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Barbaroi

Print version ISSN 0104-6578

Barbaroi  no.38 Santa Cruz do Sul June 2013

 

ARTIGOS

 

Oficina terapêutica de contos infantis no CAPSi: relato de uma experiência

 

Therapeutic workshops in CAPSi: report of an experience

 

Talleres terapeuticos en CAPSi: informe de una experiência

 

 

Alice Moreira CostaI; Carlise CadoreII; Michele dos Santos Ramos LewisIII; Cláudia Maria PerroneIV

ICentro Federal de Santa Maria (UFSM) - Santa Maria - Rio Grande do Sul - Brasil
IICentro Federal de Santa Maria (UFSM) - Santa Maria - Rio Grande do Sul - Brasil
IIICentro Federal de Santa Maria (UFSM) - Santa Maria - Rio Grande do Sul - Brasil
IVCentro Federal de Santa Maria (UFSM) - Santa Maria - Rio Grande do Sul - Brasil

 

 


RESUMO

Este artigo é o resultado de uma intervenção realizada em um Centro de Atenção Psicossocial Infanto-Juvenil em uma cidade da região central do Rio Grande do Sul, no âmbito do projeto de extensão universitária "Oficina Terapêutica de Contos Infantis no CAPSi". Para tanto, focaliza a construção de histórias como instrumento privilegiado na oficina terapêutica infantil. Os subsídios teórico-metodológicos utilizados referem-se às contribuições da psicanálise ao campo da saúde mental. Identificaram-se mudanças na simbolização e na socialização das crianças que participaram da oficina, além do estabelecimento de vínculo terapêutico entre os integrantes do grupo.

Palavras-chave: Oficina Terapêutica. Saúde Mental. Contos de Fadas.


ABSTRACT

This article is the result of an intervention conducted in a Psychosocial Care Center Children and youth in a city in the central region of Rio Grande do Sul, in the university extension project "Children's Story Therapy Workshop in CAPS." For this purpose, focuses on the construction of stories as a privileged instrument in the workshop child therapy. The theoretical-methodological used refer to the contributions of psychoanalysis to the mental health field. Changes were identified in the symbolization and socialization of children who attended the workshop, in addition to establishing the therapeutic relationship between the group members.

Keywords: Therapeutic Workshops. Mental Health. Fairy Tales.


RESUMEN

Este artículo es el resultado de una intervención realizada en un Centro de Atención Psicosocial para niños y jóvenes en una ciudad en la región central de Río Grande do Sul, en el proyecto de extensión universitaria "Taller Infantil Terapia de Historia en CAPSi". Para ello, se centra en la construcción de historias como un instrumento privilegiado en la terapia infantil del taller. La referencia teórico metodológico utilizado fue las aportaciones del psicoanálisis al campo de la salud mental. Los cambios fueron identificados en la simbolización y la socialización de los niños que asistieron al taller, además de establecer la relación terapéutica entre los miembros del grupo.

Palabras clave: Talleres Terapêuticos. Salud Mental. Cuentos de Hadas.


 

 

Introdução

O movimento da Reforma Psiquiátrica brasileira, cujo início está localizado no final dos anos 1970, buscou outro modelo, diferente do hospitalocêntrico, no qual a inserção social fosse possível para as pessoas em sofrimento psíquico grave, longe dos muros da instituição e da exclusão. Assim, novos dispositivos foram criados para tratar aqueles que necessitavam de cuidados psiquiátricos com o objetivo de dar à loucura uma nova resposta social relacionada com a emergência de um sujeito. Esse movimento, no entanto, ocorreu com mais intensidade com a parcela adulta da população, diversamente das crianças e adolescentes, cuja resposta ao tratamento da loucura ainda constitui um desafio com poucas iniciativas nesse setor (GUERRA, 2005).

É longa a discussão sobre a "dívida histórica" no campo social com as crianças e adolescentes e certamente nela se poderia incluir a saúde mental. A marca social do sofrimento dessa parcela da população é o descuido e a isenção de responsabilidade pública, reproduzindo a segregação e a exclusão efetivadas com adultos (CIRINO, 2004, p. 9).

