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Nova Perspectiva Sistêmica

Print version ISSN 0104-7841

Nova perspect. sist. vol.25 no.56 São Paulo Dec. 2016

 

ARTIGOS

 

Rumo a uma ética relacional para a prática terapêutica

 

Toward a relational ethic for therapeutic practice

   

 

Kenneth J. Gergen

The Taos Institute

 

 


RESUMO

Os valores éticos do terapeuta nem sempre coincidirão com aqueles de seus clientes, talvez nem os valores do cliente ou do terapeuta sejam aceitos fora desse relacionamento. Por quais valores deve então o terapeuta ser responsável? Vale a pena pensarmos em termos de éticas de primeira e segunda ordem. Éticas de primeira ordem são aquelas comuns à vida diária, estão sempre em contínua produção, podendo ser totalmente articuladas ou não. Frequentemente em conflito, geram animosidade e ódio. Entretanto, a ética de segunda ordem é aquela que posiciona como valor supremo o processo relacional, do qual todas as éticas emergem. É ela que valoriza aquelas ações que podem trazer múltiplas e conflitantes vozes para a comunicação produtiva. Práticas terapêuticas que ilustram a ética relacional são analisadas.

Palavras-chave: ética, responsabilidade relacional, processo relacional, construção de significado e ser múltiplo.


ABSTRACT

A therapist’s ethical values will not always match those of his/her clients; nor may the values of client or therapist be acceptable to all outside their relationship. To whose values should a therapist be responsible? Here it is useful to think in terms of first and second order ethics. First order ethics are those common to everyday life; they are under continuous production, and may or may not be fully articulated. They are also in frequent conflict, inciting animosity and hatred. A second order ethic, however, is one that places the supreme value on the relational process from which all ethics spring. It is thus an ethic that prizes those actions that can bring multiple and conflicting voices into productive communication. Therapeutic practices illustrating a relational ethic are discussed.

Key Words: ethics, relational responsibility, relational process, constructing meaning, multi-being.


 

 

Os valores éticos são filhos da cultura e da história, moldados pelos seres humanos em sua tentativa de se relacionarem viável e significativamente. Como os mundos culturais se comunicam, colidem e se cristalizam, é essencial que também reflitamos sobre nossas práticas e crenças éticas.  Como nossos compromissos se ajustam no transcorrer do tempo, eles ainda são relevantes? Há pontos cegos? Estão contribuindo para um futuro promissor?

Tais questionamentos estimularam o presente artigo. Uma preocupação especial: nossa ética das práticas terapêuticas atuais conversa com o crescente pluralismo da sociedade contemporânea? Em um mundo de alianças múltiplas, com quem ou com o que deveríamos ser responsáveis? Não posso falar por todas as sociedades, mas realmente me parece comum à maioria dos códigos éticos dos campos terapêuticos, de aconselhamento e trabalho social, o comprometimento com o bem-estar daqueles a quem atendemos. Seja um compromisso com o bem-estar, o alívio do sofrimento, o pleno desenvolvimento ou a autonomia do indivíduo, existe uma postura ética subjacente e frequentemente formalizada que vai além do já bem estabelecido jargão médico “não fazer mal a alguém”.  Isso parece bem óbvio, mas, para mim, apesar de sua plausibilidade superficial, questionamentos sérios ainda persistem. Indispensável, entre eles: “Sob a ótica de quem julgamos o bem-estar?”

Considero que uma coisa é o terapeuta ouvir e abraçar as necessidades de seu cliente, mas o que isso nos diz das vozes éticas que o terapeuta leva ao relacionamento? Como terapeutas, frequentemente somos confrontados por aqueles cujos estilos de vida não são compatíveis com os valores que nós próprios trazemos para o relacionamento. E se acharmos os valores e padrões do cliente destetáveis, antiéticos ou mesmo maus? Deveríamos ouvir com empatia, por exemplo, um pai abusivo e tirânico, um padrão sexista, um pedófilo, um comentador racista ou um valentão – aqueles que praticam atos que podem ser perfeitamente aceitáveis e normais para eles, mas não para os demais? E se nosso cliente apoia o terrorismo, relações homem-menino ou o neonazismo? Deveríamos nós, como terapeutas, permanecermos em silêncio, curiosos, receptivos e esperar fazer alguma contribuição para o bem do cliente em seus próprios termos? Se a relação é verdadeiramente um diálogo, então por que não deveríamos esperar que o cliente também nos permitisse o direito de discordar? Por que deveria nossa visão do bem ser silenciada nessa troca?

