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Nova Perspectiva Sistêmica

versão impressa ISSN 0104-7841

Nova perspect. sist. vol.25 no.56 São Paulo dez. 2016

 

ECOS

 

Ecos – 25 anos

 


 

Gonzalo BacigalupeI

I Instituto Noos

 


 

 

 

 

Dia 4 de dezembro de 1991. O Instituto de Terapia de Família RJ tem o prazer de convidar para o lançamento de sua revista NOVA PERSPECTIVA SISTÊMICA. Às 21 horas, à rua Custódio Serrão 46.

“Existe uma enorme diferença entre descrever o como e explicar o porquê. Descrever o como significa reconstruir a série de acontecimentos específicos que levaram de um ponto ao outro. Explicar o porquê significa encontrar relações causais que expliquem a aparição desta série particular de acontecimentos frente à exclusão de todos os demais.”
Harari, De animales a dioses, 2013

Há vinte e cinco anos, vivia-se uma emergência, um fervilhar de ideias no âmbito da ciência, concretizadas em parte no inesquecível encontro em Buenos Aires (23 a 26 de outubro de 1991) promovido por Dora Schnitman e Saúl Fuks: “Novos paradigmas: cultura e subjetividade”. Quem viveu aqueles momentos, ouvindo e vendo “astros” do pensamento sistémico, tais como o prêmio Nobel de Química, Ilya Prigogine, Edgar Morin, Ernst von Glasersfeld, Barnett Pearce, Félix Guattari, Gianfranco Cecchin, Carlos Sluzki e muitos outros nomes de ponta no cenário acadêmico e científico, não se esquecerá jamais da emoção ali vivida,  no fantástico cenário do Teatro Colón. Ouçamos a voz de Carmen Lent, que escreveu sobre esse evento num texto publicado justamente na primeira edição da revista NPS: “Como relatar o que foi, mesmo para aqueles que estamos há muito tempo lidando com o ineludível fascínio da virada paradigmática, com esta belíssima epistemologia do solo que se move – eppur si muove – na profunda incerteza heisenberguiana e que, simultaneamente, é fundado sem cessar em, por, e com nós mesmos? (...) O Encuentro teve um mérito excepcional: ele foi trans. Transcendente, transcontextual, transgressor, transdiciplinar, transnacional e quem sabe quantos outros.”

Dentro do clima efervescente daquela época, os epistemólogos da terapia de família trabalhavam febrilmente, tentando aproximar os conceitos científicos oriundos da física quântica aos sistemas humanos. As perturbações provenientes das ciências da desordem produziam uma crise nos modelos cibernéticos dominantes na terapia sistêmica. Na tentativa de absorver essas perturbações, tiveram que rever muitos dos pressupostos nos quais se baseavam as práticas sistêmicas. Desse processo de reflexão, surgiu uma “nova” terapia sistêmica.

Dez anos antes (1981), Harry Goolishian e Paul Dell haviam escrito “Order Trough Fluctuation: An Evolutionary Epistemology For Human Systems”, artigo que se tornou base para essas investigações. Em 1983, Bradford Keeney, considerado irreverente e inovador por seus pares, publicara Estética da mudança, livro que, segundo o autor, mantinha “estreita relação com o Projeto de Cibernética Humana, destinado a estudar a cibernética contemporânea na sua aplicação em psicoterapia e ciências sociais”.  Em 1989, dois jornalistas de divulgação científica, John Briggs e David Peat (autores também de As sete leis do caos, editado em 1999) haviam lançado The Turbulent Mirror: An Illustrated Guide to Chaos Theory and the Science of Wholeness, no qual tentavam traduzir em termos compreensíveis para leigos o que os cientistas estavam inventando. Naquele livro, os autores exploravam as muitas faces do caos e revelavam a um público não especializado como suas leis direcionam a maioria dos processos cotidianos, desde nossos batimentos cardíacos e pensamentos até a formação de nuvens e tempestades, da composição de um poema até a propagação de um incêndio ou o caminho tomado por um vento costeiro. Também explicavam como a teoria do caos havia promovido um repensar sobre os princípios fundamentais da pesquisa científica. O agora famoso aforismo do bater de asas de uma borboleta afetando o clima no Brasil é a ilustração dramática do que Briggs e Peat descreveram como uma “ciência emergente da totalidade”, uma apreciação científica crescente de como tudo no universo está interconectado.

Nesse mesmo ano, Mony Elkaïm publicou “Se você me ama, não me ame”, apoiando-se nos achados de Von Foerster (a segunda cibernética) e de Prigogine (os sistemas afastados do equilíbrio) convocando as práticas sociais a sair das restrições das “leis gerais” para descobrir a riqueza das singularidades.

Edgar Morin na sua análise das mudanças paradigmáticas chamou de “caldo de cultivo” as condições para essas transformações; nos anos 1980 e 1990, fermentava o contexto para o desenvolvimento de inúmeras, incontáveis linhas de pensamento que confluíam e interagiam, e estavam, de alguma maneira, se criando e crescendo no colo da pós-modernidade. O construtivismo – com sua ênfase nas histórias narradas –, através das vozes de Maturana e Varela, Von Foerster, Von Glasserman (entre outros) e o Construcionismo Social – e sua ênfase nas histórias vividas – representados por Kenneth Gergen e Barnett Pierce, ofereciam propostas que convocavam a olhar as narrativas e a linguagem como criadoras de realidades.

