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Barbaroi

Print version ISSN 0104-6578

Barbaroi  no.34 Santa Cruz do Sul June 2011

 

ARTIGOS

 

O conceito de Esquema Conceptual Referencial Operativo - ECRO e o processo de ressocialização de apenados: um estudo etnográfico-hermenêutico

 

The Conceptual Referential Operative Schema - CROS - concept and the process of rehabilitation of prisoners: an ethnographic-hermeneutical study

 

 

Mário MedeirosI; Fabio Alves dos SantosII

IUniversidade de Pernambuco - UPE -Brasil
IIUniversidade de Pernambuco-UPE -Brasil

 

 


RESUMO

O aumento da violência vem contribuindo para a superlotação dos estabelecimentos prisionais. O fenômeno tem se caracterizado, sobretudo, pelo aumento da periculosidade dos encarcerados e a consequente complexificação das ações preventivas e de reabilitação do comportamento criminoso. O presente artigo é resultado de um esforço para elaborar um esquema conceptual referencial operativo - ECRO, de um grupo constituído por 25 apenados de um Centro de Ressocialização. Realizado através de uma abordagem qualitativa e sob a forma de pesquisa-ação, o trabalho foi desenvolvido a partir da ideia de grupo operativo de Pichón-Riviere (1977), da noção de aprendizagem significativa de Ausubel (1980) e da concepção de comportamento desviante de Winnicott (1999), entre outros.

Palavras-chave: Ressocialização. ECRO. Aprendizagem. Mudanças de significados.


ABSTRACT

The increasing violence has contributed to the overcrowding of prisons. This phenomenon has been characterized mainly by the increase in the dangerousness of prisoners and the consequent complexity of preventive and rehabilitation actions related to criminal behavior. This article is the result of an effort to developing a conceptual referential operating schema - CROS - to a group consisting of 25 prisoners at the Center for Re-socialization. Accomplished through a qualitative approach in the form of research -action, this work was developed through an approach based on the idea of operative group of Pichon-Riviere (1977), the concept of meaningful learning of Ausubel (1980) and conception of deviant behavior of Winnicott (1999), among others.

Keywords: Re-socialization. CROS. Learning. Changes of Meaning.


 

 

Introdução

O homem é, de fato, um ser em permanente construção, que vai se fazendo no tempo pela mediação de sua prática, de sua ação. Ele é, assim, um ser histórico, que vai se criando no espaço social e no tempo histórico. O homem não é apenas uma realidade dada, pronta e acabada, mas fundamentalmente um sujeito que vai construindo aos poucos sua própria realidade (SEVERINO, 2007, p. 150).

Sabe-se dos elevados custos humanísticos, sociais e econômicos que a violência impõe à sociedade brasileira. A reincidência em delitos como assaltos, homicídios, latrocínios e tantos outros tem superlotado o sistema penitenciário e posto em cheque as medidas de combate à violência, com os resultados desastrosos que se conhece para a política de segurança pública e para a qualidade de vida da população. Um processo de ressocialização bem-sucedido certamente implicará a redução dos índices de reincidência, o que repercutirá positivamente na elevação do sentimento de segurança da sociedade brasileira e pernambucana e na credibilidade das autoridades das áreas de segurança e justiça.

O presente trabalho realizado em um Centro de Reabilitação tem a finalidade de contribuir para um equacionamento cientificamente mais consistente dessa problemática. Para tanto, foi necessário dialogar com a ideia de grupo operativo de Pichón Rivière (1977) e com o seu conceito de ECRO. Segundo ele, o grupo operativo, que é criado artificialmente com indivíduos em situação semelhante, configura-se sobre a base de vínculos internalizados a partir do grupo familiar, vínculos que se propagam pelos subsequentes grupos com os quais o sujeito se relaciona. Pichón-Rivière parte da hipótese de que no grupo familiar um membro assume o papel de porta-voz, o que o torna depositário de todas as angústias, ansiedades e patologias que circulam no espaço em que vive. Desse modo, o porta-voz passa a funcionar como paradigma para o comportamento do grupo familiar como um todo. Coisa semelhante acontece no grupo operativo: nesse também surge um porta-voz que simboliza os ideais do grupo e passa a servir como modelo aproximado para a conduta dos seus membros em cada nova experiência com que se defrontam. Pichón-Riviére define ECRO, como um conjunto organizado de conceitos gerais, teóricos, referidos a um setor do real, a um determinado universo de discurso, que permite uma aproximação instrumental ao objeto particular (apud ADAMSOM, 2008, p. 01). De maneira mais clara, pode-se dizer que ECRO é o conjunto de experiências, conhecimentos e afetos com os quais o sujeito pensa/sente/age.

Winnicott (1999) assinala com veemência que a delinquência está associada à perda emocional precoce e que as figuras parentais são as principais responsáveis pelo estabelecimento de um ambiente facilitador do desenvolvimento da saúde física e psíquico-emocional das crianças sob sua guarda. Isso posto, fica clara a importância da família como referencial para a estruturação da conduta dos seus membros. Para Pichón-Rivière, o ambiente saudável ou "doente" constrói-se graças às interações entre os atores envolvidos no ambiente familiar; por isso, esse grupo é sempre significativo.

Contudo, não é só a estrutura familiar que influencia a formação da personalidade de um indivíduo; a estrutura social e a educação contribuem muito para a configuração de sua conduta, para a maneira como ele vai se relacionar com o mundo, com outros, consigo mesmo, etc. Assim, não podemos deixar de considerar que a violência e a insensibilidade emocional, vivenciadas no dia-a-dia da rua, podem levar uma pessoa a desenvolver atitudes antissociais persistentes. Por outro lado, um ambiente social favorável, uma educação eficaz e menos propícia às transgressões, permite um desenvolvimento sadio, porque, segundo Winnicott, atua como facilitador no processo de estruturação saudável dos sujeitos.