Mais ainda: o relacionamento entre o terapeuta e o cliente deve ser muito importante para o bem-estar final do cliente. Contudo, essa é uma relação altamente circunscrita, focada como está nessa díade. Dependendo do resultado desse processo dual, muitos podem ser afetados – para o bem ou para o mal. Até que ponto, por exemplo, o ganho do cliente representa uma perda para os outros? Tais perdas podem ser sentidas não só pelos familiares e amigos do cliente, mas também dentro de sua comunidade, emprego ou locais de culto. Do mesmo modo, o terapeuta não permanece imune ao intercâmbio terapêutico e os resultados podem ter efeitos reverberantes naqueles pelos quais ele é responsável. Onde deveríamos traçar uma linha em termos dessa reverberação ética? Deveríamos nos ater apenas ao mundo social imediato, aquele compartilhado pelo terapeuta e cliente? Nos relacionamentos transformadores, estamos transformando também culturas, e, por sua vez, o relacionamento dessas com outras culturas. Tais questões são extremamente desafiadoras, pois nem todos os envolvidos irão concordar com os valores de qualquer resultado terapêutico. A esposa de um cliente pode ficar muito satisfeita com o resultado do tratamento do marido, enquanto que os filhos podem ficar desapontados. A autoestima do cliente pode ser elevada, mas os familiares podem se sentir dolorosamente negligenciados. Um racista é ajudado, enquanto as vítimas são feridas etc. Onde estão as vozes daqueles pertencentes à rede maior de relacionamentos que têm seus interesses em jogo na relação terapêutica?

Está claro que essas não são questões fáceis. Nunca houve critérios universais absolutos para uma vida virtuosa. Entretanto, o diálogo contínuo é essencial. A seguir, gostaria de estender a discussão considerando cuidadosamente o processo relacional e suas implicações para a concepção do self e do outro. Nessa discussão levantarei desafios à concepção de selfs independentes e ações morais autônomas. Então, com uma concepção relacional mais abrangente de self estabelecida, examinarei as origens dos valores humanos – morais e amorais. Nesse ponto podemos considerar o potencial de uma instância totalmente envolvida pela ética relacional e suas implicações para a prática terapêutica.

 

A GÊNESIS RELACIONAL DA SIGNIFICAÇÃO

Permitam-me fazer uma pergunta simples: o que é oferecer ajuda e apoio a alguém? Especificamente: e se o terapeuta acredita que está oferecendo ajuda ou apoio e o cliente discorda? Pode o terapeuta afirmar estar ouvindo com sensibilidade a um cliente, se o mesmo diz que o terapeuta é insensível? Isso não é de menor importância. Se a voz do cliente conta na definição do significado das ações do terapeuta, então uma re-visão dramática tanto do indivíduo quanto da ação ética é necessária. Considerem: uma cliente relata longamente sobre seu sentimento de solidão, isolamento e insignificância. O terapeuta ouve atentamente, se abrindo ao sentimento de insignificância contido nas palavras ditas. Lentamente responde: “O que você está dizendo realmente me comove e vejo que você está lutando valentemente com uma depressão intensa.” O cliente responde: “Tudo bem, mas eu não preciso de sua empatia. Preciso de uma receita médica para um antidepressivo.” Ou considerem um segundo cliente que diz: “Quero apenas te dizer quão aliviado e grato estou. Sinto que você realmente entende a profundidade de minha depressão. E isso significa que talvez eu possa confiar em você para ajudar-me a encontrar uma saída dela... um jeito indolor de sair dessa vida.” Efetivamente, encontramos o significado das ações do terapeuta não em suas conclusões, ele nasce da resposta dos clientes.