Na verdade, não existiam políticas públicas na área da saúde mental infantojuvenil e as crianças e adolescentes foram tratados em instituições voltadas ao trabalho pedagógico. Esse fator inviabilizou o cuidado dessa população, resultando na cronificação quando adultos. É preciso destacar que a criança não era tratada pelo fato de que a concepção cultural histórica da infância não admitia a noção de doença mental para esta faixa etária.

Do século XVIII ao XIX ocorreram avanços e mudanças na psiquiatria, especialmente na classificação das doenças psiquiátricas. No entanto, o mesmo movimento não aconteceu com as doenças mentais infantis. O único desenvolvimento ocorrido neste período envolveu a noção de déficit através do problema da deficiência mental. Prevalece a ideia, até o século XIX, de que a criança não teria uma estrutura psíquica estável e que qualquer quadro patológico constituía, na verdade, uma interrupção do desenvolvimento (ASSUMPÇÃO JR., 1995, p. 151).

Foi somente com Freud, em 1909, que ocorreu uma particularização da infância. O primeiro texto que marcou o trajeto freudiano neste tópico é de 1905, "Três Ensaios sobre uma teoria da sexualidade". Em 1908, ele publicou "Teorias sexuais infantis" e, em 1909, "Análise de uma fobia em um menino de cinco anos", o caso do Pequeno Hans (FERREIRA, 2004). Apesar de alguns avanços desde então, cuja concepção presente nesses textos até nossos dias não foi completamente desconstruída, é preciso revê-la para que possamos investir na invenção de novas formas de cuidado para esta parcela da população.

Mesmo com o surgimento do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), no início dos anos 1990, a saúde mental infantil não foi devidamente considerada. Somente a partir da Portaria do Ministério da Saúde nº 336, de 2002, que esta população específica, que precisa de tantos cuidados, foi olhada e devidamente reconhecida em sua importância. A Portaria estabeleceu a abertura de Centros de Atenção Psicossocial Infanto-Juvenis (CAPSi), tendo a função de oferecer a atenção em saúde mental de forma integral, contando, portanto, com uma equipe multiprofissional para atender a crianças e adolescentes em sofrimento psíquico grave. Esse serviço deveria estabelecer relações na rede de saúde, assim como nos demais setores, para que se possa superar o antigo modelo manicomial, procurando proporcionar que os sujeitos em atendimento possam estar em contato com suas comunidades, auxiliados por profissionais que a elas pertençam e incluídos em atividades que acolham suas diferenças pessoais promovendo, assim, saúde mental.

A proposta de organização desses serviços redireciona o modelo assistencial em saúde mental e abre possibilidades para a inserção de novos dispositivos terapêuticos. Nessa perspectiva, idealizamos o Projeto de Extensão Oficina Terapêutica de Contos Infantis como um projeto que propunha a integração entre a Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), a comunidade e os novos modos de trabalhar em saúde mental. Este artigo apresenta os resultados da intervenção em um CAPSi da região central do Estado do Rio Grande do Sul.

 

Oficina Terapêutica de Contos Infantis

A escolha pelo trabalho com uma oficina terapêutica de contos infantis foi determinada, fundamentalmente, porque implicava uma relação que estrutura a produção de saber do sujeito a partir da escuta de sua singularidade. Vieira Filho e Rosa (2010) definiram esta clínica em saúde mental como uma clínica que se constrói e reconstrói seguindo a dinâmica do trabalho terapêutico em rede social e no cotidiano influenciado pelo contexto da Reforma Psiquiátrica, sendo definida como uma clínica do sujeito social. Nesse sentido, as estratégias utilizadas privilegiaram as especificidades do grupo, o cotidiano das crianças e do próprio CAPS. Os subsídios teórico-metodológicos utilizados referem-se às contribuições da psicanálise no campo da saúde mental.

O planejamento e a execução da oficina foram desenvolvidos por estudantes do curso de Psicologia da Universidade Federal de Santa Maria, pela professora supervisora e pela equipe do CAPSi. Esse projeto teve como objetivo a construção de um espaço terapêutico de escuta para crianças com sofrimento psíquico no qual o lúdico e o simbólico serviram como suporte para que elas entrassem em contato com a sua realidade psíquica. Para tanto, o conto infantil foi entendido como um mediador entre a criança e seus conflitos. Os contos foram escolhidos de acordo com a demanda dos participantes da oficina. Após a contação, foi proposta uma atividade na qual as crianças podiam se expressar através de materiais concretos, como sucata, para criar algo que elas relacionassem à história e, por fim, falavam sobre si com o distanciamento que o falar da produção possibilita.