No campo da aprendizagem, Ausubel (1980), em sua teoria cognitiva, chama a atenção para a importância de subsunçores presentes na estrutura cognitivo-afetiva de cada sujeito. Subsunção é o que acontece quando uma nova informação é relacionada adequadamente com um subsunçor (conhecimento, afeto, valor) preeexistente na estrutura cognitiva. O resultado desse processo é chamado por ele de Aprendizagem Significativa. Nesta, a informação preexistente modifica-se a partir de uma nova informação, modificando, por sua vez, toda a estrutura cognitiva. Dependendo da forma como o confronto entre o âmbito do intrassubjetivo e o intersubjetivo acontece, emergirão aprendizagens que serão facilitadoras ou interruptoras de atitudes e condutas sociais ou antissociais.

Para Lacan (1975 apud Dor, 1989, p. 12), cada vez que um homem fala a outro de maneira autêntica e plena, há, no sentido próprio, transferência simbólica, e ocorre alguma coisa que muda a natureza dos dois seres em presença. Numa relação que se retroalimenta, a qual Pichón-Rivière (1977) chama de teoria do vínculo, considera-se que o sujeito que anuncia algo é, ao mesmo tempo, porta-voz de si mesmo e das fantasias inconscientes do grupo. A tarefa, então, é resolver o denominador comum da ansiedade do grupo que em cada integrante toma características particulares.

Partindo do pressuposto de que essas hipóteses são verdadeiras, vislumbrou-se a possibilidade de intervir nesse processo sob orientação de uma equipe interdisciplinar constituída, neste caso, por um Psicólogo, um Professor e três alunos de Psicologia. Partiu-se do pressuposto de que era necessário delinear o ECRO comum de um conjunto de apenados por homicídio, através da formação de um grupo operativo, utilizando-se a estratégia da resolução de problemas, através do conflito cognitivo e, algumas vezes, através do conflito emocional.

A formação de grupo operativo, situação em que emerge a figura de um porta-voz, aparece aqui como condição necessária para comunicação de afinidades e angústias entre emissores e receptores aí agrupados, estabelecendo uma relação de causalidade dialética entre a estrutura e a dinâmica da conduta do porta-voz e a conduta dos demais membros do grupo, possibilitando a configuração de um esquema conceptual referencial operativo (ECRO) do grupo em questão. À medida que se vai delineando o ECRO do grupo, abre-se espaço para a promoção da ressignificação dos conceitos doentios ou epistemofílicos que fazem parte desse mesmo ECRO.

Assim, o grupo operativo torna-se um instrumento de trabalho, um método de investigação e cumpre, além disso, uma função terapêutica, além de oferecer possibilidade de co-participação do objeto de conhecimento, numa interação espiral dialética mutuamente transformadora, sob o viés da aprendizagem que acontece mediante a exposição e troca de experiências de vida.

Para uma hermenêutica dos resultados, em nosso trabalho, incluímos o conceito de cultura, que entendemos ser peça-chave para interpretação e compreensão do comportamento, pois é através dele que tomamos conhecimento do universo representado no discurso humano. Assim, utilizamos o conceito de cultura de Geertz:

A cultura é um sistema entrelaçado de signos interpretáveis, algo ao qual podem ser atribuídos casualmente os acontecimentos sociais, os comportamentos, as instituições ou os processos de subjetivação. Essa dinâmica pode ser descrita de forma inteligível - isto é, descritos com densidade (GEERTZ, 1989, p. 24).

A contribuição central do conceito de cultura, assim definido, foi nos dar acesso ao mundo conceptual no qual vivem os nossos sujeitos de forma a podermos, num sentido mais amplo, conversar com eles. Para tanto, fez-se necessário ultrapassar o obstáculo representado pela necessidade de aproximação de um universo simbólico não-familiar aos pesquisadores e suprir as exigências que essa aproximação coloca do ponto de vista cultural e técnico. Por conseguinte, aceitamos a premissa de que:

Olhar as dimensões simbólicas da ação social como arte, religião, ideologia, ciência, lei, moralidade, senso comum, não é afastar-se dos dilemas existenciais da vida em favor de algum domínio empírico de formas não-emocionalizadas; é mergulhar no meio delas (GEERTZ, 1989, p. 21).

Seguindo essa orientação, navegamos no mundo simbólico-conceptual dos sujeitos analisados, tentando penetrar na subjetividade deles, tomando conhecimento da realidade plural que dá suporte aos seus dramas pessoais, aos seus medos, as suas esperanças. Ou seja, tentamos ter acesso ao conjunto de experiências e sentimentos que constituem suas identidades. Nosso objetivo: deflagrar as condições socioculturais que arquitetam atitudes e motivam os sujeitos a adotarem e sustentarem condutas socialmente adequadas ou inadequadas. Identidade: Suporte Simbólico-Existencial para as ações dos sujeitos no mundo da vida

Contrariamente ao que ainda pensam certos segmentos da sociedade, o ciclo que configura a conduta violenta não está ligado necessariamente a fatores neurobiológicos, mas, sobretudo, à ordem subjetiva dos sujeitos, ou seja, ao gozo, ao sentimento de poder, entre outros, produzido pela conduta antissocial. Contudo, é a ordem externa, o meio sócio-cultural que fornece o estimulante, o estressor que cerca e norteia as condutas e atividades humanas. A essa ordem estão submetidas pessoas de todos os matizes socioidentitários. Desse modo, os fatores externos podem fornecer motivos capazes de provocar mudanças, tanto positivas quanto negativas no comportamento, afetando o convívio social. Considerando que todas as pessoas são suscetíveis a cometerem atos moralmente condenáveis, desde que os instrumentos lhe sejam fornecidos, entendemos que "não nascemos com uma ou outra característica, mas aprendemos a sermos como somos, no decorrer da nossa vida, através das coisas e situações que experimentamos (CAMURÇA; GOUVEIA, 2000, p. 15).