No entanto, não devemos concluir que é o cliente quem cria o significado das respostas do terapeuta. Pois apenas as respostas dos clientes não formam todo o significado. Caso o terapeuta não preste atenção a elas e continue com certa linha de perguntas, o cliente irá falhar em achar algum significado nos comentários feitos. Caso o terapeuta comece a falar dos efeitos colaterais negativos dos antidepressivos ou as consequências sociais dolorosas do suicídio, ele estará desqualificando o que foi dito pelo cliente. Caso ele dê uma prescrição médica para drogas – tanto antidepressivos, quanto para o suicídio –, ele estaria confirmando as ideias dos clientes. De fato, vemos que, em termos de criar significado, o terapeuta e o cliente são mutuamente dependentes. O significado não é controlado ou determinado nem por um nem pelo outro, emerge de ações coordenadas de ambos.

E também esse processo de coordenação terapeuta/cliente não é independente da cultura e da história. Ambos são participantes nas tradições conversacionais e a habilidade de se darem bem um com o outro depende da aceitação por parte deles dos rituais de conversação que os precede. Apenas a participação nessas tradições irá permitir ao terapeuta fazer perguntas pessoais e aos clientes revelarem suas angústias. Ou, de uma maneira mais geral, não é apenas pedido a ambos que “criem um sentido” no aqui e agora, mas também dependam da tradição de coordenação social.

Disso podemos concluir que não somos as origens do significado de nossas ações, mas o significado toma forma dentro de um processo de ação coordenada – que tanto precede quanto segue às ações em si. Nem deveríamos delimitar o processo da geração de significado à esfera linguística apenas. A coordenação irá com frequência incluir movimentos corporais como: postura, olhares ou gestos, os quais podem amiúde ser mais significantes que o conteúdo verbal. Além disso, o processo de coordenação pode incluir objetos e contextos particulares de tempo e espaço. Do mesmo modo que a coordenação, ao utilizar palavras, lhes confere um significado, igualmente os vários objetos que nos rodeiam são revestidos de significação. Esse “copo” torna-se uma xícara para tomar chá, esse “relógio”, um aparelho para contarmos o tempo que passamos juntos. Parafraseando Wittgenstein (1953), o significado flui das formas de vida nas quais estamos todos incluídos. Dentro desse processo, tudo que tomamos como real, racional ou bom é trazido à existência. Tudo que consideramos ser significativo, sagrado, objetivamente verdadeiro ou digno de comprometimento em nossa vida nasce do relacionamento.

Como propus em meu trabalho anterior (2009), essa visão também levanta questões fundamentais pertinentes às concepções tradicionais de indivíduos autônomos e da ação moral. Se todo significado nasce dentro de ações coordenadas, então os próprios conceitos de “individual”, “mentes individuais” e “pensamento moral” são postos em questão. Todos são subprodutos das tradições relacionais. Igualmente, a ação moral nunca é realizada sozinha. As ações se tornam morais ou imorais dentro de uma tradição relacional, e o significado de qualquer ação está aberto a uma contínua reinterpretação, pois as tradições e os relacionamentos são transformados no decorrer do tempo. Vamos voltar, agora, às tradições de ação moral e os desafios que elas nos impõem nas relações de ajuda.

 

ORDENS DE AÇÕES MORAIS

Se não é nem da ação individual, nem da interação social que a inteligibilidade humana emerge, mas de um processo de coordenação de ações, quais são as implicações em contextos de visões múltiplas e conflitantes do bem? Iremos abordar esse problema questionando primeiramente as origens do bem e do mal em uma chave relacional.

Moralidade de primeira ordem: os perigos da dissonância

Comumente supomos que o mundo sofre porque há pessoas que possuem um senso de consciência defeituoso, aquelas que lutam por suas metas sem se importar com as consequências causadas a outras, ou não têm caráter ou inteligência. De um ponto de vista relacional, entretanto, podemos abraçar a hipótese oposta: não há falta do Bem no mundo, ao contrário, em contextos importantes sofremos com a sua abundância. Como assim? Se traçarmos tudo o que consideramos significativo nos relacionamentos que temos em nossas vidas, então devemos também ver os relacionamentos como fonte de nossas presunções sobre o bem e o mal. Basicamente, podemos dizer que, virtualmente, toda relação gerará, no mínimo, entendimentos rudimentares de bem versus mal. Eles são essenciais para a manutenção dos padrões de coordenação. Desvios dos padrões aceitos podem constituir-se em ameaças. Quando desenvolvemos modos harmônicos de relacionamento – ao falar e agir – colocamos um valor nesse “estilo de vida”. Tudo aquilo que o desafia, mina ou destrói se torna um “não-bem” ou mal.