Naquele mesmo ano de 1991, a coleção de Terapia Familiar do Editorial Gedisa, dirigido àquela época por Carlos Sluzki, lançou Las Semillas de La Cibernetica, textos selecionados de Heinz von Foerster por Marcelo Pakman.  Na mesma época, Michael White despontava, juntamente com David Epston, com seu Modelo Narrativo, numa trajetória que se confirmaria brilhante. Harry Goolishian e Harlene Anderson trabalhavam em Galveston com os conceitos da Abordagem Colaborativa, Edgar Morin se aplicava na sua produção incessante sobre a complexidade e Tom Andersen já havia compartilhado com Lynn Hoffman e Peggy Penn a invenção das equipes reflexivas.

Em meio ao turbilhão de ideias que apontavam para vários caminhos, acho que àquela altura não nos dávamos conta do momento histórico em que estávamos vivendo.  Então Gladis Brun, liderando uma instituição pioneira do nosso grupo juntamente com Anna Maria Hoette – o Instituto de Terapia de Família/ RJ –, imaginou um projeto editorial que acabou se convertendo na primeira revista latino-americana de práticas sistêmicas em português. E que se manteria publicando ininterruptamente até hoje, por vinte e cinco anos. Rosana Rapizo prontamente aceitou o desafio para editar a NPS. Era um projeto estimulante e audacioso, e a ele aderimos, as outras sócias da instituição, com animação.

Ouçamos as palavras de Gladis e Rosana no Editorial:

(...) pensamos abrir um espaço para todos aqueles que, de uma forma ou de outra, buscam informações que enriqueçam sua leitura no vasto campo que, aberto a partir da profunda ruptura epistemológica, representou o paradigma sistêmico. (…) Esta revista nasce com o propósito de representar, através dos artigos que serão publicados, os pontos de interseção e as diferenças existentes entre os diversos clínicos, teóricos e pesquisadores que se utilizam desta abordagem. (…) Após quatro anos de intenso trabalho de equipe em que a dedicação prioritária foi uma identidade institucional, sentimos a necessidade de criar um canal de comunicação efetivo entre os diferentes grupo e terapeutas interessados nessa forma de pensamento. (…) Esperamos também que nosso diagnóstico não apenas se confirme, mas que todos se sintam nela representados e que participem ativamente deste empreendimento enviando seus comentários, ideias, críticas e artigos. Só assim esta publicação continuará sendo um retrato vivo de todos nós.

Coube a Maria Rosa Glasserman e a Adolfo Loketek, diretores do CEFYP de Buenos Aires, a apresentação:

Qual é a singularidade que esta revista nos oferece? Simplesmente que escritor e leitor, escrito e olhar se juntarão, no sistêmico, em língua portuguesa e no contexto sul-americano. (…) A experiência sistêmica é difícil, dura, dolorosa, porque se faz sempre com e diante de um outro significativo. (…) editar uma revista é um fato político; política de seleção de trabalhos, de material bibliográfico etc. Acreditamos que defini-la prioritariamente como latino-americana é um fato político que enuncia uma clara ideologia.

A Terapia de Família se expandia e se lançava, avidamente, sobre os incontáveis textos e subtextos que emergiam – cada terapeuta escolhia seus Mestres, segundo suas próprias formações e experiências. Folheando essa primeira edição, que agora podemos avaliar como histórica, pode-se perceber que era um retrato bastante aproximado daquele momento. O variado cardápio oferecido à terapia de família estava aí representado. Os/as autores/as estavam bebendo em diferentes fontes e contribuíam generosamente para o repertório de artigos da revista. Lia Carvalho cuidou da produção daquele primeiro número. Por muitos anos, Maria Helena Pinheiro foi a responsável pela Sala de Cinema, que foi inaugurada com uma acurada crítica do documentário “Caminhos cruzados”, sobre a temática do HIV, àquela altura uma epidemia ainda pouco conhecida e apavorante. A Estante de Livros ficou sob minha responsabilidade e a inaugurei comentando o livro de Carl Whitaker, Dançando com a família. Havia uma seção de humor, a cargo do grupo Gaia – André Rego, Carlos Eduardo Zuma, Helena Julia Monte e Jorge Bergallo (que viriam a fundar o Instituto Noos). Atualmente, Adriano Beiras é o coordenador editorial, tendo Helena Maffei Cruz como editora associada, com o suporte dos Institutos Noos Rio de Janeiro e São Paulo.

Os artigos que compunham o núcleo desse primeiro número eram de autoria de Gladis e Rosana, Terezinha Feres Carneiro, Dora Schnitman, Monica Lobo e Evelyn Rogozinsky, Miriam Schenker e Regina Jardim.

Ao longo de vinte e cinco anos, a mudança é necessária e bem-vinda. Durante todo esse tempo, muitas pessoas se envolveram, se empenharam e contribuíram para que a iniciativa de Gladis e Rosana, assim como as palavras premonitórias de Maria Rosa e Adolfo, não se extinguissem.

Agradeço à nossa incansável Helena o convite para me debruçar sobre essa história. Pude revisitar momentos e lugares que, não fora essa missão, poderiam permanecer intocados, com o risco de se dissolverem na poeira do esquecimento. Entrei em contato com ideias, mestres, colegas e situações, me emocionei. Foi um privilégio viver essa época e com essas pessoas. Valeu.

I Educadora e psicóloga; mestre em comunicação na ECO/UFRJ; facilitadora de processos coletivos, professora e supervisora de Terapia de Família no Instituto Noos.

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