentada na autonomia da vontade boa.

Todavia, a liberdade em Kant pode assumir dois sentidos: um negativo, outro positivo. No primeiro, há a recusa do sujeito em se determinar pelas inclinações sensíveis, ou seja, é quando o sujeito autônomo não admite que suas ações sejam fundamentadas pela sua subjetividade - tanto a sua, como a dos outros. Nesse sentido, é denominada negativa, porque éa negação total das intervenções patológicas. Já o sentido positivo da liberdade se refere ao agir única e exclusivamente de acordo com os ditames da vontade boa: as ações positivamente livres são aquelas instituídas pela vontade boa, portanto, realizadas por dever, pela ação de acordo com as leis instauradas pelo sujeito autônomo. Por fim, entende-se por agir livremente a liberdade da ação que é causa única da vontade boa, que, por sua vez, é causa única da razão prática pura; ou seja, uma ação é considerada moral, se, e somente se, for livre, e só será livre se passar pelos critérios da razão prática pura, pela universalização de seus princípios práticos por meio do imperativo categórico.

Em vista disso, a liberdade só é possível no sujeito moral fundado pela vontade da razão prática pura, e não no sujeito puramente fundamentado por suas inclinações subjetivas. Eis a condição da moral kantiana. Trata-se de algo com caráter objetivo, universalizante. Vemos, portanto, que Kant está interessado na condição puramente universal da liberdade, a qual pressupõe sua validade para todos os indivíduos.

 

A Lei Natural Sadiana

A lei do gozo sexual em 120 Dias de Sodoma e Filosofia na Alcova

Sade, em seus romances 120 dias de Sodoma ou a Escola da Libertinagem e Filosofia na Alcova, desenvolve uma defesa do gozo pela atividade sexual que gera prazer, aquele obtido unicamente pela ação violenta infligida a outrem, sempre em nível puramente libidinoso e genuinamente perverso. Trata-se de duas obras, ambas publicadas após a morte de Sade, sem precedentes na literatura, pois são uma preconização do triunfo do mal: a primeira, publicada às vesperas da Revolução Francesa4 (1789-1799), ilustra as ações depravadas de nobres, os quais, durante meses, em um castelo suntuoso, buscam o prazer nas inúmeras ações de extrema violência sexual (e mesmo assassinatos) infligidas a crianças e jovens virgens, de ambos os sexos, e prostitutas. A segunda, publicada clandestinamente em 1795, ilustra a iniciação de uma jovem de 15 anos na teoria e prática da libertinagem sexual, assim como ilustra a exaltação do ódio que a mesma tem por sua mãe, a qual é brutalmente violentada por ela (a filha) e por seus tutores (ponto culminante que lemos no final do livro). A obra conta com sete diálogos; vê-se nas entrelinhas destes uma defesa de Sade, a saber, a supressão de toda e qualquer forma de religião enquanto solução para a liberdade da França, após a revolução e fim da monarquia.

Contudo, o elemento protagonizante em ambas as obras, claramente expressado, é o prazer carnal adquirido por meio das ações devassas. Tal prazer é apresentado por Sade enquanto lei primordial - em vários momentos de sua Filosofia na Alcova, ele deixa isso claro:

(...) abandonai vossos sentidos ao prazer. Que seja ele o único deus de vossa existência; a ele apenas uma jovem deve sacrificar tudo, e nada, a seus olhos, deve ser mais sagrado, que o prazer. (...) Não escolhe lugares, tempo ou pessoas: todas as horas, todos os lugares, todos os homens devem servir às tuas volúpias. (...) Foi para este único fim que a natureza a criou. (...) Toda a lei humana que contraria as da natureza só merece o nosso desprezo. (...) A natureza, mãe de todos, só nos fala de nós mesmos; nada é tão egoísta quanto sua voz; e o que reconhecemos nela de mais claro e imutável é seu santo conselho de deleitar-nos não importando à custa de quem quer que seja (SADE, 2000, p. 32).

