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Nova Perspectiva Sistêmica

Print version ISSN 0104-7841

Nova perspect. sist. vol.25 no.56 São Paulo Dec. 2016

 

ESTANTE DE LIVROS

 

O mundo do trabalho dos jovens na Argentina: tempos de balanços 

Beiras, A., Bronz, A. (2016). Metodologia de grupos reflexivos de gênero. Rio de Janeiro: Instituto Noos. 162p.

 


 

Fernanda FontouraI

 


 

 

Ao apresentar o Livro Metodologia de grupos reflexivos de gênero, fruto da sistematização e revisão da metodologia do Noos na condução de Grupos Reflexivos de Gênero, escolho partir do lugar situado em consonância com as epistemologias feministas (Narvaz & Koller, 2006).

Do lugar em que percebo a obra, resgato meu interesse por desenvolver o trabalho com homens encaminhados pela justiça, ainda em 2006, na graduação. Cursava a disciplina de ética em psicologia quando abordamos a Lei 11.340/06 e ouvi a maioria de meus/minhas  colegas dizerem que não conseguiriam atender “homem que bate em mulher”. Muitas coisas me ocorreram naquele momento, a mais forte delas era que aqueles homens não poderiam ser reduzidos apenas ao ato que praticaram, devia haver outras coisas para escutar e ver.

Iniciei então uma busca entre as/os professoras/es do curso de Psicologia da Universidade Católica de Brasília, que trabalhavam com a temática. Encontrei na professora Maria Eveline Cascardo Ramos possibilidades, aberturas, acolhimento e movimento empático que tornaram o trabalho satisfatório e surpreendente. Desde então, contam-se oito anos de atuação com grupos de homens encaminhados pela justiça, nas promotorias e juizados de várias regiões administrativas de Brasília, em parceria com o Instituto de Pesquisa e Intervenção Psicossocial – Interpsi, seguindo a metodologia socioterapêutica, com bases compreensivas e recursos de intervenção da socionomia, do psicodrama.

Por todas as relações que estabeleci nesses contextos e pelo que vivi nos grupos, precisei ampliar as reflexões de masculinidades, gênero, classe, raça e demais intersecções, buscar aperfeiçoamentos e dialogar com outras instituições e pesquisadoras/es que realizassem esses trabalhos.

Foi nesse contexto da busca de referências, aprendizagens e aperfeiçoamentos que conheci, ainda em 2008, o trabalho do Noos – pioneiro nos trabalhos que incluem os homens no enfrentamento da violência contra as mulheres – e tive a oportunidade, em outubro de 2015, de participar do Curso de Introdução à Facilitação de Grupos Reflexivos de Gênero (GRG) do Instituto Noos de São Paulo. Durante o curso foram ofertados:

• a sensibilização para a temática desses grupos e as especificidades de seus participantes;
• o espaço de diálogo entre os profissionais que estavam atuando em diversos pontos da rede de atendimento em São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília;
• a possibilidade de conhecer como estavam sendo desenvolvidos os trabalhos em diferentes espaços e com diversas propostas metodológicas;
• a vivência dos GRG, nos modelos da equipe reflexiva;
• as abordagens teóricas da visão sistêmica, ecológica e complexa, do construcionismo social, dos estudos de gênero, perspectiva Queer e teoria feminista e da educação popular – caminhando com Paulo Freire.     

A experiência do curso foi de grata aproximação com a equipe bem capacitada, flexível e empática do Noos . A abertura que apresentaram para o diálogo franco e possível de gerar modificações, não só na metodologia, mas em todxs1 xs participantes, atestava, na prática, a possibilidade da coconstrução contínua. A felicidade de conhecer pessoas que estavam investindo nos grupos reflexivos e no atendimento aos homens com igual crença no humano e nas possibilidades de transformação do cenário de violência intrafamiliar, doméstica, de gênero e de violência contra as mulheres, que ainda temos em nosso país, acrescentou-me legitimidade para o caminho que escolhi e a convicção tranquila de que não estamos sós.

