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Barbaroi

versão impressa ISSN 0104-6578

Barbaroi  no.35 Santa Cruz do Sul dez. 2011

 

ARTIGOS

 

Algumas anotações sobre o juízo em Hume

 

Some notes on judgement in Hume

 

 

Evandro C. Godoy

Universidade Federal do Rio Grande do Sul - Brasil

 

 


RESUMO

O filósofo escocês David Hume produziu uma teoria acerca dos processos cognitivos humanos que tem vasta influência na contemporaneidade, sobretudo na Filosofia da Mente e na Epistemologia. Desta influência relevante decorre a necessidade de interpretações sérias e cautelosas, ainda que isto demande muito cuidado com a terminologia peculiar de sua obra, que pode levar a comparações mal embasadas com outros autores. Na intenção de colaborar para o esclarecimento e qualificação do debate acerca das contribuições de Hume, o presente texto pretende apresentar uma visão resumida, mas geral da sua filosofia teórica, de modo a deixar claro que i) as relações de ideias descritas na filosofia do autor não constituem, por si só, uma teoria do juízo; ii) sua concepção de juízo deve ser buscada na sua explicação da crença e iii) apesar da marcante influência de seus antecessores (principalmente de Locke e Descartes), sua filosofia apresenta uma teoria do juízo original e repleta de particularidades.

Palavras-chave: Hume. Juízo. Crença. Relações de Ideias. Questões de Fato.


ABSTRACT

The Scottish philosopher David Hume produced a theory about human cognitive processes that has widespread influence in contemporary, especially in the Philosophy of Mind and Epistemology. This important influence demands serious and cautious interpretations, and it burdens indeed care with the peculiar terminology of his work in order to avoid ill-grounded comparisons with other authors. Intending to contribute to clarification and qualification of the debate about the contributions of Hume, this text presents a general idea, though resumed, of his theoretical philosophy in order to make clear that: i) the relations of ideas described in the philosophy of the author are not, by itself, a theory of judgment; ii) his conception of judgment must be searched in his explanation of belief and iii) despite the remarkable influence of his predecessors (Descartes and Locke especially), his philosophy has a full detailed and original theory of judgment.

Keywords: Hume. Judgment. Belief. Relations of Ideas. Matter of Facts.


 

 

Introdução

A obra de Hume nasceu sob a influência antiaristotélica que permeou boa parte da Filosofia Moderna (KNEALE; KNEALE, 1991). Rejeitando a tradicional distinção entre conceito, juízo e inferência, sua proposta filosófica impõe algumas dificuldades interpretativas, sobretudo com respeito ao que poderia corresponder a sua teoria do juízo, nosso objeto de interesse aqui. A relevância e necessidade de atenção cuidadosa ao contexto da obra impõem-se e fundamenta-se a partir das afirmações de Allison, que pretende exemplificar a unidade puramente subjetiva ou imaginativa na teoria do juízo kantiana, em comparação com alguns dos princípios naturais de associação de ideias do filósofo escocês. Segundo Allison, nestes princípios:

as representações associadas ('percepções' para Hume) podem ser descritas como 'coordenadas' no sentido de que um dos itens associados leva automaticamente à ideia do outro, sem qualquer atividade discursiva. Eis porque os produtos de tais associações não têm valor de verdadei (2004, p. 88).

Entretanto, uma aproximação mais cuidadosa da filosofia de Hume pode mostrar o quanto sua perspectiva é diferente da abordagem de Kant, e assim, que o contraste entre as duas concepções de juízo nestes termos pode levar a incompreensões grosseiras, obscurecendo o assunto antes de torná-lo mais claro. O objetivo deste texto será esboçar uma aproximação da doutrina do juízo que esteja de acordo com a proposta humeana; para tanto pretendemos, primeiramente, reconstruir minimamente o cenário filosófico de Hume, expondo os elementos fundamentais de seu sistema, num breve resumo da sua teoria das associações das percepções da mente e da crença, em contraste com a proposta de Locke. Num segundo momento passamos a argumentar em favor da relação da proposta humeana com a filosofia de Descartes, mostrando sob qual ótica a teoria do juízo de Hume pode ser mais bem avaliada. Ao final deste segundo momento, sugerimos um modo como ela poderia ser confrontada com a teoria kantiana.