Ao proferir "abandonai vossos sentidos ao prazer" - entenda-se aqui o prazer puramente físico, carnal (Sade não menciona em sua obra nenhuma articulação deste prazer físico com o prazer subjetivo; pelo contrário, o que ele preconiza é o abafamento deste último para instituir a supremacia do primeiro, ou seja, é dever do indivíduo "sacrificar tudo" pelo prazer, "e nada, a seus olhos, deve ser mais sagrado") - Sade pretende a objetivação do prazer sexual (obtido sempre pelos meios mais devassos), ou seja: devem todos, sem exceção, se entregar ao prazer, independente de suas inclinações subjetivas, uma vez que o prazer é a condição da natureza a qual o sujeito tem de se submeter; portanto, é dever do sujeito se entregar a tal natureza e não se desviar dela. Vemos, assim, em Sade, a natureza enquanto modelo; logo, "o homem só deve sua existência aos planos irresistíveis desta" (SADE, 2000, p. 38).

Nesse sentido, entende-se a natureza sadiana enquanto um agente universal, já que Sade se refere às ações de cada indivíduo enquanto invariavelmente instituídas por ela. Contudo, o que ela prescreve? A libertinagem:

Parti deste ponto, Eugénie; não há nada horrível em libertinagem porque o que ela inspira se encontra na natureza. As ações mais extraordinárias e bizarras, as que com mais evidências parecem chocar a todas as leis, todas as instituições humanas (pois o céu nem menciono); não, Eugénie, nem mesmo essas são horríveis, e não há uma sequer que não possa ser demonstrado na natureza (SADE, 2000, p. 102).

Vê-se, portanto, que Sade toma a natureza como um agente propulsor do mal, da destruição; possuindo ela um caráter objetivo, o sujeito só se legitima enquanto natural se age de acordo com sua legislação, que prescreve a depravação total, e não de acordo suas inclinações subjetivas. Em vista disso, Sade entende que a destruição não pode se enquadrar enquanto crime (como fantasia a sociedade), uma vez que este é conceituado enquanto ofensivo. O caráter destruidor, segundo afirma, não assume qualquer ofensa à natureza, pelo contrário, lhe causa um gozo, pois a destruição, que é seu elemento, lhe propicia a criação. Assim, todo e qualquer indivíduo que comete um ato destruidor, como, por exemplo, o homicídio, permite à natureza uma nova fonte de criação:

Sendo a destruição uma das primeiras leis da natureza, nada que destrói poderia ser um crime. Como uma ação que serve tão bem à natureza poderia alguma vez ultrajá-la? Aliás, essa destruição que deleita o homem é uma quimera. O assassinato não é destruição5. Quem o comete só varia as formas. Ele devolve à natureza elementos de que sua hábil mão se serve para imediatamente recompensar outros seres. Ora, como as criações só podem ser prazer para aqueles que se entregam a elas, o assassino também prepara um gozo para a natureza: fornece-lhe materiais que imediatamente emprega, e a ação que os tolos tiveram loucura em censurar revela-se apenas um mérito aos olhos desse agente universal (SADE, 2000, p. 66).

Nesse sentido, o sujeito destruidor é aquele instituído pela natureza (que se inscreve enquanto objetiva). Nessa condição é também livre, porque segue os ditames da natureza e não os instituídos pela sociedade, os quais subjugam os indivíduos, ou seja, nas palavras do próprio Marquês, os quais são "vergonhosos ferros com que se pretende escravizar" (SADE, 2000, p. 48). Entende-se, pois, a liberdade sadiana enquanto aquela que incita o sujeito para este caráter libertino e destruidor, e para tal ela tem de ser instituída pela natureza. O indivíduo nessa condição natural "poderá triunfar sobre os costumes e a opinião" e se tornar "mais sensato, porque mais livre (...) e perceberá assim as injustiças que cometeria se desprezasse os outros que agem desse modo, e que a ação de ceder aos impulsos da natureza, considerada um crime pelo povo cativo, não poderá mais sê-lo junto a um povo livre" (SADE, 2000, p. 48). Ou seja, o sujeito é livre somente enquanto natural, e nesta condição é também legislador; e suas leis, uma vez que são oriundas da natureza, são sempre universais e em direção aos prazeres carnais e devassos.