É nesse jogo simbólico-interativo entre fatores internos e externos que se tecem as identidades dos sujeitos. A identidade é o substrato lógico-afetivo constitutivo de sujeitos e grupos sociais. Como tal, é uma construção sócio-histórica. Constrói-se a partir de relações de poder e de ações, de interações que determinam os papéis e funções, assim como os lugares identitários dos atores sociais envolvidos.

O modo de ser do homem, tal como ele é compreendido atualmente pela filosofia, não é decorrente de um desabrochar programado a partir de potencialidades contidas, seja numa essência eterna, seja num código genético. Ao contrário, esse modo de ser vai se constituindo no espaço natural e social, bem como no tempo histórico, num processo contínuo de interação do sujeito com a natureza física, com a sociedade e consigo mesmo, numa atividade prática atravessada por determinantes objetivos e por intencionalidades subjetivas (SEVERINO, 2007, p. 150).

Inspirados na teoria de Pichón-Rivière (1977), entendemos que noções, valores e conceitos significativamente fortes configuram atitudes que, em certos contextos e condições, levam os sujeitos a agir de modo mais ou menos previsível no meio social em que vivem. O problema é: como ter acesso ao universo simbólico desses sujeitos? Sabemos, entretanto, que o ser humano, dada sua dimensão racional-emocional, tende a submeter suas experiências ideativo-emocionais às suas figuras de apego, pois essas lhe transmitem confiança e flexibilidade para expressar suas angústias. Conquistar essa confiança implicou uma das maiores dificuldades dos pesquisadores neste trabalho.

Tendo em vista que a sociedade fornece o caldo de cultura em que se configura e floresce a identidade dos sujeitos, firmamos o entendimento de que era necessário desvelar as noções de valores e conceitos que começaram a surgir já nas primeiras falas dos membros do grupo operativo. Voltamos nossa atenção, sobretudo para conceitos, valores, atitudes e ações significativas dentro da realidade estudada. Logo percebemos que a família ancorava um conjunto de afetos, crenças, experiências, conceitos e conhecimentos que deram e dão suporte simbólico-existencial às atitudes e ações dos integrantes do grupo. Ou seja, percebemos que é por motivos que giram em torno da família que os apenados em questão pensam, discursam e atuam, tanto no sentido do bem quanto no sentido do mal. A literatura sobre essa temática reforça nossa percepção. Os conceitos e as idéias não são algo neutro, uma abstração distante da realidade, mas sim, são frutos de processos sociais reveladores do cotidiano e da ação política dos sujeitos da nossa sociedade (CAMURÇA; GOUVEIA, 2000, p. 9).

Nosso projeto de pesquisa tramitou pelo Comitê de Ética em Pesquisa de nossa universidade, sendo aprovado pelo CAEE n. 0159.0.097.000-11 Do ponto de vista metodológico, a pesquisa realizada foi norteada pela pesquisa-ação fundada nesses pressupostos. Então, começamos a identificar conceitos fortes constitutivos do esquema conceptual referencial operativo (ECRO) dos apenados e a buscar neles brechas através das quais pudéssemos provocar conflitos cognitivos e emocionais passíveis de levar à mudança de atitudes congruentes com a produção de comportamentos e condutas geradoras de convívio social pacífico.

Entendemos que foi possível identificar três conceitos fortes passíveis de provocar mudanças: o primeiro foi o Evangelho. Contudo, a partir de nossos referenciais de interpretação, de nossas discussões e visão de mundo, mostrar-se evangelizado, salvo as exceções de praxe, pode ser apenas uma estratégia de se apresentar mudado enquanto se está preso, uma maneira de expressar bom comportamento e, assim, facilitar a saída do presídio.

O segundo foi a necessidade de sobrevivência: "Vou mudar para não morrer". Aqui podemos supor que, mesmo que o sujeito esteja "mudado", as pessoas que sofreram com seu crime (os familiares da vítima, entre outros) desejam se vingar. Nesse caso, o sujeito, pela mesma necessidade de sobrevivência, pode voltar a matar para não morrer e, assim, continuar sua conduta antissocial.

O terceiro foi a família. Falas de apenados indicam que ela pode proporcionar mudança autêntica já que a ela são atribuídos os mais variados valores, significados e sentidos, coisas do tipo "a família é tudo e vou mudar para minha família não sofrer", ditas por Gb, um apenado. Mas também pode ser fator de reincidência em conduta violenta, como nos assegura o próprio Gb: "Voltarei a matar em nome da minha família" , ou seja, matar qualquer um que a ameace.

Sabe-se que, no interior da família nordestina, o conceito de homem assume um lugar de grande destaque subjetivo, privilégios e responsabilidades. Via de regra, o homem é o líder. De acordo com Costa:

para entender a construção da subjetividade, é útil lembrar que em certos grupos a liderança não é conquistada pelo passado ético, ou projetos para o futuro, mas sim pela força e o vigor físico, pela capacidade de destruir seus adversários e pelo temor que impõe aos outros. Pois bem, o conceito de homem, no imaginário dos apenados da pesquisa, continua, como em tempos imemoriais, centrado no autoritarismo, virilidade, força, domínio, entre outros ideais típicos (COSTA, 2008, p. 34).

Sabendo que a sociedade valoriza quem segue as normas socialmente exaltadas, para ser homem, o sujeito deve seguir à risca os preceitos exalados da cultura circundante e, consequentemente, modelar sua conduta e seu comportamento por elas. Isso posto, fica transparente que as normas sociais que determinam o comportamento do homem e da mulher, ou seja, as normas de gênero, que para os apenados são essencialmente determinadas biologicamente, instituem rigidamente os modos de ser desses sujeitos.

