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Barbaroi

versão impressa ISSN 0104-6578

Barbaroi  no.38 Santa Cruz do Sul jun. 2013

 

ARTIGOS

 

Para além dos muros institucionais: problematizando os discursos dos egressos do sistema prisional1

 

Beyond the walls of institutionalism: exploring the discourses of former convicts

 

 

Jusiene Denise LauermannI; Félix Miguel Nascimento GuazinaII

ICentro Universitário Franciscano (UNIFRA) - Santa Maria - Rio Grande do Sul - Brasil
IICentro Universitário Franciscano (UNIFRA) - Santa Maria - Rio Grande do Sul - Brasil

 

 


RESUMO

Este trabalho procurou compreender os discursos dos egressos do sistema prisional sobre a sua condição de ex-encarcerado, bem como a incidência dos processos institucionais na construção da subjetividade desses sujeitos. As vivências do sujeito na prisão e a experiência de saída interferem na construção da sua subjetividade e na maneira como interage socialmente. Como metodologia, adotou-se a abordagem qualitativa, tendo por ferramenta a entrevista semi-estruturada. As entrevistas foram realizadas com cinco egressos de um Presídio do Rio Grande do Sul e submetidas à análise de discurso. Obteve-se como resultados alguns pontos que se revelaram recorrentes: o processo de encarceramento, o estigma, a exclusão, a recuperação dos vínculos familiares, a falta de oportunidades e a reincidência. Frente a isso, as possibilidades da Psicologia, nesse contexto, seriam: atuar na construção de políticas públicas voltadas ao sistema prisional e ao apoio ao egresso e, problematizar as formas de subjetivar produzidas nesse espaço.

Palavras-chave: Egressos do Sistema Prisional. Encarceramento. Subjetividade.


ABSTRACT

This work aims to understand the discourses of former convicts on their conditions, as well as how prison institutions focused on the construction of subjectivity among these people. The experiences of those in prison and how this experience contributes to the construction of subjectivity after their departure from prison as well as how they integrate socially. It was approached as a methodology, a qualitative approach, using semi-structured interviews. The interviews were conducted with five former convicts from a Prison in Rio Grande do Sul and subjected to analysis of speech. Among the results, some points have proved to be recurrent: the process of incarceration, stigma, exclusion, the recovery of family ties, lack of opportunities and relapse. Given this, the chances of Psychology in this context would be: to act in the construction of public policies geared to the prison system and support for former convicts and, debate forms of institution subjectively produced in prisons.

Keywords: Former Convicts of the Prison System. Incarceration. Subjectivity.


 

 

Introdução

Na sociedade brasileira, a violência e a segurança pública constituem-se em campos complexos e constantemente problematizados. O sistema prisional, encarregado da função punitiva do Estado e, modernamente, da função reintegradora, tem se alinhado a uma lógica produtivista de máximo aproveitamento das forças sociais (MENDONÇA FILHO, 2005). A maneira como tal sistema foi se constituindo e como ele, ao longo dos anos, foi produzindo formas de subjetivari, traz, para a discussão, não só o sujeito encarcerado, mas toda uma sociedade que legitimou determinadas formas de se abordar esse sujeito. Sociedade para a qual o sujeito retornará marcado por uma vivência que lhe imprimiu certo modo de lidar com a vida cotidiana.

Desenvolver um trabalho tendo por foco sujeitos que, em algum momento de suas vidas, foram encarcerados, passa, portanto, pela compreensão de algumas ideias sobre o universo institucional prisional e as suas técnicas punitivas, corretivas, de controle e de inspeção. Dito de outro modo, compreender os discursos dos egressos do sistema prisional sobre a sua condição requer um entendimento sobre a instituição prisão. Foi nela que esses sujeitos ficaram inseridos por um determinado período, onde se deu parte do seu processo de subjetivação.

Cada sociedade, à sua época, privilegiou táticas punitivas diferentes. A nossa, por exemplo, utiliza-se da clausura e possui um caráter penal, por isso, Foucault (2007b) denomina-a "sociedade que enclausura". A implantação desse enclausuramento, a prisão, mistura diferentes condenados e, devido aos hábitos que impõe, pode provocar que os detentos passem a se dedicar definitivamente à criminalidade. O que ocorre, conforme o autor, é que a noção de crime e de punição é tratada, a partir da segunda metade do século XVIII, tendo em vista o interesse da sociedade e a necessidade de protegê-la.

Logo, a prisão, com o intuito de proteger a sociedade, ao constituir uma população marginalizada, serve para controlar as irregularidades que não são toleradas dirigindo os delinquentes às regiões da população que requerem maior vigilância. Com as irregularidades integradas a um único espaço, busca-se a transformação e a classificação dos sujeitos aprisionados. Cabe à prisão e aos seus dispositivos aplicar uma disciplina constante, tendo por princípios: o isolamento do condenado em relação ao mundo exterior e aos outros detentos, de forma a abafar cumplicidades e revoltas; o trabalho como causador de transformação carcerária, impondo a ordem e a regularidade; e a duração do castigo como forma de buscar a transformação útil do detento durante a sua condenação (FOUCAULT, 2007b).

Nesse contexto de disciplinamento e transformação do sujeito, o sistema penal procurou suporte não só em uma teoria do direito, mas também em um saber sociológico, psicológico e médico, como se a lei só pudesse ser autorizada por esses discursos. Assim, aparece em cena a Psicologia que, historicamente, assumiu funções de regulação e controle (FOUCAULT, 2007b). Por isso, uma de suas atribuições iniciais, se não a única, no sistema prisional, ser a de realizar o exame criminológico que tinha por objetivo avaliar as condições do preso quanto à execução de sua pena. E, mesmo com a lei de 2003 que deu nova redação à Lei de Execução Penal (LEP), extinguindo tal exame, ele ainda é solicitado aos psicólogos que, muitas vezes, presos à elaboração de pareceres para esse exame, deixam de prestar uma assistência psicológica voltada para a emancipação e não para a segregação no sistema penitenciário (CONSELHO REGIONAL DE PSICOLOGIA /RJ, 2005).

