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Barbaroi

Print version ISSN 0104-6578

Barbaroi  no.36 Santa Cruz do Sul June 2012

 

ARTIGOS

 

Micropolítica da atividade

 

Micropolitics of activity

 

 

Jésio ZamboniI; Maria Elizabeth Barros de BarrosII

IUniversidade Federal do Espírito Santo - Vitória - Brasil
IIUniversidade Federal do Espírito Santo - Vitória - Brasil

 

 


RESUMO

Trata-se, nesse ensaio teórico, de retomar o conceito de atividade desenvolvido por algumas máquinas de análise dos processos de trabalho. A saber, a ergonomia, a ergologia e a clínica da atividade. Tal abordagem caracteriza-se como micropolítica por privilegiar as dimensões éticas e políticas de tais dispositivos tomados no contexto das lutas coletivas no capitalismo. Define-se atividade como um conceito inacabável em função da sua consideração das variações incessantes no trabalho. Discute-se, ainda, o problema da atividade como uma função no campo científico e como um conceito no campo filosófico, destacando suas relações como instrumentos analíticos. Também se discute a relação entre condições de trabalho e sua organização pela problematização promovida pela ergonomia. A partir daí, acompanha-se o desenvolvimento do conceito de atividade desde o conceito de trabalho real, definido por seu deslocamento contínuo em relação às prescrições. Tal deslocamento permitirá, a seguir, conceituar a atividade como devir do trabalho, redefinindo a ferramenta analítica. Logo, define-se a atividade como sempre situada, destacando que a situação é marcada por um movimento abstrato que possibilita produzir transversalidade entre casos diversos vividos no trabalho em função da construção de um problema a viver. Partindo da situação de trabalho do motorista de ônibus coletivo urbano, discute-se as linhas micropolíticas de análise da atividade: a linha dura que separa trabalho prescrito e trabalho real em contraste com a linha vibratória que se privilegia pela análise da atividade situada.

Palavras-chave: Atividade. Micropolítica. Ergonomia. Clínica da atividade.


ABSTRACT

This theoretical essay revisits the concept of activity developed by some machines of analysis of labor processes. That is, ergonomics, ergology and clinic of activity. This approach is characterized as micropolitics for privileging the ethical and political dimensions of those dispositives taken in the context of collective struggles in capitalism. Activity is defined as an unresolved concept due to the incessant variations of labor. The problem of activity is also discussed as a function in the scientific field and a concept in the philosophical field, highlighting their relations as analytical instruments. The relationship between labor conditions and their organization is also discussed from the problematic developed by ergonomics. From that point, the development of the concept of activity is followed from the concept of actual work, defined by its continual divergence from the prescribed work. This dislocation will then allow for the conceptualization of activity as the becoming of work, redefining the analytical tool. Then, activity is defined as always situated, emphasizing that the situation is marked by an abstract movement that makes possible the production of transversality among various lived cases at work for the purpose of constructing a problem to live. Starting with the work situation of an urban mass-transit bus driver, the micropolitical lines of analysis of activity are discussed: the hard line that separates prescribed work and actual work in contrast to the vibrating line that is more prominent in the analysis of situated activity.

Keywords: Activity. Micropolitics. Ergonomics. Clinic of Activity.


 

 

Introdução

O texto é um convite por um certo modo de retomar o conceito de atividade tal qual vem sendo desenvolvido em máquinas de análise dos processos de trabalho. Destaca-se a ergonomia, a ergologia e a clínica da atividade dentre essas máquinas a fim de acompanhar o desenvolvimento do conceito. Busca-se nesse traçado teórico, entretanto, em vez de perspectivar a descoberta de um conceito, tratá-lo como ferramenta inventada para intervenções nos mundos produtivos. Sendo assim, considera-se esse invento como constantemente aberto às variações intrínsecas à atividade. Trata-se, portanto, de um conceito fundamentalmente inacabável, cujos desenvolvimentos derivam da integração das experiências num instrumento que integre às múltiplas realidades do trabalho sem submetê-las a um modelo fixo de análise.

Para operar essa abordagem do conceito de atividade, parte-se de uma micropolítica como problematização que privilegie, em vez das formas estabelecidas, os processos de produção e construção dos dispositivos no campo social, tal como nos indica Guattari (1981). Por essa via problemática, retoma-se os aparelhos de intervenção que operam com o conceito de atividade a partir de seus princípios ético-políticos e dos seus modos de funcionamento, ao invés de considerá-los isolados da problemática das lutas sociais no contexto do capitalismo. Portanto, aborda-se a micropolítica da atividade, ou seja, os modos de produção e funcionamento das máquinas de análise do trabalho como dispositivos desejantes e sociais em função das lutas coletivas.

Para tanto, evoca-se ainda algumas situações do trabalho do motorista de ônibus coletivo urbano no sentido de indicar o meio concreto de onde se dispara essa retomada do conceito de atividade. Ao configurar-se como um ensaio teórico, e não como um relatório de pesquisa, cabe, entretanto, destacar, com Foucault e Deleuze (1979), que os desenvolvimentos teóricos são sempre locais e que seus deslocamentos para outras situações implicam lidar com as questões da prática, como limite próprio à teoria. É isso também o que se afirma pela analítica da atividade de trabalho, atentando-se para o trabalho concreto dos sujeitos no sentido de produzir abstrações como atravessamentos entre diversos meios de trabalho.

 

Um conceito inacabável

O conceito de atividade é inventado pela ergonomia, compondo-se como um eixo num campo multidisciplinar de análise do trabalho, desde meados do século XX na Europa e nos Estados Unidos da América. É claro que o conceito não é criado do nada, mas sim nos entrecruzamentos que a ergonomia promove entre diversas áreas de saberes e práticas sociais constituídas como trabalho. Contudo, a noção de atividade já circula no pensamento e pode ser encontrada na filosofia por exemplo, já bem antes das complexidades da organização do trabalho no capitalismo industrial à beira da revolução informática; ainda, no âmbito da psicologia científica, no começo do século XX, já se encontra o conceito de atividade ocupando uma posição crucial nos trabalhos de Lev Vygotsky (CLOT, 2006b).