 

Breve reconstrução da filosofia teórica de Hume

De acordo com a proposta de Hume, a mente humana trata com dois tipos de percepções fundamentais: impressões e ideias. Dada sua perspectiva empirista, tecida em oposição ao racionalismo cartesiano e à tese das ideias inatas, Hume atribui às ideias um caráter secundário, elas não são mais do que cópias das impressões sensíveis. Esta máxima, que afirma a anterioridade das impressões sensíveis e que ficou conhecida como "princípio da cópia", é a pedra de toque para avaliação do valor cognitivo das ideias. Uma ideia somente terá valor para o conhecimento na medida em que possa ser rastreada uma percepção que lhe corresponda.

Dentre as ideias, objetos de nossos pensamentos e raciocínios, encontramos aquelas que são simples e aquelas que são complexas. Sendo que ideias complexas devem seu surgimento a algum princípio de união ou associação entre ideias simples (T, 1.1.1.6ii ). De acordo com Hume, com respeito às ideias, a mente humana realiza dois atos associativos distintos, atos que caracterizam os dois modos fundamentais de associar ideias (associar ideias é formar ideias complexas), as relações naturais e as relações filosóficas.

As relações naturais fundam-se naquelas associações que somos levados a realizar pela nossa "própria natureza", compelidos, como Hume diz, por uma "força branda" (gentle force), e não por uma conexão inseparável (T, 1.1.4.1-5). Estas relações surgem basicamente de três princípios de associações, a saber, identidade, contiguidade espaço-temporal e causa e efeito (T, 1.1.4.4-5). Apesar de receber a mesma denominação, esta última relação tem que ser distinguida precisamente da relação filosófica de causa e efeito; como argumenta Owen (1999), tal distinção dever-se-ia ao fato dela poder ser caracterizada apenas como conjunção constante, sem referência não eliminável à causa e efeito.

As relações filosóficas constituem o segundo tipo de ato associativo que a mente realiza. Recebem esta denominação porque, ao contrário das relações naturais, elas se originam a partir da comparação voluntária de percepções. Embora infinitas em número, as relações deste tipo podem ser reduzidas a sete, que são "a origem de todas as relações filosóficas"iii (T, 1.1.5.3). São elas: 1) semelhança, 2) identidade, 3) relações espaçotemporais, 4) proporções em quantidade e número, 5) graus de qualidade, 6) contrariedade e, por fim, 7) causa e efeito (T, 1.1.5.3-11 e 1.3.1.1-3).

De acordo com Owen (1999), com as sete relações filosóficas, Hume pretende cobrir todos os modos da mente comparar ideias, fornecendo assim uma taxionomia completa de todos os objetos do conhecimento, seja este "demonstrativo" ou "provável". Cada um destes tipos de conhecimento provém de uma classe distinta de relações filosóficas; a primeira delas congrega as relações que dependem inteiramente das ideias envolvidas na relação, e por isto, não podem ser alteradas sem que haja alteração das ideias; enquanto que a segunda classe congrega aquelas que podem ser mudadas sem que ocorra alteração das ideias (T, 1.3.1.1). Na Investigação acerca do entendimento humano, início da seção IV, Hume (EHU, 4.1.1iv ) apresenta estas duas classes como relações de ideias e questões de fatos. Às relações de ideias pertencem as relações 1, 4, 5 e 6, que são objeto do conhecimento e da certeza, e às questões de fato, as relações 2, 3 e 7, que produzem o conhecimento provável (T, 1.3.1.2 e 1.3.2.16).