O projeto foi desenvolvido com crianças a partir dos sete até os dez anos de idade, destinado a atingir o público de pacientes atendidos no CAPSi. Foi realizado um grupo semanal de uma hora de duração, com supervisão acadêmica, local, institucional e com participação nas reuniões de equipe pelas estagiárias do projeto. Cada grupo tinha no máximo oito crianças. Durante dois anos foram constituídos setenta e seis grupos.

A Oficina Terapêutica de Contos Infantis foi pensada a partir de uma demanda do CAPSi para a criação de um espaço terapêutico coletivo e de socialização das crianças, demanda esta que somou com aprendizagem e capacitação que poderia ser realizada pelas acadêmicas do curso de Psicologia nas novas políticas públicas de atendimento em saúde mental.

O projeto da oficina seguiu a ideia de um grupo terapêutico psicanalítico, viabilizando ao paciente entrar em contato com sentimentos e fantasias, através da projeção e da construção de uma narrativa própria. Foi uma proposta em que, por meio do lúdico, as crianças pudessem entrar em contato e elaborar seus conflitos psíquicos por intermédio dos conteúdos abordados nas histórias, seja através do deslocamento, da sublimação e da construção de uma narrativa pessoal. O conto foi utilizado como um "mediador capaz de permitir à criança elaborar seus conflitos psíquicos, estimulando-a a enfrentar seus afetos mais assustadores e, ao mesmo tempo, ajudando-a a manter uma distância desses afetos" (GUTFREIND, 2003, p. 34).

A proposta de um atendimento em grupo foi amplamente discutida pelo grupo de estagiárias e do CAPSi. Esse atendimento não foi encarado como um subtipo de atendimento, como muitas vezes é visto. Assim como as políticas que balizam os CAPS, o entendimento era de que o grupo fosse uma modalidade oferecida, assim como as outras modalidades o são, e não apenas para desafogar listas de espera, principalmente porque muitos indivíduos irão se beneficiar do grupo mais do que em atendimentos individuais. "Com a experiência percebeu-se que para este subconjunto de clientes o grupo facilitava a circulação da palavra, permitia a explicitação de fantasias, possibilitava o fluir associativo e a emergência das formações do inconsciente" (BEZERRA JUNIOR, 1994, p. 135).

Vasconcellos (1996, p. 54) aponta que, na criação de oficinas, as intervenções não têm como primeiro objetivo as interpretações da loucura ou aprendizagem, mas sim "a construção e a ampliação dos laços sociais e a importância do contato com as produções da Cultura dos Homens. É fomentar um compartilhar com seus semelhantes de uma história comum e, a partir desse encontro, criar uma marca singular para si e para o outro".

A oficina recebe o adjetivo terapêutico em função da própria convivência que ela promoveu. Uma vez que muitos "transtornos mentais são marcados pela tendência ao isolamento, pela dificuldade de se estabelecer vínculos afetivos e sociais" (COSTA; FIGUEIREDO, 2004, p. 8), a principal tarefa de quem coordena uma oficina dita terapêutica é possibilitar oportunidades de inserção social na rede de trocas simbólicas que lhe conferem um valor através da produção da oficina.

O produto da oficina, seja ele pintura, teatro, música ou qualquer outro tipo de arte, importa pelo seu valor simbólico, isto é, por sua função simbólica. Ele se faz simbólico quando escapa do automatismo, da pura repetição, do sem sentido; quando é tornado público investido pela cultura e pelas relações sociais.

Assim, foi surgindo a ideia de trabalhar com histórias infantis, sabendo do poder que essas têm para permitir simbolizar os conflitos psíquicos inconscientes das crianças. "Contar histórias não é apenas um jeito de dar prazer às crianças: é um modo de ampará-las em suas angústias, ajudá-las a nomear o que não podia ser dito, ampliar o espaço da fantasia e do pensamento" (CORSO; CORSO, 2006, p. 56).