Uma pesquisa realizada pelo Conselho Federal de Psicologia, em 2007, envolvendo os psicólogos que atuam no sistema prisional, evidenciou que, entre as dificuldades encontradas nesse campo, está a realização dos laudos e dos pareceres, pois, para os presos, os psicólogos são os únicos responsáveis pela progressão ou não de suas penas. Ou seja, há a visão de que os psicólogos definem quem está apto ou não para cumprir a pena em regime semiaberto, o que interfere na relação desses profissionais com os presos. E, apesar da elaboração de laudos, pareceres e avaliações psicológicas, não ser a única atividade realizada pelos psicólogos nessa área, ela acaba sendo a mais solicitada, já que tais documentos auxiliam o Sistema Judiciário, a Vara de Execuções Penais e as Instâncias Superiores nas decisões sobre a vida das pessoas presas (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2009).

Acerca da elaboração de documentos para o Sistema Judiciário, Foucault (2007b) refere que há um anseio por parte dos juízes em poder avaliar e diagnosticar o normal e o anormal, formulando quase que um veredito terapêutico. Trata-se, pois, do poder normalizador. Sobre essa questão, cabe lembrar que a distinção entre o normal e o anormal trouxe, em vários momentos (sem nunca desaparecer totalmente), a ideia de que é possível prever a criminalidade através de determinados traços físicos. Nesse sentido, no século XIX, as ideias da Antropometria Criminal de Cesare Lombroso e da Sociologia Criminal de Enrico Ferri, propunham que a criminalidade poderia ser prevista através de determinados traços faciais ou que a existência de um cromossomo Y extra explicaria a violência praticada por algumas pessoas (BICALHO; KASTRUP; REISCHOFFER, 2012). Na época, Lombroso desenvolveu pesquisas e projetos envolvendo a medida de cérebros, crânios e esqueletos com o intuito de compreender o tipo humano destinado ao crime (tendência inata). A personalidade do criminoso e a sua constituição biológica e física eram estudadas a fim de explicar a criminalidade e o comportamento desviante (PESAVENTO, 2009).

Atualmente, segundo Tavares & Menandro (2004), o que se tem são pesquisas voltadas à busca de genes que possam trazer uma explicação. Com isso, evidencia-se que, teorias deterministas como essas, corroboram para a criação de um perfil do suposto criminoso, colaborando ainda mais para a sua exclusão social, para a manutenção de um sistema prisional que tem se mostrado ineficiente e para eximir a responsabilidade e o compromisso social envolvidos nesse tema.

Frente a essas práticas contribuintes para a classificação e controle dos que resistem à normalização disciplinar, torna-se relevante refleti-las e problematizá-las, pois será a partir do vivido no contexto prisional tomado por tais práticas, que o egresso do sistema prisional retornará à sociedade. Os discursos que ele produz acerca dessa instituição e do que vivenciou nela, podem dizer algo sobre a sua forma de interagir e de se inserir nos diversos contextos sociais. Diante disso, o propósito deste trabalho foi compreender os discursos que os egressos do sistema prisional apresentam sobre a sua condição e como o processo de encarceramento pode ter incidido na construção da sua subjetividade.

 

Metodologia

O estudo em pauta propôs-se a trabalhar a partir de uma abordagem qualitativa de caráter exploratório. Conforme Minayo (1994), a pesquisa qualitativa preocupa-se com o mundo dos significados das ações e relações humanas que não podem ser quantificados.

Cinco egressos do sistema prisional residentes na cidade de Santa Maria/RS participaram da pesquisa. Com eles, foram realizadas entrevistas semi-estruturadas, elaboradas a partir dos objetivos propostos pela pesquisa e de leituras anteriores à coleta de dados. De acordo com Minayo (1994), as entrevistas semi-estruturadas pressupõem perguntas previamente formuladas, mas que não impedem uma abordagem mais livre sobre o tema proposto. Deste modo, teve-se por foco a experiência de saída, pelos participantes do estudo, do Presídio Regional de Santa Maria/RS (PRSM) e questões a respeito da vida deles fora da instituição.

Fez-se o uso de gravador de áudio com o consentimento dos entrevistados que, ao concordarem em conceder a entrevista, assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido -TCLE. O anonimato deles foi garantido, utilizando-se nomes fictícios. Além disso, em seus relatos, foram excluídas informações que pudessem identificá-los, com exceção da idade. As entrevistas foram realizadas no mês de abril de 2011 em horários e turnos alternados conforme a disponibilidade das pessoas entrevistadas.

Os sujeitos entrevistados tinham entre 26 e 46 anos de idade e todos estavam em liberdade condicionalii há alguns meses (entre dois e nove meses), com exceção de um deles que é considerado liberado definitivo e está em liberdade há cinco anos. Eles permaneceram presos, no total (e não consecutivamente), entre dois anos e seis meses a 13 anos. A maioria deles foi presa mais de uma vez, entre duas a oito vezes. Apenas um dos entrevistados concluiu o Ensino Médio e somente dois possuem emprego fixo com carteira assinada. Todos moram com suas famílias, sendo que dois deles são casados. Foi entrevistada somente uma mulher, pois não se conseguiu contato com outrasiii.

Segue um Quadro com dados que caracterizam os entrevistados. Os nomes utilizados são fictícios.

O processo de análise dos dados obtidos foi feito através da análise de discurso, a qual visa, segundo Orlandi (2007), a tratar do discurso, ou seja, da palavra em movimento. Por meio dessa análise, "procura-se compreender a língua fazendo sentido, enquanto trabalho simbólico, parte do trabalho social geral, constitutivo do homem e da sua história" (ORLANDI, 2007, p.15). Considerando o homem, na sua história, a análise de discurso tem por interesse o processo de produção dos sentidos e a forma como os sujeitos são afetados pela língua e pela história, significando-os.