 

A Relação entre Kant e Sade

O antagonismo

A oposição mais marcante que se enuncia entre Kant e Sade é referente à moral. Kant é o autor por excelência que defende um rigor moral - o sujeito moral é aquele que invariavelmente segue os ditames da vontade boa; em outras palavras, a condição moral kantiana elimina a presença de quaisquer impulsos humanos, os quais consistem na ação conforme o dever. Trata-se de uma moral fundada estritamente na obrigação, que define o agir por dever. Isso significa que não existem elementos sensíveis (de ordem emocional, no sentido puramente subjetivo) envolvidos na moralidade.

Sade, por outro lado, apresenta justamente o oposto do que pretende a vontade boa kantiana: institui uma filosofia moral de obediência cega não aos ditames da razão, mas à sujeição das leis da satisfação ou gozo violento e destrutivo, que são oriundos da natureza. É um autor que produz um universo no qual se misturam a violência e a libido para o próprio deleite; pretende perverter quaisquer atitudes morais, uma vez que preconiza a crueldade enquanto a energia primordial do homem, logo, uma virtude e não um vício. Devemos, pois, segundo ele, suprimir todas as leis, punições, costumes, para que a crueldade possa agir sem ser rechaçada. Quaisquer padrões civilizados tornam a crueldade inconveniente, pois permitem ao ser lesado força ou meios de repelir a violação; logo, será somente num estado incivilizado que a crueldade não terá a menor inconveniência; tratar-se-á, portanto, da vigência da lei da natureza humana que legitima a lei dos mais fortes sobre os mais fracos (SADE, 200, p.81). Entende-se, pois, em Sade uma imoralidade autêntica, porque se afirma, a crueldade, enquanto lei da Natureza.

Sade, portanto, é autor de uma crítica que se utiliza do sofrimento causado a outrem e a si próprio, das torturas da carne, dos excessos libidinais, ou seja, do que se enquadra enquanto anárquico, para que sejam afirmados como veículos de libertação do indivíduo - uma vez que o agir por respeito aos ditames da natureza, ou seja, por respeito à sensualidade e à libertinagem, caracteriza o conceito sadiano de liberdade.

Finalmente, esta abordagem é suficiente para apresentar um antagonismo crucial entre os preceitos morais de Kant e Sade: o primeiro pretende uma razão destituída de qualquer elo de contato com o mundo e os impulsos humanos; o segundo pretende uma natureza que prescreve os princípios da ação humana, sem qualquer sujeição à idéia de bem e boa vontade. Por fim, vemos em Kant uma moral angélica (boa em si mesmo) e em Sade, uma moral libertina (má em si mesma); e em ambos os casos deve o indivíduo por elas ser dirigido. Entende-se, pois, que a pretensão de Lacan em estabelecer uma relação entre ambos é, no mínimo, assombrosa e herética. No entanto, é justamente na identificação da manifestação do "dever-agir" universalizante, na autoria dos dois filósofos, que terá início o argumento sui generis de Lacan, pois prova o caráter homólogo que há entre os mesmos, e o que culminará (em função de tal universalização, que dita uma inflexibilidade da ação humana) no mesmo sentimento, enquanto sintoma, a saber, a dor.