Ao unir todos os pontos citados acima, a oficina foi organizada em quatro momentos: o primeiro é uma conversa inicial com as crianças sobre questões que elas escolhiam e a discussão do contrato terapêutico, com combinações sobre o funcionamento do grupo; o segundo é a passagem da realidade ao mundo do faz-deconta através de uma música de abertura cantada com a participação das crianças e o início da leitura de algum conto infantil; o terceiro, a realização de alguma produção a partir do conto; e o quarto e último momento, é a exposição ao grupo feita pelas crianças do que criaram, recontando a história trabalhada a partir de sua subjetividade.

O primeiro momento, a conversa inicial e o contrato terapêutico se fizeram relevantes para que fosse possível estabelecer o vínculo necessário para operar com o grupo. Nessa conversa inicial, as crianças falavam espontaneamente sobre questões diversas de suas vidas. No contrato, foram realizadas as combinações da oficina, de como deveria ser a convivência com os colegas, sempre baseada no respeito para com o outro, da frequência semanal e da necessidade da pontualidade. Também foi enfatizado o sigilo sobre o que contassem na oficina. A importância das combinações era a de construir um espaço organizado, com limites e regras, para possibilitar um suporte às criações subjetivas das crianças. Gradativamente organizou-se um espaço de confiança entre estagiárias e crianças e entre as próprias crianças.

No segundo momento, a seguinte música era cantada "uma linda história agora eu vou contar e quem quiser ouvir é só se aproximar, batam palmas, minha gente, batam palmas outra vez, batam palmas bem contentes vou contar: era uma vez...". Essa música demarcava a entrada no mundo do faz de conta. Quando a oficina iniciou, havia um movimento de resistência das crianças para cantar a música. Conforme foi se estabelecendo a coesão grupal e o vínculo terapêutico entre as estagiárias e as crianças e entre elas mesmas, essa resistência foi vencida. Após a música, iniciava a leitura de um conto infantil. Nos primeiros grupos as contadoras eram as estagiárias; depois, por demanda das próprias crianças, elas passaram a ser contadoras.

O terceiro momento permitiu que as crianças externalizassem sua produção subjetiva. Para tanto, elas realizaram uma atividade proposta pelas estagiárias a partir do conto lido. Essa delimitação é, de certa maneira, vista como terapêutica pelo fato de que uma folha em branco pode ser muito angustiante para uma criança, principalmente em sofrimento psíquico grave. Dessa forma, elas têm toda liberdade para criar e imaginar, porém sempre com um ponto de ancoragem.

O quarto momento possibilitou que as crianças compartilhassem com o grupo a sua criação a partir da proposta inicial, podendo falar sobre o que fizeram e, a partir disso, dar um sentido próprio à sua produção. Além disso, esse momento proporcionou a interação e o reconhecimento de sua singularidade e criatividade perante o grupo.

Os contos infantis escolhidos para serem trabalhados na oficina foram, em sua maioria, os contos clássicos, pois possuem uma característica de abordar diversas questões que dizem respeito ao imaginário da infância. Esses contos foram selecionados previamente pelas próprias crianças ou pelas estagiárias.

Inicialmente, o grupo era composto de seis a oito crianças com idades entre sete e dez anos, que pudessem vir a se beneficiar desse dispositivo clínico, não tendo sido considerado como critério para a formação do grupo um quadro sintomático homogêneo. A ideia é que crianças com dificuldades diversas realizassem trocas significativas em relação à socialização ao lidar com a alteridade de seu sofrimento. As participantes da oficina foram indicadas pela equipe técnica do serviço, com avaliação através do plano terapêutico singular sobre os benefícios em participar dessa modalidade de tratamento e, também, por meio de demanda espontânea dos familiares e das crianças.

O grupo foi fechado devido a questões relativas ao sigilo e à construção de laços mais significativos entre os seus membros. A frequência da oficina era semanal, com duração de uma hora e ocorria na sala de grupos do CAPSi. Foram utilizados diversos materiais, disponibilizados pelo serviço, para a realização das atividades propostas, tais como: lápis de cor, giz de cera, lápis preto, canetinhas, cola, tesoura, papéis diversos, tintas, pincéis; material para recortar e material de sucata.

As oficinas foram registradas nos prontuários de cada criança e a discussão da dinâmica de cada encontro auxiliava na escolha do conto que seria utilizado na próxima oficina. As estagiárias elaboraram diários de campo de cada oficina, registrando o funcionamento do grupo, a elaboração das histórias, as reconstruções por cada criança e as ações/reações individuais no trabalho. Tais registros foram fundamentais para o processo de supervisão e avaliação das atividades.