Na análise de discurso, os sentidos não se encontram unicamente nas palavras, mas também na relação com a exterioridade. Eles são produzidos em determinadas condições e mantêm relação com a ideologia, por isso, devem ser referidos a uma formação discursiva a qual, a partir de uma dada posição numa determinada conjuntura sócio-histórica, determina o que pode ou não ser dito. Assim, cabe à análise de discurso observar as condições de produção e remeter o dizer a uma formação discursiva para, então, compreender o sentido do que ali está dito (ORLANDI, 2007). Para Foucault (2007a), os discursos sofrem influências de regras sociais, institucionais e detentoras de saber, o que lhes garante serem aceitos. Isso implica afirmar que o discurso é produzido num determinado contexto social e a partir de uma construção histórica sendo, portanto, formador da subjetividade.

Conforme Maingueneau (1997), a formação discursiva dever ser compreendida a partir de uma incessante relação com o Outro. A produção do discurso se dá em um espaço de troca entre os vários discursos, os quais o sujeito se apossa, alia-se ou se confronta e se posiciona. Trata-se da interdiscursividade, já que o discurso é sempre perpassado, fundamentado ou reforçado por outros discursos. Deste modo, ele possui uma heterogeneidade a qual o impossibilita de ser homogêneo, fechado e estável.

Após a transcrição e as várias leituras das entrevistas, foram construídas categorias a posteriori, ou seja, a partir do que surgiu nos discursos. Foram organizados fragmentos temáticos similares de todas as entrevistas para, assim, ser possível identificar categorias inerentes ao discurso. Entre as categorias estão: "o processo de encarceramento e as dimensões institucionais", a "liberdade condicional" e a "identificação de reações pelos egressos do sistema prisional frente a sua condição". Por mais que tenham sido construídas essas categorias, destaca-se que essa divisão foi meramente didática, pois as temáticas não se afastam, mas se articulam o tempo todo.

 

Resultados e Discussão

O Processo de Encarceramento e as Dimensões Institucionais

O sistema prisional traz consigo questões de soberania, uso da força, privação da liberdade e coerção às normas (MENDONÇA FILHO, 2005). Seu nascimento ocorreu quando houve a elaboração, pela sociedade, dos processos para distribuir os indivíduos espacialmente, classificando-os, treinando-os e mantendo-os em observação para, sobre eles, constituir um saber. Foi por meio desse trabalho sobre o corpo dos indivíduos que se criou a instituição prisão "antes que a lei a definisse como a pena por excelência" (FOUCAULT, 2007b, p.195).

Conforme Foucault (2007b), a prisão ainda mostra-se como uma solução, apesar de seus inconvenientes. O fundamento dela está na privação da liberdade que, na nossa sociedade, pertence a todos da mesma maneira, o que significa considerar que a sua perda tem o mesmo valor para todos. Além disso, a prisão se fundamenta no seu papel de aparelho para transformar os indivíduos. Sob tal perspectiva, ao encarcerar, a prisão reproduz, de forma acentuada, mecanismos que se encontram na sociedade: funções técnicas de correção/transformação dos indivíduos. Trata-se, de acordo com Foucault (2007b), de um dispositivo disciplinar cuidadosamente articulado o qual veio a ser denunciado como um grande fracasso, já que as prisões não diminuem a taxa de criminalidade, provocam a reincidência e favorecem a organização do meio delinquente.

No Brasil, houve o aumento expressivo do número de presos nas três últimas décadas, configurando uma das maiores populações carcerárias do mundo, não assegurando melhores indicadores em segurança pública. Ao contrário, a política criminal praticada, no Brasil, parece ser uma entre as condições da origem do crime na modernidade. Além do que, não há estudos com evidências a favor da opção de política criminal baseada no encarceramento massivo (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2008). Segundo Guimarães (2010), as prisões brasileiras mantêm características dos tempos da Colônia, com precárias condições de segurança e higiene, com superlotação, punindo e segregando mais do que recuperando. A história das cadeias no Brasil, conforme a autora, mostra que, em todas as épocas, nunca se conseguiu reunir todas as condições necessárias para cumprir o que a legislação determina, persistindo, assim, as condições sub-humanas.

O que se tem são milhares de sujeitos nas prisões que, em algum momento, retornarão ao convívio social, quer seja mais habilitados a praticar crimes, por vezes, mais graves, quer seja marcados pelo estigma que, por mais que tentem, dificilmente eles terão uma chance longe da ilegalidade (ROLIM, 2006). Esse fenômeno da prática criminal foi mencionado por três entrevistados, sendo que um deles afirmou que "saí, já conheci outras pessoas. Conheci lá dentro essas pessoas que eu me envolvi aqui fora. Ai essas pessoas já faziam assalto. Quando eu entrei lá eu não fazia assalto, ai quando sai de lá, conhecendo essas pessoas..." (José, 26 anos).

Segundo o Conselho Federal de Psicologia (2008), boa parte dos egressos do sistema prisional retomam atividades ilegais, pois firmaram compromissos delituosos dentro do presídio, onde precisavam da proteção de uma ou outra facção. Condenados que, antes atuavam sozinhos pela ordem da necessidade, agora, atuam em organizações criminosas de maior ofensividade. Nesse sentido, outro entrevistado, referindo-se à vontade de cometer algum delito devido às dificuldades que estava enfrentando e ao convite insistente dos amigos para praticar um assalto, explicou que "por mais que às vezes a tentação vem e vem mesmo né? (...) Essa semana mesmo (...) me convidaram pra joga um futebol ai, mas era outro lugar sabe?" (Paulo, 32 anos).

Ao invés de inibir, o encarceramento reforça a produção do crime. E, a atividade criminal, por sua vez, provoca a reincidência, ou seja, a prisão não devolve à sociedade indivíduos corrigidos, pelo contrário, muitas vezes, fabrica delinquentes pelos próprios processos internos institucionais que a constituem e pela forma como exerce o seu poder (FOUCAULT, 2007b). O ambiente prisional proporciona que "alguns presos voltem a cometer delitos mais graves quando têm, aí, oportunidade de projetar na sociedade a revolta de anos de confinamento e tratamento desumano, caracterizado pela injustiça, abuso de poder, falta de privacidade, castigo físico" (GUIMARÃES, 2010, p.400). Acerca disso, Pedro (34 anos) assinalou que "lá tu não muda né? (...) Porque lá ninguém fala de Deus, ninguém fala de uma ressocialização pra nós, ninguém fala o que o mundo tem pra proporciona." O mesmo conteúdo pode ser observado na fala de José (26 anos):

"Lá dentro, lá no meio deles, lá dentro não é um lugar que reestrutura as pessoas pra sair pra rua, é um lugar que dependendo da cabeça sai pior de lá. A gente depende muito da família, do apoio familiar, porque lá dentro não recupera, (...)".