A invenção da atividade no campo da ergonomia é uma retomada do conceito pela afirmação de seu inacabamento. Cabe considerar essa apropriação em suas oscilações criativas pelas questões em que se forja e pelos conflitos decorrentes das situações de trabalho. A ergonomia instaurará um terreno consistente de intervenção nos mundos do trabalho por sustentar movimentos de problematização do seu próprio campo produtivo. Esses movimentos decorrem dessas intervenções em função da dimensão viva do trabalho que compõe, forjando-se em máquinas, processos produtivos diversos. Nesse sentido, a ergonomia demarca-se como um terreno consistente não por compor-se monoliticamente como uma estrutura em que se homogeneízam e estabilizam as matérias decorrentes das diversas intervenções, promovendo previsões e controles sobredeterminantes ao trabalho como criação. O campo ergonômico firma-se como uma zona comum em que as multiplicidades produtivas, advindas da abertura necessária aos planos de análise e intervenção, podem se comunicar, estabelecer diálogos como conflitivas e não como acordos homogeneizantes.

Por privilegiar o vivo em seus movimentos de variação e construção de si, em sua relação constitutiva com as máquinas e os meios de ação, a ergonomia prima, em sua própria produção de ferramentas, de um terreno de saber, pela abertura incessante de seu campo de intervenção junto com os trabalhadores. Essa abertura é o que possibilitará a emergência de um plano da atividade, atravessando a ergonomia, como abstração de terrenos distintos em termos de práticas e saberes, estratégias e ferramentas. Esses terrenos se veem convocados constantemente a diálogos em suas fronteiras próprias, em função da dimensão da atividade. Essa dimensão refere-se aos tensionamentos e aos movimentos de criação configurando variações intrínsecas aos meios produtivos, da ergonomia e dos meios diversos de trabalho, em conexão, de maneira a possibilitar a lida com as imprevisibilidades no mundo que se fazem como desafios concretos pelas situações de trabalho.

Se, por um lado, a ergonomia convoca a não cair na ilusão fácil de que ela tiraria da cartola o conceito de atividade, já que, de modo dispersivo, ele emerge diferentemente em outros tempos e espaços; por outro lado, sustenta-se em ergonomia a dimensão enigmática do conceito de atividade (SCHWARTZ, 2004). Essa dimensão indica que o conceito não se coloca como uma ferramenta acabada capaz de identificar a atividade numa realidade considerada pronta e inerte. "Todo conceito tem um contorno irregular" (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 27).

A cada situação, é preciso inventar, no próprio processo de intervenção, a ferramenta de trabalho que é o conceito de atividade. A situação força o conceito a usos não previsíveis, borra seus limites, deslocando-os, convoca um fora no conceito, pelo conceito, ou seja, um plano de forças em que a luta e a construção do trabalho continuam, tanto em ergonomia como nas atividades de trabalho em jogo na intervenção.

 

Entre conceito e função

Propõe-se, por esse ensaio teórico, definir que a atividade se instrumentaliza, em ergonomia e nos outros campos comunicados pelo plano da atividade, como conceito, correspondendo à atividade filosófica, mas também como função, relativa à atividade científica - tal como Deleuze e Guattari (1997) delimitam tais atividades.

Apesar da ergonomia e das outras máquinas de análise da atividade situarem-se predominantemente pelas vastas terras da ciência, a atividade não se limita à instalação de um plano de referência pela renúncia ao infinito do pensamento e pelo estabelecimento de coordenadas espaço-temporais de determinação da atualização das virtualidades do trabalho. Nesse sentido, a noção de atividade ganha instrumentalização como conceito, também.

Yves Schwartz propõe, por essa via conceitual, a constituição da ergologia, como uma indisciplina do pensamento que convoca a dimensão da atividade como perturbação incessante ao trabalho do filósofo em fabricar conceitos. A ergologia toma o problema da atividade na ergonomia e o desenvolve como conceito num campo da filosofia preocupado com a atividade industriosa. A atividade, nessa perspectiva, remete a uma "matéria estrangeira" (SCHWARTZ, 2003), que funcionaria como uma exterioridade, um limite, uma perturbação, dos instrumentos conceituais. Seguindo esse horizonte, para o qual Schwartz aponta, pode-se dizer que a atividade é uma ferramenta de fabricação de outras ferramentas conceituais, uma máquina de fazer máquinas.

Por outro lado, há movimentos, no plano dos aparelhos teórico-metodológicos de intervenção nos mundos do trabalho instigados pela dimensão da atividade, que sustentam o projeto de desenvolver a atividade num aparelho funcional científico. É o caso de Yves Clot (2006a), preocupado em desenvolver a ciência psicológica do trabalho pela clínica da atividade. A clínica da atividade, para tanto, busca "atribuir um privilegio à ação - à clínica - a fim de transformá-la na mola propulsora de uma psicologia" (2010, p. 12), uma psicologia do trabalho que não meramente aplique conhecimentos de laboratório às situações laborais, mas que assuma a situação da psicologia no trabalho como local privilegiado para o desenvolvimento científico, constituindo um laboratório cuja inserção na trama social é primordial à produção do saber.

É por esse projeto de psicologia em construção junto aos trabalhadores que Yves Clot (2006a) busca definir uma função psicológica do trabalho, com referências à prática científica. O que se revela bastante promissor uma vez que transtorna os ideais científicos de universalização e uniformização. Clot, ao preocupar-se com a generalização científica a partir das pesquisas em clínica da atividade, não está tomado pela obsessão de obter dados de um real por trás dos panos, escondido no fundo das mentes dos trabalhadores, mas com a possibilidade de construir funções, a partir da experiência clínica e analítica com os trabalhadores, para instrumentalizar-se em outras intervenções.

Pode-se dizer, com Deleuze e Guattari (1997), que, "finalmente, o que é problemático é menos a relação da ciência com a filosofia do que a relação ainda mais passional da ciência com a religião, como se vê em todas as tentativas de uniformização e de universalização cientificas, a procura de uma lei única, de uma força única, de uma única interação" (p. 162). Nesse sentido, tem menos importância se a atividade é tomada como conceito ou como função, se ela é desenvolvida no plano de pensamento da ciência ou da filosofia. Importa, sobretudo, no plano da atividade, que não se perca a dimensão de perturbação ao pensamento, de força do fora que força a pensar o que ainda não foi pensado, de afirmar o inacabamento das ferramentas filosóficas e científicas. Trata-se de primar pela dimensão de intervenção na realidade, de construção da realidade, que essas ferramentas implicam, em vez de cair na ilusão de verdade absoluta finalmente alcançada, seja lá, cá ou acolá.