Ao longo desses dois anos de realização da oficina, foram observadas mudanças das crianças em relação à socialização e à elaboração de seus conflitos psíquicos. O espaço ofertado possibilitou ricas interações entre elas e as estagiárias.

Para exemplificar esses resultados, apresentamos alguns recortes clínicos de três crianças que participaram da oficina. O critério para escolha dos casos foi o maior tempo de permanência no grupo.

 

Recortes clínicos

A primeira criança que apresentaremos é um menino de 10 anos, que entrou na Oficina de Contos desde o seu início, em maio de 2008. Apresentava muita resistência em cantar a música inicial, tapava os ouvidos, saía do círculo e procurava outros objetos da sala com os quais acabava se dispersando e desorganizando o restante do grupo. Quando isto acontecia, uma das estagiárias conversava com ele e procurava entender sua reação para que ele pudesse se integrar à atividade. Após este comportamento se repetir diversas vezes, o menino disse que não queria cantar, pois não sabia fazê-lo.

A sua verbalização se deu pelo vínculo já estabelecido com as estagiárias. Foi conversado com o menino que as outras crianças também não sabiam cantar e que juntos todos poderiam aprender. Após esta situação, ele passou a se integrar neste momento da oficina, inclusive em um dia foi conciliado o desejo dele de tocar violão com o momento de abertura do conto. Em uma das oficinas, o garoto pegou o violão que se encontrava na sala e foi sugerido que ele ficasse responsável pela trilha sonora da história. A partir desse episódio, o menino ficou mais organizado e concentrado, tanto na contação como no seu momento posterior, a produção a partir da história.

Em algumas oficinas o menino pedia para usar alfinete para construir um catavento. Foi permitido que ele o fizesse desde que não usasse o alfinete para outros fins. As estagiárias pontuaram que ele sempre queria usar objetos que talvez o machucassem. Em uma ocasião, ele já havia grampeado o dedo e foi assinalado que ali era um lugar em que todos estavam preocupados com o cuidado. Quando isso foi dito a ele, o menino respondeu que cada um se preocupa com a sua vida. As estagiárias demarcaram sua preocupação com todas as crianças da oficina e com ele também.

A partir desse momento, o menino começou a aderir mais ao grupo e às atividades propostas. Porém, algumas vezes, apresentou dificuldade de se concentrar e definir o que iria fazer, iniciando muitas coisas sem terminá-las. Esta situação ocorria quando havia mais crianças além dele na oficina. Foi nominado o que acontecia e enfatizado quanto suas produções eram significativas quando ele se dedicava a elas. O menino, por vezes, saía da sala. Então uma das estagiárias o acompanhava para tentar entender por que ele não estava conseguindo ficar, relembrando como era importante para o grupo a presença dele, pois quando faltava as outras crianças perguntavam por ele. Foi sugerido que se despedisse do grupo quando ele não conseguia ficar para alimentar o vínculo grupal.

Ele demonstrou uma mudança desde a sua entrada no grupo, tanto em relação à socialização, à sua organização, à troca com as demais crianças e com as estagiárias. Em uma das oficinas o menino pediu para ele ler o livro da Rapunzel. Nesse dia, ele era o único componente do grupo, pois as outras crianças faltaram. Ele conseguiu se colocar como contador de histórias.

Em outra oficina disse que não queria participar: sentou-se no sofá da sala, separado do restante do grupo que estava em um círculo no chão; não queria se unir aos demais e expressou que não participaria do momento da produção, só iria ouvir o conto. Logo no início da história que era da "Branca de Neve e os Sete Anões", ele começou a se envolver e contar o que sabia desta história. Quando a história terminou, ele quis fazer a casa da Branca de Neve e dos sete anões, realizando uma produção rica em detalhes. Na casa, havia uma porta pela qual a bruxa não conseguiria passar. Depois disso, o menino convocou o restante do grupo para o último momento, para falarem aos demais sobre o que fizeram, conseguindo estabelecer uma inscrição nesse grupo.

O segundo caso refere-se a um menino que entrou na oficina a partir do desejo da mãe, que o via como incapaz de criar coisas próprias. Ele mostrou dificuldade em aderir às propostas, construía objetos e intervenções desvinculadas do momento vivido pelo grupo.