A cumplicidade

Lacan, ao insinuar uma cumplicidade entre dois indivíduos à primeira vista tão paradoxais, apresenta um argumento original: entendemos a teoria sadiana como sendo uma suposta antimoral, pois, numa leitura inicial, não vemos em sua defesa do dever-agir o princípio da imparcialidade (que caracteriza qualquer teoria moral), que significa decidir pelo agir independentemente de quaisquer interesses subjetivos, uma vez que o próprio agir pelo prazer sexual apresenta-se - repita-se aqui: numa leitura inicial - enquanto um impulso puramente subjetivo.

Tal crítica à Sade não está de todo incorreta; no entanto, o agir unicamente pelo prazer sexual não legitima, em última instância, uma proposição subjetiva. Vejamos, pelo viés lacaniano, o porquê: o problema está em justamente ser este um enunciado que se configura enquanto objetividade, uma vez que, tal como em Kant, institui um imperativo que também não deixa espaço para uma expressão subjetiva, porque instaurado enquanto lei.

Assim, segundo Sade, um indivíduo regido pela lei da natureza, que enuncia um agir com caráter de depravação pura, não pode escolher não desejar a outrem, que é objeto de prazer. Não se deve apenas gozar sexualmente do outro, o gozo tem de ser maximizado ao extremo. Trata-se, pois, de uma lei universal; contudo, se tal gozo sofrer qualquer afeto patológico, ou seja, se for abalado por quaisquer inclinações do sujeito, a lei é corrompida.

Em vista de tal abandono das inclinações subjetivas, que, como explanado até aqui, ocorre tanto em Kant como também em Sade, Lacan, por conceitos a priori, entende que a cumplicidade é legitimada também em outro ponto, a saber, ambos, mesmo que por vias opostas, culminam na dor.

Nesse sentido, em relação à dor em Sade, como primeiro ponto, Lacan não se limita à dor infligida a outrem, que lhe é objeto de prazer6. Outrossim, refere à dor do próprio Sade, que lhe é causada pela falta instituída em função do abandono da subjetividade. Ou seja, entenda-se tal análise lacaniana deste modo: uma vez que o prazer subjetivo é rejeitado pelo agir de acordo com o dever, o seu contrário entra em rigor, a saber, a pena, a dor, em nível subjetivo. Da mesma forma, há a dor em Kant, pois, como já se insistiu em mostrar, há a abolição das inclinações subjetivas, pois não são instauradoras da condição moral kantiana.

No entanto, deve-se entender esta dor subjetiva, que é instaurada pela ação objetiva de ambos, enquanto o avesso - como já dito - do prazer subjetivo. Em outras palavras, eis o que ocorre: propõem-se, Kant e Sade, ao abandono da subjetividade para a instauração da ação objetiva (uma instaurada pela razão, a outra pela natureza); porém, não escapam de culminar novamente no que se apresenta exclusivamente enquanto subjetivo: a dor.

Há a dor em Sade, pois este coloca a ação libertina em detrimento às inclinações subjetivas, já que transforma as paixões sensuais, prazeres carnais, apetites sexuais, em lei. Neste último caso, pelo mesmo viés, há a dor em Kant, pois o indivíduo moral legítimo é aquele determinado como vontade pela lei moral: não age por um interesse sentimental, afetivo; obedece racionalmente apenas ao dever instituído pela razão prática pura, que é universal - é o agir pelo dever imposto pela vontade boa e desvinculado de quaisquer inclinações do sujeito, trata-se de uma determinação objetiva que é acompanhada por um sentimento de dor:

(...) podemos ver a priori que a lei moral como princípio de determinação da vontade, pela mesma razão que ela causa danos a todas as nossas inclinações, deve produzir um sentimento que pode ser chamado de dor. E é esse aqui o primeiro, e talvez o único caso em que seja permitido determinar, por conceitos a priori,a relação de um conhecimento, que vem deste modo da razão pura prática, com o sentimento do prazer ou do penar (LACAN, 1988, p. 76).