Tudo isso ficou bastante claro quando pedimos aos sujeitos de nossa pesquisa para externarem o que é ser homem no entendimento deles. As respostas que seguem são suficientemente elucidativas:

Gb - "Firmeza: de caráter / de palavra. "Ter força, firmeza no que fala coragem de falar, ter palavra, ser forte [...] Se o homem não tiver firmeza ele é considerado como maloqueiro".

Sv -"Coragem: "Homem não tem medo, não tem covardia".

Ed - "Orgulho: "Homem que é homem não dá o braço a torcer" [...] "O homem em si é orgulhoso".

Nc - "Fidelidade: "Amar sua esposa e ser fiel a ela".

Jc - "Responsabilidade: Nunca deixar faltar nem amor, nem alimento".

At - "Virilidade: "Não baixar a cabeça e não dar sua cara a tapa". "Ser homem é ser o cabeça, o que segura tudo".

Am - "Honra: "Amaria a todos menos um tarado, pois isso desonra a família".

Gb - "Ser moral: "Ter seu respeito e atitude" [...] "Respeitar e ser respeitado, isso é ser moral".

Sv - Ter coração: "Ser bom, entender os outros, não desejar o mal ao próximo, perdoar para ser perdoado" [...] "Perdoar porque a família é significante".

Esses ideais ancorados na família a partir da noção do que é ser homem são constituintes fortes da subjetividade, dos afetos dos sujeitos de nossa pesquisa. Através dessa constatação, passamos a considerar que o conceito de homem dos apenados com os quais lidamos poderia estar na base de sua ação homicida. Mais ainda: vivendo numa região em que o homem é visto de acordo com as representações explicitadas acima, e estando essas representações intrinsecamente ligadas à família, assumimos por certo que o ECRO do nosso grupo está imbricado em vivências no grupo familiar.

Esses ideais encontram suporte na ideologia difundida por agentes sociais significativos em relação à família. Nessa ideologia, ela é caracterizada como uma instituição cuidadora e fornecedora de amparo. É aquela que dá base para a constituição do sujeito, porque engloba e norteia o seu imaginário, emoções, fantasias e desejos. É assim que a família continua sendo retratada em muitos discursos e espaços. É assim que ela se configura no imaginário da maioria das pessoas de todas as extrações sociais, mesmo que, convém lembrar, sendo a família uma construção cultural, esteja inserida na história e como tal esteja sujeita às mudanças aceleradas que vêm ocorrendo nas sociedades contemporâneas.

 

O Esquema Conceptual Referencial Operativo - ECRO

A partir dessa linha de raciocínio, ousamos dar os primeiros passos para a configuração do esquema conceptual referencial operativo (ECRO) do grupo com o qual trabalhamos, tal como proposto por Pichón Rivière (1977), considerando a hipótese de que a família poderia ser o núcleo, a âncora desse ECRO. A pesquisa, desde então, seguiu esse pressuposto e passamos a submeter à prova a hipótese que segue.

Imaginamos que o sujeito diante de uma ação considerada ameaçadora para o grupo familiar desencadearia, em nome de sua proteção, uma ação de "efeito dominó" em que vinganças se sucederiam num ciclo de difícil interrupção. Esse tipo de ação "protetoradefensivo-reparadora" justificar-se-ia em nome da honra, da virilidade, da solidariedade, entre outras justificativas do gênero, e acrescentaria aos praticantes um sentimento de poder, de domínio, de respeito etc. Essa atitude permaneceria latente, sob a forma de um discurso de paz, de responsabilidade, de solidariedade, de amor entre os membros do grupo familiar até que aparecesse a oportunidade, geralmente sob a forma de uma ofensa a esse grupo, para expressar-se em comportamento ou conduta antissocial. Essa demonstração de força seria uma necessária e insubstituível característica masculina; sem ela não se poderia afirmar a condição de homem.

As falas seguintes dos apenados sugerem fortemente que nossa hipótese é verdadeira. Vejamos:

Gb - "só tem uma coisa que me faria cometer homicídio novamente, se mexerem com meus filhos".

Essa afirmação está de acordo com a norma (que no contexto aparece culturalmente distorcida): Am - "homem tem que ter honra".

Então, para seguir essa norma social, impregnada no sujeito desde criança pela própria família, é necessário arquitetar algum plano para vingar-se de alguém que ameaça a respeitabilidade familiar e sua posição no imaginário da comunidade. Esse papel vingativo deve ser incorporado pela figura masculina, ao entender que esse ato representa proteção. Além disso, é o homem quem deve demonstrar virilidade defendendo a honra da família. Isso demonstra sua condição de protetor do lar, além de mantenedor do mesmo. Quando pedimos a GB para falar sobre o que significa a família, obtivemos respostas como: apoio, companheirismo, união, amor, orientação e fortaleza.

Ora, esses valores não possuem em si mesmos nada de maléfico para os indivíduos; pelo contrário, são valores que estão na base de condutas socialmente positivas. Acontece que, nesses casos especificamente analisados por nós, esses valores acabaram por se transformarem em valores epistemofílicos, ou seja, valores que foram inversamente assimilados pela estrutura cognitiva dos apenados e orientados para fins maléficos, tanto para o indivíduo quanto para a sociedade

A família é de fato considerada como promotora de ações sociais positivas, mas pode também ser a acionadora de possíveis condutas antissociais. Depoimentos demonstram a existência desse lado nebuloso, dessa contradição.

Sv - "Às vezes a família nos coloca em situação mal. Meu irmão estava ficando com minha namorada. Isso já é uma barreira. A família às vezes decepciona. Pensar a família sempre como porto-seguro.... isso não podemos esperar".

Nc - "A família não só enche de carinho, mas às vezes põe barreiras".