Foi proposto que ele articulasse suas ideais com as histórias. A partir desta convocação, o menino levou uma história chamada "O canto do canário" e construiu um robô. O robô era a casa do canário, e, pela primeira vez, colocou pessoas dentro das suas construções. No início destruía alguns objetos para depois consertar.

Com o andamento da oficina e com a apropriação pelo menino desse espaço em que pôde expor suas questões, ele passou a colocar-se como coterapeuta e não somente como paciente. Ele se tornou o primeiro a retomar as combinações do contrato terapêutico e sugeria que todos os participantes do grupo pudessem ser contadores, sendo um contador diferente em cada grupo. No dia em que sugeriu que cada um poderia ser o contador em uma oficina, o grupo estava em um impasse sobre quem seria o contador, não conseguindo chegar a uma conclusão. E ele, mesmo não sabendo ler, deu a sugestão, que foi bem recebida por todos. Após algumas oficinas, levou um livro. Sua mãe nunca permitia este movimento que ele tentava fazer, de trazer um livro para ser contado. Nesse dia contou a história a partir das figuras.

Em um dos grupos, o menino pontuou a uma criança: "Tu não vai fazer que nem na semana passada". Na semana anterior, a menina havia se desorganizado bastante e não conseguiu realizar a atividade. A partir dessa intervenção, a menina colocou que na semana anterior estava com alguns problemas, mas que já havia resolvido.

O menino, desde o início de sua participação, demonstrou interesse e envolvimento nas oficinas, sugerindo até mesmo um material diferente do usado para a realização da atividade e pediu que a música de abertura fosse cantada mais devagar para poder aprendê-la. Nos momentos de produção, ele era muito criativo e colocava detalhes simbólicos que expressavam suas angústias e, ao mesmo tempo, mantinha o enfrentamento de suas questões.

Em um dos grupos ele construiu um carro e ficou muito preocupado com o fato de que esse carro deveria ter rodas que girassem. Ele colocou um canhão na carroceria, muito grande para que o carro pudesse suportar o seu peso e tamanho. Em relação às rodas do carro, conseguiu encontrar uma forma para o carro andar, mesmo que essas não girassem. Este foi o momento de o menino perceber que existem outras maneiras de enfrentar as situações que vivenciava.

No dia da oficina, em que foi contada a história da "Branca de Neve e os Sete Anões", a atividade proposta foi a de que fizessem um desenho de uma floresta, onde eles colocariam os personagens que quisessem. Ele escolheu desenhar o príncipe e a princesa da história. Contou que estava chovendo e desenhou um guarda-chuva para o príncipe. Desenhou também a princesa, e, logo em seguida, um táxi para que o príncipe pudesse ir para a sua casa. Também narrou que as flores, seu primeiro desenho, cantavam para o príncipe e para a princesa. Uma das terapeutas do grupo sugeriu escrever uma nova versão para a história do dia e o menino concordou.

Enquanto contava a história, o menino fazia algumas modificações no desenho, como uma barreira para a chuva parar, pois no outro dia havia aparecido o sol. Também acrescentou um avião para que o príncipe e a princesa pudessem viajar. Ele construiu a seguinte versão para Branca de Neve e os Sete Anões:

As flores estavam cantando.

O príncipe estava correndo de guarda-chuva, porque estava chovendo e queria pegar um táxi para ir para a sua casa. Quando chegasse em casa, o príncipe ia dormir pois já eram 11 horas da noite. Às doze horas, meio-dia, do dia seguinte, o príncipe e a princesa haviam marcado de se encontrar na casa do príncipe. Então, eles iam passear de avião. A primeira cidade a ser visitada foi São Paulo. O príncipe ia pilotar o avião. Chegando a São Paulo, eles iam passear para conhecer a cidade, pois havia bastante sol. Enquanto eles passeavam de avião, três flores, chamadas Cristiane, Rosa e Azul, cantavam para eles a música que inicia as histórias.

O terceiro caso é o de uma menina de 10 anos. No início de sua participação na oficina demonstrava timidez e inibição, quase não falava, mesmo quando solicitada. Demonstrava dificuldade em decidir o que gostaria de fazer quando uma atividade era proposta. Nesses momentos, as terapeutas aguardavam até que ela conseguisse fazer a sua escolha.