A respeito da reincidência, pode-se refletir sobre as reais perspectivas que os egressos do sistema prisional brasileiro têm "aqui fora", já que muitos deles se referem ao presídio como "lá dentro". Dos cinco entrevistados, quatro eram reincidentes e três deles possuem histórico de diversas prisões anteriores, isto é, eles foram mais de duas vezes presos. Pires & Gatti (2006) entendem que, tendo em vista a falta de perspectivas quanto ao futuro e a baixa escolaridade dos encarcerados, a reincidência criminal aparece em cena formando um círculo vicioso. Tal ciclo vai da falta de oportunidade à criminalidade e dessa para o cumprimento da pena que, por sua vez, leva novamente à liberdade e, consequentemente, à falta de oportunidade, dando início a um "novo" ciclo "igual".

"Daí eu sai pra rua, não me pegaram em outros empregos, por causa também que eu não tinha escolaridade, porque lá dentro não me davam esse... e pô, como é que eu vou estuda chapado, se de manhã já senta e vai fuma um baseado né? Dentro da cadeia tem isso, se tu não for quem eles é, daí tu é excluído da turma e sendo excluído tu não consegue sobrevive tanto tempo, tu não sustenta o sistema carcerário, tu tem que tá sempre na atividade" (Pedro, 34 anos).

Além da baixa escolaridade devido ao não investimento em educação e profissionalização dentro dos presídios (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2008), o entrevistado Pedro (34 anos) também considera a ideia de pertencimento dentro da prisão. Sobre isso, Goffman (1999) esclarece que um sujeito, ao ser admitido numa instituição, terá que adotar posturas as quais satisfaçam os regulamentos do local. No caso da fala anterior, trata-se dos regulamentos criados, firmados e impostos entre e para os próprios presos. "Esse novo pertencimento oferece aos presos uma nova identidade social e, por óbvio, mais chances de retomada das atividades ilegais quando novamente em liberdade" (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2008, p.22).

Com relação ao trecho "tu tem que tá sempre na atividade", tal parece vir ao encontro, mais uma vez, do fracasso do sistema prisional frisado por Foucault (2007b), no sentido de que ele não transforma e nem corrige os condenados. Isso deflagra uma contradição na medida em que a prisão contribui para a produção de um modo de subjetivação antissocial. Guimarães e cols. (2006, p.640) evidenciam que a prisão acaba por reforçar a delinquência, pois ela "sustenta o território delinquente a tal ponto que o indivíduo se assujeita". A ideia da prisão, portanto, não é a de eliminar as infrações, mas a de diferenciálas e utilizá-las para tornar útil alguns e excluir outros. Daí a prisão servir, muitas vezes, apenas para controlar, para sempre achar o sujeito patologizado: o delinquente (FOUCAULT, 2007b).

Assim, instituições, como as cadeias e as penitenciárias, foram criadas para proteger a sociedade contra perigos intencionais, contra os "delinquentes", nas quais o bem-estar dos internos não corresponde a um problema imediato (GOFFMAN, 1999). E isso fica claro no discurso dos entrevistados os quais tratam da falta de recursos e da postura dos agentes prisionais frente a isso.

"Pra ti pode utiliza alguma coisa, se você não tem dinheiro, não tem meios, ninguém, tu fica sozinha, (...). Eu lavava roupa pra as gurias que tinham mais condição que eu né? (...) pra mim pode ter o meu sabonete, o meu desodorante, algumas regalias: sabão em pó pra lava minhas roupas, um pão feito de casa assim, uma maçã" (Maria, 34 anos).

"E os agente sabe? Acho que eles são mal preparado, (...). Eles ficam cuidando pra você não fugi, ai o que pode tá te acontecendo lá dentro, eles não tão nem ai. Se tu vai morre, se tu precisa de médico... Então, dependendo da pessoa, da situação, vai criando uma certa mágoa, uma certa revolta, e ai o que deveria resolve o problema, acaba piorando" (José, 26 anos).

Quanto à postura dos agentes prisionais, questão levantada por José (26 anos), tal pode vir ao encontro do que Mendonça Filho (2005) expõe sobre o fato de que nenhum agente, ou mesmo técnicos administrativos e gestores, abordado em uma relação informal, defende ou argumenta a respeito da ressocialização. Dessa forma, pensa-se que se essa não é mencionada, não há porque dedicar um cuidado ou um "disponibilizar-se" quando um preso está passando por alguma necessidade. "Indicadores disponíveis a respeito da vida nas prisões brasileiras demonstram (...) a inexistência de garantias mínimas para os condenados e o desrespeito sistemático e institucional à legislação ordinária" (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2008, p.11).

Percebe-se, ainda, na fala de José (26 anos), o tema da vigilância, do vigiar para evitar as fugas. Para Foucault (2007b), a prisão, além de ser um local da execução da pena, também é o local da observação dos indivíduos punidos e de conhecimento do comportamento de cada condenado. Tudo isso, aliás, tomou forma, inclusive, por meio da arquitetura, a qual, através dos processos panópticosiv, encarregou-se da vigilância sem falhas. Tal vigilância permite a punição, justificando-a.

