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Nova Perspectiva Sistêmica

versão impressa ISSN 0104-7841

Nova perspect. sist. vol.25 no.56 São Paulo dez. 2016

 

CONVERSANDO COM A MÍDIA

 

Os cliques do terapeuta

   

 

Felipe ArrudaI, Marcos Naime PontesII e Suzy Zveibil CortoniIII

 


 

 

Em 2014, o poeta Kenneth Goldsmith ministrou o curso “Perdendo tempo na internet”. Durante três horas por semana, ele e os alunos se reuniam em uma sala da Universidade da Pensilvânia munidos apenas de computadores conectados à internet. Não havia limites impostos para a navegação e, apesar da proximidade, toda a comunicação entre os participantes era feita online.

Uma das motivações para a criação do curso foram as reclamações constantes de que a internet estaria nos deixando mais “burros”. Goldsmith discorda fortemente dessa afirmação e acredita que nossas vidas em frente à tela são tão variadas quanto o tempo que perdemos desconectados. “Cada clique é um indicador de quem nós somos: indicam nossos gostos, nossas repulsas, nossas emoções, nossas políticas e nossa visão de mundo”, afirma o poeta1.

Mas como a terapia e os terapeutas estão usando esse tipo de comunicação?

PRIMEIRAS CONEXÕES

Uma das primeiras demonstração da internet nos EUA foi a simulação de um atendimento psicoterápico pela internet, em 1972, na International Conference on Computer Communications.

Na ocasião, terapeuta e paciente não eram pessoas, mas dois programas de Inteligência Artificial: ELIZA, uma psicoterapeuta rogeriana desenvolvida pela Universidade de Stanford, e PARRY, um paciente esquizofrênico programado pelo psiquiatra Kenneth Colby. Esses dois softwares se encontraram e conversaram muitas vezes, mas o diálogo teve sempre a limitação do não-humano2.

Na década de 1980, surgiram os primeiros grupos ou sistemas de aconselhamento online, como o Uncle Ezra3, da Universidade de Cornell. A partir desse “tio” virtual, estudantes recebiam ajuda para suas crises e também percebiam que não estavam sozinhos com suas angústias, pois outros alunos contavam como se sentiam e lidavam com as mesmas questões.

Além de históricos, esses dois experimentos parecem ter conduzido um pouco a relação que está sendo construída ainda hoje entre as terapias e a internet.

CLÍNICA-MUNDO

O atendimento a distância não é novidade. Freud trocava cartas com seus pacientes, por exemplo. Hoje, terapeutas dispõem de tecnologias síncronas e assíncronas para atender clientes viajando ou presos no trânsito de alguma capital. Telefone, e-mail, FaceTime, Whatsapp e Skype são apenas algumas das alternativas disponíveis.

Porém, mais do que ferramentas voltadas para emergências, esses meios de comunicação vêm ampliando as possibilidades de atendimento e terapia. No atendimento infantil, o e-mail pode ser uma forma de prolongar o efeito da sessão em uma criança, ao enviar para os pais a fotografia dos desenhos ou das caixas de areia com as quais ela trabalhou, por exemplo.

Além disso, as mídias e a tecnologia têm facilitado a comunicação com pessoas que possuem necessidades específicas. Um jogo como Pokémon Go pode estimular portadores de autismo a sair de casa e encontrar pessoas4. Já o uso de um tablet pode abrir mais uma ponte de comunicação com aqueles que se expressam por meio de uma linguagem não-verbal, como conta o artigo de Paula Ayub, “Com licença, posso entrar?”, na edição 44 da revista Nova Perspectiva Sistêmica.

No artigo “Virtualizando a intimidade: tecnologias da informação e comunicação - famílias transnacionais em terapia”, publicado na Nova Perspectiva Sistêmica, 42, Gonzalo Bacigalupe e Susan Lambe trazem outro exemplo: o uso de mídias sociais e tecnologias no atendimento e vivência das famílias de imigrantes.