Percebe-se que, se por um lado, a família aparece como o cimento da integração moral, da reparação da conduta, por outro lado, quando desestruturada, a família pode ser a causadora de alterações do comportamento humano, levando os indivíduos a trilharem uma conduta antissocial.

Ainda assim, a família aparece como o referencial mais forte da boa conduta, do comportamento propiciador do convívio pacífico, a instituição em nome da qual se justifica mudar o rumo da vida, o grupo ao qual vale a pena dedicar-se, assumir sacrifício. Na expressão popular, é o grupo em nome do qual vale a pena "engolir sapo". Muitos depoimentos apontam nessa direção.

Gb - "Um primo meu deu uma tapa na minha mãe que sangrou, antes de eu vir para o semiaberto e ela me pediu para não fazer nada... Mas fica uma coisa na minha cabeça, se tivesse presente não tinha escutado ela não... Tinha dado um monte de tiro... Hoje é diferente, paro e a escuto [...] A gente enfrenta muito sofrimento, tenho meus inimigos ocultos. A qualquer momento posso levar um tiro, mas volto sempre do pernoite para não fazer minha família sofrer".

Ed - "Se fosse para a gente pensar só na gente, a maioria dos presos já tinham fugado".

Nc - "Eu já não fui embora daqui por causa de uma tia".

Como explicar essa contradição? Como escapar dela? Como poderia a família exercer um papel sempre positivo na reparação da conduta, na ressocialização desses apenados? Explicar a contradição não é tão difícil. Escapar dela já não é tão fácil. Garantir um papel sempre positivo na reparação, na ressocialização, isso não se pode. Ainda assim, a via da família, no caso dos apenados com os quais lidamos, e possivelmente para casos semelhantes, é a via que se nos afigura como a que promete os melhores e mais consistentes resultados.

Na busca de respostas para as questões levantadas no parágrafo anterior, o conceito de ECRO assume toda sua relevância. O trabalho de análise realizado com o grupo em diferentes sessões em torno do tema família nos possibilitou o delineamento de parte do ECRO. Partindo da definição posta acima, podemos representar o ECRO, através de uma analogia com o modelo de um átomo. Assim, o núcleo do átomo -ECRO seria a família. Em sua órbita estariam: (a) prótons -conceitos positivos (sadios) como amor, confiança, respeito, compreensão, paz, união, esperança, alegria, afeto, perdão e lealdade; (b) os elétrons conceitos epistemofílicos, negativos (doentios), ou seja, aqueles que, segundo Winnicott (1999), induzem a comportamentos desviantes, ao crime, em casos extremos. Na origem deles, estaria toda uma problemática emocional afetiva que seria necessário elucidar. Então, a primeira questão está resolvida, a contradição fica explicada: na família está a fonte de todos os comportamentos e condutas, os desviantes, inclusive.

Para resolver a segunda questão (como escapar da contradição intrínseca ao grupo familiar), temos que conhecer os conceitos epistemofílicos constitutivos do ECRO. Destaquese inicialmente que os conceitos epistemofílicos, que precisamos conhecer, estão fortemente interligados aos conceitos sadios, de fato são derivados deles. É por isso que a família se configura como grupo contraditório, fonte ao mesmo tempo de conduta social adequada e de conduta antissocial. Por conseguinte, questões ligadas à vivência familiar passaram a ser o alvo de nossa investigação.

Promover esse tipo de investigação é fazer uma retrospectiva de vida, é encontrar, nos porões da mente, no subterrâneo psíquico, sentimentos dolorosos que para lá foram expulsos. São cenas que remetem a angústias. Fazer esse tipo de trabalho não é algo fácil. Por isso mesmo, tratar do tema família tornou-se delicado, visto que, nas falas dos apenados, percebiase muito rancor e mágoa, sobretudo, referente à figura paterna.

Sv - "Meu pai me botou pra fora de casa quando eu tinha sete anos... Ele estava embriagado. Brigava com minha mãe dizendo que eu não era seu filho. Meu pai vivia brigando com a minha mãe, e sempre me botava como culpa. A gente morava num engenho não disse isso a vocês, teve um dia que ele tomou umas cachaças, veio um pai de santo, comprou um maço de velas, acendeu todas, e disse que quem fosse filho dele pegasse uma vela. Meus irmãos pegaram, eu estava dormindo, aí me tiraram da cama, fui para a mesa, botei os braços sob ela, dormi novamente, quase me queimei. Meu pai me pegou e me jogou por cima da porta."

Outro apenado, identificado por nós como o líder do grupo, também nos contou de uma experiência negativa com o seu pai:

Gb - "Ele (o pai) tomava um álcool danado, parecia um alambique, deu duas pisas na minha mãe, tentou me matar, ainda lembro do vôo, eu tinha três anos. Ele tinha de tudo e eu não tinha nada, tinha que almoçar em outra casa, eu via os meninos com brinquedos, e eu não tinha nada. Eu ia pra lá, continha minha vontade, não me sentia filho dele. Eu fui para a praia, fui dar a mão a ele, ele disse que não dava a mão para maloqueiro, eu não sabia nem o que era isso. Outro dia fomos para o shopping, pedi um picolé, ele não me deu, eu disse a minha avó que não me sentia da família".

Relacionamentos dessa natureza causam transtornos emocionais e tornam o ambiente familiar um foco de angústias e de tensões patológicas as quais podem gerar comportamento de cunho desviante. Assim, importa notar que, segundo Adamson (2008), a eficácia das identificações vinculares inconscientes é de extrema relevância na constituição do esquema referencial subjetivo do indivíduo, pois o permite operar sob o viés de um conjunto de experiências, conhecimentos e afetos com os quais o sujeito pensa e age em relação com o mundo que o cerca. Desse modo, possibilita uma compreensão das vicissitudes subjetivas nos processos de mudanças.