Nota-se que, a partir dos discursos dos entrevistados, foi possível identificar o processo vivido por eles dentro do presídio. Eles percebem tal local como um espaço que apresenta obstáculos a serem enfrentados, pois levantam questões como: a falta de dignidade e respeito em função da escassez de recursos básicos como produtos alimentares e de higiene; a ausência de uma infra-estrutura adequada, pois, numa cela para quatro pessoas, há nove ou mais; a violência entre os internos ("guerras" entre facções) e o uso abusivo de drogas ilícitas. Por tudo isso, na visão dos entrevistados, o tempo de encarceramento é tido como uma experiência ruim que eles não pretendem vivenciar novamente: "eu não cresci um minuto lá dentro" (Pedro, 34 anos). Para todos, o encarceramento é visto como tempo perdido: "eu perdi muito tempo lá dentro (...). Eu já tenho sonhos, tudo com aquele lugar, pesadelo e não conseguia dormi, então não queria mais volta lá. Nem passa lá na frente" (José, 26 anos).

"Eu não desejo aquele lugar nem pra o meu pior inimigo. Lá tu tem que baixar a cabeça, dizer sim senhor, sim senhora. A gente passa muita humilhação lá dentro. Ter que dormi no chão, não ter uma água potável pra toma, não ter uma comida saudável, (...)" (Maria, 34 anos).

Todo esse processo de encarceramento, atravessado por questões institucionais que vão desde a infra-estrutura até a forma como os presos são tratados e vistos, conforma a maneira como eles vivenciam essa experiência de privação de liberdade. Experiência que marca as suas vidas e a partir da qual passam a lidar com os acontecimentos diários. Será através de como vivenciaram o encarceramento que se configurará a maneira como poderão encarar e perceber a liberdade, assim como o que farão com ela.

 

Do Encarceramento à Liberdade Condicional

Em instituições totais como a prisão, todos os aspectos da vida são realizados em um mesmo local e sob a mesma autoridade. Goffman (1999, p.16) denominou "instituições totais" todas as instituições com tendências de "fechamento" como os manicômios, os mosteiros e as prisões. "Seu fechamento ou seu caráter total é simbolizado pela barreira à relação social com o mundo externo e por proibições à saída". Nesses locais, as atividades diárias dos internos são feitas juntamente com outras pessoas, todas tratadas da mesma forma e obrigadas a fazer as mesmas coisas. Há um plano racional único, o qual envolve horários e cronogramas e que busca realizar os objetivos da instituição. Todos os internos têm um contato restrito com o mundo externo (GOFFMAN, 1999). Entre os entrevistados, apareceu que o contato com o mundo externo, com o "aqui fora", dava-se, para alguns, por meio do trabalho que desempenhavam fora do presídiov. "Eu saia pra fora pra trabalha. Levavam e buscavam a gente. Deixavam a gente na porta do serviço e depois buscavam a gente (...)" (Maria, 34 anos).

A separação ou o afastamento do interno do mundo externo, em instituições totais, causa uma ruptura na sequência de papéis que o sujeito desempenhava fora da instituição (GOFFMAN, 1999). Encarcerado, o sujeito afasta-se das pessoas com quem convivia e algumas das funções antes exercidas de determinada forma, agora, dentro da instituição, passam a ser executadas de forma diferente. Como exemplo, tem-se a função parental, a qual poderá continuar sendo exercida dentro da prisão, mas será de forma diferente devido às circunstâncias e à distância física entre pais e filhos. Nesse sentido, todos os entrevistados, com exceção de um deles que não tem filhos, comentaram sobre o fato de terem deixado os filhos "aqui fora", percebendo que o seu papel de pais e cuidadores havia sido prejudicado por ficarem tanto tempo longe dos filhos.

Em relação à família, os entrevistados relataram que, ao sair do presídio, logo procuraram por algum familiar que lhes recebeu muito bem. Apenas um entrevistado comentou que sentiu certa desconfiança por parte da sua família. Nesse caso, o entrevistado afirmou compreender tal situação, pois ele já havia sido preso várias vezes, o que levava sua família a achar que a qualquer momento voltaria à prisão. "Falavam ah que bom que tu tá ai, mas com aquela desconfiança né?" (Pedro, 34 anos).

Ao serem questionados sobre como se sentiram a respeito da saída do presídio, eles apresentaram respostas similares, assinalando ter sido muito bom e indicando elementos como esquecer o tempo que passaram ali, recomeçar a vida e não voltar mais. No entanto, quatro dos entrevistados também confirmaram a dificuldade em retomar a vida diária devido ao estigma que há em relação aos "presos". Ressalta-se, aqui, que somente dois entrevistados utilizaram a palavra "ex-presidiário" e isso ocorreu apenas em alguns momentos, pois, na maioria das vezes, todos eles falavam "preso", mesmo quando estavam se referindo a eles mesmos. Isso mostra o quanto a identidade de "preso" acompanha-os em suas vidas.

Somente um dos entrevistados mencionou que não foi difícil retomar a vida diária, já que não a retomava. Tal entrevistado registrou que, usar drogas durante toda a noite e pensar em crimes que cometeria no dia seguinte, não era retomar, pois continuava com a mesma vida que tinha dentro do presídio. Dessa forma, verifica-se que a institucionalização interfere nos processos de subjetivação, criando sujeitos marcados pelas possibilidades ou precariedades que a instituição prisão lhes oferece.

Nesse contexto, Pio (2006) explicita que, ao retornar à sociedade, o até então preso torna-se desinteressante e encontra muitas dificuldades para se inserir devido a sua marca de encarcerado. Sobre esse retorno, os psicólogos que participaram da pesquisa realizada pelo Conselho Federal de Psicologia, em 2007, ponderaram que não há muito respaldo por parte da comunidade no processo de retorno do preso ao convívio social. Também não há políticas públicas solidificadas no que se refere à sua reinserção e as que existem são muito frágeis (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2009). Assim, pode-se avaliar que dificilmente o egresso do sistema prisional encontra um novo ponto de referência, de modo que a sua referência fica sendo a antiga instituição, a qual lhe atribuiu um lugar marcado pela exclusão social.