A característica distintiva das relações de ideias é a de que estas relações são intrínsecas às próprias ideias. Isso quer dizer que estas relações não podem mudar sem que ocorra uma mudança nas ideias envolvidas. Como o contrário deste tipo de relação implica em contradição, elas podem ser objeto de certeza e de evidência (EHU, 4.1.2). Esta classe de relações pode ser divida ainda entre aquelas cujas relações são imediatamente percebidas (intuídas intelectualmente) e aquelas que demandam demonstração. As relações de semelhança, graus de qualidade e de contrariedade são descobertas "à primeira vista" (T, 1.3.1.2), i.e., estas relações não necessitam ser demonstradas, são imediatamente intuídas (apresentam-se à mente com evidência). Já as relações de proporções e quantidades, que formam o campo próprio da matemática, demandam raciocínio, recebendo a denominação de raciocínio demonstrativo. Uma demonstração para Hume consiste em encontrar ideias intermediárias, formando uma cadeia até que a relação entre cada ideia da cadeia seja imediatamente intuída. Fica fácil constatar, portanto, que todas as relações de ideias acabam por fundar-se em intuições, ou seja: a consciência direta de que duas ideias estão em uma certa relação (OWEN, 1999). Esta explicação do raciocínio demonstrativo, que apela a ideias intermediárias para o discernimento de uma relação de ideias, mantém o espírito do aporte lockeano e cartesiano (OWEN, 1999).

Já com respeito às questões de fatos o filósofo escocês afirma que não é possível encontrar ideia intermediária e nem que a relação possa ser intuída. Por isso Hume afirma que sobre os fatos só é possível o conhecimento provável, uma vez que o contrário de um fato é sempre possível (EHU, 4.1.2). "Provável" (probable) neste contexto não deve ser entendido como caracterizando um tipo de conhecimento inferior, pois para Hume, a passagem da causa para o efeito caracteriza o raciocínio mais forte e convincente de todos (T, 1.3.7.5, nota). Nas questões de fatos também temos duas subclasses de relações, aquelas que são percebidas e aquelas que requerem raciocínio. As relações de identidade e as espaço-temporais não requerem raciocínio porque as coisas se apresentam aos sentidos deste modo; ao concebê-las, a mente não vai além da percepção destas relações (T, 1.3.2.2). A relação de causa e efeito éa única desta classe que demanda raciocínio e boa parte do Tratado é dedicada a explicar este tipo particular de raciocínio, o raciocínio causal. Em resumo, Hume não aceita que no raciocínio causal haja ideia intermediária, o princípio de uniformidade da natureza não está disponível antes da experiência e não é possível encontrar outra ideia intermediária neste tipo de raciocínio; sua tese é de que as relações de ideias deste tipo estão fundadas no costume ou hábitov .

De acordo com David Owen (1999) a perfeita compreensão do contraste humeano entre raciocínio demonstrativo e causal depende do confronto com a posição lockeana. Tal como Descartes e Locke, Hume tentou explicar o raciocínio demonstrativo como discernimento de relações entre ideias, rejeitando completamente quaisquer aproximações formais a este tipo de raciocínio. A concordância em linhas gerais permite discordâncias parciais: Locke pretendia explicar o raciocínio causal nos mesmos termos que o raciocínio demonstrativo, reduzindo-o a uma atividade levada a cabo apenas pela razão, por meio da identificação de ideias intermediárias. A explicação de Hume do raciocínio causal se opõe à explicação de Locke na medida em que pretende mostrar que este tipo de raciocínio não requer ideia intermediária e que, por isto, não está fundado apenas na nossa capacidade racional.

O repúdio humeano à tradicional divisão dos atos do entendimento em concepção, juízo e inferência - sobre a qual Hume é explícito numa nota de rodapé do Tratado (T, 1.3.7.5) - para Owen (1999) também deve ser visto em contraste com a posição de Locke. Como Locke, Hume pensa que todos os atos do entendimento reduzem-se à concepção. Entretanto, de modo diferente de Locke, Hume é metodologicamente contra a proposta de que os três atos possam ter algum valor explanatório com respeito aos poderes do entendimento. De acordo com Owen (1999) Hume está rejeitando assim que o juízo ou a crença, pensado a partir do modo como existe na mente, espelhe a estrutura proposicional das sentenças que usamos para sua expressão. A explicação do juízo e do raciocínio demonstrativo em termos de concepção de ideias complexas, por sua vez, está de acordo com a metodologia empirista humeana e com seu ponto de vista inicial, que assume que a mente tem que tratar apenas com impressões, ideias, suas associações e as relações filosóficas (OWEN, 1999).