Sabe-se que ressocializar-se implica mudança e essa não acontece sem novas aprendizagens. Por quê? Porque são justamente essas aprendizagens que produzem ressignificações em conceitos distorcidos, conceitos doentios do ECRO, os conceitos epistemofílicos. Quando falamos de aprendizagem, deve-se entender todas as aprendizagens, desde as realizadas pelo bebê, na sua relação com a mãe, passando pela aprendizagem de papéis no grupo familiar e pelas demais que o sujeito realiza no seu processo de adaptação ativa à realidade (SIMON,1983).

Segundo Winnicott (1999), na origem dos conceitos epistemofílicos estaria toda uma problemática emocional, afetiva, angustiante que seria necessário elucidar. Para Pichón-Rivière (1977), quando o aumento das ansiedades é muito elevado, ele determina a aparição de resistência à mudança. Isso ocorre porque essas ansiedades passam a funcionar como barreiras que terminam por se consolidar como obstáculos ou distúrbios de aprendizagem. Para esse mesmo autor, todo comportamento patológico é causado por esse mecanismo, ou seja, por um distúrbio de aprendizagem.

É necessário, então, ir à origem emocional-afetiva dos conceitos epistemofílicos para tentar desarmá-los, tal como se faz com uma bomba prestes a explodir. Como eles estão ligados aos conceitos positivos do ECRO, uma estratégia possível é começar por estes. Trabalhamos com vários. Um deles foi o de lealdade. A partir de lealdade, colhemos relatos que nos possibilitam vislumbrar epistemofilia em conceitos como fidelidade, amizade, sociedade, dinheiro, trabalho e amor.

Assim, quando lançada a pergunta: "Onde encontramos lealdade?", obtivemos respostas como: Am-" na amizade", Silv - "na família", Gb - "em nossa mãe (amor)", Nc -"em nossa esposa (fidelidade)" Eq - "e em Jesus Cristo".

Por conseguinte, ao caracterizar a lealdade, percebe-se, na fala dos apenados, que esta aparece, no campo social-afetivo daqueles sujeitos, caracterizada pelos valores interrelacional e místico, como expresso a seguir:

Gb - "A lealdade está na amizade, no amor, na esposa quando é fiel, na mãe".

Aparece, todavia, fortemente contraposta a dinheiro, trabalho, sociedade e até à própria família.

Ed - "Se tiver dinheiro, a lealdade fica em escanteio".

Jc - "Onde existe muito dinheiro, não existe lealdade. Se alguém oferece R$ 50.000 pela cabeça de um, pode ter certeza que não se tem lealdade".

At - "Alguém da nossa família, por dinheiro, também pode ser desleal".

Je - "A lealdade está extinta".

Am - "Dinheiro é tudo na vida, tanto constrói, como destrói".

Gb - "No trabalho não existe lealdade [...] Quando se tem dinheiro a amizade enfraquece e não existe lealdade".

Infere-se, das falas dos sujeitos, que o dinheiro pode funcionar como fonte de epistemofilia, ou seja, em determinadas circunstâncias socioculturais, pode transformar conceitos sadios (valores) em conceitos doentios (epistemofílicos). No caso presente, o conceito de lealdade aponta diretamente para o conceito de traição e esta, na cultura nordestina, pede nada mais nada menos do que vingança. Através desse mecanismo, o ECRO fica potencializado para produzir condutas orientadas para o autoritarismo, para o revide, para a violência e, no limite, para o homicídio.

Outro conceito sadio forte que aparece no ECRO do grupo é o de Honra. Entretanto, no imaginário dos apenados, a noção de honra que se sobressai está muito ligada a vivências sexuais e sua preservação parece ser reservada à mulher. Mulher honrada, que não faz vergonha à família, é aquela que só mantém relações sexuais no interior de um casamento. Cabe, entretanto, aos homens da família, zelarem pelo cumprimento dessa norma ou punirem os desvios providenciando o casamento até através da força, se necessário.

Gb - "Minha filha engravidou com 16 anos, casou. Se eu tivesse presente não teria acontecido".

Gb - "Eu matava e morria pela minha família. Esse tio que me chama de criminoso, eu salvei a vida dele, ia jogando o carro numa carreta, e da filha dele, porque perdeu a honra. Botei o revolve na cabeça do cara e disse: ou casa ou morre. Ele disse: caso na hora. Nunca fui ruim para minha família. Não me acho uma pessoa má, sempre quis ajudar".

Nesse contexto, tarados aparecem como uma figura vil.

Gb - "Eu como homem odeio tarado. Se não tem capacidade de arrumar uma mulher vai para aquele lugar que acha fácil". "Tarado não é um homem, é um bicho". Aquela palestra que tivemos sobre empregador. Se nós empregávamos um expresidiário? Por mim não colocaria um tarado".

Ed - "Eu colocaria sim. Um tarado não."

Sv - "Nem tarado nem cabueta".

Ed - "São duas classes embaraçadas."

Am - "Independe de artigo, teria coragem. É uma oportunidade, mas se falhasse não teria a segunda oportunidade."

Reg - "E se você tivesse uma filha e ele fizesse algo o que você faria?"

Am -Todo mundo merece uma chance, duas não. Não iria fazer nada, somente entregar à justiça."

Sev 2 - "Eu penso que todos merecem uma chance, não importa o que fizeram, mas quem pode conceder essa chance é a justiça. As pessoas podem mudar."

Sev - Então o senhor acha que se um tarado pegasse uma filha sua duas vezes ele mudaria?

Sev 2 - "Eu não poderia fazer nada, mesmo com uma filha minha entregaria a justiça."

Ant - "Eu mesmo mataria uma peste dessas."

Sev - "Eu falo assim porque uma irmã minha foi vítima de dois caras assim."

Gb - "Era pra castrar."