Vamos considerar esse movimento, de uma coordenação rudimentar até a formação de valores, em termos de moralidade de primeira ordem. Para funcionar de modo viável, a relação exige que acolhamos os valores inerentes a ela, sejam eles articulados ou não. Ao prepararmos o jantar com nosso cônjuge, por exemplo, reconhecemos que a moralidade de primeira ordem está em ação. Estabelecemos e perpetuamos aquilo que é “bom para nós”. Não há regras articuladas nesse caso, injunções morais ou “Declarações de Direitos” para marido e mulher. As regras são todas implícitas, mas tocam virtualmente em tudo o que fazemos, do modo e tom de nossa voz, nossos movimentos corporais na cozinha, como a comida é preparada e se ou quando damos restos para o cachorro. Um movimento em falso na dança do jantar pode tornar um de nós “moralmente superior” ao outro.

Segue-se que, se totalmente imerso nessa relação particular, uma parte não pode deixar os padrões existentes de coordenação e agir inversamente a ela. Fazer isso seria ininteligível. Retomando o tema da cozinha, nenhum de nós jogaria comida no outro, cuspiria ou bateria com uma panela na cabeça do companheiro. Não fazemos tais coisas, pois são descabidas para nós, jamais aconteceriam como opções para uma deliberação ética. Continuamos com nossa vida doméstica normal porque é nosso modo de vida. De fato, a moralidade de primeira ordem é essencialmente ser sensível dentro de certo estilo de vida. Do mesmo modo, a maioria das pessoas não pensa em matar o melhor amigo, não porque isso contraria algum princípio ao qual fomos expostos na infância ou porque é ilegal. Simplesmente porque é impensável. Vivemos largamente nossas vidas dentro da confortável zona da moralidade de primeira ordem.

Então, a que atribuímos a origem das ações imorais? Devemos novamente retornar à moralidade de primeira ordem. Quando e onde as pessoas entram em coordenação, a moralidade de primeira ordem está sendo concretizada. Ao nos esforçarmos para encontrar modos mutuamente satisfatórios para seguirmos juntos, começamos a estabelecer um bem local, “o jeito de fazemos isso”. Como resultado, existem miríades de tradições do que é o bem, e em todo lugar onde as pessoas se unem de um modo proveitoso, elas colocarão em movimento novas possibilidades. Essa condição não é apenas descritiva de inúmeras tradições locais, de famílias, amizades ou comunidade, ela também se aplica às grandes religiões do mundo, aos governos, ciências, educação, arte etc. Nesse caso, ciências e artes são similares à religião. Todas mantêm uma visão do bem, algumas sagradas outras seculares, algumas articuladas outras implícitas.

É essa multiplicação do bem que preparara o terreno para o conflito social. Em um mundo pluralista de bens, qualquer ação será julgada de acordo com a multiplicidade de tradições alternativas. Todos os estilos de vida podem ser estranhos ou odiosos para aqueles que não participam deles. E se esses estilos de vida parecem impedir ou ameaçar nossas próprias tradições, a resposta é a resistência. Pode ser mínima, como desdém, evitação, fofoca maliciosa, ou moderada como ostracismo, divórcio, deserção. Em casos de ações mais ameaçadoras, o impulso é dirigido à eliminação. Isso é tipicamente alcançado através de várias formas de defesa (vigilância e policiamento), encarceramento (prisão, tortura), ou, mais radicalmente, através da eliminação (pena capital, invasão, bombas). Em todos esses tipos, uma dura carapaça separa o bem compartilhado interiormente do mal exterior. Aqueles de dentro obtêm aceitação e apoio através da punição e destruição dos de fora. Ao mesmo tempo, estes últimos também podem resistir. Suas próprias tradições estão agora sobre ataque. Nesse ponto, entramos em um padrão familiar de ataque constante e contra ataque, tudo em nome do bem. Quando essa dança da morte está sendo realizada, não é o outro que é o maior inimigo, mas a tradição da coreografia.