O diálogo com Locke estende-se para além do contraste entre raciocínio demonstrativo e causal. Também com respeito à noção de existência, encontramos na posição de Hume uma objeção a este filósofo. Segundo Owen (1999), Locke explicava a crença em um existente não observado como o ajuizamento de que a ideia de algo não observado concorda de modo relevante com a ideia de existência. Posto desta forma, a crença na existência teria o mesmo tipo de estrutura proposicional que outro conhecimento ou crença qualquer. Ainda de acordo com Owen (1999), Hume vê problemas nesta explicação e sugere que a única solução para explicar a crença no não observado é explicá-la como ideia concebida com força e vivacidade extra, do mesmo modo como acontece normalmente com as impressões e as ideias da memória. Conceber a existência de um objeto não lhe acrescenta nenhuma nova ideia, pois, argumenta Hume (T, 1.3.7.2), ao conceber a ideia de Deus e ao concebê-lo como existindo, não fazemos nenhuma adição ou alteração na primeira ideia. "Deus é" ("God is") é, por isto, um exemplo humeano de proposição com apenas uma ideia (T, 1.3.7.5, nota).

Hume aborda a questão da crença descrevendo-a como um ato mental que ainda não fora explicada por nenhum filósofo (T, 1.3.7.6). De acordo com Owen (1999), é preciso ter claro que a pretensão de Hume é tratar da produção da crença na mente, não da sua justificação. Vale aqui mais uma comparação com o filósofo inglês: tanto Hume quanto Locke tomaram as relações entre ideias como sendo ideias complexas, mas Hume não tem equivalente mental para predicação. Enquanto que no nível da linguagem temos estrutura gramatical, sentenças, proposições e predicação, Hume descreve o nível das ideias como tendo apenas associações e relações. É com este ferramental mínimo que a crença tem que ser explicada por Hume.

Assim a crença, segundo o argumento de Hume, não pode ser uma questão de anexar uma ideia separada à ideia de um objeto, porque senão não preservaríamos a identidade da ideia na passagem da concepção para a crença. O único modo de desenvolvermos a crença em uma ideia concebida, sem que esta ideia passe a ser outra por entrar em relação com uma suposta ideia de crença, seria admitir que a crença implicasse apenas em uma modificação no modo de conceber. Para preservar a identidade da ideia na passagem da concepção à crença, a única mudança que pode acontecer é a de força e vivacidade (T, 1.3.7.2-8). Deste modo, Hume descreve a crença como um sentimento que temos frente às percepções da mente (OWEN, 1999), sentimento que se constitui a partir de um aumento da vivacidade destas percepções. A crença é uma mudança no nosso modo de conceber as ideias que lhes atribui mais força e vivacidade, aproximando-as de impressões (T, 1.3.7.5), sem que por isto haja alguma transformação na ideia ela mesma. A mudança se dá, como já dissemos, no modo de conceber.

Como observa Owen (1999), se as crenças não se aproximassem de impressões, o mundo não seria unificado e teríamos dificuldades de passar de uma impressão para a ideia correspondente. As crenças são relevantes, não porque sejam conclusão de algum tipo de raciocínio, mas porque aproximam as ideias das impressões sensíveis. As impressões são impressões porque são acompanhadas de força e vivacidade, e produzem um inevitável sentimento de crença sem qualquer reflexão.

Segundo Hume, a crença nas ideias segue este padrão, quanto mais força e vivacidade uma ideia tiver, maior será a crença nela e mais se aproximará de uma impressão. A partir disto, Hume distingue entre aquelas crenças que são formadas sem nenhuma reflexão, como aquelas relativas às impressões, e aquelas que dependem apenas de reflexão (T, 1.3.8.1-15). Neste último caso, a crença no não observado pode se dar por meio de dois tipos de raciocínios, o raciocínio demonstrativo e o raciocínio causal. Em ambos os casos, atribui-se a uma ideia sem impressão correspondente, mais força e vivacidade, aproximando-a de uma impressão (OWEN, 1999), a partir da reflexão (raciocínio). Ao que parece, Hume alinhava assim sua explicação da crença com seu aporte empirista, que propõe nossa confiança na percepção sensível como exemplar para a explicação dela.

