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Barbaroi

Print version ISSN 0104-6578

Barbaroi  no.34 Santa Cruz do Sul June 2011

 

ARTIGOS

 

Entre urtigas e diagnósticos de transtornos mentais: ensaio sobre esquivas e enfrentamentos

 

Enter nettles and diagnoses of mental upset: essay on dodging and fighting

 

 

Tarcia Rita Davoglio

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS - BRASIL

 

 


RESUMO

O presente artigo, na forma de um ensaio temático, suscita a problematização do estabelecimento de diagnósticos em saúde mental. A partir das práticas vigentes, trata-se de refletir acerca da relevância e implicações de construir hipóteses diagnósticas de transtornos mentais, especialmente quando dirigidas à infância e adolescência. Longe de serem uma intervenção consolidada, esses diagnósticos, por suas peculiaridades, permanecem ainda pouco explorados e praticados, sob diversas alegações. A questão que atravessa o texto é o quanto o ato de diagnosticar transtornos mentais incipientes e precoces, de modo adequado e oportuno, constitui-se tema para o debate científico, mais do que para esquivas e ataques.

Palavra-chave: Transtornos mentais. Infância. Adolescência. Diagnósticos.


ABSTRACT

The following paper as a thematic essay raises the problematization of making mental health diagnosis. From the current praxes, it reflects on the relevance and implications of making diagnostic hypotheses of mental disorders mainly when concerning childhood and adolescence. Far from being a concise intervention, these diagnoses, because of their peculiarities, are still poorly exploited or made under various claims. The main issue which permeates the paper is how much making proper and adequate diagnosis of early and incipient mental disorders is a topic for scientific debate more than it is for attacks and dodges.

Keywords: Mental Disorders. Childhood and adolescence. Diagnosis.


 

 

Introdução

Seria muito mais fácil se pudéssemos evitar o paciente ao explorarmos o reino da psicopatologia; seria muito mais simples se pudéssemos nos limitar ao exame da química e da fisiologia de seu cérebro e a tratar os eventos mentais como objetos alheios a nossa experiência imediata, ou como meras variáveis de uma fórmula estatística impessoal (NEMIAH, 1961, p. 4).

Na ciência, há algumas temáticas consideradas tão consolidadas que parecem prescindir de debates e questionamentos. A premissa "primeiro se diagnostica depois se trata" enquadrar-se entre elas. O diagnóstico, adjetivo substantivado, sobrepujou até o substantivo originário, diagnose, ganhando primazia e notoriedade, especialmente quando associado à Medicina. De origem grega, a palavra em latim diagnosticu remete à idéia do conhecimento obtido através, durante ou por meio de (ARAÚJO, 2007).

O diagnóstico não é, portanto, uma certeza absoluta, pré-fabricada, mas uma hipótese construída a partir da realidade objetiva e/ou subjetiva que nos é apresentada, na medida em que esta é analisada à luz de um aporte teórico. Em sentido amplo, traduzido para o cotidiano, o ato de diagnosticar é praticado na forma de um juízo ou inferência sobre alguma característica, situação, comportamento, enfim, a respeito de algo que queremos compreender, com base em dados e informações obtidos por meio de um exame minucioso.

Diagnostica-se não apenas enfermidades, mas qualquer situação, fato ou fenômeno que se apresente como fonte geradora de dificuldade, desconforto, interesse ou pura e simples curiosidade. O diagnóstico não se limita, então, ao campo da saúde, tendo relevância em muitas áreas do conhecimento, como a Economia, a Administração, as Ciências Exatas, entre tantas.

No entanto, é na saúde que a demanda diagnóstica ganhou, desde a Antiguidade, maior força e inserção como metodologia essencial. Em primeiro lugar, porque não é possível o reconhecimento de um sintoma ou o estudo de qualquer patologia sem sua prévia caracterização e definição, ainda que suas bases etiológicas possam se manter pouco elucidadas. Já no próprio ato de descrever o fenômeno inaugura-se o processo diagnóstico. Em seguida, porque sem a nomeação normatizada do ponto específico que indique o alvo em questão é inviável a interlocução exploratória ou confirmatória com bases científicas e/ou epidemiológicas; ou a comparação sistemática, fidedigna e produtiva de sintomatologias, intervenções e evolução clínica.

Contrapondo-se a essa lógica, paradoxalmente, é na própria área da saúde que as questões diagnósticas com facilidade se convertem em fértil terreno para discussões e impasses, os quais se potencializam quando estas são relativas à saúde mental. As peculiaridades implicadas no processo de diagnóstico de transtornos mentais são por si mesmas geradoras de complicações, uma vez que tais diagnósticos, conforme apontam Paranhos e Werlang (2009), não seguem a mesma lógica e objetividade de outras modalidades de doenças.

Diferente da Medicina em geral, há na psicopatologia um continuum de manifestações biológicas, comportamentais, afetivas e sociais que necessitam ser cuidadosamente avaliadas, podendo levar a distintas interpretações por diferentes profissionais ou de acordo com o momento e as circunstâncias. É necessário que se leve em consideração tanto alterações quantitativas quanto qualitativas, de modo que não apenas a ausência ou a presença de sintomas é relevante, mas a freqüência e a intensidade são muitas vezes determinantes para a atribuição do que é normalidade e patologia. Ao lado disso, a nomenclatura psicopatológica, cada vez mais acessível ao público leigo, incita a sua inclusão no discurso cotidiano, contribuindo para tornar válido o dito popular "de médico e de louco todos temos um pouco", onde vale tanto catalogar os próprios sinais e sintomas quanto os alheios.

É, em parte, pelo risco de que muitos quadros psicopatológicos se banalizem, a ponto de serem confundidos com adjetivos, que muitos profissionais justificam sua relutância em estabelecer definições diagnósticas em saúde mental. Essa discussão é ainda mais preponderante quando se associa à presença de sinais e sintomas de quadros clínicos envolvendo crianças e adolescentes. Eis, assim, o cerne deste ensaio: o diagnóstico é imperativo em saúde. Esta afirmação, a princípio líquida e certa, apresenta alto poder de desconforto, mesmo no meio científico, semelhante àquele atribuído às urtigas na medida em que se acrescentam algumas palavras: o diagnóstico, em suas diversas estratificações, é imperativo em saúde mental, inclusive durante a infância e a adolescência.

 

Sobre urtigas e diagnósticos

Qualquer criança que tenha mantido contato com a natureza, cedo ou tarde, aprende que há plantas das quais se deve manter distância, sob pena de ter a pele ardida e queimada ao simples roçar nas suas folhas. As urtigas (do latim urere, que significa arder) são uma espécie de erva daninha com imensa capacidade de liberar substâncias que, ao contato com a pele, causam vermelhidão, dilatação dos vasos sanguíneos e inflamações de intensidades variadas, provocando muita ardência (VALE, 2007).

De modo similar às urtigas, a atribuição de diagnósticos em saúde mental é encarada por muitos como um tema polêmico, por isso mesmo, potencialmente gerador de "queimação" (tanto no sentido literal de causar desconforto, quanto no figurativo, de gerar mal-entendidos). Sob diversas alegações, boa parte dos profissionais da área psi faculta o uso de diagnósticos como se isso fosse apenas uma questão de foro íntimo, baseada em uma escolha pessoal. Longe disso, o diagnóstico é, em primeiro lugar, um direito legal do paciente.

É prudente aqui fazer algumas considerações. Os códigos de ética dos profissionais de saúde são bastante explícitos ao referirem a necessidade de informar o paciente acerca de seu diagnóstico, prognóstico e possibilidades terapêuticas. Do ponto de vista bioético, há bons argumentos enfatizando que a informação é essencial para que o paciente possa consentir ou recusar qualquer intervenção, quer seja diagnóstica ou terapêutica (BÉRGAMO, 2005; FORTES, 2007). Porém, há também toda uma narrativa dos profissionais explicitando o risco (ou apenas o temor) iatrogênico do efeito dessas informações quando disponibilizadas ao paciente, sob pena de se converterem em conflitos e defesas intelectualizadas ou manipulativas por parte do sujeito. Com isso, muitos profissionais tangenciam essas questões, tanto se omitindo de debater com o paciente quanto de explicitar os diagnósticos.