Claro, a relação tradicional de cuidados não chega a tais pontos extremos. Entretanto, a maioria dos profissionais em relações de cuidados reconhecerá frequentemente vozes sutis de antipatia que carregam em relação às pessoas que tratam. Eles encontram estilos de vida nos quais prevalecem fracasso, fraqueza, desperdício, insensibilidade, opressão, crueldade, preconceito e irresponsabilidade. Como consequência, eles os evitam, despacham-nos para longe e tentam explicá-los. Existe a voz do outro pedindo atenção, mas também há também a contra-voz moral da própria tradição do cuidador. O desafio, então, é entre formas conflitantes de vida, cada uma valorizada por seus participantes.

Moralidade de segunda ordem: coordenando a coordenação

Ao aplicarmos o relato do processo relacional às questões de pluralismo moral, encontramos que a mesma produção do bem também estabelece as condições para um algo abaixo do bem, ou seja, o mal. De fato, todas as vezes em que grupos diferentes coordenarem suas ações para gerar harmonia e satisfação, haverá confrontação entre o bem e o mal. Dado o rápido desenvolvimento e proliferação das tecnologias de comunicação – e-mail, celulares, Twitter, e outras redes sociais na internet e similares –, podemos antecipar que tais diferenças irão aumentar. Com cada conexão comunicativa, novas formas de valorização (e desvalorização) podem ser postas em órbita. O Antagonismo é inevitável. O desafio não é criar uma existência livre de conflito, mas identificar modos de abordá-lo que não ziguezagueiem em direção à exterminação mútua. Dadas as circunstâncias da coordenação humana, como devemos prosseguir?

Retornemos ao tema do processo relacional, agora para apresentar o potencial para a moralidade de segunda ordem. Como exposto, a moralidade de primeira ordem pode ser essencialmente relacionada a uma vida satisfatória, isto é, uma fonte de harmonia, confiança e direção. Ao mesmo tempo, devido ao seu enorme potencial para variações e multiplicidades, também somos confrontados com a contínua produção do mal. Somos movidos para o controle, punição, encarceramento e, por fim, eliminação daquilo em cuja criação fomos instrumentais. Conflito é endêmico. Simultaneamente, é importante notar que a moralidade de primeira ordem repousa em uma lógica de unidades distintas. Na cultura ocidental, a unidade é o indivíduo, e a partir da capacidade individual para razão e consciência emerge (ou não) a ação moral. É o indivíduo que tipicamente é considerado responsável por extraordinárias ações, seja em intercâmbios ordinários do dia a dia, seja nos tribunais. Muito dessa lógica é empregada em tornar grandes unidades responsáveis. Geralmente condenados são os partidos políticos, empresários, sindicatos, lobistas, religiões, grupos terroristas, exércitos e nações. Seus representantes podem ser punidos, torturados ou destruídos, simplesmente por serem membros da unidade.

De um ponto de vista relacional, os maiores resultados da moralidade de primeira ordem são frequentemente o rompimento de conexão comunicativa. E, de fato, pode-se mesmo destruir o processo de coordenação do qual derivam a realidade, racionalidade e o senso do bem. Assim o potencial para a geração contínua da moralidade de primeira ordem chega ao fim. Quando um impulso de eliminação é colocado em curso e nos movemos em direção a uma aniquilação mútua, nós escorregamos em direção ao fim do significado. Eliminar todos aqueles cujos valores não são idênticos aos nossos levaria a um único som - o da nossa própria voz. É justamente aqui que a presença da moralidade de segunda ordem é requerida, isto é, o processo que pode restaurar a possibilidade da primeira moralidade. É perceber a imersão em nosso próprio passado da moralidade de primeira ordem e, que sem o outro, não existem valores, nada digno de ser vivido.  Quando as primeiras moralidades entram em conflito, os potenciais para a produção de significado encolhem. Ou seja, quando silenciamos ou eliminamos o que consideramos moralidades opostas, o potencial para dar ou elaborar um significado é extinto. Portanto, devemos juntos proteger e restaurar o processo de valorização coletiva. De fato, engajar-se na moralidade de segunda ordem é apoiar a possibilidade da moralidade de qualquer ordem.

A moralidade de segunda ordem repousa não em uma lógica de unidades distintas, mas no processo relacional de co-ação. Não há atos maus cometidos por um único indivíduo nessa perspectiva, pois o significado de toda ação é derivada de relacionamentos. Considerar indivíduos responsáveis por ações impróprias não é apenas inadequado, mas resulta em alienação e retaliação. No caso da moralidade de segundo ordem, a responsabilidade individual é substituída pela responsabilidade relacional, ou seja, uma responsabilidade oriunda da participação relacional (McNamee & Gergen, 1999). Apenas juntos podemos construir uma ponte sobre o vão da alienação e da destruição mútua. Quando as rodas da responsabilidade individual entram em movimento, os relacionamentos geralmente saem dos trilhos. À culpa seguem-se acusações e mais culpas. Na responsabilidade relacional damos um passo para fora dessa tradição e o valor da relação se torna o principal. Aqui nos aproximamos do domínio da ética. Quer dizer, nos distanciamos da moralidade como convenção e nos aproximamos de uma consciência baseada em princípios com extensas consequências. Substituímos o chamado ético de “cuidar de mim” ou “cuidar dos outros” por cuidar da relação.

PRATICANDO A ÉTICA RELACIONAL

Quais são as implicações de uma orientação relacional para a relação terapêutica? Em um primeiro momento, percebemos que para o terapeuta simplesmente escutar e demonstrar apreço pela vida e pelo mundo do cliente é insuficiente. Nem é satisfatório usar o relacionamento de prestação de cuidados para reforçar as próprias tradições de valores. Em ambos os casos as condições desagregadoras da moralidade de primeira ordem são mantidas. Portanto, o desafio é desenvolver uma prática relacional que se mova em direção à responsabilidade relacional, ou seja, formas de prosseguir que valorizem primeiramente o processo gerador da relação em si. Essencialmente, esse é um desafio para ambos (ou todos) os participantes da relação de prestação de cuidados. “Apesar de nossas diferenças, como podemos construir algo que possamos ambos valorizar?” No entanto, a responsabilidade pela relação começa a se expandir. “Como nossa relação inclui aqueles que não estão presentes, mas são próximos e queridos?” E subsequentemente: “Como estamos sendo responsáveis pela comunidade em que vivemos: há modos de sermos sensíveis a essa comunidade maior, de modo que nossa relação contribua para formas mutuamente viáveis de convivência?”

Esses não são desafios fáceis, e, por serem novos no mundo terapêutico, torna-se mais difícil extrairmos respostas de nossas tradições já existentes. Contudo, a fim de estimular o diálogo sobre esse tópico, permitam-me citar brevemente algumas micropráticas que considero potencialmente ricas na relação terapêutica:

Compartilhar histórias: Baseado nos projetos de testemunhas de Michael White (2007) e no trabalho Projeto de Conversações Públicas (www.publicconversations.org) fica claro que um dos grandes meios de desenvolvermos um maior apreço ao que, de outra maneira, seria um estilo de vida estranho, é escutar suas histórias. “É por isso que faço essas coisas, é por essas razões que acredito nelas etc.”  Claro, esse é o primeiro passo usado pelos terapeutas para desenvolver empatia por seus clientes. Eles ouvem histórias, e ao fazerem isso criam empatia pelo estar-no-mundo de seus clientes. Entretanto, a serviço da responsabilidade relacional, o mesmo direito está disponível ao terapeuta. Eles também podem compartilhar experiências que podem dar um insight para valores alternativos. Pode-se aprender muito com a história que um cliente conta sobre por que os pais devem adotar a filosofia “é de pequeno que se torce o pepino”, contudo, o cliente também pode aprender muito com o terapeuta que compartilha como é ser uma criança nessas circunstâncias, ou como seus pais substituíram o cinto pela conversa.