 

Contrastando Hume, Descartes e Kant

Voltemos agora à abordagem de Allison, que, ao aproximar-se deste cenário com o paradigma kantiano do juízo em mente, perde as características fundamentais da concepção de crença de Hume. Para recuperá-las é preciso levar a sério as observações de Owen (1999) que remetem Hume a um constante diálogo com Locke, como já vimos, e com aquele que, para Coob-Stevens (1998), foi um grande inovador com respeito à teoria do juízo tradicional, Descartes.

Com a introdução do sujeito como o primeiro fundamento epistemológico, Descartes traça uma distinção radical entre o mental e o extra-mental - substância pensante e substância extensa. Distinção que traz consequências importantes para sua doutrina do juízo, na medida em que este acaba por ser responsável pela mediação entre as duas realidades. Uma coisa distinta é combinar ideias, outra é apostar na sua correspondência com a realidade.

Deste modo, esta novidade impõe uma nítida separação entre o ato de ajuizar (afirmar ou negar) e o conteúdo do juízovi . De acordo com Cobb-Stevens (1998), o caráter mental dos conceitos requer uma modificação na concepção de juízo tradicional, uma vez que não é mais possível assumir que o juízo enuncia diretamente a composição ou separação das coisas e suas propriedades no mundo, como pensavam Aristóteles e Tomás de Aquino. É preciso distinguir entre combinar o sujeito e o predicado (predicação), enquanto ato mental (uma mera combinação de ideias), por um lado, e a afirmação de que esta combinação corresponde a um estado de coisas no mundo (a asserção), por outro lado. Neste contexto, a predicação é ainda condição necessária para o juízo, como fora para Aristóteles, mas já não é mais condição suficiente. Para dar conta disto, Descartes acaba por explicar o juízo, na fase madura de sua obra - como aparece na Quarta Meditação - como dependente da interação entre duas faculdades, o intelecto e a vontade (KENNY, 1998). O intelecto é a faculdade de conceber ideias; a afirmação de que uma combinação delas corresponde às coisas exteriores depende de um ato da vontadevii .

Hume, por sua vez, assume muito da perspectiva cartesiana, mas não aceita que o juízo seja um ato da vontade nem que seja uma atitude que deva ser sempre tomada frente a uma combinação de ideias. A questão do juízo é abordada por Hume em termos de crença, cujo tratamento mantém a distinção cartesiana entre conceber e ajuizar, embora inverta a explicação idealista, ao atribuir primazia às impressões. O juízo é um segundo momento ainda na explicação humeana, mas não é mais fruto de um ato voluntário como pensava Descartes, mas sim de um sentimento, ao qual, na maior parte das vezes, somos compelidos. Como vimos, Hume reduz todos os atos da mente à concepção e encontra em seu sistema uma explicação para a manifestação de crença que a permite inclusive frente a ideias que não têm nenhuma estrutura proposicional. Por isso pode-se dizer que no contexto filosófico humeano, a predicação não só não é suficiente, como não é nem mesmo necessária para o ajuizamento ou crença.

Com respeito à comparação com a teoria do juízo de Kant, é preciso lembrar que nenhuma das associações ou relações de ideias ou questões de fatos estão conectadas ao puramente subjetivo ou imaginativo para Hume. Todas as relações e mesmo meras ideias (e impressões) podem despertar o sentimento de crença, o que parece se aproximar na filosofia de Hume, a ter um valor de verdade. Ademais, ao que tudo indica, ao tratar sobre a "natureza humana", Hume pretendia oferecer uma explicação do funcionamento de todas as mentes humanas; se for assim, é possível dizer que todas as reações de crença descritas em sua obra têm pretensão objetiva, e assim, sua enunciação teria um valor de verdade.

A posição de Kant, frente à inovação moderna da distinção entre o conteúdo e o ato do juízo, deve ser vista como um passo atrás. Pelo menos quando proclama que não é possível distinguir entre pensar e ajuizar (KANT, 1990), Kant volta a aproximar-se de Aristóteles. Na medida em que não deixa espaço entre o conteúdo e o ato judicativo, torna a tratar a predicação como necessária e suficiente para o juízo. Muito embora, na sua tábua dos juízos reserve lugar para as modalidades, que pressupõem a distinção entre o conteúdo do juízo e o modo como a consciência o considera: problemática, assertórica ou apoditicamente (KANT, 1990).