 

Entre condições e organizações do trabalho: materialidades e relações de produção

A ergonomia constrói-se pelo princípio de transformar o trabalho a partir do humano. Essa proposta sustenta-se sob os conflitos entre o desenvolvimento tecnológico e a atividade humana. A ergonomia buscará transformar as ferramentas do trabalho e suas condições materiais - máquinas mecânicas, assentos, painéis de maquinário, iluminação, ruídos, tempos e ritmos de trabalho e descanso, etc. (LAVILLE, 1977) - em função do homem. Entre o homem e o ambiente de trabalho, a atividade, ou seja, o que ele faz com essa máquina, nesse ambiente, torna-se o foco de análise do trabalho pela ergonomia.

A ergonomia desenvolverá a relação entre a organização do trabalho e o ambiente de trabalho, sustentando seus conflitos analisados pela atividade dos trabalhadores, que colocam em questão tanto a organização de trabalho quanto as condições de trabalho materiais produzidas por essa organização, como procedimento e expressão do modo de produção capitalista. A divisão fundamental do trabalho no capitalismo entre patrão - proprietário dos meios de produção - e empregado - força de trabalho - se desdobra na separação entre planejamento e execução, entre pensamento e ação. Disjunções exclusivas em uma "atividade apartada de si" (CLOT, 2006a). Procura-se, neste modo, abordar uma organização do trabalho apartada da atividade dos trabalhadores e compreendida do lado do planejamento sob a lógica do proprietário, problematizando-a, colocando-a em questão: o planejamento acerca do trabalho é separável da execução? Quais os efeitos dos modos de gestão no trabalho que investem a mútua exclusão entre pensar e fazer?

Essa separação é confrontada com o desenvolvimento tecnológico estreitamente relacionado à produção social. O desenvolvimento das máquinas no século XX força a consideração do trabalhador para além de meramente executor de tarefas prescritas pela organização. Isso se desenvolve e expande, questionando a organização de trabalho: organização e planejamento do trabalho, funções do pensamento tomadas como predeterminantes da ação e apartadas do gesto operatório, não estão presentes na atividade dos trabalhadores, mesmo quando considerados meramente executores de um planejamento externo? Esse problema inquieta os ergonomistas e leva-os a desenvolver críticas à organização do trabalho. As condições de trabalho passam a ser referidas à organização de trabalho. Não é possível alterar as condições materiais sem interferir nas relações sociais em jogo no âmbito da fábrica, da empresa. A materialidade dos meios de trabalho implica relações de produção. "Assim se fabricam os meios de trabalho, que traduzem sempre, simultaneamente, relações sociais que definem as condições de trabalho" (CLOT, 2006a, p. 96).

Entra-se em choque com a organização científica do trabalho, uma tecnologia em consonância com o regime capitalista na produção de modos de trabalhar e viver, proposta por Frederick Winslow Taylor (1990), hegemônica nos mundos do trabalho no século XX. Busca-se, a partir dessa proposta, reduzir a subjetividade a um ruído na produção. O limite do taylorismo é a subjetividade do trabalhador. Procura-se nessa organização prescrever e controlar todo e qualquer gesto do trabalhador no tempo e no espaço.

 

Trabalho real e atividade

Sendo assim, formam-se duas linhagens, duas tribos da ergonomia no confronto com Taylor (1990) e seu exército, em virtude de posicionamentos críticos distintos. Fala-se aqui em tribos e bandos para abordar conjuntos de trabalhos que possuem perspectivas divergentes no próprio campo da ergonomia. Não se trata, então, tais conjuntos como escolas ou grupos delimitados, fazendo-os depender da filiação e da tradição, já que a aliança e a experimentação se encontrariam na disjunção inclusiva de suas emergências. Considera-se esses conjuntos não por um principio de continuidade e homogeneidade, mas buscando acompanhar as controvérsias e divergências que são "a fonte do coletivo" (CLOT, 2008). Ao evocar-se a distinção, já bastante reconhecida entre os ergonomistas, entre as duas linhagens a seguir, cabe considerar que se trata muito mais de uma tentativa de localizar as divergências do que delimitá-las a territórios nacionais.

O coletivo anglo-americano - pode-se consultar o trabalho Homens e máquinas de Hywel Murrell (1978) para ser ter uma visão geral da produção nesta corrente da ergonomia; e, para se notar que esta corrente não se desenvolve exclusivamente em territórios anglo-americanos, pode-se tomar o trabalho de Antoine Laville (1977) na França, bastante próximo desta linhagem, ainda que já se possa notar aí problematizações desenvolverá a ergonomia sem, contudo, questionar o essencial da organização taylorista do trabalho, a subordinação da execução ao planejamento, da ação ao pensamento, do proprietário da força de trabalho ao proprietário dos meios de produção. Por isso, pode ser caracterizada como uma posição crítica reformista que, ao questionar as formas de produção do trabalho no taylorismo, não interfere, contudo, na relação social e desejante fundamental que institui os modos capitalistas de produção em formas de organizar o trabalho apartadas da atividade concreta. Essa tribo acaba por desenvolver o taylorismo em continuidade com seus princípios fundamentais.

A linhagem francófona - da qual se pode ter uma visão geral do modo de trabalhar em ergonomia nesta nova perspectiva pela obra de François Guérin, Antoine Laville, François Daniellou, Jacques Duraffourg e Alain Kerguelen (2001), podendo ainda considerar como seus principais expoentes Alain Wisner (1987; 1994; 2004) e Maurice de Montmollin (1971; DARSES; MONTMOLLIN, 2006); trata-se de uma vertente que busca construir a ergonomia num terreno epistemológico distinto da corrente anglo-americana (DANIELLOU, 2004) e pode-se acompanhar adiante as divergências ético-políticas que estão no princípio dessa bifurcação e pelas quais se desenvolve. No entanto, sustentará a tensão entre planejamento e execução no contexto do capitalismo com vistas a encontrar saídas dessa dicotomia, tensionando-a. Em disposição de pensar outros modos de trabalho, rompendo o binarismo pensar-agir, abre-se à consideração da atividade na situação de trabalho, vai ao encontro dos processos de gestão do trabalho entre os trabalhadores. Essa entrada crítica nos meios de análise do trabalho expande a potência de problematização dos processos de produção no capitalismo disparada na ergonomia a partir do conceito de atividade.

Produzem-se nessas críticas diversas ferramentas conceituais fundamentais: a distinção entre trabalho prescrito e trabalho real, primeiramente. Trabalho prescrito é o que a hierarquia, a organização, o planejamento sobreposto à execução impõem como determinação do trabalho, como conjunto de normas e regras a cumprir em função da finalidade que, no capitalismo, sobrepõe-se à atividade no trabalho. O trabalho real é o que trabalhador faz, como ele executa o trabalho, considerando as normas e regras prescritas numa operação sempre diferente em relação a esse prescrito. Essa distinção é básica nas diversas abordagens ou linhas de desenvolvimento da ergonomia.