Frente às dificuldades em retomar a vida cotidiana fora do presídio, verifica-se ainda que, ao mesmo tempo em que os egressos não têm pretensão de voltar a esse local, a vida nele apresentou-se como algo possível num determinado momento. Isso pode ser atribuído ao fato de que o sujeito habitua-se às normas e aos padrões da instituição em que se encontra, criando ou não estratégias de enfrentamento. Nos relatos, foi possível identificar essa adaptação ao local, assim como a vontade de sair dele:

"Fiquei sem chão, fiquei sem reação, eu não tava acreditando que eu ia sai daquele lugar que é bem difícil, porque eu criei, a gente cria assim, porque ali é teu lar né? Tu transforma aquele lugar no teu lar. (...) eu sai assim sem rumo, na hora não acreditei, não tinha explicação, parecia que eu ia volta pra dentro, (...). Eu sai, eu só queria sai de lá da frente. (...) agora eu não consigo ir na frente do presídio, parece sabe eu vou, chego até a frente, parece que eu vou volta pra dentro" (Maria, 34 anos).

Observa-se que as considerações anteriores vinculam-se ao que Guimarães e cols. (2006, p.642) evidenciam sobre o que chamam de anestesia da máquina-prisão, ou seja, da imobilidade frente à "eterna condenação de ficar ou partir da prisão com a prisão". Por isso, sublinham os autores, estratégias e táticas são utilizadas pelos presos para lidar com o cotidiano prisional. Eles constroem estratégias que funcionam como mecanismos para diminuir o sofrimento e o estigma que sofrem. As estratégias de resistência, por exemplo, desautorizam os mecanismos de controle impostos pela prisão. Mecanismos esses que impedem, após o cumprimento da pena, a produção de novas singularidades e o desenvolvimento de projetos de vida que rompam o território produzido pela prisão.

Relativo às estratégias utilizadas após a saída do sistema prisional, os discursos estavam acompanhados de considerações sobre "procurar ficar de canto", "ficar mais em casa", "esquecer o passado", "não precisam saber". Um dos entrevistados relatou que teria que passar a ser mais útil: "desde o primeiro dia eu procurei ser melhor do que eu era antes. (...) eu tive que trabalha mais, ser mais simpático, mostra que eu era o contrário daquilo que às vezes pensam. Ser mais útil, (...)" (João, 46 anos). Todas essas estratégias demonstram a preocupação dos entrevistados frente a sua exposição por terem uma pré-noção do que os outros poderão falar a seu respeito. Segundo Foucault (2007a), o sujeito estabelece uma relação consigo a partir dos discursos culturalmente construídos e atribuídos os quais funcionam e circulam como se enunciassem uma verdade sobre o sujeito.

Visto que as estratégias adotadas pelos entrevistados evidenciam as dificuldades que eles sentem para se inserir em diferentes contextos sociais, destaca-se, aqui, o contexto empregatício/trabalhista diversas vezes trazido por eles. Pedro (34 anos) afirmou: "eu peguei umas cem ficha de trabalho, chegava nos locais: ah bons antecedentes, bah não tem". Diante disso, tem-se que a perspectiva de reintegração através de mecanismos legais acaba por ser ineficiente. Na verdade, para esses sujeitos, como ressaltam Tavares & Menandro (2004, p.90), corresponde a algo praticamente inatingível a ideia de uma "vida em sociedade com oportunidades reais, com possibilidades não degradantes de trabalho, com cidadania respeitada".

Para os entrevistados que ainda não possuem trabalho formal, a procura por emprego está sendo muito difícil, porque não encontram um local que lhes "abra as portas":

"Assim acaba te murchando de ir pra frente né? Porque fica bem difícil, as pessoas começam a te fechar as portas, não se abrem, (...). Tá sendo difícil bater em qualquer porta e pedi um emprego, pedi um auxilio e chega na hora e não... tu não consegue porque tu tá com a ficha né? Tá fichada.." (Maria, 34 anos).

Por outro lado, um dos entrevistados relatou que muitas portas se abriram no que se refere a trabalho, mas isso após ele ter conseguido o seu primeiro emprego quando da sua saída do presídio. Entretanto, as pessoas que lhe fizeram alguma proposta de trabalho não sabiam da sua trajetória de vida, isto é, não sabiam que ele estava preso por um determinado período.

Apesar de todas as dificuldades citadas pelos entrevistados, as quais dizem respeito à falta de oportunidades e ao preconceito vivido por eles, salienta-se que todos trazem muito a vontade de mudar de vida, não fazendo nada que os leve de volta à prisão. "Não adianta tá fazendo um monte de coisa ai que eu sei que tá errado (...). E eu quero muda né? Quero vive um pouco a minha vida aqui fora" (Paulo, 32 anos).

Ao que parece, mesmo querendo viver "aqui fora", ao sair da prisão, mas continuar sob uma vigilância constante e opressiva que pode vir de todos os lados devido à aquisição da qualidade de "ex-presidiário", a reincidência segue a direção do quase inevitável. Retornar a uma sociedade despreparada para recebê-los, a qual se utiliza das mesmas técnicas disciplinares que a prisão e que, por meio de registros e classificações, pode identificar, localizar, diferenciar e rotular, as perspectivas levantadas por esses sujeitos de "ser útil, pode trabalha, ter o meu dinheiro" (José, 26 anos) dificilmente podem ser vivenciadas por eles.

 

Identificando Reações: o olhar do outro como produção da diferença

A identificação das reações sociais pelos egressos do sistema prisional, perante a sua condição, levanta questões como a forma com que se tem lidado com esse público, bem como as reais possibilidades e oportunidades que lhes cercam. Tal identificação e a maneira como os egressos a percebem atuam diretamente nas perspectivas que eles possuem acerca do seu futuro e da sua colocação na sociedade.

Mesmo fora da prisão, o sujeito permanece sendo controlado e vigiado por mecanismos que não são os mesmos da instituição prisional, mas que possuem a mesma finalidade: isolar ou colocar barreiras frente ao que não se consegue dar conta, ao que foge aos padrões, trazendo, como possível consequência, o estigma. Goffman (1988) definiu o estigma como um tipo de relação entre estereótipo e atributo com efeito de descrédito. O sujeito estigmatizado possui um traço que afasta as demais pessoas as quais deixam de atentar para outros atributos que ele possui. Deste modo, o sujeito pode sentir que os seus menores atos estão sendo avaliados como sinais de seu atributo diferencial estigmatizado. A título de ilustração, José (26 anos) relata: "não saio muito pra não ter que vê aquela crítica deles".