Se antes as famílias de refugiados políticos ou de imigrantes econômicos não tinham acesso fácil a telefones ou dinheiro suficiente para viajar, agora a maior parte delas possui pelo menos um smartphone conectado a internet. Isso possibilita a criação de estruturas familiares espalhadas em mais de um país e, mesmo assim, em constante comunicação. Não estamos mais na fase do preenchimento de uma ausência, mas de uma convivência conectada. “O real e o virtual, portanto, não são mais dicotômicos na vida dessas famílias”, afirmam Bacigalupe e Lambe.

Partindo do princípio de que essas ferramentas empoderam os pacientes e desenvolvem relações colaborativas entre eles, os autores do artigo atestam que elas também podem ser úteis para os terapeutas de família. É como se essas ferramentas deixassem de ser apenas um meio de comunicação e trouxessem a dinâmica e a organização da família para a sessão.

Quando olhamos para as mídias sociais, será que consideramos essas possibilidades?

INTERNET COMO FORMA DE EXPRESSÃO

Pensando na Teoria da Comunicação, que leva em conta emissor e receptor da mensagem, vemos nas mídias sociais um processo dialógico contínuo onde cada emissor também é receptor e, portanto, produz uma existência na linguagem virtual.

A expressão dessa existência é a caracterização de cada componente da rede por sua produção, seja em resposta aos estímulos provindos da própria rede ou das interações fora dela. Uma face do sujeito surge por meio das múltiplas atividades exercidas por ele através da composição de conteúdos autorais, da seleção de artigos e posts reproduzidos e comentados por ele, seja nas redes sociais ou em sites profissionais.

Hoje, a maioria desses recursos está conectada e a apropriação da informação de cada sujeito é maior e mais fácil para aqueles que procuram saber sobre algum profissional, um tipo de trabalho, como alguém leva a vida e encara o mundo. Parece mais difícil não se expor, pois a interação já é o sujeito ou parte dele.

Nas redes sociais, pedidos de socorro por parte de alguém vivendo momento de desespero são muitas vezes detectados. Minutos após o pedido ser disparado, o socorro pode chegar através de amigos e parentes.

O que o fenômeno de repetição das “selfies” nos diz a respeito da possibilidade de uma expressão com retorno através de sua rede ou de um reconhecimento de si mesmo? Apesar do nome, muitas vezes esses autorretratos inserem amigos, familiares e lugares visitados, produzindo um meio de troca ao emitir um estímulo que é recebido por muitos receptores e por eles processados.

As visualizações e cliques trazem aos emissores um reconhecimento de si mesmos como capazes, permitindo até mesmo uma autorregulação por meio das respostas recebidas, ou seja, como o indivíduo escolhe se apresentar em cada grupo, frente às rejeições e aprovações que recebe.

BRASIL, INTERNET E MÍDIAS SOCIAIS

O Brasil tem uma população estimada de 204 milhões de habitantes. E de acordo com pesquisas divulgadas5 em janeiro de 2016, temos de 78 a 98 milhões de brasileiros offline, ou seja, que não acessam a internet. Apesar disso, somos o quinto país com mais usuários conectado do mundo, atrás apenas da China, dos Estados Unidos, da Índia e do Japão.

O Brasil também é um dos principais mercados de smartphones do mundo. A Fundação Getúlio Vargas6 divulgou, em abril de 2016, uma estimativa de 168 milhões de celulares em uso no país, no primeiro semestre deste ano. Esse número ultrapassa até mesmo a quantidade de computadores (desktops, tablets e notebooks) ativos no Brasil e, somando todos esses dispositivos – celulares e computadores –, chega-se a 1,6 aparelho conectado por pessoa. Para comparação, seis anos atrás havia um único aparelho conectado para cada dois habitantes. Em 2018, a previsão é de dois aparelhos por habitante.