A distinção e a relação entre prescrição e realidade do trabalho desenvolvem-se pela ergonomia no sentido de procurar compreender a complexidade negada da execução, visando fortalecer as interferências desde o próprio trabalho realizado nessa relação. Nesse sentido, o trabalho real não é apenas sempre diferente em relação ao trabalho prescrito, mas vem a ser diferenciante do prescrito no desenvolvimento do trabalho. Não se trata mais de denegar a subjetividade, mas de compreendê-la, de aprimorar sua conexão com os aparelhos produtivos, para desenvolver a produção. Analisa-se como os desempenhos são realizados ou não pelo trabalhador, para além de seus efeitos esperados pela organização. Nessa distinção, contudo, ainda não se coloca o problema do princípio de subordinação do fazer em relação ao saber e sua mútua exclusão (DARSES; MONTMOLLIN, 2006). A consideração da complexidade do trabalho realizado pode integrar-se tranquilamente à constituição dos aparelhos produtivos sem questionar a própria produção no contexto do capitalismo.

A tribo de origem francesa, ou francófona - uma vez que não comporta apenas bandos de ergonomistas franceses, mas também de outras nacionalidades que utilizem a língua francesa -, desenvolverá outra distinção, em relação com a primeira entre trabalho prescrito e trabalho real, no rumo do desmonte da dicotomia saber-fazer. Diferencia-se, então, tarefa e atividade, ampliando as dimensões envolvidas na distinção entre trabalho prescrito e trabalho real.

A tarefa é o que se deve fazer, a atividade é o que se faz. Mas, a partir daí, a análise concentra-se no sujeito da ação, no trabalhador, e não mais em função de uma prescrição a ser reformada, a ser aprimorada, para otimizar uma produção inquestionada. Não se observa o que se faz no trabalho do ponto de vista das regras prescritas, a fim de aprimorá-las, pois o foco é o sujeito que coloca em jogo diversas funções, que se mobiliza de diversas maneiras, para realizar o que tem a fazer. Por isso, essa linhagem compõe a chamada ergonomia centrada na atividade. É também denominada ergonomia situada, por partir das situações de trabalho assumidas pelos sujeitos, saindo da perspectiva que se volta para a organização do trabalho em suas complicações diante dos avanços tecnológicos. Nesse contexto, a tarefa não se confunde com o trabalho prescrito, mas funciona como a prescrição subjetivada, assumida e apropriada pelo trabalhador. Tarefa e atividade estão em jogo, em desenvolvimento, a partir do sujeito.

A ergonomia situada, ou ergonomia da atividade - expressões mais pertinentes para nomear a linhagem da ergonomia que emerge nos países francofônicos, mas que, atualmente, se constrói em diversos países e em diversas línguas -, analisa a atividade por meio dos comportamentos, das lógicas de ação, do vivido e dos processos biológicos dos sujeitos no trabalho (DARSES; MONTMOLLIN, 2006). A subjetividade, tomada como ruído e empecilho no funcionamento e na comunicação entre máquinas e homens, passa a ser considerada por outro viés. Se no taylorismo o sujeito é também primordial é no sentido de evitar o desperdício dos recursos humanos, como parte dos recursos naturais, em função da eficiência produtiva nacional e empresarial (TAYLOR, 1990). Em ergonomia, especialmente em ergonomia da atividade, a consideração da subjetividade subordinada aos objetivos estabelecidos será problematizada, não pela negação da dimensão da produtividade, mas pelo questionamento dos objetivos formulados em instâncias, que apartem os sujeitos da determinação de seus meios de produção e existência.

 

Devir do trabalho

A clínica da atividade, protagonizada por Yves Clot (2006a; 2010), inventa-se por essa tribo da ergonomia da atividade, pertence à linhagem dos que se interessam pela atividade como composição do trabalho a partir da dimensão subjetiva na produção. Está numa relação dinâmica com esse bando e suas distâncias e proximidades marcam suas transmissões e engates com o aparelho ergonômico. Trata-se de uma filiação intensiva, "uma herança em discussão" - para retomar a expressão utilizada por Clot (2010) diante das contribuições de Alain Wisner, proeminente ergonomista da atividade. Quer se retomar, na clínica da atividade, como um meio de desenvolvimento da psicologia do trabalho, a consideração da subjetividade que a ergonomia situada encaminhou. Nessa clínica retomar-se-á o conceito de atividade desenvolvido pelos ergonomistas da atividade, expandindo-o para além da objetivação do trabalho realizado e da subjetivação que se estrutura pelo encadeamento de lógicas e comportamentos (CLOT).

A crítica de Yves Clot (2006a) ao conceito de atividade desenvolvido pelos ergonomistas incide sobre o modo como a análise da atividade é promovida. Ela ainda faz a atividade se definir pela tarefa (GESLIN apud CLOT, 2006a), prendendo-se às funções fisiológicas e mentais, à capacidade técnica e à sequência de operações despendidas para realizar a tarefa. Essa definição da atividade pela tarefa parte da dimensão de produção do sujeito e da coletividade no trabalho; no entanto, limita-se o plano de análise à medida que, por sua abordagem, a atividade do sujeito "se volta unicamente para o objeto da tarefa" (CLOT, 2006a). Pode-se então afirmar, pela perspectiva a que Yves Clot encaminha, que a ergonomia situada trata a atividade como um encadeamento de ações em função da tarefa do sujeito tomada como núcleo da ação.

A atividade, contudo, é excêntrica, não se desenrola a partir do prescrito, nem da tarefa, a princípio; é o prescrito que deriva como atividade de gestão e concepção esfriada, desacelerada (CLOT, 2006a). A tarefa não é apenas a reapropriação das normas da organização de trabalho; os coletivos de trabalho são protagonistas da produção de normas e valores imanentes aos processos de trabalho. A organização de trabalho sobrecodifica essas normas e valores e as rebate sobre os trabalhadores estruturando-as de maneira que assegure a sobredeterminação capitalista da produção.