Nos discursos dos entrevistados fica visível que as características que os diferenciam e, muitas vezes, os isolam, é algo vivenciado por eles no seu dia a dia: "quando eu tive esse problema ai, então mais ainda isolaram" (João, 46 anos).

"Tu nunca vai ser igual as outras pessoas que tão fora. A própria sociedade já te empurra pra esse lado né? (...) Enxergam a gente assim como se a gente fosse a pior pessoa do mundo, como se a gente fosse o lixo da sociedade sabe? É muito ruim, muito ruim mesmo. Até que os meus vizinho lá não são muito assim, (...) eles me conhecem como pessoa já. Eles conhecem meu outro lado, não aquele ruim que eu tava lá" (José, 26 anos).

Através do relato de José (26 anos), observa-se o sentimento dele quanto à forma como a sociedade o percebe, somente a partir de um único atributo, enquanto que, algumas pessoas que o conheceram antes dele ser preso, conseguem vê-lo para além disso. Outros entrevistados também comentaram sobre a forma como notam que a sociedade os percebe:

"Antes de ser presa é uma reação e depois que eu fui é outra. As pessoas começam a te olha, é bem diferente né? Eles te olham assim ah tu viu que ela saiu, tava presa. (...) eles olhavam assim com olhar de discriminação. (...) tu ouve comentário assim, quando tu passa assim, tu olha tu vê que a pessoa sai falando a teu respeito. (...) eles acham que um preso nunca vai muda" (Maria, 34 anos).

"Mas isso sempre vai fica ah o fulano tá solto, o fulano tá ai, daqui a pouco vai volta, mas não, tô legal. (...) por mais que ah fulano é marginal, é maconheiro. Não. Vou larga de mão. Não é o que eu quero pra mim" (Paulo, 32 anos).

Os discursos dos entrevistados demonstram que as suas trajetórias de vida pós-prisão são marcadas pelo descrédito social, o que implica a sua marginalização. Guareschi & Pedroso (2010) explicam que a ideia de que a prisão contamina, reforça o preconceito contra os egressos, bem como reforça a sua segregação por meio da estigmatização. "O preso ou o ex-preso não somente carrega em si o fardo da incompreensão e do receio, mas carrega junto a isto o que haveria de contagioso no cárcere" (GUARESCHI & PEDROSO, 2010, p.100).

Tem-se, portanto, que a sociedade afasta, isola e exclui esses sujeitos: "expresidiários", com seus estigmas e rótulos, demonstrando-se incapaz de oferecer suporte a quem pretende dar continuidade a sua vida fora do sistema prisional. A partir do rótulo de "expresidiário", outras possibilidades e características deixam de ser percebidas nesse sujeito e ele passa a ser somente alguém que, um dia, esteve preso, sofrendo punição por um erro cometido. Erro esse que foi provocado por um determinado motivo, como expressa o entrevistado José (26 anos) ao dizer que algo ocorreu para que as suas vidas tomassem esse rumo:

"Claro que tem pessoas lá dentro que são ruim por natureza, que tem a cabeça voltada pra o crime, só que tem pessoas, a maioria, que não tem a cabeça voltada pra o crime, alguma coisa aconteceu pra chega até ali sabe? (...) acho que tudo tem os dois lados né? A pessoa fez uma coisa errada pra tá ali, mas alguma coisa aconteceu pra chegar até ali né? Hoje eu escuto muito a questão de segurança, pra fazer mais presídio, bota policia na rua, mas acho que não é por ai que tem que se preocupa. Tem que se preocupa com as crianças que tão crescendo lá na periferia, o que tá acontecendo com eles, faze algo pra que eles não cheguem até lá. Vai trazer muito mais beneficio do que eles prende".

José (26 anos) refere-se, em sua fala, à marginalização/exclusão anterior a entrada na prisão. Uma exclusão que ocorre porque o sujeito não se encaixa numa categoria socialmente aceita e, sendo assim, é isolado, passando por uma medida de correção. Medida essa que, na verdade, não corrige, mas permite a identificação e a localização de quem deve ser excluído, pois está "fichado" (palavra muito utilizada pelos entrevistados como uma forma da sociedade identificá-los).

Durante o tempo em que o sujeito está preso, os processos de exclusão, na sociedade, permanecem intactos. Cumprida a sua pena, o até então preso torna-se um egresso do sistema prisional e retorna à sociedade que manteve suas condições excludentes. Logo, mesmo que o sistema prisional consiga modificar algo no sujeito que esteve preso, a perspectiva com a qual ele se depara ao sair da prisão não é alterada. As condições sociais do passado permanecem e essas não dão respaldo a uma possível e vantajosa reintegração em termos de oportunidades e exercício da cidadania (TAVARES & MENANDRO, 2004). E isso se revela nos discursos dos entrevistados: "daí acabei tendo necessidade (...), ai acabei fazendo coisas erradas e ai acabei voltando (...). Não tem muita possibilidade né?" (José, 26 anos).

"Eu geralmente não tinha muitas oportunidades. (...) e geralmente quando tu é, no meu caso né? Quando tu é preso, delinquente, a policia mesmo já te enxerga de outro jeito, porque tu é vagabundo, porque tu é maconheiro, marginal e coisa e tal. Então, simplesmente, às vezes, não tinha outra saída, outra alternativa" (Paulo, 32 anos).

A partir do discurso de Paulo (32 anos), também é possível notar o quanto é reforçada a percepção, entre os policiais e as pessoas em geral, de que há muito pouco o que se fazer com os "bandidos" além de mantê-los longe da sociedade. Levando em consideração esse ponto de vista, a sociedade espera que a prisão cumpra o seu desejado papel de isolar a população carcerária (TAVARES & MENANDRO, 2004). Nesse sentido, Mendonça Filho (2005) afirma que o modo de governar brasileiro produz a imagem das pessoas que passaram pelo sistema prisional, ou que estão nele, com graus de periculosidade, o que acaba por justificar a sua incompetência em considerar os interesses das pessoas, podendo confinar o excesso do qual não consegue dar conta.