Para finalizar esta breve reflexão, consideramos imprescindíveis que o contraste entre as teorias de Kant e Hume leve em conta os elementos aqui levantados. Uma comparação entre estes autores não pode deixar de considerar a distinção entre a concepção e aquilo que podemos denominar genericamente de asserção (a crença em Hume ou o ato da vontade cartesiano), marcante na filosofia moderna. Também não é admissível ignorar, apesar da perspectiva essencialmente mental da proposta de Hume, que a noção de crença, inclusive desde Platão e Aristóteles, envolve certa pretensão de verdade. Assim, por certo, o resultado de tal contraste acabará por levar a afirmações mais cuidadosas do que as de Allison (2004).

 

Referências

ALLISON, Henry E. Kant's transcendental idealism. New Haven: Yale University, 2004.         [ Links ]

COBB-STEVENS, Richard. Two Stages in Husserl's Critique of Brentano's Theory of Judgment. Études Phénoménologiques. Bruxelas, t. XIV, n. 27-28, p. 193-212, 1998.         [ Links ]

DESCARTES, René. Meditações. Coleção Os Pensadores. Tradução de J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. 3 ed. São Paulo: Abril Cultural. 1983.         [ Links ]

HUME, David. A Treatise of Human Nature. NORTON, David Fate e NORTON, Mary J. (Orgs.) Oxford: Oxford University Press, 2008.         [ Links ]

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KANT, Immanuel. Kritik der reinen Vernunft. [1781, ed. A e 1787, ed. B] Hamburg: Felix Meiner Verlang, 1990.         [ Links ]

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KENNY, Anthony. Descartes on the will. In: COTTINGHAM, John (ed.) Descartes. Oxford-New York: Oxford University Press, 1998, p. 132-159.         [ Links ]

KNEALE, William e KNEALE, Marta. O desenvolvimento da Lógica. Tradução de M. S. Lourenço. 3 ed. Coimbra: Fundação Calouste Gulbenkian, 1991.         [ Links ]

OWEN, David. Hume's reason. Oxford: Oxford University Press, 1999.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 04/11/2010
Aceito em: 28/11/2011

 

 

Sobre o autor:
Evandro C. Godoy é Mestre em Filosofia pela UFSM; atualmente é doutorando pelo PPG - Filosofia UFRGS e professor de Filosofia na Fundação Escola Técnica Liberato Salzano Vieira da Cunha. Email: evandrocgodoy@yahoo.com

 

 

i Tradução do autor: the associated representations ('perceptions' for Hume) may be said to be 'coordinated' in the sense that one of the associated items automatically triggers the idea of another, apart from any discursive activity. That is why the products of such association have no truth value.
ii A forma corrente de citação do Treatise de Hume, adotada no artigo, corresponde sempre a seguinte ordem: Livro, Parte, Seção e Parágrafo. Assim esta citação refere-se ao Livro 1, Parte 1, Seção 1 e Parágrafo 6.
iii the sources of all philosophical relation.
iv Também para citação do Enquire de Hume o artigo adota forma corrente, sempre na seguinte ordem: Seção, Parte e Parágrafo. Assim esta citação refere-se à Seção 4, Parte 1 e Parágrafo 1.
v Tanto o raciocínio demonstrativo quanto o raciocínio causal, e, associado ao último, o famoso "problema da indução", são abordados nos capítulos 5 e 6 do livro de David Owen, Hume's Reason (Owen, 1999).
vi Cobb-Stevens (1998), discute a distinção entre predicação e asserção e a equivale, na filosofia cartesiana, a, respectivamente, combinar ideias e afirmar que são o caso; com respeito à filosofia de Hume, o juízo é descrito como uma reação de crença que tem a ver com o modo como nós concebemos e não com a ordem das ideias. Kenny (1998), trata a questão a partir da distinção de Hare, entre frástica e nêustica; a primeira contém o conteúdo descritivo da sentença - as ideias combinadas - enquanto que a nêustica contém o modo da sentença (da qual, o símbolo de asserção fregeano "|--", é um exemplo).
vii Kenny (1998) discute detalhadamente a questão do juízo em Descartes, e considera como inovação, frente à Escolástica, o tratamento do juízo como um ato da vontade.

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