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Barbaroi

versão impressa ISSN 0104-6578

Barbaroi  no.36 Santa Cruz do Sul jun. 2012

 

ARTIGOS

 

O ensino de filosofia na perspectiva hegeliana: a negatividade da prática pedagógica como matriz hermenêutica

 

The teaching of philosophy in hegelian perspective: the negativity of pedagogical practice as matrix hermeneutics

 

 

Roberto Roque Lauxen

Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Rio Grande do Sul - Brasil

 

 


RESUMO

Este trabalho procura compreender a relação de Hegel com o ensino em geral e o ensino de filosofia em particular. Para contextualizar a problemática educativa de Hegel investigamos o lugar da pedagogia em sua filosofia sistemática. Destacamos o significado e a organização do ensino de filosofia retomando algumas incongruências da prática de ensino e da atividade docente de Hegel. Em relação a elas procuramos sondar alguns abismos que a razão especulativa não consegue dar conta, apontando uma alternativa hermenêutica frente ao saber sistemático como fundamento filosófico para pensarmos o ensino em geral e o ensino de filosofia em particular.

Palavras-chave: Ensino. Filosofia. Hegel. Hermenêutica.


ABSTRACT

This paper seeks to understand the relation Hegel's with teaching in general and the teaching of philosophy in particular. To contextualize the problematic educative in Hegel we investigated the place of pedagogy in relation to its systematic philosophy. We detach the meaning and organization of teaching philosophy retaking some inconsistencies in the practice of teaching and teaching activities of Hegel. In relation to them we seeks some abysses that speculative reason cannot to give account, pointing a hermeneutic alternative front when knowing systematic as the philosophical foundation to think the teaching in general and the teaching of philosophy in particular.

Keywords: Teaching. Philosophy. Hegel. Hermeneutics.


 

 

A ideia de formação (Bildung) em Hegel

Embora alguns intérpretes verifiquem no pensamento de Hegel (1770-1834) uma espécie de Paidéia do homem moderno, o marco de referência no qual ele desenvolve o seu pensamento não é mais a natureza (physis), como nos gregos, mas o espírito (Geist). Neste contexto o conceito de formação (Bildung) assume um lugar de destaque e o mundo (Welt) passa agora a ser apresentado como produto da construção histórica do homem e não mais o resultado do desígnio imposto pela natureza ou por forças divinas.

Em função dessa transformação o homem se percebe como produto e produtor de si mesmo e o processo educativo passa a assumir um papel definidor da cultura, no sentido de promover uma espécie de segundo nascimento. É assim que a ideia de formação (Bildung) emerge nos pensadores do iluminismo, romantismo e idealismo alemão1, ela carrega em si a perspectiva de humanizar o homem. O iluminismo (Aufklärung) introduz ainda um elemento a mais, a tarefa de emancipar o homem de sua menoridade (cegueira, infância, ingenuidade).

A filosofia do espírito de Hegel identifica-se com essa ideia de formação do homem (Bildung), por isso, entender qual o lugar que ela ocupa em sua filosofia sistemática pode explicar por que razão ele não levou a cabo seu projeto de escrever uma Staatspädagogie (pedagogia política), como relata na Carta a Niethammer de 1821 (BOURGEOIS, 1978, p. 23). A razão está no fato de Hegel entender sua filosofia do espírito também como uma "antropologia" e uma "pedagogia"; portanto, escrever uma pedagogia separada do sistema do espírito seria algo redundante.

Sendo assim, a problemática educativa em Hegel só pode ser devidamente recuperada - para além de sua menção explícita ao tema educativo em textos circunstanciais como são os Discursos e os Informes, como veremos - percorrendo as alusões que ele realiza ao largo de sua exposição sistemática. Por exemplo, a Fenomenologia do espírito pode ser lida dentro desse processo da saída do homem de sua consciência ingênua e particular até a consciência universal; a Filosofia do direito desenvolve a pedagogia da inserção da vontade livre e imediata do sujeito na vida política.