Portanto, com a análise das entrevistas, percebe-se, de acordo com Tavares & Menandro (2008, p.130), uma formação de sujeitos marcados pela carência de perspectivas de sucesso decorrente de uma "realidade de condições e processos que interferem decisivamente nas possibilidades de transformação dos sujeitos". Conforme os autores, isso acaba por inviabilizar possibilidades de construção de diferentes perspectivas de atuação na vida.

 

Considerações finais

O sistema prisional, bem como o trabalho do psicólogo nesse contexto, tem sido tema de constantes debates no Conselho Federal de Psicologia (CFP, 2008; CFP, 2009). Com a crescente sensação de insegurança que resulta, por um lado, do aumento nas taxas de criminalidade e, por outro, na "transformação da violência em um espetáculo rentável por boa parte da mídia nacional" (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2008, p.19), as taxas de encarceramento têm aumentado massivamente. Consequentemente, há um maior número de sujeitos os quais retornam à sociedade marcados pela experiência dentro da prisão.

Através dos discursos dos egressos do sistema prisional, pôde-se refletir a respeito do processo de encarceramento e os efeitos disso sobre o sujeito após a sua saída da prisão. Além disso, foi possível perceber a forma como esse grupo tem sido abordado e acolhido pela sociedade, o que viabiliza pensar sobre como os profissionais de diferentes áreas, entre eles o psicólogo, podem atuar nesse contexto.

Em conformidade com Tavares & Menandro (2004), a instituição prisional, funcionando como um mecanismo de marginalização e reprodução da delinquência, dificulta a inserção dos egressos no mercado de trabalho e na vida social em geral. Com o estigma de criminosos, aumentam-se as chances desses sujeitos tornarem-se alvo de uma vigilância discriminatória, configurando um aprisionamento que não acaba mesmo com o cumprimento da pena.

As dificuldades que os entrevistados assinalaram vivenciar denunciam o quanto o sistema prisional é falho quando se propõe a uma ressocialização. Sem credibilidade social, eles são tratados a partir de um único aspecto: "ex-presidiário". Os seus discursos revelaram que a perspectiva de vida vislumbrada por eles passa pelo estigma que os diferencia. Tais discursos foram constituindo-se na interlocução com os discursos sociais construídos sobre ex-presidiários. Por um lado, os egressos confrontam-se com esses registros discursivos ao tentarem romper com o estigma, por outro, aliam-se a eles na medida em que os afirmam como discursos possíveis.

Durante as entrevistas, pôde-se notar que concepções mais favoráveis e menos desconfiadas sobre os egressos do sistema prisional poderiam ajudá-los na retomada de suas vidas e na interação social. A dificuldade ou receio da sociedade em perceber ou entender as condições sub-humanas do presídio e as precárias condições na busca por alternativas para algo além da prisão, demonstra que a idéia de penalizar indiscriminadamente ainda prevalece frente a outras ações.

Assim considerado, o desafio da Psicologia consiste em ampliar modos de intervenções junto a esses sujeitos que sejam condizentes com as suas necessidades, além de contribuir para a transformação da instituição prisão em um local de produção de novas relações. Compete-lhe intervir em políticas públicas fragilizadas e não restringir o seu trabalho à elaboração de laudos e pareceres. Sendo assim, considera-se que, a atuação da Psicologia na construção de políticas públicas voltadas ao apoio aos egressos do sistema prisional e à desmistificação do rótulo de "perigoso" que os circunda, contribuiria na produção de projetos de vida para esses sujeitos.

O intuito de problematizar a realidade vivida pelos egressos do sistema prisional, através do resgate dos seus discursos, não teve por pretensão dar conta da complexidade em que consiste esse tema. Assim sendo, espera-se que este trabalho sirva de subsídio para novos estudos na área, de modo a contribuir com a ampliação de determinados conceitos, desafiando constantemente a prática e a pesquisa no que se refere ao sistema prisional.

 

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Data de recebimento: 23/01/2012
Data de aceite: 17/06/2013

 

 

Sobre os autores:
Jusiene Denise Lauermann é psicóloga graduada pelo Centro Universitário Franciscano/UNIFRA e graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Santa Maria/UFSM. Endereço Eletrônico: jusi_dl@hotmail.com.
Félix Miguel Nascimento Guazina é mestre em Psicologia Social pela PUCRS, docente do Centro Universitário Franciscano/UNIFRA. Endereço Eletrônico: guazina@gmail.com.

 

 

1 Resultados parciais dessa pesquisa foram publicados nos Anais do Interfaces No Fazer Psicológico -Unifra. Volume 1. Santa Maria: 5º Interfaces No Fazer Psicológico Direitos Humanos, Diversidade E Diferença, 2012.
i Entendido, aqui, conforme Foucault (2007b) o assinala, considerando que os modos de subjetivação são as práticas de constituição do sujeito.
ii A Lei de Execução Penal (LEP), em seu Art. 26, considera egresso o liberado definitivo, bem como o liberado condicional (Conselho Federal de Psicologia, 2008).
iii Isso pode ter acontecido devido à questão de gênero. De acordo com Oliveira (2009), as mulheres em conflito com a lei reafirmam representações de gênero hegemônicas construídas pela sociedade como, por exemplo, cuidar dos filhos e da casa, constituir família, se afastar do mundo do crime, estudar e trabalhar. Nesse sentido, afastar-se do mundo do crime pode incluir não falar sobre ele.
iv Processos panópticos correspondem as atividades e sistemas desenvolvidos para facilitar a vigilância. O panóptico, mais especificamente, seria uma composição arquitetônica, na qual, de uma torre central, é possível avistar e vigiar todos os sujeitos a sua volta num único momento, já que a estrutura em volta da torre é circular (Foucault, 2007b).
v Alguns presos do PRSM trabalham em locais que possuem convênio com o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento).