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Barbaroi

versão impressa ISSN 0104-6578

Barbaroi  no.39 Santa Cruz do Sul dez. 2013

 

ARTIGOS

 

Fuga para o deserto por uma psicologia pagã

 

Escape to the desert for a pagan psychology

 

Escape para el desierto por una psicología pagan

 

 

Juliane Tagliari FarinaI; Tania Mara Galli FonsecaII

IUniversidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS - Brasil
IIUniversidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS - Brasil

 

 


RESUMO

Partindo do platonismo, passando pelo advento do cristianismo, pela ascensão do sujeito moderno e chegando ao Capitalismo Mundial Integrado, podemos assistir à construção de todo o império do pensamento ortodoxo fundamentado sobre as doutrinas do juízo, onde o domínio das representações ideais e das essências divinas subordina a vida imanente a seus valores transcendentes. Nesse cenário, localiza-se, também, a construção da psicologia como disciplina moderna. Depois de acompanhar o processo dessa construção, o presente artigo desterritorializa a psicologia de suas raízes judaico-cristãs e a reterritorializa numa filosofia da diferença e da relação. Traça-se, então, um plano de fuga a partir de um manifesto que fornece as pistas de uma operação que se processa fora dos modos majoritários de relação e produção subjetiva. E esta fuga se atualiza num movimento do pensamento que se coloca em direção ao deserto. Na travessia desse deserto podemos acompanhar um exercício nietzscheano de transvaloração dos valores através da transformação do conceito de solidão em movimento de ocupação desse espaço liso repleto de potências imanentes, onde a vida só pode ser pensada como multiplicidade: os corpos se dessubjetivam para ocuparem as múltiplas individuações permitidas por cada acontecimento. Assim, coloca-se o embate trágico dos encontros especulares, pois os espelhos já não refletem o Mesmo, mas guardam as potências deformadoras de um eterno retorno.

Palavras-Chave: Ideal. Psicologia. Fuga.


ABSTRACT

Starting with the platonism, through the advent of Christianity, the rise of modern subject, and coming to Integrated World Capitalism we can see the construction of the whole empire of thought based on ortodox doctrins of the court, where the domain of the ideal representation and the divine essences subordinates immanent life to transcendent values. In this context, we also locate the construction of the modern psychology as a discipline. After following this process of construction, this paper deterritorialize the psychology of its Judeo-Christian roots and reterritorialized in a philosophy of difference and relation; Then, we plot an escape plan and a manifesto that provides the clues for an operation that takes place outside the majoritarian modes of relation and subjectivity production. And this flight is actualised on a movement of thought that arises in the desert. We cross the desert and, in this trajectory, we can follow a Nietzschean exercise of revaluation of values through the transformation of the concept of solitude in motion for the occupation of a smooth space full of imannent powers, where life can be thought as a multiplicity: the bodies take off their subjectivity to occupy multiple inidividuation allowed to each event. Thus, there is the tragic clash of mirrors encounter, because mirrors no longer reflect the Same, but keep the deforming power of an eternal return.

Keywords: Ideal. Psychology. Escape.


RESUMEN

Desde el platonismo, a traves del advenimiento del cristianismo, la subida del sujeto moderno y llegando al Capitalismo Mundial Integrado se puede ver la construcción de todo el imperio del pensamiento ortodoxo basado en las doctrinas del juicio, dominio en lo cual los ideales y las representaciones de las esencias divinas subordinan la vida inmanente a los valores trascendentes. En este escenario, también, se encuentra la construcción de la moderna psicología como disciplina. Después de seguir el proceso de esta construcción, este artículo desterritorializa la psicología de sus raíces judeocristianas y la reterritorializa en una filosofía de la diferencia y de la relación. Trazase entonces un plan de escape desde un manifiesto que ofrece las claves de una operación que se realiza fuera de los principales modos de relación y de producción subjetiva. Esta ruta se actualiza en un movimiento de pensamiento que surge hacia el desierto. Al cruzar este desierto puedese acompañar a valores nietzscheanos de ejercicio de revalorización mediante la transformación del concepto de la soledad en este movimiento de ocupación plena de los poderes inherentes de espacio liso donde la vida sólo puede ser pensada como multiplicidad: los cuerpos dessubjetivam para ocupar múltiples individuaciones permitidos por cada evento. Así surge el trágico choque de encuentros especulares porque los espejos ya no reflejan los mismos, pero mantienen el poder de deformación de un eterno retorno.

Palabras Clave: Ideal. Psicología. Escape.


 

 

Introdução

Consideremos do seguinte enunciado: todo o pensamento moderno se engendra numa empreitada que inicia com Platão, passa pelo Cristo de São Paulo, tem seu clímax em Descartes e se aperfeiçoa com alta tecnologia nos pressupostos capitalísticos contemporâneos. Esta é a empreitada que funda o ser humano como um sujeito moral, ser da consciência, sustentado por um pensamento ortodoxo que toma o posto de perspectiva dominante. Encontraremos, então, nossas raízes platônicas nas essências divinas, na representação infinita de Deus, na purificação da alma no além, no primado da consciência pensante, na promessa de ordem, progresso e democracia, na identidade individual, na busca do par perfeito, nos sonhos de consumo...

Partindo desse cenário, intentamos não só diagnosticar as doenças da moral, a escravidão do pensamento, o rebanhamento subjetivo e a monocultura humana, mas também procuramos como e por onde fugir dessas determinações existenciais.

Nesta procura encontramos Nietzsche. É com ele que diferenciamos o psicólogo moderno de um autêntico psicólogo, pois o bom gosto de um autêntico psicólogo é pagão: consiste em "opor-se ao modo de expressão vergonhosamente moralizante que enlameia todo juízo moderno sobre o homem e as coisas" (NIETZSCHE, 1998, p. 126). É o próprio esgotamento (1) da doutrina moderna que poderá nos levar à sua diferença.

 

De Platão ao Capitalismo Mundial Integrado

A história do domínio da representação ideal sobre a vida imanente começa com Platão. Inventa-se a transcendência opondo à vida imanente uma pretensão ideal que submete a vida a uma verdade divina, a uma seleção conforme o juízo de Deus (NIETZSCHE, 1998). As ideias ganham status de anterioridade em relação à encarnação. As almas encarnadas, por sua vez, devem ser pretendentes a cópias fiéis da essência divina, garantindo seu valor pela semelhança. Ancorado nas essências ideais, o platonismo funda o domínio da filosofia como domínio da representação preenchido pelas cópias-ícones, pelo fundamento enquanto modelo do mesmo, do semelhante, da identidade: antes a justiça, a essência ideal; depois, a qualidade de justo e, por fim, os justos, pretendentes de primeira ordem, semelhantes mais próximos da ideia (DELEUZE, 2003).

Este é o terreno fértil que será explorado pelos ideais judaico-cristãos. O homem passa a ser pretendente à cópia fiel de Deus, feito à imagem e semelhança de uma essência cuja representação se torna soberana, perfeita e infinita. Mas essa semelhança é deturpada através do pecado. Pretender a purificação, como finalidade superior, é o aperfeiçoamento cristão do ideal platônico (DELEUZE, 2003).

Podemos compreender o uso da figura de Cristo para fundar uma religião do Poder, uma maneira terrível de julgar em nome de Deus, através de uma crença na imortalidade, numa vida além da vida, no Reino dos Céus através de uma adesão a valores ascéticos, supostamente superiores: toda a moral que nos faz estar sempre ausentes do presente (NIETZSCHE, 1998).

Antes da aparição de Cristo, Roma cultivava valores ativos como valores de nobreza: veracidade, audácia, revide instantâneo contra o inimigo, coragem, magnanimidade, constituição física poderosa, saúde florescente, rica, através da guerra, da aventura, da dança, da caça, enfim de uma existência livre e contente, em oposição aos valores baixos, plebeus, de covardia, de mentira, de impotência. A nobreza romana criava os critérios do que era bom ou ruim a partir daquilo que era vivido. O sentido do afeto era colado ao acontecimento (DELEUZE, 1997). A imanência imperava.

Mas a Judeia apresentava uma nobreza sacerdotal, de hábitos hostis à ação, hostis aos valores de quem escravizava os judeus: jejuns, abstinências sexuais, isolamentos, ódios contra inimigos espirituais (NIETZSCHE, 1998). Roma sob a égide dos pontífices é a Roma que aterrará os seus teatros (ARTAUD, 1999), nada mais apresentará aos Deuses e, a partir daí, um só Deus soberano e perfeito comandará o espetáculo.

Assim, o que era nobre passa a ser o mal e o que era baixo passa a ser o bem. Bem e Mal se tornam valores em si, essências divinas. Os sofredores, os escravizados recriaram os valores humanos através do ódio e da vingança. Faz-se brotar do ódio um novo amor: o amor pelas alturas, pelo além. Cristo, o Deus pregado na cruz pelos romanos, é o Deus que se sacrifica pelos pecados do homem, pecados que outrora foram valores nobres. Cristo crucificado permitirá o golpe de mestre do apóstolo Paulo, a catequização do inimigo: triunfo da moral escrava, rebanhos (2) com desejo de rebanho, rebanhos do senhor na terra esperando a redenção no Reino dos Céus, onde a vigança será degustada como se deve: fria, depois de cozida por muito ressentimento, por muito rancor às grandes aves de rapina. O que outrora fora uma ação imediata, torna-se uma reação retardada e relegada a Deus, à sua lei, ao reino das alturas e do além (NIETZSCHE, 1998).

Como se não bastasse ter feito da opressão um bem, a moral escrava ainda inventa um Deus a quem obedecer. A senha mentirosa do ressentimento, o privilégio da maioria através da promessa que o homem faz a Deus: ser bom para ser recompensado no além da vida, no dia de nossa morte, amén. Este é o grande engodo, a grande promessa: o altruísmo e o ascetismo colocados como valores acabam por dizer não à vida ao mesmo tempo em que se tornam um sofisticado instrumento de coerção social. O homem animal de rapina tem seus instintos amestrados para tornar-se manso e civilizado, doméstico e comunitário, dotado de compaixão e responsabilidade, de orgulho pelo sofrimento, de mérito por Ser-assim. A partir de então, as virtudes altruístas, a compaixão, a abnegação, a humildade, a paciência, a vergonha, o sacrifício foram tomados como valores em si, impassíveis de qualquer crítica.

Esquecemos, assim, tudo que produziu os juízos de valor, deixando-nos aprisionar por eles, mas não esquecemos a promessa de chegarmos a uma purificação ideal no mundo do além. E, assim, prosseguimos querendo o já querido (NIETZSCHE, 1998), sendo assim, sendo Eu-Mesmo, tal qual Deus quis. E enquanto queremos o que o amanhã promete e fazemos promessas ao amanhã, não há descarga, ação, presente.

Assim se funda a memória escravocrata da neurose que fez do homem o animal que promete. Pois a neurose é a doença do homem do ressentimento: a busca de um ideal ascético através de uma moral sublime e suas santas virtudes não passam de um labirinto de ideias fixas, de um excesso de sentimento, que se colocam como barreiras contra a vida, contra a saúde e o vigor da espécie humana.

Por isso, é preciso apontar uma grave diferença entre o nobre egoísta e o exemplar de rebanho, o sujeito altruísta. Enquanto o primeiro é bárbaro, audaz, tem desprezo pela segurança e digestão fácil, e quando inventa Deus é para que ele seja espectador de suas obras e seus espetáculos, o segundo acrescenta sempre mais prudência e controle dos instintos pois sofre os efeitos dos castigos prometidos por seu Deus julgador. O primeiro nada deve pois sempre age. O segundo está sempre retardando a ação, em dívida com o mais terrível dos agiotas, o promotor da dívida infinita, o juízo de Deus, encarnado na comunidade, que, quando traída em seus valores, também saberá cobrar seu preço.