Por minha trajetória e por tudo que o curso proporcionou e agregou, me sinto estimulada a convidar a/o leitora/r a conhecer esse rico material em que, agora, o Noos apresenta a metodologia de atendimento aos Grupos Reflexivos de Gênero. De autoria de Adriano Beiras e Alan Bronz, o material traz, com linguagem clara e acessível, as bases teóricas e as etapas do desenvolvimento do trabalho, abordando aspectos fundamentais para todxs que desejem facilitar esses grupos nos mais diversos espaços. Em 2004, o Instituto já havia publicado material com o título Conversas Homem a Homem: Grupo Reflexivo de Gênero. Neste material, Fernando Acosta, Antônio Andrade Filho e Alan Bronz apresentavam a metodologia dos GRGs como foi sistematizada desde 1999. Ainda atual e de profícua leitura, o livro de 2004 remete à metodologia que havia sido pensada para ser desenvolvida por profissionais especializados, em geral psicólogxs. Isso tornava possível desenvolver técnicas mais específicas como actings e linguagem corporal e dramatizações.

Agora, em 2016, quando o Instituto Noos completa 16 anos de experiência na condução de GRG, a proposta se ampliou em termos de equipe técnica, população e nível de prevenção; enriqueceu a perspectiva teórica na dimensão de gênero e construcionismo social e trouxe o foco na implicação do facilitador, na importância de que este se veja em processos reflexivos e desenvolva a habilidade de fazer perguntas reflexivas e acerca do gênero. O livro destaca com propriedade a relevância de que tais questionamentos sejam feitos pelo próprio facilitador a si mesmo, continuamente, para, então, direcioná-los ao grupo.

Em nível de equipe técnica, foi necessário adaptar a metodologia, alterar a proposta da equipe reflexiva e retirar técnicas muito específicas para que fosse mais acessível aos diversos agentes que desejem se tornar facilitadores de GRG. Nesse modelo, líderes comunitários, educadores, assistentes sociais, agentes de segurança e todxs aquelxs que, em suas inserções pessoais e profissionais, lidam com questões de gênero, preconceito e violências e estão interessados em contribuir para as transformações possíveis destas relações possam se tornar facilitadores de GRG. Esta configuração incide, portanto, nas duas seguintes, de população e nível de prevenção. Se antes os grupos estavam inscritos principalmente no contexto de prevenção terciária, nos espaços da justiça, e mais dirigidos aos homens e às mulheres que já haviam vivido situações de violência de gênero e violência contra a mulher, agora é possível propor o trabalho em níveis de prevenção primária e secundária, com homens, mulheres e transgêneros, nas comunidades, escolas, hospitais, e muitos outros espaços de convivência humana.

A obra está organizada em cinco capítulos.  

O primeiro, “Ampliando as conversas”, apresenta um panorama geral da perspectiva teórica; faz o levantamento das modificações eleitas para a metodologia, de 2004 para 2016; elenca os resultados gerais que têm sido percebidos nos GRG, tanto nos grupos de mulheres, quanto nos grupos de homens; nomeia a postura acolhedora e a rede de relações enquanto relevantes para que as mudanças ocorram.

Em “Conversando sobre gênero”, as citações de referências como Butler e Scott remetem ao gênero enquanto ato performativo instituído cotidiana e repetidamente e operador analítico para além da diferença sexual. Destaca-se a relevância de que xs facilitadorxs possam realizar o exercício pós-moderno de estranhar a realidade e questionar os discursos e performances binaristas, hegemônicos e heteronormativos.

Os referenciais teóricos do construcionismo social, estudos de gênero e teorias feministas, visão sistêmica, ecológica e complexa e da educação popular, com ênfase em Paulo Freire, são apresentados no terceiro capítulo de modo introdutório, convidando a mais leituras e pesquisas. As bases teóricas ali apresentadas dão ênfase à linguagem, à relação, à reflexão crítica e colaborativa.

A essa altura, quando o leitor já está mais familiarizado com a proposta teórica, epistemológica e reflexiva, o capítulo 4 apresenta o passo a passo da metodologia dos grupos reflexivos de gênero. Dupla de facilitadores, número de encontros, duração de cada encontro, levantamento das expectativas e etapas do trabalho estão explicitados e justificados, um a um.