Com o decorrer dos encontros, ela passou a participar mais ativamente, inclusive ajudando na retomada das combinações realizadas no início da oficina. Quando a sua participação no grupo finalizou, ela já expressava as suas questões familiares, escolares e discutia suas produções. Em um encontro, foi contada a história da "Cachinhos Dourados" e a atividade proposta foi a de que construíssem a cama, a cadeira e a tigela de um dos personagens. A menina construiu os objetos propostos e um menino do grupo fez um carro. A menina sugeriu que o carro fosse para transportar os três ursos da história. A partir disso, as duas crianças iniciaram uma brincadeira em que ele ia visitála com seu carro na casa construída por ela. O menino começou a "atirar bombas" para destruir a casa: ele dizia à menina que ela deveria proteger sua casa. Após esta brincadeira de "destruir", a partir da intervenção de uma das terapeutas, as duas crianças organizaram novamente a casa que fora destruída.

A princípio, essa menina apresentava uma produção pobre, principalmente quando desenhava. Ela se limitava a copiar uma figura pronta, sem conseguir colocar algo de sua criação. Com o passar do tempo, a menina passou a criar elementos na produção, como, por exemplo, na história do Pinóquio em que desenhou a Fada Azul e fez cabelos com lã. Também passou a expressar suas opiniões para o grupo, trazendo ideias no momento da produção, não se restringindo a copiar.

Em uma das oficinas, a atividade desenvolvida consistia na integração de duas histórias por eles escolhidas, Patinho Feio e os Três Porquinhos, para escrever uma nova história unindo os personagens. A menina realizou a atividade com outro participante e, inicialmente, mostrou-se muito tímida, dizendo que não queria escrever porque não gostava de sua letra. Auxiliou o seu companheiro na atividade, dando várias ideias criativas que poderiam colocar na história.

A atividade prosseguiu na oficina seguinte e o menino, que dividiu as atividades com ela no encontro anterior, não compareceu neste dia. Em um primeiro momento, ela não quis escrever o final da história iniciada na oficina anterior e, mais uma vez, disse que tinha vergonha de sua letra. No entanto, começou a escrever e criou o final da história. Teve dificuldades no seu percurso e solicitou ajuda nas palavras que não sabia escrever. Realizou a ilustração da história criada e pediu que sua produção fosse para a parede e parecia orgulhosa e admirada visualizando o cartaz exposto. Demonstrou envolvimento e criatividade, com grande avanço em sua desenvoltura, pois era uma criança tímida. Nesse dia se olhou no espelho e dançou uma música do Michael Jackson, visualizando-se enquanto dançava.

Em uma das oficinas, a menina disse ter vergonha de ler na frente dos outros. Foi assinalado que, no momento em que quisesse tentar ler, poderia ser a contadora. Passados alguns meses, ela pede, antes do início da oficina do dia, para ver o livro e diz que, se lesse antes, o leria também na oficina. E o fez. Leu toda a história, com algumas dificuldades, e solicitava auxílio com as palavras que não compreendia.

Na oficina seguinte pede novamente para ler a história. No entanto, a combinação era de revezamento do contador. Nesse dia foi lida a história "O canto do canário" e sugerido que desenhassem o lugar em que o canário viveria depois de sair da gaiola. A menina comentou que não queria desenhar porque não sabia onde ele poderia viver. Utilizou sucata para sua produção, pois preferia arriscar fazê-lo com sucata.

Os fragmentos clínicos focalizaram descrições localizadas e particulares que apontam para a potência do dispositivo escolhido. A opção pela realização da oficina de contos não foi motivada pela suposta estruturação presente nos seus elementos narrativos dos contos, mas pelo fato de fornecer elementos oriundos da tradição, aliados a vínculos amorosos transferenciais ancorados na palavra. Houve a aposta de que existem restos com os quais o sujeito pode construir uma resposta singular para o que o interpela (DUNKER, 2013, p. 17). Há sempre um resto que escapa e retorna não preenchido por uma resposta-tampão (BESSET, 1997). Somente assim o dispositivo oficina de contos pôde inserir-se na falha do tecido da realidade presente nas crianças com sofrimento psíquico severo. A importância do grupo esteve ligada ao fato de que ele tornou possível lugares de enunciação e a produção de encontros que pudessem acolher o imprevisível como elemento produtivo do estar junto, um motor para laços sociais possíveis (LACAN, 1992).