Abrindo o vocabulário dos selfs: Como já propus anteriormente (Gergen, 2008), somos seres múltiplos. Não apenas temos muitos personagens, como também carregamos dentro de nós uma grande variedade de valores conflitantes. Para cada valor que abraçamos, podemos localizar outros contravalores. Ao valorizar o equilíbrio, falhamos em assumir riscos; ao devotar tempo para a família, falhamos em nossas responsabilidades com a comunidade; ao nos dedicarmos de corpo e alma ao trabalho, nos esquecemos de nossa saúde. Para tudo que fazemos, também podemos encontrar um valor para não fazê-lo. Explorar esses valores frequentemente suprimidos pode ser um modo efetivo de cruzar as barreiras da diferença e dar às nossas próprias tradições um papel ativo. Por exemplo, se um cliente é um alcoólatra ou jogador irresponsável, ele pode abrigar também muitas razões para não sê-lo. Trazer as tradições representadas por esses valores à tona pode levar o cliente a um relacionamento mais promissor com os outros. Ao mesmo tempo, o terapeuta pode trazer suas próprias histórias, questionando de um modo reflexivo os valores particulares que está esposando em qualquer momento dado. Ao ampliarmos o campo de vozes disponíveis, evitamos antagonismos entre os opostos.

Troca de Fantasias: A comunicação direta ou face a face não precisa ser essencial para o cruzamento das fronteiras do significado. Por exemplo, sou fascinado pelo modo como Peggy Penn (2009) tem feito da escrita de cartas um meio para reestabelecer o relacionamento dos clientes com aqueles de quem se alienaram. Uma filha que cortou relações com um pai abusivo pode ser encorajada a escrever a ele e explicar seus sentimentos. A escrita não necessariamente significa o envio da carta. Ao contrário, na fantasia, ela experimentaria o ato de uma expressão direta e seu impacto sobre o pai. Posteriormente, poderia ser pedido à filha que respondesse a carta como se fosse o pai dela. Agora, novas e significativas dimensões poderiam ser adicionadas à fantasia, já que o cliente se tornou ciente da “versão do pai da história”, podendo até imaginá-lo contrito. Essa mudança de papéis geralmente produz um degelo significativo nos relacionamentos.

Estabelecer a presença dos outros: É dentro das relações que adquirimos os inúmeros recursos de seres múltiplos. Podemos acessar essas vozes através do diálogo, como dito anteriormente, ou elas podem ser “invocadas” dentro da própria da sala de terapia. Penso aqui no trabalho do terapeuta Karl Tomm (1998) e sua prática de explorar os outros internalizados que os clientes trazem consigo para a terapia. Tomm pede aos clientes que descrevam os sentimentos e visões daqueles que não estão presentes. Por exemplo, se um cliente é muito crítico em relação à esposa, a um chefe ou vizinho, o terapeuta pode pedir ao cliente que entre na pele do outro. O que ele ou ela diria, que história contaria? Se o cliente é depressivo, que pontos positivos os outros poderiam achar nele? Algumas abordagens terapêuticas colocam uma cadeira vazia para representar a parte ausente. A pessoa ausente é agora notada no diálogo que se segue. Ao trazer à consciência valores conflitantes, podemos extrapolar as polaridades morais.

Investigação Apreciativa: As pessoas são relutantes em explorar alternativas ao seu estilo habitual de vida, por medo de ter que admitir fraquezas, vulnerabilidades ou inconsistências. Nossas lições culturais nos instigam a mostrar perfeição em nossas personas. Particularmente em situações de família, muitos terapeutas usam a investigação apreciativa para fomentar o entendimento mútuo, construir relacionamentos, ajudar a superar conflitos e trazer paz às famílias (Cooperrider, Silbert & Mann, 2008). Podemos pedir aos participantes que comentem os aspectos ou ações positivos de cada um. Com a construção de um reconhecimento mútuo, a demanda por perfeição ou coerência é reduzida; o cliente pode mais facilmente reconhecer falhas ou ambivalências. Os participantes começam a escutar com mais simpatia um ao outro. De fato, eles começam a fundir, integrar ou reconhecer as multiplicidades, assim novas possibilidades relacionais podem emergir.

Reflexão sobre repercussões: Finalmente, menciono o trabalho dos filósofos orientados terapeuticamente (ou terapeutas orientados filosoficamente) que abordam questões de valores múltiplos no diálogo direto (vide, por exemplo, Schuster, 1999). Essa abordagem pode incluir discussões abstratas sobre temas como valores fundamentais, a relatividade dos valores e a virtude. Porém, em minha opinião, o mais importante é que essas discussões podem abarcar uma rede muito maior de relações nas quais os indivíduos estão engajados e as consequências de suas várias ações. “Quais são as repercussões de seus atos para sua família, comunidade ou para o mundo em geral?” Tais discussões podem distanciar-se de um questionamento abstrato de valores para confrontar a importância dos relacionamentos dos clientes e sua contínua vitalidade.