Nesse capítulo, aborda-se a experiência do GRG como uma prática onde diferentes descrições sobre como nos relacionamos, a partir de um lugar socialmente definido, são expostas e confrontadas. Sendo assim, o GRG vai sendo definido como espaço de convívio, de problematização e questionamento. Assim como de produção individual e coletiva do conhecimento e de valorização da cidadania.

O grupo se inicia com entrevista individual (mínimo um e máximo três encontros de entrevista), tem um formato fechado, doze encontros de duas até três horas, uma vez por semana ou de quinze em quinze dias – desde que tenha uma atividade de ligação entre esses encontros. Todo grupo passa por três etapas principais: constituição do grupo; realização dos encontros reflexivos e avaliação do trabalho. Esta última etapa é realizada quantitativa e qualitativamente por pessoa ou equipe que não está diretamente participando dos grupos e poderá perceber o processo com outros olhares.

Para a dupla de facilitadores pontua-se, dentre outros aspectos, a relevância da postura reflexiva, o desenvolvimento de recursos disparadores de conversas, a habilidade de promover aberturas para conversas que possam trazer novos significados e a riqueza de formular perguntas que gerem reflexões. Destaca-se o lugar dessa dupla no grupo: ela precisa estar próxima dos participantes, sem estabelecer hierarquias que corroborem com modelos próprios da lógica de dominação do lugar do expert em nossa cultura.

O livro se encerra com uma rica bibliografia complementar e links úteis, fomentando o percurso de todxs para mais leituras, reflexões e compreensões. A provocação que a equipe Noos e os autores fazem nesse livro alcança todxs que desejam se transformar e repensar as ações e performances no mundo. A leitura provoca movimentos reflexivos nos níveis de intervenção, para desenvolvermos atuação que contribua para a equidade onde estivermos inseridos, mas, também, no âmbito pessoal, instigando-nos a pensar nossa forma de existir no mundo com uma postura mais crítica, corresponsável, colaborativa e transformadora.

Independentemente do método escolhido ou do espaço em que atuamos, o material nutre a todxs com elementos que favorecem desdobramentos reflexivos. Os autores nos convidam a tornar a reflexividade caminho de coconstrução social para desenvolver novas formas de nos relacionarmos, de cocriar e coconstruir espaços nos quais nossas diferenças não sejam razões para subalternizar, discriminar ou excluir, mas, para aprender, complementa e auxiliar mutuamente na construção da paz e do bem comum..


Referências

Narvaz, M.G., & Koller, S.H. (2006). Metodologias feministas e estudos de gênero: articulando pesquisa, clínica e política. Psicologia em Estudo, 11(3), 647-654. https://dx.doi.org/10.1590/S1413-73722006000300021         [ Links ]

1 O emprego das barras com apresentação das palavras no masculino e feminino, bem como do x substituindo vogais nas palavras, ao longo do texto, instigam as ampliações das flexões de gênero que, na língua portuguesa, se estruturam apenas em dois gêneros: o masculino, antecedido pelo artigo "o"; e o feminino, antecedido pelo artigo "a". Pretende-se partir do que está dado na linguagem para avançar na desconstrução provocando questionamentos quanto aos binarismos de gênero entre masculino e feminino e atendendo a necessidade de uma escrita inclusiva em que todxs possam estar incluídos e se vejam representadxs.

2 Equipe de professores do curso em SP: Alan Bronz, Adriano Beiras, Irene Loewenstein, Marina Sidrim Teixeira, Marco Julián Martínez-Moreno.

I Psicóloga e Psicodramatista.  Formada em psicologia pela Universidade Católica de Brasília. Pós-graduada em Psicodrama pelo Centro de Psicodrama de Brasília e Pontifícia Universidade Católica de Goiás (CPB/PUC - GO). Coordenadora do Intervenire - Grupo de atenção, estudos e intervenção socioeducacional e socioterapêutica. 

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