Pensando um pouco nas curiosidades que esses dados nos despertam, criamos uma pesquisa voltada para terapeutas de família e casal no Brasil. Essa pesquisa foi veiculada pelas newsletters da Associação Brasileira de Terapia Familiar (ABRATEF) e do Instituto Sistemas Humanos, além de páginas no Facebook.

Apesar de a pesquisa ter sido enviada para mais 3 mil endereços de e-mail (além das páginas no Facebook), obtivemos apenas 46 respostas no intervalo de uma semana, que não configura uma amostra representativa. A partir disso, pensamos que devemos continuar a pesquisa, pois acreditamos que ela seja importante, mas precisa ser realizada de outra forma, como de maneira mais presencial, em eventos e congressos.

Em relação às 46 respostas que recebemos, e não descartamos, aprendemos que:

● 44,4% dos participantes fazem uso “com muita frequência” das redes sociais. Se somarmos o número de pessoas que usam as redes “com frequência”, temos 66,6% das respostas;
● 56,5% praticamente não faz uso de jogos em celulares ou tablets, sendo que 13% joga com muita frequência;
● 34,8 % quase não publica conteúdo autoral nas redes sociais e 56,5% não produz conteúdo próprio para sites e blogs;
● a maior parte das pessoas que responderam à pesquisa participa moderadamente de grupos e comunidades online (28,3%), sendo que 26,1% participa com frequência e 17,4% com muita frequência.

Para a população que respondeu à pesquisa, a maioria das respostas percebe a exposição excessiva, a substituição do contato pessoal pelo virtual e o uso excessivo como comportamentos patológicos mais frequentes. Já na procura por soluções aos problemas e comportamentos patológicos, despontaram a inserção social, o gerenciamento do tempo e a busca por atividades mais saudáveis.

De forma geral, os terapeutas recebem e escutam as novidades nas redes sociais, as novas formas de relacionamentos virtuais e os novos jogos como novidades que se transformam em interesse, curiosidade, atenção e acolhimento. Esses profissionais tendem a mostrar abertura às novas tecnologias e a novos comportamentos. Há, entretanto, um grupo menor, que recebe essas novidades com alguma cautela, desconfiança e receio de más utilizações futuras.

Outras respostas disseram respeito à contratação de profissionais que possam auxiliar pessoas que possuem mais dificuldade no uso da internet e das mídias digitais. Das 46 respostas recebidas, 68,9% quase nunca contrata um profissional para fazer esse tipo de publicação, sendo que 2,2% contrata sempre e 11,1% contrata com frequência. Apesar disso, 55,6% acredita valer a pena contratar um profissional para esse tipo de publicação.

Na questão com resposta aberta, os colaboradores levantaram alguns aspectos sobre essa contratação. Alguns disseram que um profissional pode ajudar na otimização do tempo para a produção desse conteúdo, e que pode também ser mais competente na habilidade da boa escrita. Ressaltam, porém, que os posts ou artigos precisam ser de autoria dos terapeutas, visto que são textos que levantam questões subjetivas e éticas.

PARA TERMINAR

Apesar de boa parte da população do país e do mundo estar offline, temos uma população imensa que faz uso da internet e das mídias digitais diariamente. Há o surgimento de famílias e grupos que se organizam por meio dessas ferramentas.

Entre a população conectada, há também terapeutas que viram suas práticas e pensamentos transformados por essas conexões. Além disso, é possível ver o surgimento de novas formas de trabalho, em um campo que já vem sendo utilizado com eficácia.


Referências

1 https://goo.gl/9gp6RH

2 https://tools.ietf.org/html/rfc439

3 https://goo.gl/pDsyPj

4 https://goo.gl/Os6onq

5 https://goo.gl/dbnLyl

6 https://goo.gl/zIxWXM

I Felipe Arruda: Analista de comunicação e estudante de psicologia e terapia de família e casal.

II Marcos Naime Pontes: Terapeuta de família e casal e médico psiquiatra.

III Suzy Zveibil Cortoni: Pesquisadora, mediadora de conflitos e terapeuta de família.

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