Certamente não podemos desconsiderar a necessidade de prevalecer o bom senso e a humanização, além da técnica, levando o profissional a focar no espírito dessas questões mais do que nas palavras. O que é literalmente prescrito, sob a forma de norma ou regra, deve ser compreendido levando em conta o contexto de modo amplo, especialmente na área da saúde, fazendo distinção entre a informação e o saber cognitivo, o qual é objetivo e insensível, e o saber simbólico, este último profundamente associado aos recursos afetivos do paciente. Dessa maneira, compete a cada profissional fazer bom uso das informações diagnósticas em benefício de seu paciente, mesmo que este possa nunca chegar a recebê-las textualmente. Ainda que se discuta, do ponto de vista ético, a validade ou momento de expor em detalhes o diagnóstico ao paciente ou familiar, a meu ver, isto não isenta o profissional da obrigação ética de se apropriar do mesmo, sabendo explaná-lo de modo pertinente.

Outra crítica sempre presente para refutar o diagnóstico é o excesso de classificações e codificações que, para muitos, visa a atender a requisitos de planos de saúde e questões de ordem administrativa e econômica. Seria, por certo, mais produtivo confrontar estas demandas, impor-lhe também limites éticos e técnicos, ao invés de abrir mão do ato de diagnosticar. O que ocorre nesse contexto é que o ponto nodal não é o diagnóstico, mas as políticas de saúde que atendem a outros tantos objetivos para só depois se ocupar da saúde propriamente, levando essa discussão para além dos propósitos deste ensaio.

Em segundo lugar, o diagnóstico é um importante recurso técnico norteador da conduta terapêutica do profissional, do qual não se pode prescindir; assim como as urtigas, o diagnóstico não é algo inócuo e inofensivo. Em algumas regiões, há a crença de que se essas, as urtigas, forem colhidas prendendo a respiração, os dardos não penetrarão na pele. Ainda assim é altamente recomendado o uso de luvas na sua colheita. Da mesma forma, as intervenções diagnósticas demandam por perícia metodológica e conhecimento clínico e psicopatológico de qualidade. Diagnósticos reducionistas ou equivocados podem resultar em intervenções terapêuticas sem eficácia e onerosas, tanto sob o aspecto financeiro quanto psíquico.

Em terceiro lugar, o diagnóstico é importantíssimo para o paciente, pois repercute diretamente não apenas sobre sua saúde, mas também sobre a sua vida atual e futura, pondo em cena as questões prognósticas. Voltando às urtigas, sabe-se que elas são espécies típicas de regiões tropicais e climas temperados, mas proliferam em inúmeras partes do planeta. O que serve para lembrar que, quando o sofrimento do sujeito não é suficientemente compreendido e nomeado pelo profissional psi, é bastante provável que ele busque, por seus próprios meios, outras formas de aquietar sua dor. A ausência de definições diagnósticas continentes e norteadoras é, por vezes, um fator decisivo para o abandono e a falta de adesão aos tratamentos. A confiança transmitida pelo profissional acerca do prognóstico e adequação do processo terapêutico proposto, a qual é sentida pelo paciente muitas vezes de modo inconsciente, fundamenta-se, em boa parte, na convicção diagnóstica do profissional.

Urtiga é a denominação genérica de mais de 30 espécies de plantas que têm em comum a capacidade de provocar muita ardência. De modo análogo, a palavra diagnóstico é utilizada para expressar uma gama de procedimentos, que pode ser simples ou bastante complexa. O pressuposto do diagnóstico no singular, amparado em uma classificação nosográfica estanque, característica da Psiquiatria Clássica, contrapõe-se aos desenvolvimentos da Psiquiatria Dinâmica (KOLB,1980; GABBARD, 2006), bem como da Psicologia Social, da Psicopatologia Psicanalítica, da Psicologia Evolucionista, entre outras áreas. Essas defendem a concepção de diagnósticos no plural, no sentido de que os processos psíquicos avançam em diversas direções ao mesmo tempo, incentivando a construção de diagnósticos multidimensionais, de maior amplitude biopsicossocial e aplicabilidade clínica.

É, então, possível (e recomendável) o estabelecimento de diferentes níveis de diagnósticos em um mesmo momento. Fiorini (1986), por exemplo, elencou pelo menos nove tipos distintos: (1) clínico, (2) evolutivo (3) adaptativo e prospectivo, (4) grupal, (5) psicossocial, (6) comunicacional, (7) de potenciais de saúde, (8) de problemática do corpo, (9) do vinculo terapêutico.