O álcool também aparece como forte elemento ativador dos conceitos epistemofílicos, como elemento desencadeador de atitudes de intolerância a possíveis ameaças, a supostas ou reais agressões contra os valores éticos e morais familiares, ao "ser homem".

Depoimentos mostram que, no momento em que cometeram os homicídios pelos quais estão na cadeia, a quase totalidade dos sujeitos de nossa pesquisa estava sob efeito de álcool.

Pesquisadora: Sv, se você passar um dia bebendo com amigos fica bem?

Resposta de Sv - "Fico, até ninguém vir tirar onda comigo. Tipo se alguém me confrontar e me chamar de presidiário ou coisa desse tipo... sou um cara manso, humilde, mas não aguento desaforo, meto a mão na cara".

Pesquisadora: Seu At e seu Sv, me digam uma coisa, no dia que vieram para o sistema vocês haviam bebido?

Resposta de Sv - "Bebi sim, não no momento, mas havia bebido".

Resposta de At - "Tinha bebido na hora".

Resposta de Gb - "Quando bebia, a cachaça me dominava, ficava bravo, podia matar [...] Com ela tinha coragem pra tudo, o que chamasse pra fazer eu ia[....] Meu pai embriagado me botou pra fora de casa quando tinha sete anos, fui jogado de casa pra fora pela janela [...] Fui preso fazia dez minutos que tinha dado três tiros no cara, tinha bebido uma cerveja [...] o álcool me destruiu, minha família toda bebe".

Há evidências de que os valores epistemofílicos são mais facilmente assimilados por sujeitos do nível intelectual apresentado pelos membros desse grupo através da linguagem oral e pela observação das atitudes e dos comportamentos manifestados pelas pessoas que para eles são mais significativas.

Essa constatação forneceu-nos uma pista para tentar resolver nossa terceira e mais difícil questão, qual seja: como escapar da contradição familiar? Como garantir um papel sempre positivo à família na configuração da conduta dos seus membros, ou em caso de desvio (o que nos ocupa neste artigo), como utilizar os valores positivos ou sadios no processo de reparação? Já advertimos que isso não se pode garantir. De qualquer modo, é no esquema conceptual de referência operacional comum do grupo que temos que intervir. Temos que ressignificar o universo simbólico que configura o ECRO para que os conceitos epistemofílicos percam força e deixem de conduzir ao revide, a ações maléficas, rígidas, violentas, antissociais. Ressignificando o ECRO, podemos modificar o comportamento humano. A dificuldade é que esse trabalho implica uma angústia existencial profunda já que a aprendizagem da nova idéia ou sentido (positiva) será negada, obstruída, pela ideia ou sentido antigo (negativa) presente na estrutura cognitiva e no ECRO dos sujeitos em questão.

Para a execução dessa estratégia, Piaget (1986 e 1996), com os conceitos de desequilibração e assimilação, e Ausubel (1980), com os conceitos de subsunçor e aprendizagem significativa, indicam caminhos a ser seguidos, isso porque é de suma importância desequilibrar os conceitos epistemofílicos. Esses tipos de conflitos, quando provocados controladamente por profissionais competentes, colocam os sujeitos em ângulos, em situações, em perspectivas diferentes, procurando mostrar que atitudes e ações orientadas por conceitos como os de vingança, cumplicidade, revide, dominação, machismo etc., em muitos casos, levam a resultados diametralmente opostos àqueles que desejávamos ao iniciar aquelas ações. A situação em que os mesmos e suas famílias se encontram nesse momento é prova explícita dessa tese.

 

Mudanças de Atitudes e Perspectivas de Futuro

"As palavras e as letras têm que ser faladas sob medida". Gb.

Vimos que, para Pichón-Rivière (1977), o processo de cura implica mudança. O problema é que, quando a pessoa se vê diante de situação de mudança, surgem os medos básicos. Um deles é o medo de perder o que já possui como marcos referenciais prévios de sua identidade e daí perder os benefícios secundários do seu desequilíbrio. Esse medo leva à adaptação passiva à situação de enfermidade (para nossos sujeitos isso acontece por ocasião da prisão). Um outro é o medo do ataque. Este se manifesta frente ao desconhecido, que se configura perigoso, diante do qual os sujeitos se sentem insuficientemente instrumentados para vivenciá-lo em segurança (para nossos sujeitos é o medo de aquisição da liberdade).

Na prática, então, a mudança pode se configurar como positiva (o indivíduo manifesta o desejo de ser diferente e adota uma atitude mutante), ou negativa, chamada de resistência à mudança. Nesta, o indivíduo desenvolve estratégia de apego a sua identidade e reforça suas atitudes e práticas antissociais como o modo de não perder seu lugar no universo específico em que se sente seguro. Esses medos e essas soluções aparecem explicitamente nas falas de membros do Grupo.

Eq - Como nós não saímos daqui ainda, ficamos pensando que não vamos ter chance. E isso às vezes ajuda a voltar para o crime. Mas temos que levantar a cabeça, pedir a Deus para nos ajudar a construir uma família.

Gb - Eu tinha coragem de ajudar um amigo até na faca, mais minha própria vida, não.

Pergunta da pesquisadora: A gente pode entender que você não tinha coragem de enfrentar a vida?

Resposta de Gb - Não tinha. Tinha coragem de fazer outra coisa, mas não de enfrentar a vida.

Frente a essas declarações vencer o medo de mudar e ajudar na mudança passaram a ser as tarefas principais do grupo operativo. Essas são possibilidades que o grupo operativo propicia. Isso ocorre porque, no grupo, os sujeitos debatem suas ideias orientados por um profissional, nesse caso, por um psicólogo e, através de uma relação dialética uns com os outros, vão flexibilizando conceitos e ressignificando determinados valores, vão compreendendo como maneiras inflexíveis de pensar e agir podem trazer prejuízos, podem ser orientadas para a realização de uma conduta antissocial. Numa palavra, no grupo os indivíduos podem ser conduzidos a um processo de ressignificação dos conceitos epistemofílicos do ECRO (PICHON-RIVIÈRE, 2005). A essa estratégia chamamos de conflito cognitivo e/ou emocional.