É nesse contexto amplo que podemos confirmar, sem dúvida, o grande legado de Hegel para educação, a saber, a sua concepção dialética entre homem, sociedade e história. Qualquer que seja a pedagogia a ser revelada no interior do seu sistema, ela deve chamar-se "pedagogia política". É dessa concepção dialética, que compreende a educação como um processo global, contrário à fragmentação, que podemos derivar os processos educativos e pedagógicos.

É tarefa grandiosa reconstruir essa orientação pedagógica implícita ao sistema hegeliano, Porém, nossa exposição é mais modesta. Em certo sentido contorna essa noção de educação implícita na sua obra sistemática. Seguimos a trajetória empírica e pragmática de sua atividade docente, relatada em alguns discursos e cartas de dois períodos principais, Nuremberg e Berlin, em que nosso autor se depara com os dilemas práticos do ensino. Se a distinção é correta nossa abordagem é externa ao sistema, embora seja evidente e impossível desconectar tais notas exteriores e ocasionais das noções principais de sua filosofia sistemática. Nossa exposição tem, além disso, uma segunda delimitação, a de destacar a problemática do ensino de filosofia.

 

Hegel e o ensino de filosofia

Foram as demandas profissionais do período de Nuremberg (1808-1816) e de Berlin que impuseram a Hegel uma consideração explícita ao tema da educação, que não havia tido lugar antes em sua filosofia. Em Nuremberg Hegel desempenhou o cargo de Professor e Reitor do Gimnasio da cidade e, nos últimos anos deste período, o cargo de conselheiro escolar da cidade. Os Discursos que pronuncia ao final do ano letivo e os Informes nos possibilitam perfilar o seu pensamento sobre o ensino em geral e o ensino de filosofia.

 

Os Discursos

Os Discursos que proferiu como reitor do Gimnásio possuem um valor conjuntural, são expressões de circunstâncias muito precisas, embora esclarecem aspectos fundamentais da problemática educativa. Nem todos os discursos possuem o mesmo valor teórico, cada um deles aborda algum aspecto fundamental. A claridade com que Hegel escreve estes Discursos é mais aparente que real, pois eles só tornam-se inteligíveis ao serem confrontados com sua filosofia sistemática. Hegel percebe a realidade educativa transpassada por um múltiplo processo dialético e intenta levar a cabo, através de uma ação mediadora, os distintos pólos que a configuram (GINZO, 1991, p. 26-30).

Nestes escritos Hegel demonstra uma preocupação, não tão distante da nossa, com o estado em que se encontrava o ensino em geral e o ensino de filosofia em particular, diante dos interesses pragmáticos do mundo moderno, voltado para a formação de habilidades práticas, desconsiderando a atividade teórica. Procura assim dar uma resposta a tal desafio mostrando a natureza e a peculiaridade do saber filosófico no seio da cultura moderna, prolongando as reflexões de outros representantes do Idealismo Alemão, tal como Schelling nas Lições sobre o método de estudos acadêmicos. Nos Discursos Hegel insiste no valor dos conteúdos para a educação, contra a tendência de centrar o ensino no sujeito. Este enfoque também repercute no ensino de filosofia.

 

Os Informes sobre o ensino de filosofia

Os escritos que abordam especificamente o ensino de filosofia são os Informes, resultado das atividades docentes de Hegel e como consultor do governo para assuntos educacionais. Eles são escritos em função de demandas diferentes: um escrito em 1812 em Nuremberg enviado ao reformador da Baviera e outro escrito em 1822 em Berlin e enviado ao Ministério de Ensino da Prússia (BOURGEOIS, 1978, p. 23; 63). Nestes escritos Hegel se apresenta como um reformador do ensino, procura um corretivo para o modelo institucional existente, sem propor qualquer transformação estrutural (BOURGEOIS, 1978, p. 43).

Hegel tratará de combater duas alternativas nefastas ao ensino de filosofia que ele constata em sua época, mas que reverbera em nosso tempo: a idéia do filosofar sem conteúdo e o preconceito pedagógico do pensar por si mesmo, em detrimento de aprender pensamentos. Essas idéias conduzem a filosofia para intentos popularizadores, uma vez que na filosofia podemos emitir juízos filosóficos sem a necessidade de estudá-la, ao contrário das ciências que exigem conhecimento e estudo.

 

O ensino de filosofia numa perspectiva sistemática

No Informe de 1812, escrito em Nurenberg, Hegel comenta o modo de organização do ensino, procurando uma justificativa prática e teórica para a Normativa do ensino de filosofia realizada por Niethammer. Por um lado, põe-se de acordo com a Normativa, por outro, propõe adequações, conselhos e reformulações, ocasião na qual sua própria experiência docente joga um papel decisivo em sua argumentação que ele desenvolve com base nos conteúdos (disciplinas) e métodos de ensino.

Podemos observar uma dupla preocupação de Hegel quanto às reformulações que propõe. Por um lado, adequar os conteúdos curriculares à filosofia sistemática e assim encontrar um sentido para o ensino de filosofia. Por outro lado, observa-se uma grande sensibilidade de Hegel para com a prática do ensino, que nos permite identificar uma ruptura entre o papel de filósofo e de pedagogo, sem conciliação possível.

 

As críticas de Hegel ao ensino de filosofia no horizonte da Wissenschaft

Quanto ao primeiro aspecto, a necessidade de adequar os conteúdos curriculares à visão de conjunto dos saberes e seus respectivos graus de abstração, Hegel irá se opor a uma dupla perspectiva: à prática de filosofia formal e vazia de conteúdo, ou seja, de se aprender a filosofar sem conteúdo e a tendência de "originalidade", em que cada um teria a seu arbítrio suas próprias visões filosóficas. Desde cedo Hegel lançou suspeita sobre a alternativa aprender a filosofar ou aprender filosofia, como vemos em Kant (1983, p. 407-408):

[...] não é possível aprender qualquer filosofia; pois onde esta se encontra, quem a possui e segundo quais características se pode reconhecê-la? Só é possível aprender a filosofar, ou seja, exercitar o talento da razão, fazendo seguir os seus princípios universais em certas tentativas filosóficas já existentes, mas sempre reservando à razão o direito de investigar aqueles princípios até mesmo em suas fontes, confirmando-os ou rejeitando-os.

Para Hegel estas noções são conjuntivas e não disjuntivas: quem aprende filosofia aprende também a filosofar. Ao contrário de Kant, para quem não se pode aprender a filosofia, mas só aprender a forma, o filosofar, Hegel considera que a filosofia é objeto de uma aprendizagem, mas acrescenta que ela "deve ser aprendida e ensinada como qualquer outra ciência" (HEGEL, 1991, p. 140).

Para Hegel a filosofia pode ser ensinada porque ela possui um conteúdo positivo, um conteúdo verdadeiro que decorrente de sua concepção enciclopédica do saber. A filosofia a ser ensinada "como qualquer outra ciência" apenas difere do saber científico particular, por almejar o conhecimento da totalidade e a exigência de um saber sistemático. A aprendizagem da filosofia supõe um esforço notável de rigor e de estudo que resulta em abrir-se aos resultados conquistados pelos demais.

Esta postura da filosofia receptiva ao conteúdo está apta a corrigir muitas das confusões que existiam na época sobre o ensino de filosofia e, ousamos dizer, ainda hoje. Porém a relação que Hegel mantém com o conteúdo em seu sentido sistemático e enciclopédico, igualando-a à positividade da ciência que redunda em uma superação da própria história da filosofia, ao encontrar o seu conceito dialeticamente acabado. Aprender um conteúdo filosófico não é incutir algo na mente, que poderia estar disponível na história da filosofia, disponível contingentemente e disponível para apreendê-lo num processo pedagógico particular. Aprender filosofia é aprender os conteúdos essências, é aprender a pensar o divino, a própria constituição do pensamento. Essa é a lição maior de um saber que tem a pretensão de ser Enciclopédico.

Hegel compreende a filosofia como ciência (Wissenschaft) da totalidade, do sentido do saber e da determinação do real e, por sua vez, da organização das ciências; a filosofia é o mundo invertido, o real elevado ao conceito. As ciências particulares só encontram sua verdade na filosofia e estão a ela submetidas. Por isso aprender filosofia também é um processo de formação do filósofo no sentido de ele aceder ao saber verdadeiro, ao saber especulativo da razão; só assim pode julgar o saber sedimentado na história da filosofia.

A mesma contestação é dirigida ao prurido de educar com vistas a pensar por si mesmo. Segundo Hegel, a possibilidade de pensar sem conteúdo, o mero divagar, é um dos preconceitos da pedagogia moderna. Disso decorre os intentos popularizadores da filosofia. Para ele a filosofia não deve descer até o povo, mas o povo deve se elevar até ela.

Hegel pensa os conteúdos não como pedras que depositamos na mente, mas como uma formação de si mesmo, não é possível separar o conteúdo da forma, ao pensarmos conteúdos filosóficos formamos nosso pensamento. O pensamento pensado, universal e verdadeiro, produto do trabalho de muitos gênios, ultrapassa o pensamento pensante. Isto não significa que não haja apropriação individual, mas a aprendizagem individual, ao se ocupar com o essencial, que nunca é o próprio, é sempre uma apropriação de algo essencial que ultrapassa o próprio. A representação original que os jovens fazem dos objetos essenciais é para Hegel opinião, ilusão. Isto significa que o filosofar não se constitui como mera intuição. O pensamento original é vazio e curto. Hegel parece desconfiar de qualquer tipo de estado original no sentido de Rousseau ou a tabula rasa de Locke. Mas a forma pela qual nos apropriamos deste saber essencial é bem conhecida, pedagogicamente falando, nos diz Hegel (1991, p. 141): "o professor o possui; ele o pensa previamente, os alunos o pensam depois".

O conteúdo filosófico, diferente do científico, religioso ou artístico, reveste-se de três formas em seu método: abstrato, dialético e especulativo. Abstrato enquanto se encontra no pensamento em geral, é o intelectual, o determinado; o dialético é o movimento e a confusão desta determinação, é a razão negativa. "O especulativo é o racional em seu sentido positivo, o espiritual, só ele é propriamente filosófico" (HEGEL, 1991, p. 141, grifo do autor). Somente o especulativo que procede da dialética (conceito) é filosófico, o especulativo que vem da representação (religião), ou da sensação (arte) não pode sê-lo. Para Hegel esta divisão, que constitui em essência o conteúdo do filosófico em relação aos outros saberes, explica porque o especulativo não pode ser objeto de ensino no ginásio. No Gimnasio se deve ensinar o abstrato que supera o concreto (conteúdo sensível); o jovem deve aprender a ver que a representação concreta é apenas a sombra que tem sua razão no abstrato, enquanto determinação. O abstrato é a forma sem o conteúdo especulativo (sem a verdade sobre a coisa), tal como a lógica formal que não compreende o pensamento organizado em princípios (lógica especulativa), ou como a ciência particular que não compreende a lógica de sua articulação com a totalidade da natureza e do espírito. A dialética desenvolve a sistematicidade do saber - ao contrário da dialética kantiana presa às antinomias - por isso desperta "menos interesse nos jovens ávidos de matéria e de coisas palpáveis" (HEGEL, 1991, p. 143). Sendo assim, os jovens do Gimnasio não estão aptos a este tipo de conhecimento que apenas deve ser desenvolvido na universidade.

Hegel ainda identifica esses três momentos anteriores com o entendimento e a razão. A forma abstrata do conteúdo filosófico corresponde ao entendimento; a forma dialética e especulativa à razão. Entende que elas são complementares: o entendimento lida com a matéria; a razão como o espírito, com o saber em si. Hegel aplica este tipo de consideração ao ensino da filosofia. Nesse sentido, o ensino do Gimnasio assume a condição de introdução à prática do conhecimento especulativo; está no nível do entendimento, sendo assim, o pensamento especulativo apenas pode ser desenvolvido na universidade (BOURGEOIS, 1978, p. 70).

Pode-se verificar aí um sentido estrito e um sentido lato ao ensino de filosofia. Em sentido estrito a filosofia enquanto saber especulativo é restrita a um pequeno número, que exclui as mulheres, e só pode ser ensinada na universidade. Em sentido lato, ela tem pretensão limitada, tem uma orientação preparatória, e pode ser ensinada no Gimnasio (BOURGEOIS, 1978, p. 43).

 

A organização curricular do ensino de filosofia no Gimnasio

A partir dessas considerações sobre a organização do saber, Hegel procura inferir alguns aspectos sobre a organização curricular do ensino no Gimnasio. Segundo as normas do ensino de filosofia da época, proposta por Niethammer, a filosofia no Gimnasio estava prevista em todos os níveis, e tinha a finalidade de iniciar os alunos no pensamento especulativo até um nível de maturidade requerido para o estudo sistemático da filosofia na universidade.

O Informe de 1822 inicia com uma constatação geral da experiência de Hegel na Comissão de admissão na universidade de que os jovens que a ela acorrem são imaturos e ignorantes e embora desencorajados, insistem na admissão2. Espera ainda que o ensino universitário prepare os jovens não apenas para ganhar o sustento, mas também que forme seu espírito. Esta constatação lhe permite apresentar sua "modesta opinião" sobre qual a função ou significado do ensino no Gimnasio e os conteúdos dos estudos filosóficos a serem ministrados.

Quanto ao significado do ensino no Gimnasio Hegel está de acordo com o Ministério real de que o saber especulativo da filosofia ou a "exposição da filosofia" no sentido enciclopédico deveria ser excluído do Gimnasio e reservado ao ensino universitário. O ensino no Gimnasio, segundo Hegel (1991, p. 150), deve ter as seguintes características, é um "membro intemediário", constituído como uma "preparação mais direta para o estudo universitário da filosofia", consiste na "familiarização com os pensamentos formais"; deve ocupar-se com as "representações universais" e as "formas de pensamento".

Quanto ao âmbito mais determinado dos conteúdos ele sugere a exclusão do estudo da história da filosofia, uma vez que sem a pressuposição de uma idéia especulativa ela se transforma numa narração de opiniões contingentes e ociosas; seria um "esforço inútil" ensiná-la aos jovens (HEGEL, 1991, p. 150).

Segundo Bourgeois (1978, p. 65) o primeiro grupo de estudos, prescritos para as classes inferiores do ensino no Gimnasio é o direito, a ética e a religião, porque tais ensinamentos reenviam diretamente à existência, mais adaptada ao espírito dos jovens. Hegel (1991, p. 149) considera que o estudo das concepções clássicas e da verdade religiosa já forneceria uma boa preparação para o estudo da filosofia, na medida em que sensibilizaria o espírito do jovem para o conteúdo substancial, superando a trivialidade e os interesses ordinários.

Aconselha ainda um currículo com outras duas disciplinas, psicologia empírica e elementos de lógica, segundo Bourgeois (1978, p. 65), prescrito para as classes médias do ensino no Gimnasio. A Psicologia empírica se ocuparia das sensações, da imaginação, da memória e outras capacidades da alma "interessantes" e "úteis", que competem ao pensamento intuitivo, "proporcionaria uma introdução mais direta ao âmbito da lógica" (HEGEL, 1991, p. 151).

Embora seja pouco valorizada pelos jovens e pouco atrativa para iniciantes, Hegel reconhece a importância da lógica e o contato dos jovens com pensamentos formais, como base para qualquer tipo de conhecimento. Importância reconhecida também por outras áreas. Elementos de lógica trataria da teoria do conceito, do juízo, do silogismo etc., eliminando a abordagem especulativa da lógica transcendental, no sentido da análise das categorias do entendimento de Kant.

Hegel sugere a exclusão da metafísica geral, embora aconselhe manter a teologia natural e as provas da existência de Deus. A moral deve tratar da natureza da vontade, da liberdade, dos direitos e deveres e as obrigações do homem e do cidadão. Assim as disciplinas principais que Hegel sugere para a organização curricular da filosofia no Gimnasio se resumem a quatro: Psicologia empírica, Elementos de lógica, Teologia natural e Moral.

Em função desse caráter propedêutico, o ensino de filosofia deve ter pretensões e espaço limitados no Gimnasio. Deveria ser reduzido a duas horas semanais, às disciplinas de moral, religião, psicologia e lógica durante um ou no máximo dois anos e reservada aos últimos anos do Gimnasio. (BOURGEOIS, 1978, p. 63).

Mas não podemos deixar de mencionar o desapontamento de Hegel (1991, p. 181) quanto ao ensino de filosofia no Gimnasio na Carta que dirige a Niethammer (1812) cheia de escusas e desapontamentos quanto à sua viabilidade, onde pondera que o ensino de filosofia poderia ser considerado supérfluo, igualmente os professores de Ciência Filosófica no Gimnasio. Como vimos acima, a prática de filosofia no ensino preparatório do Gimnasio para Hegel não pode ser considerada filosófica em sentido rigoroso, por isso é um ensino preparatório, que está orientado para o interesse ordinário, para o abstrato; está no plano do entendimento, do razoável, meio termo entre a representação e a razão (BOURGEOIS, 1978, p. 64).

 

A negatividade da prática pedagógica em Hegel

Pode-se observar a grande sensibilidade pragmática de Hegel para com a prática do ensino, nos Discursos e nos Informes. Procura priorizar certas disciplinas em detrimento de outras, que devem ser executáveis na prática em função do respeito aos interesses dos alunos. Preocupa-se em verificar a adequação dos conteúdos a certo tipo de "psicologia" do desenvolvimento, por exemplo, a necessidade de priorizar o concreto nos primeiros níveis, como afirma Hegel (1991, p. 134-135): "que se comece pelo existente e a partir daí se faça avançar a consciência até o mais elevado, até o pensamento". Também observa a adequação à faixa etária e às variáveis da própria experiência docente que exige readaptações. Neste caso, como sugerem algumas passagens, Hegel (1991, p. 135) utiliza o método de tentativa e erros: "desde então não tenho mais repetido esta experiência"; e mais adiante, "ao perceber que [os alunos] já estavam familiarizados com a maior parte do círculo filosófico científico; detive-me, então, especialmente, à filosofia da natureza" (HEGEL, 1991, p. 138). Convém destacar ainda a queixa de Hegel (1991, p. 134; p. 154) da falta de manuais adequados para o ensino e não mede palavras para tecer críticas a certos livros, que segundo ele são "tão aborrecíveis, inedificantes, carentes de vida e de espírito que não se pode suportar de modo algum" (HEGEL, 1991, p. 135).

Todas essas contingências e adequações relativas à prática do ensino estão subordinadas à finalidade do ensino filosófico no Gimnasio que é preparar e habilitar o jovem para atividades intelectuais mais elevadas na Universidade. Estas contingências do ensino e o ônus de ensinar alunos sem o menor preparo também repercute na universidade (HEGEL, 1991, p. 147).

Pode-se notar nesta situação prática do ensino uma ruptura entre a função de pedagogo e de filósofo. A prática pedagógica exige a adoção de uma dialética da práxis, momento em que a reflexão do filósofo se une ao homem Hegel e ao pedagogo submetido às contingências do ensino. E neste momento que podemos, novamente, por em questão a relação entre filosofia e pedagogia, e o papel da pedagogia em seu pensamento. Não apenas o pedagogo-filósofo que tem um papel relevante no contexto iluminista ao qual ele pertence, mas ao professor Hegel em sua condição existencial, para o qual, apesar de considerar supérfluo o ensino no Gimnasio, pondera, por exemplo, que não poderia se opor a ele, em vista de seu próprio posto de trabalho, privando a si mesmo de seu ganha pão (HEGEL, 1991, p. 181).

Podemos notar em várias passagens dos escritos pedagógicos a crítica que Hegel faz ao tipo de perspectiva filológica, interpretativa que começa a aflorar em sua época, o tipo de "palavrório estético", com nos diz, que está contaminando os estudos filosóficos (HEGEL, 1991, p. 159; 181). Mas perguntamos não estaria ai o verdadeiro projeto de reconciliação da filosofia com a realidade e com o ensino? Esta questão exige impor um limite às pretensões de uma filosofia dialética. Talvez o conceito de experiência (Erfahrung) de Hegel, que Heidegger e depois Gadamer meditaram em profundidade, que designa a experiência aberta e se aproxima do tipo de práxis errante a qual Hegel está submetido sensivelmente em sua prática pedagógica pode pôr-nos na pista de um sentido diferente da dialética, mais próxima do sentido grego do diálogo que não pressupõe, como na dialética hegeliana, a espécie de conciliação última das contradições.