Tal determinação do dever pela vontade boa que impõe os princípios ao ser humano causa o sentimento penoso, pois o dever, a lei, os padrões a que o sujeito deve se sujeitar, na proposta de ambos, não podem estar em conformidade com os impulsos humanos; na verdade, o sentimento de total indiferença para com estes tem de ser alimentado - não pode haver prazer subjetivo em conduzir-se enquanto indivíduo moral: eis um enunciado sade-kantiano.

Em suma, temos em Sade o sujeito perverso que se legitima no agir como vontade pelo objeto puro (sexual) e no obedecer racionalmente apenas este; e em Kant, temos o sujeito moral que é legitimado no agir como vontade pela razão prática pura. Em função de tais pressupostos, a dor subjetiva lhes é acometida.

O imperativo kantiano e sadiano

Lacan, após uma análise meticulosa dos escritos de Sade, principalmente A Filosofia na Alcova, infere o imperativo sadiano, qual seja:

A máxima que propõe ao gozo sua regra, insólita ao se dar o direito, à maneira de Kant7, de se afirmar como regra universal. Enunciemos a máxima: Tenho o direito de gozar de teu corpo, pode dizer-me qualquer um, e exercerei esse direito, sem que nenhum limite me detenha no capricho das extorsões que me dê gosto de nele saciar (LACAN, 1998, p. 780).8

Este imperativo sadiano é construído por Lacan de modo equivalente a um princípio que se pode universalizar, à maneira de Kant, pois se refere a uma lei que se formula estruturalmente enquanto dever. Diz-se que é equivalente no sentido, e unicamente, da universalização possível; assim como no imperativo kantiano, há um completo abandono das inclinações do sujeito; outrossim, o imperativo sadiano se reduz a uma fórmula e que é sua única substância (GROSRICHARD, 1990).

Além do caráter de universalização existente tanto em Kant como em Sade, existe outro fator que ainda é necessário explicar: Lacan atenta-nos para uma diferença crucial entre as formulações sadiana e kantiana. Esta diferença é um dos pontos mais complexos na abordagem lacaniana acerca da relação entre Kant e Sade. Portanto, para que haja a devida compreensão, faz-se necessária uma explanação minuciosa do que infere, a saber: deve-se prestar atenção neste eu do imperativo sadiano, o qual profere "tenho o direito"; o que se institui enquanto lei não é o enunciado "tenho o direito de gozar de teu corpo", nem tampouco este: "e exercerei esse direito, sem que nenhum limite me detenha no capricho das extorsões que me dê gosto de nele saciar". O que se institui enquanto lei é justamente o inciso: "pode dizer-me qualquer um". Nesse sentido, a lei consiste em reconhecer o direito do outro de gozar a seu bel prazer, e sem limites, de meu corpo (o corpo do eu subjetivo).

Quando Lacan faz referência a este "outro", não refere a outro enquanto outrem na posse de seus impulsos subjetivos, ou seja, enquanto outro indivíduo que enuncia o seu direito de gozar a seu bel prazer de meu corpo, no sentido de enunciar de acordo com uma pulsão (o que faz referência exclusivamente ao masoquismo). O "outro" que Lacan cita é outro no sentido de um eu que enuncia do lado de fora, ou melhor, desvinculado da subjetividade do sujeito; é o eu objetivo, instituído pela natureza (tal como um eu especular que dita; que se posiciona do lato de fora do eu subjetivo e prescreve as regras para este).