Embora todas essas possibilidades, cada qual com sua importância, os diagnósticos clínico, estrutural e evolutivo são de extremo valor. O diagnóstico clínico, embasado nas categorias tradicionais de psicopatologia, é fundamental para a definição de abordagens farmacológicas e clínicas, enfoques psicoterapêuticos multidisciplinares e critérios prognósticos de curto e longo prazos. É certo que há uma longa lista de críticas quanto aos atuais manuais utilizados para esse diagnóstico, especialmente no que se refere à categorização excessivamente estandardizada e as questões políticas que se associam. Porém, a ausência de critérios que contemplem as demandas evidenciadas na realidade clínica não inviabiliza a relevância dos diagnósticos. Novamente retoma-se o pressuposto de que as limitações necessitam de confrontação com dados empíricos e teóricos, que fomentem o debate científico, visando gerar avanços nas novas versões desses manuais.

Os diagnósticos estrutural e evolutivo, por sua vez discriminados em suas raízes psicanalíticas, são um importante indicador do alcance e da realização das etapas do desenvolvimento psicoemocional atingidas pelo sujeito, relacionadas àquilo que se cristaliza a partir das experiências e do desenvolvimento infantil. Traduzem, como afirmou Paz (1976), a história transformada em estrutura psíquica. Focam-se na construção desenvolvimental, considerando a passagem satisfatória ou não entre as etapas evolutivas do ciclo vital. Nesta perspectiva, sintomas, especialmente na idade adulta, apontam para a incompletude das etapas prévias, associada ao que se denominou de intencionalidade inconsciente, indicando os pontos de fixação e estagnação. Paralelamente, pode-se detectar a capacidade de resposta à realidade e de insight, determinando a presença de uma estruturação neurótica, psicótica ou borderline.

Vale a pena salientar que a identificação da estrutura psíquica subjacente aos sintomas e conflitos é um dos aspectos mais relevantes nos diagnósticos psicopatológicos. Afigura-se que a negligência do diagnóstico estrutural pode ser apontada como uma importante fonte de entraves terapêuticos, erros nas prescrições farmacológicas (tanto pelo excesso quanto pela ausência de medicação) e reações de descompensação aguda, muitas vezes fatais, bem conhecidas para quem convive com a rotina das internações psiquiátricas.

Feitas todas essas considerações, aventura-se, assim, pelo terreno mais impregnado de urtigas no campo dos diagnósticos: a infância e a adolescência. As críticas mais veementes ao estabelecimento de diagnósticos nestas idades se concentram no argumento de que em uma criança, ou até adolescente, a organização da personalidade, as questões desenvolvimentais e a noção de psicopatologia estão muito imbricadas, a ponto de, com frequência, se sobreporem. Com isso, os que se opõem ao diagnóstico alegam haver o perigo potencial de rotular e estigmatizar a criança com base em sintomas temporários ou reativos, justificando o uso de eufemismos ou de franco evitamento das questões diagnósticas. Essas posturas repercutem, quase sempre, na impossibilidade de ofertar intervenções preventivas, especialmente quando associadas a transtornos mentais só efetivamente cristalizados na idade adulta, como os transtornos de personalidade.

Ainda que exista relevância nessas preocupações, argumentos que se contrapõem ao diagnóstico formal na infância e adolescência têm contribuído para que boa parte do suposto percentual de cerca de 12 a 15% da população de crianças e adolescentes brasileiros que sofrem de transtornos mentais (ASSIS et al., 2009), nunca venham a receber tratamento, permanecendo desassistidos e em sofrimento, no mínimo, até chegarem à vida adulta. Depois de adultos, cronicidade, comorbidades e sequelas de toda ordem geram impasses terapêuticos às vezes intransponíveis, implicando prejuízos importantes para o funcionamento do indivíduo e sobrecarregando o sistema de saúde com recorrentes internações e complicações.

A Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP, 2008) afirma que uma em cada oito crianças ou adolescentes, com idade entre seis e dezessete anos, apresentam sintomas de transtornos mentais que exigem tratamento ou auxílio especializado, necessitando ser reconhecidos precocemente, em um enfoque que visa, sobretudo, à evolução clínica mais favorável. Não pretendo, de forma alguma, negar que os diagnósticos nessas fases são de fato complexos, pois, há questões desenvolvimentais ainda muito ativas, gerando dificuldades para a diferenciação de características normais e sintomas de transtornos mentais. Muitas doenças mentais têm manifestações incipientes ainda nos primeiros anos da infância; porém, com características muito distintas dos sinais e sintomas de fases posteriores. Consequentemente, para diagnosticá-las é fundamental o conhecimento profundo do desenvolvimento normal nessas faixas etárias, ao lado de sólida capacidade de articulação da teoria psicopatológica.