É no esforço da visão do todo e do universal que Hegel elabora sua crítica à idéia do filosofar formal e do pensar por si mesmo que se legitimaria, em última instância, a partir do imediato. Mas é exatamente aí que decorre nossa dúvida. Varias fendas se abrem quando passamos à consideração dessa visão do avesso, do imediato e do concreto, ou seja, da própria prática de ensino, e seu poder negativo: o método tão pouco rigoroso quanto o da tentativa e erro na prática docente com os alunos, que impede que o sistema possa se fechar num saber. A necessidade de ganhar o pão de cada dia, apesar da ação infrutífera do ensino; a necessidade de adequar-se às exigências do aluno; a adequação curricular, a psicologia do desenvolvimento; a organização curricular em função dessa mesma psicologia. Hegel se deteve em pensar a prática segundo uma Normativa de ensino, tal como nós que procuramos adequar nossos procedimentos de ensino a partir dos Lei de Diretrizes e Bases da Educação.

Para Hegel a volta às coisas mesmas não se constitui nesse plano do imediato e empírico, mas da idealidade do conceito que joga para adiante essa negatividade, que a valoriza apenas como superada no conceito. O pensamento dialético de Hegel se livra fácil destas objeções que estamos propondo, porque só há prática de ensino e uma crítica desta prática em função da exigência de um conceito sobre a mesma prática. De fato, não é justo criticar Hegel quanto a isso, este na verdade é seu grande mérito, a perspectiva de um projeto político pedagógico enraizado num plano maior de emancipação do homem. Ou seja, Hegel desloca o nível normativo para o plano crítico e reflexivo de uma pedagogia política. O que pode e deve ser criticado em seu projeto é o horizonte de certeza no qual ele se engaja e fundamenta o ensino, em que todos os elementos concretos e até mesmo trágicos da ação prática são incorporados numa racionalidade englobante, passível de ser controlada.

É precisamente a dúvida e a ausência de um horizonte último que nos conduz a uma visão alternativa. Quando se está de posse de um horizonte último não é mais possível ser criticado, tal como as pessoas que estão dogmaticamente convencidas da verdade de sua fé, onde a verdade é definitiva o diálogo acaba. Quando estamos de posse de uma caixa infinita, ao pormos uma caixa dentro da outra, todas serão menores e relativas. Não se pode definitivamente refutar Hegel neste plano e sobre ele apenas devemos reconhecer a sua maior contribuição em função de uma visão orgânica do ensino. A questão é que não existe este horizonte infinito e devemos adequar nossa compreensão aos limites de nossas caixas finitas. É esse sobrevôo que deve ser evitado a fim de dar conta da dialética mais concreta do enfrentamento face à face com seu outro, a dialética entre distanciamento e apropriação, a única realmente válida quando não se dispõe de um saber absoluto (GADAMER, 1998).

Numa leitura mais atenta e negativa do intento de Hegel, a exemplo de Adorno, podemos sacar no intercurso de seu processo de redução e síntese, o seu lado avesso, como já notamos, na insatisfação e decepção em relação ao ensino de filosofia, sobretudo com os jovens do Gimnasio, o verdadeiro desafio da tarefa de ensinar filosofia. É possível afirmar que é na desproporção entre o saber especulativo de um lado e as aventuras do pensar por si mesmo e do filosofar, de outro, que se abre alternativas negativas ao saber enciclopédico e absoluto. Não estaria nesta prática da filosofia com os jovens e sua imersão no espaço público o desafio maior da filosofia no seio da cultura? Sócrates se aventurou por estas sendas e por caminhos tortuosos que, muitas vezes, não conduziam a lugar algum - como os caminhos florestais (Holzwege) de que nos fala Heidegger -, mas impunha aos herdeiros da polis a necessidade de voltarem-se para si mesmos, sub-determinando uma reformulação da ideia política do viver junto. Novas alternativas filosóficas no mundo contemporâneo são herdeiras desse modo de filosofar e produzem seus efeitos sobre nós.