A tarefa, entretanto, é imanente à atividade. A tarefa é a atividade em determinadas condições e como meio dos processos de trabalho, após um processo de territorialização, constituição, das normas e valores produzidos, provocadas pelas situações de trabalho. A tarefa dá consistência a um corpo coletivo de avaliação e desenvolvimento da atividade. As normas instituídas entre os trabalhadores podem ser reificadas e sobrecodificadas em normas da empresa dirigidas à atividade dos funcionários: essa é a função hegemônica da organização do trabalho atualmente. As normas de trabalho reterritorializadas conformam as prescrições. Nesse processo de rebatimento das normas produzidas em meio à atividade sobre a atividade produtora, dispõem-se conflitos acerca da organização do trabalho como problematização dos modos de produção capitalísticos. A partir daí, dispõem-se enfrentamentos por meio desse corpo territorializado que, entretanto, precisa dispor-se à desterritorialização, à transformação das normas, à estilização, pela atividade, para promover a vitalidade do trabalho, sem a qual não há sentido possível para produzi-lo.

A tarefa na clínica da atividade configura-se como foco de um embate social acerca dos processos de produção e dos meios de ação, como dimensão intrínseca, indissociável, imanente, à atividade. Esse embate problematizando os mundos do trabalho por meio da tarefa como codificação da atividade em valores e normas visa a questionar a sobrecodificação de normas e valores que as relações de produção capitalistas impõem aos trabalhadores em contradição com o desenvolvimento das forças produtivas na atividade. É um poder de coerção que o capital assume para assegurar suas provisórias estabilidades que se combate pela tarefa, por meio da criação na atividade, fazendo frente às sobrecodificações e reterritorializações na produção. A tarefa são as condições sociais dos fluxos desejantes da atividade. E a atividade é o processo de desterritorialização produtiva nas bordas da tarefa.

Desse ponto de vista, Yves Clot (2006a) aborda a atividade a partir dos conflitos empreendidos em seu desenvolvimento, nos desvios que precisa inventar para prosseguir seu percurso. A atividade é o devir do trabalho, nunca completamente determinável, fazendo-se sempre pontas de derivas abertas à criação na produção. Em clínica da atividade sustenta-se a tarefa como condição a ser reinventada em função da atividade, sempre variante. Um desenvolvimento na história do trabalho, mas que a transtorna por desmanchar a cada vez uma ordem cronológica do tempo na sucessão passado-presente-futuro. Transtorna-se também o espaço de constituição do desenvolvimento produtivo, colocando na análise o presente da atividade em situação, que inclui seus possíveis, seus conflitos, os feitos, os desfeitos, os refeitos, seu futuro, seus sonhos, seus porvires. A produção do possível pela atividade está no presente, no passado e no futuro, e entra em jogo nos conflitos a que é lançada.

A clínica da atividade desenvolve a subversão das análises no mundo do trabalho ao expandir a noção de atividade criada no campo da ergonomia. Engaja-se no empreendimento de desmanchar a dicotomia produzida entre execução e planejamento ao abordá-los como atividade entre os trabalhadores, fundamentalmente. A organização do trabalho é reterritorializada no capitalismo, mas essa reterritorialização entra em jogo nas análises dos mundos do trabalho numa crítica situada e transversal pela atividade coletiva de trabalho. "A organização é de qualquer maneira desnaturalizada por sua respectiva atividade; a própria divisão do trabalho é o objeto de um trabalho" (CLOT, 2006a, p. 84). Não mais o ponto de vista do efetuado a partir do prescrito, nem do composto a partir da tarefa. O real da atividade não é apenas a atividade realizada, mas todo o processo produtivo em suas diversas possibilidades pela atividade. É a produção que a clínica da atividade abordará: como o mundo do trabalho, seus sujeitos e seus objetos, se produzem pela atividade? Como se compõem os coletivos profissionais em máquinas desejantes produtoras de produção?

Clot (2006a) problematiza a contradição suscitada pelas relações capitalistas entre o desenvolvimento das forças produtivas e as relações da produção. Trate-se de habitar os limites que o capitalismo traça entre o processo de produção e as relações de produção por meio da organização do trabalho reterritorializada e da disjunção exclusiva entre prescrição e execução abordadas pela atividade situada em suas possibilidades desterritorializantes. Guattari (1981) afirma que "pode-se conceber outras relações de produção no contexto da indústria altamente desenvolvida, da revolução informática, etc., que não sejam antagônicas com a produção desejante, artística, onírica..." (p. 22). Tal perspectiva permeia a clínica da atividade animando a consideração da multiplicidade de universos de atividade implicados na produção das situações de trabalho e das saídas para os impasses a que somos lançados no jogo capitalista de produção.

 

A atividade é sempre situada: entre concreto e abstrato

A atividade é sempre situada. Nessa posição concentra-se a radicalidade da abordagem psicológica do trabalho em clínica da atividade, a partir da ergonomia da atividade. A situação é o paradoxo que desmancha a dicotomia maniqueísta entre concreto e abstrato. "As referências mais abstratas, mais radicalmente incorporais, encontram-se ligadas ao real; elas atravessam os fluxos e os territórios mais contingentes. Elas não são, de forma alguma, uma garantia contra as alterações históricas ou as mutações cosmogenéticas" (GUATTARI, 1996, p. 55-56). A situação é ainda o que possibilita não tomar a história do trabalho como abstração transcendente, imutável, incontornável, nem presa à realidade constituída, vivida, dada. A situação é uma perturbação, um problema, um traçado de limites entre o concreto e o abstrato.

Portanto, a partir daqui, nesse ensaio, evocar-se-ão alguns aspectos pontuais dispersos de uma pesquisa acerca dos processos de trabalho do motorista de ônibus coletivo urbano, não apresentando um relatório da pesquisa mas, pontos de partida que podem indicar como a situação de trabalho é fundamental aos desenvolvimentos conceituais. Pela abordagem da atividade, o próprio conceito vê-se forçado em seus limites, em função da situação diante da qual funciona como ferramenta de intervenção, instrumento que se transforma também durante o processo.

Esta pesquisa tratou dos Paradoxos do motor (ZAMBONI, 2011), ou seja, das situações que vivem os motoristas de ônibus na região metropolitana da Grande Vitória - Espírito Santo. Tais situações são caracterizadas como paradoxais pela maneira como as vivem os motoristas em questão e como elas circulam entre pesquisadores e trabalhadores quando se conversa acerca do trabalho: não há solução única ou final, mas um tensionamento que provoca o motorista a pensar e inventar saídas várias e variantes pela sua atividade. A pesquisa realizou-se de 2009 a 2011 por meio de conversações no cotidiano (SPINK, 2008), numa perspectiva cartográfica de produção e análise dos "dados" (PASSOS; KASTRUP; ESCÓSSIA, 2009). Nove motoristas participaram das conversas em diversas situações, sozinhos ou acompanhados por outros colegas, principalmente nos locais de trabalho - dentro dos ônibus, nos terminais de ônibus, nas salas dos rodoviários dentro dos terminais -, mas também nas residências deles próprios ou do pesquisador, em consultório de atendimento psicológico, na universidade, na rua. A proposta de pesquisa-intervenção primou pelo desenvolvimento da atividade de trabalho por meio do diálogo, em termos de uma clínica esquizoanalítica da atividade, sendo a pesquisa o acompanhamento desse processo.