Mas, no primeiro caso, a nobreza não é do indivíduo, é da força. É ela que é potente e busca cada vez mais potência. Enquanto sujeito é um conceito reativo, adaptativo, é a criação de um animal que sabe fazer promessas, um animal responsável. Por isso ele foi tornado uniforme, igual entre iguais, previsível e, portanto, confiável, mas através da fórmula do indivíduo soberano, dotado de livre-arbítrio, de poder sobre si mesmo: consciência cavada pela memória dos castigos e das penas, triunfo da culpa vivida no encarceramento da comunidade e na promessa da paz (NIETZSCHE, 1998).

E os velhos instintos? Deixaram de fazer suas exigências? Não, mas tiveram que buscar subterfúgios, meios subterrâneos de satisfação, pois, no momento em que não puderam mais se descarregar para fora, para a ação, tiveram que se voltar para dentro, possibilitando a interiorização do homem e a formação de uma alma individual. Assim surge a má consciência, a autovigilância, o autoflagelo, o autocastigo, enfim, o Estado interiorizado: o próprio homem responsável por seu amansamento. Eis a mais sinistra das doenças: o sofrimento do homem consigo mesmo (NIETZSCHE, 1998). Puro engodo, talvez o pior de tantos que nos contaram. Descoletivizar a alma foi uma estratégia indispensável ao sucesso dessa empreitada rumo à domesticação do homem.

Foi assim que uma população bárbara, "sem normas e sem freios" (NIETZSCHE, 1998, p.74) pôde ser tornada estável e maleável, dando início à forma Estado, aos controles da maioria pelo juízo de Deus na Terra. O Estado, o primeiro escalão do governo de Deus, seguido na hierarquia pela figura paterna.

Toda esta hostilidade contra a vida é afirmada pelo sentimento de rebanho. Toda crueldade do mundo se torna afável porque se vive como todo mundo. Porque somos todos semelhantes a Deus e uns aos outros é que somos livres para obedecer. É só no seio de um rebanho que se pode criar um sujeito dotado de livre arbítrio que sabe exatamente o que deve escolher entre o bem e o mal: o bem determinado por Deus.

No seio desse rebanho surge o sujeito moderno, capitaneado pela filosofia cartesiana. O idealismo dogmático de Platão é reeditado quando a unidade metafísica da alma é transposta para a substância pensante concentrada no núcleo da consciência de onde conclui-se, simploriamente, que o ato de pensar tem como causa um sujeito que pensa. A gramática toma o trono da verdade absoluta já que o Eu é sujeito e o penso é predicado (GIACÓIA JR, 2002).

É assim que o homem mata Deus para colocar-se no lugar dele. Em vez de ser sobrecarregado de cima, o próprio homem se encarrega de colocar seu peso sobre as costas. O essencial não muda, os valores de bem, de verdadeiro, de divino podem vir de Deus, do ideal de progresso, de felicidade, de utilidade ou da consciência pensante, mas são ainda valores que submetem a existência a seus julgamentos (DELEUZE, 2007).

Acabamos por suportar "miséria, privação, mau tempo, enfermidade, fadiga e solidão" (NIETZSCHE, 1998, p. 35) como se fossem fardos normais a que se carregar, pois somos consolados pela esperança da transcendência, do mundo do além e do amanhã.

A partir daí, o conceito de sujeito se mostra um artifício sofisticado, "o mais sólido artigo de fé" já criado, o mais sofisticado dos ideais inventados sobre a Terra. Toda uma espécie humana se sustenta sobre ele: sob a roupagem da indiferença, da virtude e do livre arbítrio, escondem-se a fraqueza e a opressão de toda a espécie (NIETZSCHE, 1998, p.37).

Evidenciam-se então as raízes da psicologia e sua ascendência judaico-cristã: um território que enfatiza as produções políticas da modernidade, onde ações normalizadoras da vida humana são operadas através de uma produção subjetiva que se centraliza no modo-de-ser indivíduo. Aí se estabelecem certas naturezas, modelos e identidades que, de maneira ortodoxa, passam a orientar predominantemente as práticas da psicologia, despolitizando-as. É a psicologia de um humano conformado com a condição de sujeito, que se debruça sobre a análise de sofrimentos individuais derivados de conflitos psíquicos que se processam no interior do indivíduo e só a ele se referem (ABREU; COIMBRA, 2005). É neste cenário que a psicologia encontrará este sujeito que fala de si, um Eu para quem ofertará um "código pré-existente de interpretação" (DELEUZE, 2006b, p.346), uma transcendência interpretativa.

Quando deixamos que a alma se atomize num indivíduo, estamos diante do aperfeiçoamento subjetivo dos pressupostos platônicos e cartesianos: a micropercepção da alma fica reduzida à interioridade e esta, reduzida aos regimes macroperceptivos do juízo de Deus: normopatia neurótica. O pensamento se torna obediente, está a serviço da conservação e de um modo de existência. Concebe o desejo como caos e a subjetividade como interioridade. Aí, vemo-nos diante de representações paralisadas que nomeiam e julgam toda a sensação. Os corpos dotam-se de um dentro, um abismo, uma essência, uma identidade que se morre de medo de perder porque nunca está satisfatoriamente preenchida. É um lugar onde tudo que vibra é neutralizado e acaba se apagando; "uma subjetividade que ficou reduzida ao ego" (ROLNIK, 2006, p. 43-4). Enfim, corpos aprisionados numa estratificação organizadora, significante e subjetivadora (DELEUZE; GUATTARI, 2004b). Corpos que só dizem Eu...