Essas poucas práticas são apenas ilustrações das possibilidades de mudança da ética de primeira para segunda ordem no relacionamento terapêutico. Elas abrem espaço para a percepção de visões múltiplas do bem e a importância do processo relacional da qual derivam. Trazem à tona vozes conflitantes, criando estilos de vida nos quais podem ser integradas. Após darem à luz a um ser individual dentro do processo relacional, é minha esperança que essas práticas possam nutrir um processo vivificante para todos nós.

PENSAMENTOS FINAIS

Como tenho proposto, a postura ética do terapeuta se estende além do relacionamento terapêutico. A vida do mundo terapêutico ondula em um imenso mar de relações. É nesse aspecto que a ética relacional explorada aqui é uma que incorpora – sem aceitar – todas as tradições de valores morais. Ela busca sair dos mundos particulares em que vivemos e construir pontes entre eles. Isso não significa sacrificar os próprios valores como terapeuta, nem simpatizar com todas as inclinações que satisfaçam o cliente. Mas significa realmente resistir à tentação de estar certo, de saber o que é o bem. Significa capacitar o processo pelo qual inúmeros mundos se tornem mutualmente infusos.

Essa orientação relacional torna-se agora uma fundação sobre a qual podemos finalmente julgar entre boas e más ações – por exemplo, aquelas que podem favorecer os relacionamentos positivos ao invés dos negativos? De maneira alguma; fazer tal afirmativa seria o mesmo que repetir os efeitos divisores da moralidade da primeira ordem. O que é proposto aqui é a fundação não-fundacional, ou seja, uma ética sem uma referência absoluta para o julgamento. Se tudo o que consideramos querido ou digno – tudo que é significativo ou valioso na vida – tem suas origens no processo relacional, então podemos querer nutrir e apoiar esse processo. Ao contrário, entrar em conflito de bens rivais nos leva para o fim da significação.

Do presente ponto de vista, também abandonamos a discussão do que é moral ou ético em qualquer sentido cultural ou historicamente transcendente. Ao contrário, a ética relacional nos convida a mudar do foco argumentativo abstrato para o domínio da prática. As éticas relacionais são essencialmente alcançadas dentro de um processo contínuo de se relacionar. Entendo que as profissões terapêuticas estão em uma posição excelente para criar tais práticas. Virtualmente única entre as profissões, os terapeutas estão em consonância com a exposição ao experimento com as práticas de construção de relações, discutir sobre seus potenciais e compartilhá-los com o público. Ao buscar práticas relacionalmente éticas, os terapeutas podem contribuir significativamente com o futuro bem-estar da cultura.




Referências

Gergen, K.J. (2008). Therapeutic challenges of multi-being. Journal of Family Therapy, 30, 4, 335-350.         [ Links ]

Gergen, K.J. (2009). Relational Being: Beyond Self and Community. New York: Oxford University Press.         [ Links ]

McNamee, S., & Gergen, K.J. (1999). Relational responsibility: Resources for sustainable dialogue. Thousand Oaks, CA.: Sage.         [ Links ]

Penn, P. (2009). Joined Imaginations. Chagrin Falls, OH: Taos Institute Publications.         [ Links ]

Schuster, S.C. (1999). Philosophy and practice: An alternative to counseling and psychotherapy. New York: Praeger.         [ Links ]

Tomm, K., Hoyt, M., & Madigan, S. (1998). Honoring our Internalized Others and the Ethics of Caring: A conversation with Karl Tomm. In M. HOYT (Ed.), The Handbook of Constructive Therapies (pp. 198-218). San Francisco, CA: Jossey-Bass.         [ Links ]

White, M. (2007). Maps of Narrative Practice. New York: W.W. Norton.         [ Links ]

Wittgenstein, L. (1953). Philosophical Investigations. (Trad. G. Anscombe). New York: Macmillan.         [ Links ]


 

Recebido em: 17/08/2016
Aprovado em: 03/10/2016

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