As situações de trabalho experienciadas pelos motoristas de ônibus do transporte coletivo urbano podem ser tomadas em conversas e, a seguir, em produções de vídeo, ou outros dispositivos quaisquer de análise da atividade que se monte, num movimento de abstração por outras atividades, porque transtornam o realizado, o acontecido, o feito, o vivido, para existirem como paradoxos, como problemas a viver. A situação se constrói por não se fechar a experiência na concretude dos acontecimentos fadados aos fatos e por não se desencarnar dos afetos que nos relançam às relações constituintes. Funcionando como tensionamento, a situação provoca a pensar o trabalho de transportar passageiros e de transportar o automóvel coletivo em por problematizações singularizantes. As situações não ficam restritas a um caso que possamos focar perdendo de vista o universo de questões que o enxameiam e o constituem, nem a abstrações lógicas compreensíveis fora da experiência. Ao mesmo tempo, a situação é concreta, mais concreta que o pronto e acabado porque insiste nos ossos, nos músculos, nos olhos, nas mãos, nos pés, desconcertando a organismo motorista.

"As relações sociais e as relações metafísicas não constituem um após ou um além" (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 70, grifo dos autores). Os problemas na experiência não ficam restritos ao passado em situação, nem ao futuro antecipável, nem ainda ao presente sem história e sem devir, encurralado entre o passado e o futuro. Eles constituem um passado e um futuro por um presente vivo, insistente: são problemas vivíveis. A situação, pela problemática que a sustenta, é o plano de constituição do real da atividade, sua possibilidade de construção, de transformação, pelo ponto onde o pensamento é perturbado e movido pelos afetos no plano das relações. O real não está dado de antemão, ele está sempre sendo construído. Está aqui o embaraço que ainda confundimos o real com o fato, o comprovável, o supostamente passível de acordo por todos, de modo igual. O real é, pelo contrário, o corpo coletivo, os afetos pelos encontros, em suas variâncias, a criação cotidiana no trabalho, a concretude da situação. A doença no trabalho se produz exatamente quando essa história se engessa, quando ela não se presta a ser meio pra viver outras experiências (CLOT, 2010). A situação retoma o vivido do passado e o previsível do futuro questionando-os pelos problemas do presente a viver. Portanto, a situação é sempre paradoxal, bifurcante. Ela instala um plano de multiplicidade de vias, uma malha viária problemática.

Pode-se tomar aqui a situação, com a qual se depara em percurso de pesquisa, da experiência do motorista que deseja ser demitido em meio às perseguições que vive no trabalho e para isso age nos entremeios da atitude proibida pela organização no que ela pode ainda ser tolerada para percorrer esses limites. Em que está a abstração dessa situação? No ponto em que ela já não é somente ponto, já é mancha, linha, enovela, não é mais assinalável como sendo vivida por fulano ou ciclano, um sujeito caso particular, mas ela é compartilhável pelos companheiros de trabalho, pelos passageiros, circula na organização de trabalho, faísca no corpo social. É aí que ela passa a ser situação de trabalho, quando ela se abstrai de um sujeito e de um objeto particulares. No mesmo movimento em que a situação se constitui por abstração, em sentido contrário, mas em mesma via, concretiza-se. Ela ganha corpo, os colegas podem compartilhar a experiência e não, meramente, julgar o companheiro; os passageiros podem sacar porque o motorista está agindo de modo grosseiro, podem participar dessa experiência, jogar com ela, e não contra o motorista, caindo no modo consumidor em reclamação, individualizando a problemática, mas implicando-se na construção dos processos de trabalho do transporte coletivo na cidade.

Essas vias, da concretude e da abstração, na situação, estão sempre a meio caminho. Não existe situação ideal, em que haja compartilhamento absoluto da experiência, compreensão mútua, ou qualquer desses ideais de relação. Há sempre o conflito e o conflito é o ponto de emergência e a linha vibrante de sustentação da situação. Ele é crucial para que sejam possíveis as duas vias em disjunção inclusiva na situação, abstração e concretude, para que o motorista indignado não completamente haja em desacordo com as normas de trabalho, para que os passageiros e colegas de trabalho não entendam completamente sua atitude, para que a solução final não seja encontrada, e, afinal, para que haja situação a viver.

 

A linha dura entre trabalho prescrito e trabalho real

Ao fazer o percurso do conceito de atividade em diferentes campos de prática e saber que se interseccionam, desde a ergonomia da atividade passando pela clínica da atividade, o que está em jogo é a micropolítica do trabalho. É na prática das análises situadas do trabalho, em processos de intervenção, que pode surgir e se desenvolver o conceito de atividade tal qual traça-se aqui. O conceito de atividade é povoado de sentidos múltiplos, divergentes, que se constituem a partir dessas diversas situações em que funciona como ferramenta (SCHWARTZ, 2004). A cada vez que ele aparece em uma paisagem de trabalho, em meio às análises situadas, a batalha do sentido se instaura e o conceito se pode configurar em novos arranjos de uso.

Propõe-se, então, traçar um percurso relativo aos desenvolvimentos do conceito de atividade. Outros percursos do conceito de atividade poderiam ser feitos, como se pode ver pela ergonomia em busca de seus princípios (DANIELLOU, 2004) Este trajeto não abarca a totalidade de práticas e saberes variados e variantes constituídos a partir da consideração da atividade situada em análises do trabalho. As problemáticas relativas ao desenvolvimento da análise científica e filosófica da atividade são dispersivas, desafeitas ao progressismo. Trata-se de uma construção aberta em diversos limites, trabalhadas numa multiplicidade de questões e perspectivas. Esta via percorre alguns desses problemas levantados e trabalhados no plano da atividade, traça uma linha por alguns pontos de embarque de questões.

Num primeiro movimento, no campo da ergonomia, que se desenvolve com furor interdisciplinar (MURREL, 1978; WISNER, 2004), a partir dos problemas da indústria em desenvolvimento, pelos meados do século XX, constitui-se uma bifurcação entre trabalho prescrito e trabalho real (DARSES; MONTMOLLIN, 2006). Tal bifurcação irá funcionar em disjunção inclusiva. Não é possível pensar um conceito sem o outro, a existência de um depende da existência do outro. Eles funcionam como polaridades que se tensionam mutuamente, tal qual um imã. O trabalho prescrito e o trabalho real funcionam em sentidos distintos, porém estabelecendo uma via de mão dupla para a análise situada do trabalho.