E o Eu não passa de uma alegoria, de uma imagem produzida para ser espelhada no olhar de um outro espelhável, possível. Imagem infinita em dívida infinita consigo mesma. É um reflexo, não uma verdadeira relação. É o primado de um individualismo onde nada se divide, tudo serve à exclusão do outro que não reconhece o Eu e não é por ele reconhecido (idêntico, semelhante, fiel, sem mistérios e, de preferência, bonito).

E hoje, quando imaginamos viver uma existência suficientemente terrena, o que encontramos? Igrejas e templos em franca proliferação, endurecimento dos fundamentalismos religiosos e, quando pensamos nos sentir suficientemente ateus, o Reino dos Céus se instala no prêmio da loteria. A cada aposta, nova oportunidade para o mesmo sonho. A felicidade e a recompensa permanecem no amanhã: casas, carros, viagens, status... dinheiro até para ajudar o próximo! Acreditando que somos nobres egoístas, somos ainda rebanho, temos sonhos de rebanho.

Tão sedentos de democracia como de rebanho, queremos para todos o que queremos para nós e sabemos perfeitamente o que devemos querer. A ordem capitalista contemporânea aproveita o ensejo para roubar nossos corpos para que com eles se produzam os organismos necessários às maquinarias da produção (DELEUZE; GUATTARI, 2002a), rebanho produtivo movido a captura de desejo...

Corpos-chip: ágeis, conectados, consumidores de velocidade; corpos-zumbis: deprimidos, incompreendidos, habitantes de buracos, consumidores de psicofármacos e TV a cabo dublada; corpos-manequins: magros, consumidores de tendências de moda; corpos-trabalhadores-livres: privatizados, participantes do capital estrangeiro, consumidores de emprego e índices econômicos; corpos-mães: amorosas donas de casa que trabalham fora, consumidoras de sabão em pó e Biotônico Fontoura; corpos-adolescentes: sempre novos consumidores...

E nós consumimos, nem que seja idealizadamente, o que é vendido. E tudo pode ser vendido! O privilégio da vida é concedido a quem tem o poder de compra. E o privilégio continua sendo, mais do que nunca, a virtude suprema, o ideal. O que se pode e o que não se pode ter e ser são os dois lados da mesma moeda, moeda de circulação planetária, movida à transcendência capitalista. Em troca, ganhamos uma alma com selo de qualidade: propriedade particular e intransferível.

Assim como não podemos esquecer as causas do império do juízo de valor, não podemos deixar de dissecar os mecanismos da produção de subjetividade capitalista, que nos chegam através da mídia, da família, enfim, de todos os equipamentos que nos rodeiam, e que não são apenas transmissões de significações através de enunciados significantes; nem são modelos de identidade ou identificações com polos maternos, paternos etc. São, mais especificamente, sistemas de conexão direta: de um lado, as grandes máquinas produtoras de sentido e valor e, de outro, as instâncias psíquicas, a maneira de perceber o mundo. Nesse sentido, o indivíduo é uma produção subjetiva e o terminal individual se encontra na posição de consumidor de subjetividade (GUATARRI; ROLNIK, 1993).

Acabamos capturados por matérias de expressão características da era da mídia: matérias de expressão limpas de afeto. Tornamo-nos presas fáceis das centrais distribuidoras de sentido e valor, onde a mídia desempenha, provavelmente, o papel principal (ROLNIK, 2006). Deus pulveriza assim seu ponto de vista e nos dá a ilusão da livre escolha, mas é ainda a escolha do sujeito que se crê dotado de livre-arbítrio, livre para escolher o que o mercado oferta.

O terreno onde a ordem capitalista semeia sua produção foi arado na chamada sociedade disciplinar, onde a subjetividade privatizada e individualizada foi aperfeiçoada através de um sistema de controle-repressão preocupado em docilizar os corpos para torná-los força de trabalho. Contemporaneamente, na passagem para a sociedade de controle, a subjetividade tem passado por um sistema de controle-estimulação: os corpos são impelidos a expandirem-se externamente, conectando-se direta e cotidianamente com as necessidades do mercado global, transformando em certeza a impressão de que é impossível passar despercebido (SANT'ANNA, 2002).

Enquanto isso, a psicologia de que falamos acima mantém suas análises sobre a suposta interioridade conflitiva individual forjada na sociedade disciplinar ou então sobre a crise dessa interioridade como se estivéssemos trocando algo ruim por algo pior ainda. Começamos a experimentar um processo de externalização da existência, mas que pouco dá margem à coletivização. O Eu ainda resiste em sua realidade física material, seu ideal corporificado na obrigação de externalizar-se: fotologs, perfis em vários sites de relacionamento, interminável investimento em imagem pessoal... A pele que era impermeável às forças do mundo para guardar as profundidades do modo-indivíduo-de-ser, continua impermeável para tornar-se superfície de inscrição das necessidades do capitalismo de consumo.

Nada mais pode ficar invisível. As narrativas do Eu se colam ao visível, ao facilmente comunicável, ao facilmente identificável segundo padrões majoritários, ao facilmente enunciável do outro sobre si. O outro continua a especular, um outro que é segundo em relação ao Eu (BEZERRA JR., 2002), que assegura este mundo ideal como possível.

Deixamos de falar de um Eu interiorizado para falarmos o que devemos falar, o que de antemão não será desvalorizado, o que estará de acordo com o que aparece e será facilmente reconhecido. Exteriorizado, um Eu ainda se conserva e se oferta não mais às tiranias da intimidade, mas às tiranias da exterioridade... Mas queremos nos livrar das "tiranias da intimidade", portanto não somos saudosistas! Procuramos um caminho de fuga, de liberação desta funesta necessidade de atomismo que acabou por gerar o "atomismo da alma" (NIETZSCHE, 2003, p. 19/20).

 

Plano de Fuga

Depois da contextualização anterior, encontramos a filosofia como potência de reterritorialização de um território do qual nos desterritorializamos: a psicologia. Encontramos uma filosofia que, como nós, se desterritorializa do pensamento ortodoxo e procura reterritorialização e consistência no pensamento da diferença e da relação.

Temos uma ferramenta pelo menos: a crítica, a potência clínica que nos possibilita perguntar sobre o domínio dos modos de produção de subjetividade majoritários: "como não ser governado assim, por isso, em nome desses princípios, em vista de tais objetivos e por meio de tais procedimentos?" (FOUCAULT, 1978).

A contextualização anterior nos diz o que é isso que nos governa, quais são esses princípios, objetivos e procedimentos para os quais dizemos "Não dessa forma, não para isso!" (FOUCAULT, 1978) e tenta nos convencer de fugir, nos convence de que só o que podemos é fugir. Porém, não fugimos do mundo, acompanhamos um mundo em fuga...

Mas o que foge? Do que se foge? E... para onde?

Um olhar mais aguçado sobre as prisões existenciais forjadas no mundo contemporâneo torna visível nosso espírito de rebanho: nossa vida de gado comandada por formas majoritárias de relação: o Estado, a família, a conjugalidade, a propriedade, grandes categorias molares que não admitem críticas em nome da manutenção de um suposto equilíbrio. Mas nos deparamos com as ilusões que sustentam o rebanho e suas formas de relação: ilusões antropocêntricas que nos fazem sobrepor sobre o mundo territórios humanos, com bichos humanos, línguas humanas, cenários humanos, trajetos humanos... tudo tão demasiadamente humano que, por vezes, nos produz náusea... Mas essa náusea tem dois caminhos: o caminho do cansaço que nos faz tomar um analgésico e descansar para viver esta vida um pouco mais e o caminho do esgotamento capaz de provocar um desejo de fuga, um desejo de aventura, um desejo de desumanização.

Enfrentamos uma "terapia da desobsessão" (Viveiros de Castro, 2008), pois desde Platão andamos obcecados, dominados por uma maldita vontade de espelho. É esta maldita vontade de espelho que nos faz querer sempre o reflexo de algo, nem que seja o reflexo de um si mesmo, de uma identidade, de um sonho. Até mesmo o delírio e a imaginação são vistos como um reflexo de um mesmo mundo que nos iludimos em compartilhar.

Por isso, começamos escrevendo um manifesto...

 

Manifesto dos Fujões, por uma psicologia pagã

Não percorremos os caminhos majoritários do bom senso e do senso comum (3), das linearidades, das generalidades, e, sim, o movimento dos desvios, das rachaduras, das fugas.

Operamos a diáspora de um território essencialmente antropomórfico (VIVEIROS DE CASTRO, 2008): territórios sustentados pelo primado de uma consciência pessoal e individual, que demarca o espaço e distribui sobre ele formas fixas e sedentárias.

Entendemos que não somos livres enquanto indivíduos: esta há de ser a mais terrível das prisões. Somos livres ao habitar a mais movediça das terras: terras que se criam como acontecimentos, individuações sem sujeito que habitamos apenas parcialmente e momentaneamente e que não compreendem nossa pretensão de comando.

Não distinguimos mais acontecimentos privados de acontecimentos coletivos. Assim como a guerra não é assunto privado não há ferimento que não seja de guerra e oriundo da sociedade inteira (DELEUZE, 2003)!

Guardamos a potência de um pensamento clínico: denunciar e destituir tanto o ressentimento no indivíduo quanto a opressão na sociedade em qualquer caso.

Substituímos a fina porcelana íntima e familiar pelas grandes fissuras geográficas.

Fazemos muito mais geografia do que história! Porque a geografia arranca a história do culto da necessidade e das origens para afirmar a irredutibilidade da contingência, a potência do meio. Para além do físico e do humano, geografia é paisagem, atmosfera (DELEUZE, 2003).

Em vez de nos aliarmos à história na procura de cadeias causais, deixando-nos fascinar pelas origens e suas explicações, desviamos: em vez de fazer a história dos heróis, fazemos a geografia dos rebeldes;

Substituímos a regressão psíquica pelo investimento especulativo.

Não separamos a realidade do sonho, da imaginação e da arte.

Adentramos cenas do cotidiano, cenas do extraordinário, cenas ficcionais, cenas oníricas, cenas cinematográficas... Já não nos importam essas distinções. O que nos interessa é o movimento real, aquele que percorre uma multiplicidade, e não o movimento abstrato que percorre apenas categorias representacionais e identitárias. Há componentes químicos, dramáticos, comportamentais, microperceptivos, mágicos, hereditários, adquiridos, animais, improvisados, sociais, fantasmáticos... envolvidos em qualquer agenciamento. Esses componentes não respeitam distinção de ordem, nem hierarquia de formas.

Ouvimos os elementos rindo da pretensão humana...

Buscamos o que é estranho e questionável no existir, o que o juízo de valor torna negativo e a moral se esforça por banir. Um perspectivismo, uma psicologia do ver além do ângulo, uma transvaloração dos valores, como quis Nietzsche; sem que isso implique simplesmente inversões, que dariam ao negativo o estatuto de verdade: o que se opõe ao verdadeiro não é o falso, é o não senso, o disparate, o paradoxo, os fantasmas.

Servimo-nos das cenas da vida ao gosto nietzschiano: como uma lente de aumento com que se pode tornar visível um estado de miséria geral, porém dissimulado, pouco palpável e também como uma lente multifocal com que se pode ver movimentos moleculares, microfísicos, que operam à margem das grandes categorias e fazem com que todo o movimento humano se componha de um movimento caosmótico.

Pensamos na imanência, geograficamente, pelas entranhas do acontecimento, tendo o conectar como verbo de operação e como método.

Colocamo-nos em posição de resistência a um modo de pensamento que opera por transcendência e projeta sobre o que acontece um passado reconhecido e um futuro provável através de seus ideais representacionais.

Anunciamos uma psicologia pagã, que foge de suas origens judaico-cristãs, e uma psicologia fraterna que foge das hierarquias e opera na imanência onde o que domina é "a contingência absoluta, com a mecânica absurdidade de todo o acontecer" (NIETZSCHE, 2008, p. 67)

Imergimos nos acontecimentos imprevisíveis e irreversíveis da existência.

Só queremos algo do que acontece, arrancamos a vida do que acontece! E não do além ou do amanhã.

Encontramos o Amor fati nietzschiano no acontecimento, no combate dos homens livres! Onde não somos simples obras do acaso nem donos de um "livre arbítrio" humano e individual.

Abandonamos a seleção pelo juízo e passamos a fazê-la pelo gosto que "é, ao mesmo tempo, peso, balança e pesador".

"Não atuamos isoladamente em nada" (NIETZSCHE, 2008, p. 8).

 

A fuga para o deserto

Para abrir espaço para a experimentação de nosso manifesto é preciso frizar que não bradamos outro mundo possível. Porque prometer um outro mundo possível é assegurar a transcendência: outrem como estrutura e como garantia (Deleuze, 2006a).

Aí mora e se alimenta a neurose: outrem ainda funciona embora não haja ninguém para preenchê-lo (Deleuze, 2003). E se outrem é uma estrutura transcendente, outrem a priori não é ninguém e é, portanto, vontade de nada. Então, basta desta maldita vontade de espelho, de encontrar o reflexo de um mundo pré-concebido! Mas para isso é preciso

"apreender Outrem como sendo Ninguém e, depois, ir ainda mais longe, atingir regiões em que a estrutura-outrem não funciona mais, distante dos objetos e dos sujeitos que ela condiciona, para deixar que as singularidades se desdobrem, se distribuam na Ideia pura e que os fatores individuantes se repartam na pura intensidade. É bem verdade que, neste sentido, o pensador é necessariamente solitário e solipsista" (DELEUZE, 2006a, p.389).

Enquanto o possível se opõe ao real, garantindo assim o título de seu descendente fiel, forçando o acontecimento a adequar-se à sua imagem e semelhança, o atual e o virtual se irmanam compondo todo o real. A passagem do virtual ao atual não se dá por filiação, mas "por diferença, divergência ou diferençação. A atualização rompe tanto com a semelhança como processo quanto com a identidade como princípio" (DELEUZE, 2006a, p. 316-319). O futuro se encontrará no virtual que se atualiza por um processo de criação e não no amanhã.

Não seria também este o programa para uma reversão do platonismo? A procura de um outro outrem? É por isso que os sonhos do pensador são sempre sonhos de ilha deserta: sonhos que pervertem os sonhos do rebanho sem impor sobre eles a oferta de uma nova terra. Só o deserto permite a imaginação, o inconsciente. O impulso imaginativo opera como a geografia insular: separação e recriação que retoma o combate imanente entre o oceano e a terra (DELEUZE, 2006b), desmanchando a submissão do homem a um céu transcendente e profundo que ele mesmo inventou como algoz.

Uma perversão do platonismo aparece como potência capaz de introduzir o desejo num sistema não transcendente. Mas estaríamos nós defendendo a perversão? Sim! Por que não? A má fama da perversão se dá porque ela sempre é julgada em relação aos atos e às ofensas dirigidos às suas supostas vítimas. Mas não estamos falando de comportamento. Falamos de uma perversão pensada fora do sujeito, a perversão como "altruicídio" (DELEUZE, 2003, p.329), como crueldade.

E crueldade não é derramamento de sangue! O cruel está muito mais próximo da crueza, daquilo que ainda não se fez, de uma energia ainda não domesticada. A crueldade é uma dramatização difícil e cruel antes de tudo para o que acreditamos ser um si mesmo (ARTAUD, 1999). Não é possível atacar o idealismo sentimental e combater os costumes e a religião sem ser perverso. Eis a aventura de Sade que é também a aventura de Nietzsche, um grito dos fortes contra a força dos fracos: - Contra os valores burgueses e suas virtudes de rebanho comedido, o império intransigente e terreno da carne! A aristocracia verdadeiramente ateia (BORGES. In: SADE, 2003) encarando a dessubjetivação: matando Deus mata-se também o Eu, pois "Deus é a única garantia da identidade do Eu" (DELEUZE, 2003, p. 302).

O ateísmo aparece como uma nova inocência e não como uma simples agnose. É uma ilha deserta. E a perversão é uma intensidade e não a identidade semijurídica e semipsiquiátrica (DELEUZE, 2003) com a qual nos acostumamos a julgar comportamentos. Há em Sade um retorno à afirmação dos afetos do corpo como valor, e à imaginação como potência de fuga: "jamais haverá leis que contenham a imaginação" (SADE, 2003, p. 65).

Decorre daí um juízo que não pode vir de Deus, um juízo que não pode ocorrer fora da experiência, pelo contrário, é um efeito dela, do exercício dos sentidos (SADE, 2003) que reivindicam os direitos da imaginação. E isso só acontece num sistema anárquico capaz de questionar o homem, suas ideias sobre a realidade e seu lugar poético (ARTAUD, 1999).

É preciso, sim, apelar para ideias incomuns, pois elas terão a potência de criar um equivalente terreno para a metafísica celeste, sem que isso signifique a morte da poesia, da magia ou do encantamento. São ideias (4) que se destinam ao ilimitável, pois estão no rastro da criação, do devir, do caos. Colocam em relação o homem, a sociedade, a natureza e os objetos (ARTAUD, 1999) e apagam os reflexos de subordinação e hierarquia. O que há entre real e imaginário é uma relação de contágio. Tudo são atmosferas a habitar.

Desativa-se a consciência e a representação universal. Produz-se, então, o real, não se responde a ele. Faz-se existir, não se julga (DELEUZE, 1997). A consciência cai do trono e o sujeito se perde no deserto. E perder-se é sempre perder-se de si e perder o mundo. Abre-se aí o espaço, o deserto, a fissura que racha o Eu e o Mundo e permite que o entendimento se dê no encantamento intempestivo e na experiência paradoxal (OLIVEIRA, 2009), pois o agora é sempre uma catástrofe (SELIGMANN-SILVA, 2000, p. 82) e só há como fugir para o deserto!

 

A Trilogia do Deserto

Fugir para o deserto não é abandonar o mundo que se tem, rumo a um outro mundo supostamente melhor. Com o deserto, só podemos nos encontrar e ele estará exatamente onde estivermos. É muito mais uma função, um movimento, do que um lugar, uma terra prometida. Está mais próximo de um verbo que de um substantivo, de um pensamento ativo que de um ato reflexivo... desertar é o verbo que produz o deserto-em-nós.

Se Deleuze (2006a) nos diz que, nesse movimento, "o pensador é necessariamente solitário e solipsista", precisamos cartografar esse movimento do pensamento, onde encontramos a solidão como a potência do deserto ou o deserto como a potência da solidão.

A solidão parte para o deserto, pois precisa se desfazer de sua representação essencial. Começa a jornada como solidão de camelo, solidão de rebanho, sólida solidão, carregada de ressentimento e culpa, abarrotada de uma significação humana negativa... A solidez do significado comum da palavra e dos sentimentos subjetivos de solidão começa, então, a derreter. Não se fica só sem levar a faculdade de estar acompanhado ao seu limite, ao seu ponto de saturação e esgotamento. Não se chega ao sentido de companhia sem esgotar o sentido da solidão. E o sentido não pode ser encontrado nos estados de coisas dos corpos, mas nos acontecimentos que os acometem, e no modo como esses acontecimentos se comunicam enquanto efeitos incorporais independentes de suas causas corporais (DELEUZE, 2003).

Companhia e solidão se descolam da essência e passam a operar no acontecimento. Não é necessário, portanto, invocar a identidade e a contradição desses conceitos, pois é a contradição suposta nesses conceitos que produz uma incompatibilidade e não o inverso. Enquanto acontecimentos puros, um não é mais positivo do que o outro, nem sequer podemos supor que relação têm um com o outro. "Trata-se de uma distância positiva entre diferentes": não os identificamos como contrários, mas afirmamos a distância que os relaciona. Aí se localiza a arte do perspectivismo, onde não conseguimos mais dizer "vice-versa". É assim que nos livramos do ponto de vista como juízo de Deus e passamos a ter a vida mesma como procedimento (DELEUZE, 2003, p. 178-9).

A solidez dos nomes gerais das coisas derreteu e foi arrastada por verbos de puro devir que deslizam na linguagem dos acontecimentos (DELEUZE, 2003). E quando a coisa explode e perde sua identidade, não há pressa em procurar uma palavra para assegurar sua integridade (DELEUZE; GUATTARI, 2004a), aproveita-se esse deserto de incerteza pessoal para experimentar a multiplicidade criadora do inconsciente.

Parte-se do acontecimento que é anterior e original em relação aos predicados (DELEUZE, 2003) e nele só encontraremos verbos. Então, antes da companhia encontramos o acompanhar, verbo conector por excelência. Mas qual é mesmo o verbo que antecede a solidão? Só encontramos a solidão como conceito, como essência. A significação humana de solidão é solapada pela passagem das matilhas e dos devires: a vida só pode ser pensada enquanto multiplicidade. A única solidão possível é a solidão do ponto de vista que se pretende universal, comum. Como "devir não é ser" (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 87), sua função é produzir afectos que transbordem as afecções e percepções ordinárias e conceitos que transbordem as opiniões correntes. E isso só se passa quando o afecto encontra o pensamento e faz dele uma potência de afectação (DELEUZE; GUATTARI, 1992).

No meio do caminho, faz-se a solidão de leão que se enraivece, se indigna e diz 'não'! às forças aprisionadoras. É, ali, solidão líquida, sedenta de noite e embriagada de vinho que grita obscenidades na janela para importunar o justo sono dos vizinhos... Ela encarna um corpo dessubjetivado em algumas de suas múltiplas individuações: um fantasma, um rebelde, um maldito, um místico, um eremita, o inumano, o louco (BRANCO, 2000). E o pensamento se descola da história pessoal e individual para tornar-se pensamento criador da vida.

É um corpo sem órgãos que cria uma voz estrangeira e se faz falar através de um corpo, quase como uma vertigem, um povo, um povo por vir. Há um desmanche do psicologismo, um teatro cruel, onde a palavra se descola de seu despotismo significatório para nomear algo do acontecimento. Foi preciso matar o Deus que julga e determina o sentido... A solidão se torna movimento e levanta voo. A solidão só existe em nossa ilusão individual. É a solidão a doença que abre os caminhos de exploração da saúde.

Encontramos agora a solidão como sofrimento trágico, a solidão que se espelha e que retorna. É a solidão que encontra o espelho deformador e múltiplo do que outrora pensou-se um só rosto, uma só vida, um só indivíduo, uma só identidade, uma só memória. Só se é um só, quando não há espelhos. Não há vida sem espelhos. Mas o espelho não reflete o Mesmo. O que se vê é já vertigem, criação, fuga do representável justamente diante da tentativa de representar-se. O espelho não é um reflexo, é a porta do labirinto, caminho para a morte, mas também perspectiva de renascimento no útero da terra, no encontro da ilha deserta, lugar de decomposição e renovação.