Nesse sentido, vemos dois sujeitos: o sujeito do eu tenho o direito, e o sujeito do pode dizer-me qualquer um. O primeiro (o eu) é sujeito do enunciado; o segundo (o me) é sujeito da enunciação. Para expandir ainda mais a compreensão, cita-se o exemplo lacaniano acerca do cogito cartesiano ("penso, logo existo"): o penso se configura enquanto sujeito do enunciado; em outras palavras, ao proferir penso, Descartes assim o faz enquanto ato espontâneo do próprio eu. Por outro lado, o logo existo, se configura enquanto sujeito da enunciação; ou seja, para afirmar a existência do próprio eu que pensa, este mesmo eu projetase para fora e dá-se conta de sua existência; é um eu especular projetado para além, que dá-se conta do seu próprio eu. No entanto, em Sade, este eu, ou melhor, em referência ao princípio sadiano, este me, que enuncia do lado de fora, é objetivo. Por consequência disto, Lacan identifica dois sujeitos, ou melhor, um único sujeito que se divide em dois. Mas qual é a relação com Kant?

Kant vela a realidade da estrutura subjetiva na figura de um sujeito, a saber, o sujeito da lei, que age por dever. Nesse sentido, há no imperativo categórico um sujeito que enuncia "age de tal modo que". Trata-se do sujeito da lei moral, e não do sujeito da subjetividade. Contudo, entende-se, pois, em Kant, este sujeito que enuncia por intermédio da razão prática - grosso modo, é uma voz interior que prescreve as ações do eu subjetivo - , enquanto sujeito da lei moral. Vê-se, desse modo, que em Kant não há uma voz oriunda de fora, como em Sade (da natureza), mas, sim, uma voz oriunda de dentro, da razão pratica pura, que é intrínseca ao ser humano e não extrínseca, como é a natureza em Sade. Eis a diferença entre os imperativos de ambos.

Portanto, há no imperativo sadiano o eu mesmo, enquanto eu subjetivo; há, por outro lado, o eu que se configura enquanto um outro que enuncia do lado de fora (que se inscreve enquanto objetivo). Na formulação do imperativo kantiano não há esta divisão, tal como em Sade. O eu da lei moral se faz uno com o próprio imperativo: age de tal modo! Este "age"é unificado com o sujeito da lei moral.

Porém, ao mesmo tempo em que há esta diferença, há uma similaridade, pois em ambos os imperativos o sujeito é dividido: em Sade, o sujeito se divide em o sujeito do eu mesmo e o sujeito que enuncia de fora (da natureza); em Kant, o sujeito do eu mesmo e o sujeito que enuncia no fórum interior do eu mesmo (da razão), que se institui enquanto sujeito da lei moral. Esta divisão, em ambos, é o objeto que aparece (que pressupõe um bem inatingível, porque inexistente); e este só se desvela no desaparecimento do sujeito sensível, ou, patológico.

Tal divisão é justamente o que permite a universalização dos imperativos sadiano e kantiano. A mesma universalização remete a um comportamento em respeito à lei, ou seja, inflexível. Esta inflexibilidade, repita-se, culmina na rejeição do prazer do eu mesmo (subjetivo). Uma vez que o prazer subjetivo é rejeitado, o seu avesso é manifestado, a dor subjetiva.

 

A Ética da Psicanálise

O agir pelo desejo

Lacan engendra tal tese, pois quer situar um justo meio (grosso modo) entre as éticas de Kant e Sade, para a ética da psicanálise. Sua pretensão é colocar o desejo no centro do debate ético e, com isso, pretende o afastamento do caráter prescritivo universalizante, que caracteriza a reflexão moralista inflexível, seja no campo filosófico, seja no próprio campo psicanalítico.

Contudo, Lacan não pretende instituir uma ética do bem, tampouco propõe uma forma de universalização de princípios de conduta como em Kant e Sade. Seu objetivo é, antes de tudo, instaurar uma ética do bem-dizer, a qual permite que o indivíduo, justamente inscrito na sua singularidade, seja compensado em seu caminho desejante. É o que pretente a prática psicanalítica, em outras palavras, que o indivíduo seja suprido ao se inscrever no caminho do seu desejo. "Agiste conforme o desejo que te habita?" (LACAN, 1988. p. 376), eis o postulado ético lacaniano, através do qual aparecem intimamente ligados o desejo ea ação.