Por tal procedimento, inventado pelos ergonomistas, acaba por se abrir um certo plano de produção conceitual, uma vez que os conceito não se isolam, não transcendem o tensionamento constituinte de suas funcionalidades sempre variantes. De tal maneira, não ganham aparências de eterno, de propriedade de especialistas autorizados, não se descola do plano de produção do real convocando sempre à investigação do trabalho lá onde ele acontece. O tensionamento no plano conceitual entre trabalho prescrito e trabalho real permite que este plano possa se abrir à criação de problemas pela atividade situada. No plano das análises do trabalho marcado pela primazia do fator humano a ser contornado se criam os conceitos magnéticos de trabalho prescrito e trabalho real, funcionando como polos magnéticos: capazes de atrair, puxar as forças das máquinas de diversas ordens colocando-as em outros jogos de relação, em outras considerações da subjetividade no trabalho.

Esse dispositivo magnético que instaura a ergonomia permitiu desenvolver a dimensão da produção no trabalho no sentido de uma micropolítica. Partindo de uma linha dura, linha com contorno bem marcado, separando nitidamente o trabalho prescrito do trabalho real, a micropolítica do trabalho irrompe desde o começo da ergonomia pela abordagem do plano macropolítico. Afinal, como já se disse, é a partir do problema do fator humano incontornável, das variações que os sujeitos inevitavelmente imprimem a cada vez para realizar o trabalho, que a ergonomia é inventada (LAVILLE, 1977; MURREL, 1978). A micropolítica do trabalho na ergonomia principia, com a impossibilidade das formas estabelecidas de gestão suprimirem a dimensão instituinte do trabalho concreto e da análise desse trabalho, voltando-se para o trabalho real.

Olhe-se, assim, como o trabalhador realmente executa o trabalho para definir novas normas, novos equipamentos, novos funcionamentos. É em função desse objetivo que a atenção do ergônomo se volta para o trabalho em situação. A micropolítica está, nesse caso, subordinada à dimensão macropolítica do trabalho, ou seja, às normas e regras, condições e organizações do trabalho no que ela se estabelece, ganha visibilidade e legitimidade. Entretanto, abre-se um horizonte de questionamentos da organização do trabalho. Ao voltar-se para o real em contraste com o planejado, já se instaura a possibilidade de uma reviravolta pelo privilégio da micropolítica, ou seja, da produção de realidade em relação ao estabelecido, ao macropolítico.

No trabalho do motorista, essa micropolítica seria dispor-se a acompanhá-lo, de algum modo, no fazer do trabalho para verificar que condições de trabalho poderiam ser mudadas: um assento que não permite regulação e o motorista fica desconfortável, o calor e barulho que pode ser diminuído ao transpor o motor da parte dianteira do ônibus para a traseira, rearranjar os horários prescritos de viagens em função dos reais horários necessários para completar um percurso e poder descansar o tempo correspondente sem sacrificá-lo, como é habitual. Tal abordagem é, sem dúvida, crucial para promover transformações no trabalho. Ao atentar para isso já se pode imaginar como o trabalho do motorista poderia fluir bem mais fácil a partir dessas considerações.

"- Micose, fungo, outras coisas, a gente senta ali, esquenta: cara, é horrível! [...] - Tem vários outros itens [e tem!] que eu poderia tá falando pra você, que teria que ficar o dia inteiro aqui se for falar [...] Tem uma série de problema se você for ver no carro: poltrona que não regula, num suspende nem abaixa... O meu padrão de corpo é diferente do de alguns dos meus colegas - Ah! Poltrona que não regula... - Então, o que que acontece...".

Mas é aí, ao colocar os conceitos em uso, considerando seus funcionamentos, que se pode avistar e logo percorrer seus limites. Como foi dito, o magnetismo do imã trabalho prescrito - trabalho realizado opera em função da macropolítica do trabalho. Olhar o dia-a-dia do motorista se faz para compreender em que pontos e como ele faz diferente do trabalho prescrito e como se podem mudar as prescrições para facilitar o trabalho. Nesse sentido, a preocupação não parte diretamente do trabalho efetivamente realizado, mas sempre do polo da prescrição, o norte da intervenção ergonômica nesse começo. O limite da linha dura é que se fica preso a ela nas análises do trabalho secundarizado a dimensão micropolítica do trabalho real, que sempre envolve mais do que está estabelecido na organização do trabalho, espalhando-se por outros espaços e tempos de relação, outros modos de gestão.

Como adequar os horários de viagem aos imprevistos de trânsito se a cada dia, a cada itinerário, a cada minuto até, não se sabe quanto tempo afinal vai se demorar a completar o percurso? O engarrafamento pode durar mais ou menos a depender de tantas variações que é impossível saber de antemão certeiramente o tempo real de trabalho. O mesmo limite aparece na situação do calor e do barulho: ainda que o motor fique na traseira do ônibus, o calor do asfalto, da lotação de gente, da parada no engarrafamento, dos dias ensolarados, continua.

Com relação à cadeira regulável, as características físicas de cada motorista variam mesmo nele próprio. Há ainda o problema das hemorroidas, difícil de ser discutido coletivamente. Uma coceira no meio do caminho nas costas, um jeito de sentar que se gosta e que não cabe na forma certa exigida pela cadeira: eis alguns tópicos limites, situações problemáticas, ao ímã analítico trabalho prescrito - trabalho realizado. Todas essas questões remetem então ao plano das relações sociais e desejantes atravessando os diversos meios de atividade vital, impedindo isolar as análises situadas do posto de trabalho definido em linhas duras.

 

A linha vibratória da análise da atividade: por uma micropolítica do trabalho

Suscitando situações, a micropolítica irrompe pleiteando uma visada que não venha dos planejadores e organizadores apartados das multiplicidades que compõem o trabalho e que lhes vem visitar para fazer melhor seu gerenciamento; o que é ótimo para os motoristas, de certo modo, mas dessa maneira ainda se sustenta a linha dura que separa nitidamente administradores e projetistas prescritores do transporte coletivo urbano e trabalhadores executores, entre eles, o motorista. Desse modo, a ferramenta analítica do trabalho real em relação ao prescrito perde sua potência de analisador das relações produtivas. Essa dicotomia fortalecida torna-se problema a desenvolver a partir da consideração da micropolítica do trabalho.