"O homem trágico afirma mesmo o mais duro sofrimento, de tal forma que ele é forte, rico e capaz de divinizar a existência" (NIETZSCHE. In: DELEUZE, 2007, p. 65) Quando se afirma, se quer de novo, e o Eu que quer muda, torna-se continente de múltiplas individuações e é capaz de recapitular em si mesmo "a totalidade da existência passada, presente e futura". Só resta ao Eu querer-se outra vez, não como resultado de suas possibilidades prévias, mas como um momento fortuito. É isso que faz do eterno retorno a experimentação radical da renúncia à identidade uma vez por todas (DIAS, 2002).

A solidão agora é um devir que escapa do que está cheio demais, se torna náufrago do mundo possível, em busca da aventura do deserto. E assim faz falar seu direito de futuro: é a solidão da criança que diz sim! Solidão gasosa, embriagada de agora, embriagada de ar... que dança e ri. "Maturidade do homem: significa reaver a seriedade que se tinha quando criança ao brincar" (NIETZSCHE, 2003, p. 71).

Atinge-se a solidão como gosto. Ao fim, a solidão é uma travessura gasosa, que retorna enquanto afirmação. Os fantasmas que eram reflexos atormentadores em suas tentativas frustradas de assemelharem-se a um Mesmo original, retornam como duendes zombeteiros...

E então compreendemos que não pensamos solitariamente, mas com a solidão... Eis o paradoxo: estar acompanhado de solidão. A solidão se torna plural, são solidões... Os seres e as palavras se libertam das prisões da identidade e da identificação. A solidão revela, então, sua potência: a liberdade de não ser, a solidão como deserto, o nomadismo de ser.

"Sonhar ilhas desertas, com angústia ou alegria, pouco importa, é sonhar que se está separando, ou que já se está separado, longe dos continentes, que se está só ou perdido; ou, então, é sonhar que se parte do zero, que se recria, que se recomeça" (DELEUZE, 2006a, p. 18)

 

Referências

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Notas

(1) Para Deleuze (2005) "o esgotado é muito mais do que o cansado", uma vez que o cansado é aquele para quem não há mais possibilidade. O cansado do cotidiano é aquele que descansa para viver o possível um pouco mais. Mas o esgotado é aquele que esgotou as possibilidades de tal forma que encontrou o espaço vazio, renunciando a toda necessidade, preferência, finalidade ou significação, conseguindo encontrar o fora dos objetivos e dos projetos preestabelecidos, liberando-se dos possíveis sempre porvir.

(2) "Esse é um dos principais sentidos do terminus nietzscheano 'rebanho', moral do 'rebanho', perspectiva do 'rebanho', que tem a função de ressaltar o ponto de vista e o modo dominante de valoração do senso comum, o igualitário e uniformizante; pois, em um rebanho, desconsideram-se principalmente as possibilidades de singularização. A desconstrução desta perspectiva levaria as superstições e os preconceitos ancestrais que fundamentam a psicologia a uma renovação através de uma concepção pluralista da subjetividade (GIACÓIA JR., 2001).

(3) O bom senso é uma verdade apenas parcial que se une ao sentimento do absoluto para criar esta instância essencialmente distribuidora e repartidora. Quer prever mais do que agir, molda o sentido do tempo como uma flecha com sentido único, que vai de um passado representável a um futuro provável, do particular ao geral, do mais diferenciado ao menos diferenciado, do singular ao regular, do notável ao ordinário... Bom senso essencialmente agrícola, inseparável da colocação de cercas: operações de classe média, tarefa reguladora e compensadora das partes. Gesta-se aí o tal senso comum, a faculdade universal de identificação. Nele, faculdades diversas da alma e órgãos diferenciados do corpo são referidos a uma só unidade: aquela capaz de dizer Eu. O outro é um objeto assim reconhecido porque não é Eu: intermitente processo de recognição e distribuição sedentária que se ilude em compartilhar um Mesmo mundo. O bom senso e o senso comum se refletem entre si numa regra de partilha universal que é universalmente partilhada, que assegura as ilusões de uma verdade universal e eterna e estabelece a filiação entre o Eu, o mundo e Deus, a trindade absolutista (DELEUZE, 2006a; 2003).

(4) A partir daqui haverá uma distinção necessária entre a ideia platônica, descendente de uma essência metafísica que preexiste à encarnação e o conceito de Ideia que encontramos na obra deleuziana, principalmente em Diferença e Repetição. Deleuze (2006a, p. 271-2) opõe a Ideia enquanto estrutura-acontecimento-sentido e a ideia enquanto representação: "na representação o conceito é como a possibilidade; mas o sujeito da representação determina ainda o objeto como realmente conforme ao conceito, como essência. Eis por que, em seu conjunto, a representação é o elemento do saber que se efetua no recolhimento do objeto pensado e em sua recognição por um sujeito que pensa. Mas a Ideia dá importância a características totalmente diferentes. A virtualidade da Ideia nada tem a ver com uma possibilidade. A multiplicidade não suporta nenhuma dependência em relação ao idêntico no sujeito ou no objeto. Os acontecimentos e a singularidades da Ideia não deixam subsistir nenhuma posição da essência como 'aquilo que a coisa é'. Sem dúvida, é permitido conservar a palavra essência (...) quando ela é precisamente o acidente, o acontecimento, o sentido, não somente o contrário do que se chama de essência, mas o contrário do contrário: a multiplicidade é tanto aparência quanto essência, tanto múltipla quanto una".

 

Data de recebimento: 13/08/2012
Data de aceite: 06/12/2013

 

 

Sobre as autoras:
Juliane Tagliari Farina é Psicóloga, psicoterapeuta, mestre e doutoranda em Psicologia Social e Institucional (PPGPSI - UFRGS). Endereço Eletrônico: julianetfarina@hotmail.com.
Tania Mara Galli Fonseca é Psicóloga, professora dos Programas de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional e Informática Educativa (PPGPSI e PPGIE - UFRGS). Endereço Eletrônico: tfonseca@via-rs.net.