No entanto, levanta-se a questão: e se o desejo de um indivíduo for a sua própria morte? Segundo a psicanálise, tal anseio de morte não corresponde ao desejo, propriamente dito, do mesmo. Corresponde, sim, a um estado hipocondríaco que, justamente por não encontrar o seu caminho desejante, culmina num sentimento melancólico que pretende a morte do próprio eu. Ou seja, não se trata de um desejo, mas sim, grosso modo, de um gozo traiçoeiro, um sintoma pela não-identificação do caminho desejante. E todas as outras propensões malditas, como, por exemplo, a vontade de matar, roubar, entre outras, se manifestam em função dessa não-identificação.

O desejo aparece como que um enigma para o sujeito; e este só irá identificá-lo no processo de análise do que está velado em seu inconsciente. No momento em que o identifica, trabalha para permanecer sempre no seu caminho. Nessa condição, age de acordo com o desejo.

O desejo, entretanto, não se pode realizá-lo de todo; trata-se de um objeto em si inatingível, porque nunca pleno, mas que propicia um sentimento não-melancólico; ou seja, digamos que o desejo de um indivíduo qualquer seja tornar-se um poeta bem sucedido: no momento em que realizar tal feito, manter-se-á em um estado de não-melancolia; terá, contudo, de sustentar esta condição para que o seu caminho desejante permaneça patente, ou seja, deverá se esforçar em trilhar o mesmo ao longo de sua existência.

Mas, para identificar o seu caminho desejante, o indivíduo tem de mergulhar nas entranhas de seu inconsciente. Ou seja, o desejo dá-se em nível inconsciente, e para que seja percebido e compreendido, deve o indivíduo analisar-se. Como o faz? Para se obter a resposta, detenha-se novamente na elucidação acerca do eu do enunciado e do eu da enunciação. Na psicanálise, o primeiro é o eu do consciente, o qual possui inúmeros desejos; exemplo: desejo de comer, de praticar algum esporte, de se relacionar sexualmente com alguém, etc. O segundo, por sua vez, é o eu do inconsciente (aquele que se mantém velado para o eu do consciente) e que estabelece um desejo por excelência, o qual foi instaurado de acordo com a vivência do sujeito desde sua infância.

Sendo assim, Lacan nos chama a atenção para este sujeito da enunciação que só pode ser desvelado pelo sujeito do enunciado, ou seja, é o eu consciente que desvelará o inconsciente, ou melhor, o que se vela neste, a saber, o desejo.

As técnicas e teorias criadas por Freud e elucidadas por Lacan podem fazer com que se evite a melancolia, e uma série de outras implicações negativas, a partir desse princípio - é justamente por isso que enuncia tal princípio enquanto o postulado para a ética da psicanálise.

 

Conclusão

Vemos, em Lacan, uma defesa ao desejo do eu da enunciação de cada sujeito - o que se apresenta enquanto singular e não universal. E, em contrapartida, vemos em Kant e Sade a instauração de preceitos aos quais se deve servidão absoluta, ou seja, de ações absolutamente necessárias, a-subordináveis, sem referência a nenhuma condição.

Lacan apresenta, com tal novidade, Kant com Sade numa relação onde ambos enunciam uma regra para o agir sedimentado por princípios universalizantes que pretendem se sobrepor às inclinações subjetivas. Nesse viés, vemos em Kant a defesa da lei (instaurada pelo sujeito da razão prática pura) enquanto preexistente ao bem - para se chegar ao bem, devemos agir de acordo com o imperativo categórico; do contrário, se agirmos mal, é porque nos falta o conhecimento sobre o bem.

Tal elocução teórica de Lacan foi estruturada por inferência, tal como faz o psicanalista frente a seu paciente; ou seja, trata-se de uma análise clínica sobre a obra de ambos os autores. Lacan não encerra aí; sua tese vai muito além. No entanto, para expô-la por completo é necessário debruçar-se sobre a produção teórica de Lacan, tanto psicanalítica quanto filosófica, as quais se complementam, ou melhor, a segunda não pode ser pensada sem a primeira.