É preciso destacar que, nos três fragmentos clínicos apresentados, encontramos crianças que já estavam trabalhando psiquicamente e os seus atos de "desordenação" ou de "agressividade" constituíam tentativas de barrar a angústia. Assim, o "sem sentido" já dizia algo sobre essas crianças. Na oficina ocorreu a possibilidade de intervenção neste "sem sentido" para que se produzisse algum sentido, respeitando a importância de acompanhar os movimentos propostos, mesmo pagando o preço da desconstrução da própria oficina para que as particularidades dos casos fossem francamente ouvidas. Enfim, o dispositivo proposto operou como a oferta de um espaço de experimentação e de criação de uma via possível para um sujeito.

 

Considerações finais

Ao longo de dois anos com a experiência da Oficina Terapêutica de Contos Infantis foi possível observar a mudança das crianças em relação à socialização e à possibilidade de simbolização. A prática da oficina de contos infantis revelou-se um dispositivo clínico potente no atendimento das crianças, na conjugação da contação de histórias com as atividades de criação, proposta como segundo momento da oficina.

Criou-se um setting grupal que, além de trabalhar com o registro verbal, incorporou uma mediação afetiva sensório-motora com o envolvimento do corpo, possibilitando ligações que criaram uma destinação para os excessos no encontro com o Outro.

As crianças conseguiram realizar através da contação e da materialidade dos suportes utilizados no trabalho da oficina uma elaboração psíquica, forjando uma ligação entre o simbólico e o real, engatando com o Outro a partir de um caminho inventado e não mais delirante. Nesse sentido, as crianças demonstraram uma evolução na sua interação com as estagiárias e entre elas mesmas ao participarem da oficina. Inicialmente realizavam suas produções sozinhas, sem muitas trocas. Com o desenvolvimento do trabalho, ocorreram trocas significativas entre elas, interagiram com brincadeiras e entre suas produções, inclusive conseguiram produzir em grupo, estabelecendo cadeias associativas grupais, estabelecendo novos sentidos para a sua singularidade. Além disso, o grupo assumiu a sua função terapêutica, isto é, as crianças puderam ocupar lugares de coterapeutas ao demandarem ser os contadores de histórias e quando intervinham na produção com as outras crianças.

A Reforma Psiquiátrica, aliada com uma clínica da psicose, permite desenvolver novas estratégias de intervenção, que atendam à singularidade do sujeito, sustentando a sua diferença sem excluí-lo do social. Através do espaço de escuta e criação da oficina de contos infantis com as crianças do CAPSi, foi efetivada uma prática terapêutica de circulação da palavra, uma modalidade de tratamento importante para a superação da visão da loucura e do modelo de assistência que ainda hoje é a ela dirigida - o modelo manicomial. O relançamento das fantasias no espaço grupal proporcionou a criação de novos sentidos e a possibilidade de narrar de outro modo sua singularidade e sua infância. Cada criança responsabilizou-se por sua verdade, propiciada pelos laços transferenciais e produzindo um lugar desejante.

 

Referências

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BESSET, Vera Lopes. "QUEM SOU EU?" a questão do sujeito na clínia psicanalítica. Arquivos Brasileiros de Psicologia, v. 49,n. 4, p. 64-71, jan./jul.1997.         [ Links ]

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Data de recebimento: 17/05/2012
Data de aceite: 02/08/2013

 

 

Sobre as autoras:
Alice Moreira Costa é psicóloga, residente da Saúde da Família e Comunidade do Grupo Hospitalar Conceição. Endereço Eletrônico: alice.mor@ig.com.br.
Carlise Cadore é psicóloga, mestranda do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Endereço Eletrônico: carlisecadore@gmail.com.
Michele dos Santos Ramos Lewis é psicóloga, residente do Programa de Residência Integrada em Saúde Mental do Grupo Hospitalar Conceição - GHC. Endereço Eletrônico: midonha@gmail.com.
Cláudia Maria Perrone é psicóloga, psicanalista, com especialização em Psicoterapia Psicanalítica CELG/UFRGS, mestrado e doutorado em Linguística e Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Atualmente, professora-adjunta do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Maria. Endereço Eletrônico: cmperrone@ig.com.br.