Além disso, na infância e adolescência, o meio ambiente onde a criança se insere é muito relevante para a psicopatologia, estando quase sempre associado à própria etiologia ou manutenção dos transtornos, demandando por capacidade técnica, nem sempre presente, para lidar com um cenário diagnóstico mais ativo, informal e lúdico, o que tem sido motivo de preocupação quanto à formação dos profissionais que atuam nessa área (ROHDE et al., 2000). Desse modo, o conhecimento exigido do profissional para realizar diagnósticos nessas faixas etárias pressupõe, além do domínio de técnicas específicas, também o da psicopatologia dirigida à família e ao contexto social imediato, dificultando ainda mais a tarefa de diagnosticar adequadamente nessas etapas do ciclo vital.

Por outro lado, a freqüente e intensa presença de comorbidades na infância e adolescência gera a demanda por diagnósticos diferenciais acurados, que são bastante distintos dos de outras faixas etárias, contribuindo mais uma vez para que a avaliação diagnóstica com essas populações se caracterize como uma temática complexa, negligenciada e com graves repercussões na saúde e nas políticas públicas. A falta de preparo e conhecimento para realizar esses diagnósticos psicopatológicos em populações jovens não pode passar despercebida, pois, expõe de forma constrangedora o descaso com que são realizados e fiscalizados. Só para exemplificar, um trabalho de revisão (ASSUMPÇÃO; CARVALHO, 1999) levantou informações acerca da morbidade psiquiátrica em jovens, entre 1992 e 1997 com base na Classificação Internacional de Doenças (CID 9), em hospitais psiquiátricos do Sistema Único de Saúde (SUS), apontando mais de dois mil diagnósticos de psicose esquizofrênica e quadros psicóticos senis e pré-senis em crianças com menos de um ano de idade, evidenciando incongruências inconcebíveis em termos de psicopatologia.

Para contrapor esses aspectos, é fato que as intervenções psicodiagnósticas têm a tradição de serem mais frequentes em crianças. No entanto, mais de 20 anos de prática clínica permitem observar que os psicodiagnósticos na infância e adolescência quase sempre atenderam mais à demanda de informações necessárias para a entrevista devolutiva aos pais do que ao verdadeiro compromisso com as questões diagnósticas e com o rompimento do descaso e dos estigmas que as cercam.

A Psicologia Clínica talvez tenha, involuntariamente, também contribuído para estigmatizar ainda mais os diagnósticos, propagando a idéia de que os processos psicodiagnósticos e psicoterápicos exploram settings diferentes e, portanto, não devem se misturar no tempo e espaço (OCAMPO; ARZENO; PICCOLO; 1987; CUNHA, 2000). Com isso, tornou-se possível a dedução simplista de que "se vamos tratar logo não vamos diagnosticar", em uma lógica dicotômica que mais confunde do que esclarece. Há, porém, um erro de interpretação essencial nesta questão: ainda que um psicodiagnóstico formal possa ser solicitado a um perito a qualquer momento, esse pedido não dispensa a avaliação minuciosa, intransferível e muito íntima entre o profissional psi e o sujeito, na forma de um diagnóstico preliminar. O próprio Freud (1904/1980) apontou a relevância do estabelecimento de um diagnóstico provisório antes do início efetivo do tratamento, enfatizando o cuidado indispensável com as características do sujeito e com a identificação de potencialidades e limitações não apenas do paciente, mas do próprio profissional ou da técnica. Por outro lado, há quem defenda a ideia de que são possíveis e factíveis intervenções psicoterápicas breves e pontuais ainda durante o próprio processo diagnóstico, nos chamados psicodiagnósticos interventivos, integrando mais uma vez tratamento e diagnóstico (POSTON; HANSON, 2010).

Voltando às urtigas, há muito mais, a saber, além de ardências e desconfortos. Apesar do perigo potencial e do desejo de evitamento que a plantinha desperta, a urtiga se revela, desde a Grécia Antiga, uma rica fonte de substratos para os mais variados usos. Na Medicina pode ser utilizada como analgésico, antiinflamatório e diurético, sendo rica em vitaminas e proteínas, explorada até mesmo em novos tratamentos experimentais para alguns tipos de câncer. Na Estética, é princípio ativo de muitas loções e xampus, especialmente os anticaspas. No Meio Ambiente, é usada como inseticida natural: um simples molho de folhas penduradas pode afastar moscas e, em infusão, é um ótimo inseticida para o jardim. Caso se pretenda fazer alguma infusão para ser bebida em forma de chá, depois de colhidas as folhas, deve-se esperar 24 horas, lavar fartamente e então sim, estarão prontas para o uso, o que leva a inferir que o uso medicinal das urtigas e os diagnósticos de doenças mentais exigem ambos um período de decantação, uma espécie de filtro natural das propriedades tóxicas e impurezas, para ter seu efeito terapêutico pleno. Reafirmo, o diagnóstico é sempre uma hipótese a ser trabalhada, que ao ter respeitadas suas peculiaridades minimizam-se ou evitam-se reações adversas.

Ora, se para diagnosticar necessita-se inquirir, conhecer e investigar é desnecessário enfatizar o papel da escuta neste processo. Diagnosticar implica, sobretudo, escutar o paciente! Embora todo o aparato tecnológico atual, os recursos e instrumentos técnicos que trazem informações sobre sintomatologias e características psicopatológicas, ainda não há nada que seja mais soberano em saúde mental do que as impressões clínicas. Já em 1961, Nemiah apontava como algumas vezes torna-se preponderante a escuta da linguagem psicológica, outras a fisiológica ou a bioquímica e outras, ainda, aquela que remete às complexas interrelações entre estes modos de discurso, todas indispensáveis para a definição daquele sujeito e do curso de sua doença e sintomatologia.

Esse contato direto, sensível, receptivo e trabalhoso entre o profissional psi e seu paciente não deveria provocar reações de retração típicas de quem toca em urtigas, pois, é dele que emergem os diagnósticos mais fidedignos, que por si só podem ter um grande efeito profilático. As próprias urtigas vêm tendo seu uso explorado como proteção e fertilização para outras colheitas através do enriquecimento e melhoria do solo, num processo chamado de sideração (MÃOSAHORTA, 2009). Nesse processo, as ardidas urtigas captam das camadas inferiores do solo e da atmosfera os elementos que serão úteis às culturas subseqüentes, protegendo o solo ao trabalhar em profundidade através do desenvolvimento da raiz, gerando a produção de húmus. Essa é, sumariamente, também a função dos processos diagnósticos: preparar o terreno para os passos seguintes.

É certo que os diagnósticos de transtornos mentais, mesmo em fases evolutivas precoces, não são rechaçados por profissionais preparados para realizá-los e pesquisá-los, levando em conta os objetivos da demanda, o cenário onde se fundamentam e o contexto em que foram produzidos. Quando tais pressupostos são respeitados é possível desvincular esses diagnósticos das extrapolações e do uso indevido que, muitas vezes, tendem a transformá-los em afirmações categóricas e irredutíveis (quase fetiches) sobre as quais se desenvolvem rótulos e segregações que contribuem para torná-los tão evitados quanto às urtigas.

As urtigas ardem em nossa pele porque liberam uma espécie de ácido por um mecanismo autodefensivo, deflagrado pelo contato em suas folhas (VALE, 2007). Assim, queimam para se proteger de quem quer destruí-las; é o que dizem e, ao que tudo indica, é uma argumentação válida. Ao passo que os diagnósticos em saúde mental são assunto pouco instigante no cenário nacional, por razões não suficientemente debatidas e elucidadas, em franca oposição ao observado na literatura internacional, a qual se mostra sistematicamente voltada à discussão das edições dos manuais de diagnósticos e aos avanços empíricos e teóricos em construtos psicopatológicos (ver, por exemplo, edições da Psychological Assessment). Tais diagnósticos ainda pouco explorados e praticados no Brasil, especialmente quando associados às populações jovens, consistem em tema relevante para reflexão e debate científico mais do que para esquivas e ataques. Como as ardidas urtigas, é pelo enfrentamento das dificuldades e limitações e pela observação e pesquisa sobre os fatos que adquirimos novos conhecimentos, capazes de transformar supostas ervas daninhas em substratos valiosos.

 

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Recebido em: 28/07/2010
Aceito em: 19/07/2011

 

 

Sobre o autor:

Tarcia Rita Davoglio é Psicóloga, Doutoranda em Psicologia no Programa de Pós-Graduação em Psicologia (PPPG), PUCRS. E-mail: tarciad@gmail.com

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