As reflexões geradas nas reuniões permitiram aos sujeitos um novo olhar sobre às temáticas objeto de suas preocupações e conceber "opiniões diferentes sobre situações iguais". Isso implica no desequilíbrio de ideias antigas e pode conduzir a ações socialmente positivas porque abre um leque de opções na hora de agir.

Ao final de algumas sessões utilizando essa estratégia, os resultados começaram a aparecer. A sexta reunião do grupo operativo começou com a pesquisadora afirmando: em reuniões anteriores falamos sobre amor, trabalho, preconceito, lealdade. Em seguida perguntou aos apenados: o que mais marcou vocês? O que mais chamou atenção? Fazer parte desse grupo ajudou vocês em alguma coisa?

Gb - [...] a ter confiança em si mesmo, para repassar essa confiança para a família.

Am - Estar no grupo ajudou a ouvir outras possibilidades de ação, de pensamento.

Gb - A partir do momento que eu vim para o grupo, alguma coisa me tocou. Escutei uma palavra do colega do grupo que disse. "o cara tem de ter medo de morrer, mas não de enfrentar a vida." Eu soube escutar essas palavras [...] Há 2 meses atrás, uma mulher que não conheço, nunca vi, bateu na minha filha. Se fosse antes cortaria as duas pernas dela, para ela não andar mais. Mas pensando em mim, liguei para minha mulher, pedi para ela denunciar ao conselho tutelar e as providências foram tomadas e eu não sujei a minha mão.

Am - Foi muito importante ter falado em família, foi o ponto mais marcante. Isso me ajudou muito... Tenho fé em Deus em ir pra minha terra. O grupo aconselhou para o bem. Muito melhor ainda, mostrou novas possibilidades.

Gb - A primeira reflexão de vida, saber quem é a pessoa em si, pensar o que fez ou no que vai fazer. Isso marcou, porque não presto, mas estou fazendo por onde prestar. Me fez criar confiança e não ficar com medo de ir pra fora do presídio. Quando falamos em preconceito, eu tinha preconceito comigo mesmo. Hoje faço mais planos [...] eu vejo a minha mudança, minha autoconfiança. Eu estou confiando em mim lá fora. Eu já mudei, tenho plano pro futuro. Vou fazer um curso de mecânico, mas minha filha não acredita quando falo em fazer curso de mecânico e quando falo que vou comprar um terreno.

Eq - Hoje tenho mais forças para enfrentar a vida saindo daqui. Atribuo ao grupo.

Gb - Não foi bom fazer uma retrospectiva de mim mesmo. Mas me ajudou muito. Hoje em dia paramos para pensar [...] Penso na minha família, estou tentando melhorar. Cada dia tem sido uma vitória.

Sv - Com certeza, ajudou a unir, dar mais respeito. É conversando que se aprende.

Nessa perspectiva, o grupo operativo tem caráter peculiar. Possibilita comunicação aberta entre os participantes. Representa um forte aliado para o desenvolvimento da auto-estima e assim faz adquirir mais confiança para transitar em sociedade.

Gb - Não tinha coragem de enfrentar a vida! [...] Estou confiando mais em mim, tinha preconceito comigo mesmo. Saber quem é a pessoa em si [...] pensar o que fez dá confiança, não tenho medo de ir para fora do presídio.

Como já deve ter ficado claro ao longo deste artigo, o processo de identificação do ECRO está centrado no ato de escutar, de dar atenção, de estar-com-um grupo de pessoas. Escutar alguém implica certo sentido, uma abdicação de si. É importante perceber que sentido tem o comunicado para quem o transmite. Acolher a palavra do outro, desde a mais corpórea até a ainda não pronunciada (POKLADEK, 2004, p. 85).

A oportunidade de falar e ser escutado mostrou-se uma possibilidade de fazer desabrochar nos apenados uma riqueza humana insuspeitada, uma possibilidade de desvelamento do poder-ser de suas pessoas, ajudando-os a perceberem novos horizontes e sentidos em suas vidas.

Sob este prisma, é relevante notar que, desprovidos de condições dignas de educação, não assistidos em seus direitos elementares de segurança emocional, de integridade física, ou até não reconhecidos em sua singularidade desde o ambiente primário, os participantes deste estudo expressaram, através de suas falas, seus sentimentos, suas experiências de vida e revelaram, no decorrer do trabalho, muitas emoções recalcadas que até os adoeciam.

Gb - Quem é que não quer desabafar [...] No fechado tomava até remédio controlado.

Sev - Psicologia no regime fechado?... Me alegrava quando a psicóloga e a assistente social me chamavam pra conversar. Um trabalho desse deixaria o povo muito feliz.

Tendo em vista que a base para uma vivência harmoniosa em sociedade está centrada no conhecimento das potencialidades dos sujeitos envolvidos e no respeito que esses demonstram pelas normas instituídas, entendemos que o conhecimento renovado de si, conotado nas palavras ditas acima pelos apenados, representa um fator positivo, ou ao menos um primeiro passo, para a sua ressocialização, para uma conduta socialmente aceitável no momento de solucionar pendências com os seus concidadãos.

 

Referências

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Recebido em: 23/03/2010
Aceito em: 19/07/2011

 

 

Sobre os autores:

Mário Medeiros é doutor em Ciências da Educação pela Universidade do Minho, Braga, Portugal. Dep. de Ciências Humanas Educação da UPE - Campus Garanhuns. E-mail: tramataiab@uol.com.br

Fabio Alves dos Santos, é aluno do sexto período de Psicologia da UPE. E-mail: fabiocadster@gmail.com

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