 

Notas:

1 Todas as vezes que é empregado nesta explanação o termo patológico, é em referência às paixões do sujeito (no sentido estrito de sua etimologia: do grego pathos = paixão).

2 Esta terminologia é bem posterior a Kant, mas a interpretação semântica que fazemos dela é presente em toda sua obra crítica. Trata-se de um jargão freudiano utilizado para referir ao desejo que conduz o indivíduo a buscar o prazer, o qual está intimamente ligado com as inclinações sensíveis, e evitar a dor.

3 As máximas que são completamente dependentes das disposições patológicas do sujeito são chamadas por Kant de imperativos hipotéticos. Referem à necessidade de uma ação enquanto meio para alcançar um fim qualquer, intimamente ligado com o patológico.

4 Não se sabe ao certo a data da publicação.

5 Refere-se aqui à destruição que o homem não natural fantasia, e não à destruição enquanto elemento da própria natureza.

6 A questão do gozo causado pela dor infligida a outrem, no sentido sexual, já era discutido no âmbito da medicina muito antes de Lacan. Um dos principais investigadores sobre o prazer originado pela violência sexual causada a outrem, foi o psiquiatra Richard Freiherr von Krafft-Ebing (1840-1902), o qual instituiu a terminologia sadismo.

7 À maneira de apresentar uma ação fundamentada na objetividade - é isso que Lacan pretende; não corresponde em nada com quaisquer suposições pretextais em dizer da leitura de Lacan uma equivocada inferência acerca de uma semelhança entre as teorias morais de Kant e Sade: não há a afirmação sequer de uma moral (no sentido de ação para o bem) sadiana, uma vez que Sade funda não uma moral, mas uma linha de fundamentação objetivante da ação para a depravação.

8 A máxima que Lacan apresenta não está exposta como tal no texto de Sade (Filosofia da Alcova); é uma articulação construída a partir do seguimento de tal texto, ou seja, Lacan, na medida em que faz a leitura de Sade, assim o faz com olhar clínico, literalmente, e a partir deste, desvela o que está implícito. É uma construção conceitual de um analista, que é instituída, frente ao discurso de um analisante. Lacan mostra, com essa construção, não somente a posição de Sade na sua vida, mas a formulação de Sade na sua obra. Há uma coerência entre o Sade pensador e o Sade homem na vida. Lacan explica, a partir da obra, a posição subjetiva de Sade na sua vida e a partir dessa construção a "ilusão", a fantasia imaginária (GROSRICHARD, 1990).

 

 

Referências

GROSRICHARD, Alain. Uma Leitura do Texto: Kant com Sade. São Paulo. 1990.         [ Links ]

KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. São Paulo: Companhia Editorial Nacional, 1964.         [ Links ]

KANT, Immanuel. Crítica da razão prática. Lisboa: Ed. 70, 1989.         [ Links ]

LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 7 - A Ética da Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988.         [ Links ]

LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.         [ Links ]

SADE, Marquês de. A Filosofia na Alcova, ou, Os Preceptores Imorais. São Paulo: Iluminuras, 2000.         [ Links ]

SADE, Marquês de. Os 120 Dias de Sodoma ou A Escola da Libertinagem. São Paulo: Iluminuras, 2006.         [ Links ]

 

 

Data de recebimento: 02/01/2010
Data de aceite: 23/07/2010

 

 

Sobre o autor: Samuel Henrique Machado é graduado em Filosofia pela UNISC. Atualmente leciona Filosofia e Sociologia no Colégio Mauá e Instituto Sinodal Imigrante.
Flávio Williges é graduado em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria, Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria em convênio com a USP e Doutor em Filosofia pela UFRGS (2009). É Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Maria.

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