O motorista não consegue criar modos de expressão para além do esquema porque há um padrão para a organização do trabalho ouvi-lo. O sistema de trabalho se modifica, mas tem que haver paciência nesse modelo, porque o sistema muda aos poucos, devagar, a cada vez ele melhora, supõe-se. Como se o trabalho se desenvolvesse numa linha única, progressiva. Está aí a centralidade do trabalho prescrito, a linha reta e dura, ainda que se quebrem em várias, que se tem a percorrer de modo exato. O ideal da prescrição é revelado, mas ele continua ali, impassível como princípio do processo de produção. Por vezes, cai-se mesmo numa tomada da prescrição como inimigo; o que se faz como um equívoco pela desconsideração da história dos meios de trabalho.

Trata-se, ainda, de sustentar o privilégio do prescrito, ainda que se lhe conteste. E quando um motorista não consegue ser ouvido, como na situação de querer ser demitido porque já sacanearam demais, e se inventa outros meios pra se fazer ouvir, a dimensão micropolítica questiona o privilégio da macropolítica mais uma vez. Os próprios ergonomistas promovem o desenvolvimento de seu terreno teórico-metodológico pelo questionamento dos limites de suas próprias práticas (WISNER, 2004).

Mas como seria possível tomar a micropolítica em primeiro plano no processo de trabalho, sem cair nas estratégias que transcendem e contradizem os processos de trabalho por impasses e bloqueios? É preciso considerar, acerca dessa questão, algumas perspectivas. Não se trata de eliminar a conflitualidade, mas de suscitá-la, de criar-lhes meios de tensionamento, para que não cessem diante de acordos que supostamente resolveriam os conflitos de uma vez por todas. O transcendente constitui-se de impedimentos e bloqueios dos movimentos próprios dos trabalhadores nos processos de trabalho; não estão restritos ou localizados definitivamente, mas se efetuam como práticas dispersas entre os diversos sujeitos. Portanto, a saída a tais bloqueios se constrói afirmando as conflitualidades e controvérsias imanentes aos processos produtivos.

Tal saída se vai inventando em meio a ergonomistas da atividade à medida que se voltam para essas lutas em meio à produção. Esses ergonomistas, preocupados em não privilegiarem cadeiras, iluminação, painéis, rotinas, em detrimento dos sujeitos que compõem o trabalho, passaram a se focar principalmente nos aspectos subjetivos, considerando que cada trabalhador é diferente de outro, e mesmo diferente de si em outro tempo e espaço. As dimensões cognitivas, fisiológicas, comportamentais, dentre outras, passam a figurar como protagonistas da intervenção acerca das normas de trabalho. Esse sujeito abordado pela ergonomia da atividade se faz com linhas vibratórias, um tanto diferentes da linha dura que predominava na análise ergonômica do trabalho realizada em função do prescrito. As linhas móveis da micropolítica, cabe, entretanto, destacar, estão, desde o início constituindo o dispositivo ergonômico: situam-se nas passagens e nas interferências entre o prescrito e o real. Mas a linha dura predomina na visível separação mantida entre as duas dimensões do trabalho, prescrito e real.

As linhas de análise estremecentes predominam à medida que se prefere o trabalho realizado ao trabalho prescrito - não negando este, mas abordando-o em função do real em vez do contrário - ao focar a dimensão subjetiva como imanente aos processos de trabalho e não restritas ao trabalho realizado apenas, como demarca a linha dura dos primórdios da ergonomia. A atividade passa a figurar como dimensão crucial na subversão e desenvolvimento do imã analítico da ergonomia. Cria-se um novo dispositivo magnético, polarizando atividade e tarefa, forjado desde a dimensão subjetiva, considerada como foco das análises do trabalho.

Sendo a dimensão subjetiva presente na prescrição também, é preciso questioná-la desde outro ponto de vista, em que a subjetividade não seja tão somente elemento a considerar na reformulação racional dos meios. Passa-se a questionar os próprios objetivos da organização do trabalho em função da atividade dos sujeitos. A produção desejante coletiva irrompe na organização do trabalho, excedendo a mera consideração das condições estabelecidas de trabalho, pelos seus processos de institucionalização como irracionalização das razoabilidades assentadas, dando margem à produção de outras razões para trabalhar, ou melhor, outros sentidos e modos de produzir. E aí as variações se configuram em torno dos diversos sujeitos implicados no trabalho: cada um por seu modo, em cada situação de trabalho, vai fazer modulações próprias na linha, sustentando seu trabalho em meio às infidelidades do meio ao prescrito tarefado. O que passa a ter interesse para esses novos ergonomistas são as ondulações pelo que a linha de trabalho passa, como o trabalhador habita uma linha flexível de trabalho, criando-a de modo a perpassar toda a organização do trabalho.

A linha agita e os conceitos movem-se, transformam-se. Não se consegue mais abordar o trabalho realizado tão somente, tomando-o em função do prescrito. Para marcar a instabilização no trabalhado, um novo conceito entra em jogo: a atividade. O conceito de atividade se desenvolve nas análises do trabalho em meio a uma nova micropolítica, já que não existe micropolítica sem considerar as linhas tensionantes de produção da realidade, bem como as linhas duras que configuram formas visíveis, delimitadas, marcadas. Eis um cruzamento fecundo entre um horizonte de desenvolvimento e uma verticalidade histórica suporte para tal. É daí que a análise do trabalho pode se fazer como transversalidade pela integridade vital dos sujeitos em atividade.

 

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Recebido em: 24-11-2011
Aceito em: 30-06-2012

 

 

Sobre os autores:
Jésio Zamboni é Psicólogo, Mestre em Psicologia Institucional e Doutorando em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Bolsista de Pesquisa de Mestrado da Fundação de Amparo à Pesquisa do Espírito Santo (FAPES). Pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Subjetividade e Políticas (NEPESP/UFES). E-mail: jesiozamboni@gmail.com
Maria Elizabeth Barros de Barros é Psicóloga pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Mestre em Psicologia Escolar pela Universidade Gama Filho (UGF), Doutora em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Pós-Doutora em Saúde Coletiva pela Escola Nacional de Saúde Pública / Fundação Instituto Osvaldo Cruz (ENSP/Fiocruz). Professora Titular do Departamento de Psicologia (DPSI) e dos Programas de Pós-Graduação em Psicologia Institucional (PPGPSI) e em Educação (PPGE) da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Subjetividade e Políticas (NEPESP/UFES). E-mail: betebarros@uol.com.br.