A alternativa hermenêutica, para fazer justiça ao termo enunciado no título, conduziu implicitamente nossa exposição crítica da perspectiva sistemática e enciclopédica de Hegel. Porque não estamos mais de posse de um horizonte último, precisamos de um modelo diferente para pensar os fundamentos do ensino e de sua organização. Resta-nos a alternativa de uma fusão de horizontes ou do conflito de interpretações. Não estaria na espécie de jogo - que Gadamer aplicou tão bem ao problema estético e ao problema da linguagem enquanto diálogo, no jogo da pergunta e resposta - um modo de reverberar a velha dialética socrática e platônica onde deveríamos encontrar a resposta para os fundamentos e a prática do ensino de filosofia?

 

A modo de conclusão: o legado de Hegel

Ao frequentar os textos pedagógicos de Hegel fomos confrontados com o aspecto mais empírico do seu pensamento, onde ele depara-se com as incongruências práticas do ensino. No caso do ensino de filosofia, sua posição variou desde uma tentativa de adequação do saber à prática até a completa renúncia desta atividade para as mentes não preparadas. Esta percepção é decorrente de sua visão de filosofia como saber especulativo, que deve ter seu lugar de destaque na universidade. Os desafios do ensino de filosofia no Gimnasio, que Hegel enfrentou em sua época, ainda reverberam no presente e provoca-nos o mesmo tipo de questionamento.

Por um lado, devemos reconhecer o mérito da proposta de Hegel e sua concepção dialética da educação que se vincula à intenção de articulação dos saberes e reflete hoje a tendência interdisciplinar e transversal do ensino. Ela oferece a busca de articulação em meio ao horizonte fragmentado da compreensão dos saberes que estão desfundados. Neste sentido, ele nos faz recordar não tanto a necessidade de fundamentos últimos para o ensino em seus conteúdos, métodos, currículos, mas a possibilidade de sua articulação, certa unidade na diversidade.

Por outro lado, o grande dilema de Hegel é a espécie de horizonte único e a-histórico a partir do qual ele incluiu essa proposta dialética. Sua tentativa é a tentação da filosofia que desafia a dinamicidade do próprio saber e de seu limite histórico. Hoje não dispomos mais desta mesma certeza na organização dos saberes, por isso estamos impossibilitados de nos manter na mesma convicção de Hegel - o que explicaria certamente a falta de consenso sobre os conteúdos e os métodos do ensino de filosofia. Porém, reconhecemos que esta tarefa de pensar em conjunto, em conexão, é a razão de ser da própria filosofia, ainda que a tarefa de unidade seja apenas sua "terra prometida" - parafraseando a expressão bíblica. A tentativa hegeliana, para nós, continuará sendo uma tentação. Isolada deste contexto metafísico, podemos retirar um significado prático profundo das contribuições de Hegel, para pensarmos o ensino de filosofia como destacamos.

 

Referências

ADORNO, Theodor W. Dialética negativa. Tradução de Marco Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.         [ Links ]

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Recebido em: 16.04.2011
Aceito em: 02-07-2012

 

 

Sobre o autor
Roberto Roque Lauxen possui Graduação em Filosofia (FAFIMC) Mestrado em Filosofia (PUCRS). Doutorado em Filosofia (UNISINOS) com Estágio Sandwich na École Pratique des Hautes Études (EPHE-Sorbone). Tem experiência de docência em nível de Graduação e Pós-Graduação. E-mail: rrlauxen@yahoo.com.br

 

 

1 Bernard Bourgeois (1978, p. 7-43) destaca em detalhes este contexto histórico no qual se gestou a concepção de educação em Hegel.
2 Observa Hegel (1991, p. 147-148) que não possuem a devida formação em ortografia, não sabem latim, grego, matemática ou história. Embora sejam desaconselhados, assim mesmo solicitam admissão. Solicita então critérios de seleção mais rigorosos. Espera ainda que o ensino universitário prepare os jovens não apenas para ganhar o sustento, mas forme seu espírito.