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Nova Perspectiva Sistêmica

Print version ISSN 0104-7841

Nova perspect. sist. vol.25 no.56 São Paulo Dec. 2016

 

FAMÍLIA E COMUNIDADE EM FOCO

 

Uma entrevista com Mathilde Neder 


 

Paula AyubI

 


 

 

Embora a figura de Mathilde Neder dispense apresentações, um pouco de sua história é também a história do surgimento da psicologia no Brasil.

Mathilde nasceu em 1923 e, formada como professora primária pela escola Normal Oficial de Piracicaba, aos 20 anos,  ingressou  na Faculdade de Pedagogia na PUC de Campinas1.

Durante a entrevista, Mathilde relata seu especial apreço às normalistas, profissionais que tiveram um importante papel em sua vida.

“Eu era tida no primeiro ano escolar como uma criança deficiente, e passei para o segundo ano sem saber nada, analfabeta. Mas a minha professora, pensando que eu iria continuar naquela escola, acreditou que, com sua ajuda, eu poderia aprender. Algumas coisas, letras que ela escrevia na lousa, grandes, coloridas, eu conseguia identificar e ela achava que se eu reconhecia aquilo era porque eu poderia aprender. Ela achou que eu não deveria permanecer no primeiro ano porque poderia ser prejudicada e, no segundo ano, ela poderia me auxiliar. Mas minha mãe, quando viu que eu não fui reprovada, me tirou daquela escola e me colocou em outra, onde estavam meus irmãos. Eu não estava com meus irmãos porque todos achavam que eu tinha alguma deficiência, eu acho, conclui isso depois. Minha escola era do governo também, mas ficava a uma quadra, uma quadra e meia da minha casa. Meu irmão me levava e lá na escola tinha uma menina que ficava comigo, para subir escadas, para tudo. Minha mãe, vendo que eu passei de ano, me colocou na escola dos meus irmãos, mas chegando lá, eu não sabia nada, estava no segundo ano, analfabeta. Aí vieram as normalistas que levavam as alunas todas lá para fora, no lugar do recreio, e faziam um exame de acuidade visual. Elas colocavam um quadro e um projetor, como os médicos oculistas fazem. Então descobriram que eu não enxergava. Aí fui para Campinas e comecei a usar óculos. Eu tinha muitos graus de hipermetropia, astigmatismo e outra coisa. Então, passei a usar óculos e rapidamente aprendi tudo.”

A mim, parece que este início foi decisivo para sua atuação na saúde mental na vida profissional. Em 1944, transfere-se para a USP para concluir o bacharelado e, até 1948, faz vários cursos, incluindo psicologia educacional e psicologia clínica.

Em 1962, pela Lei 4.119, a profissão de psicólogo é regulamentada, tendo Mathilde como um dos membros do grupo de discussão e apoio a esta Lei. Ela foi também uma forte presença na criação do sindicato dos psicólogos.

De 1944 até 1963, quando é convidada a lecionar psicoterapia infantil no primeiro curso de psicologia na PUC-SP, Mathilde sempre esteve ligada às questões da reabilitação e saúde mental, incluindo um trabalho no Instituto de Reabilitação da USP, atual Divisão de Medicina de Reabilitação, subvencionado pela ONU.

 

 

Meu interesse em entrevistá-la surgiu de uma conversa informal que tivemos em viagem à Goiânia, por ocasião do CDC, Conselho Deliberativo Científico da gestão da ABRATEF – Associação Brasileira de Terapia Familiar – 2012 – 2014, quando ela contou sobre o primeiro atendimento de uma criança com autismo realizado por ela na década de 1950. Minha trajetória profissional ligada a pessoas do espectro autista aguçou minha curiosidade e, em 2016, finalmente conseguimos nos encontrar para esta conversa.

Com enorme bagagem em psicoterapia infantil e psiquiatria, pois, além de diversos estágios e trabalhos em hospitais psiquiátricos, em 1950, Mathilde participou do Primeiro Congresso Internacional de Psiquiatria em Paris , no qual personalidades como Anna Freud, Melaine Klein, Jean Delay, Hugo Cerletti (falando sobre o eletrochoque) estiveram presentes.

P - Quando e onde você recebeu o encaminhamento para atender o garoto com diagnóstico de autismo?

M - Logo no início do meu trabalho na clínica da PUC, mais ou menos em 1957. Eu era professora da graduação e a clínica era na rua Cardoso de Almeida. Chegou um garoto na clínica, de mais ou menos 5 anos, para eu fazer um diagnóstico diferencial2. Não me passaram nada, confiavam muito em mim, apenas pediram para eu olhar o garoto. Eu o vi pela primeira vez em uma sala lá dentro. Estou revivendo aquela situação. O garoto era parado, olhava para as coisas, não mexia em nada, ele apenas não saiu correndo de mim, não fugiu. Ele não fazia nada e, se ele ficava ali, eu ficava ali também. Eu tive paciência de esperar, se ele não quisesse fazer nada, não fazia. Assim foi começo, só que o tempo acaba e o que você vai dizer para os pais? Eu apenas dizia para trazê-lo de volta, tal dia e tal hora.

P - E você se lembra de ter ido pesquisar?

M - Nada, pesquisar pra mim, naquela época, era na minha cabeça. Para ver essa criança, eu não vi livro nenhum, sinceramente, eu recebia o menino para mim. Éramos nós dois na relação. Demorou para esta relação ficar “terapêutica”. Mas algo já estava acontecendo, senão ele teria gritado, então algo foi favorável desde o começo. O que foi acontecendo, eu não parei para pensar nesta entrevista, eu estou pensando agora com você. Eu tinha necessidade de que ele mostrasse algum saber Alguma coisa que ele soubesse, e ele não fazia nada que me mostrasse isso.

P - Você pensou que talvez ele pudesse ter deficiência intelectual, ou algum outro tipo de deficiência?

M - Não dava para saber, ele ficava ali. “Você me quer aqui, eu estou aqui.” Não falava nada, mas eu sabia que ele não falava nada fora também. Nem em sua casa ele falava. Depois de um tempo, eu passei a fazer a psicoterapia no quintal da clínica. Eu não usava mais a sala, porque para ele não havia o limite ambiental.

P - Que lindo, já houve aí a primeira quebra de padrão, o setting foi para o quintal.

M - Sim, foi a primeira e, como me respeitavam na clínica, não me chamavam atenção. Mandei fazer um tabuleiro de areia no chão. Também mandei fazer um tablado que era para nossa experiência em psicodrama, eu havia feito o curso e nós praticávamos ali. Fora o tablado, havia um tanque, três lousas e um espaço ao ar livre. Ele se encantou com as lousas e acabou colocando as três uma ao lado da outra, formando um semicírculo. Começou a usar a lousa, rabiscava, rabiscava. E ia para o tanque. Chegava no tanque, eu tinha medo dele molhar sua roupinha, pensava que na hora de ir embora a mãe dele me matava se ele fosse todo molhado. Então eu disse, olha você vai se molhar. Ele tirava toda a roupinha e ficava peladinho. Eu ficava torcendo para ninguém aparecer por ali. Eu nos resguardava, mas não limitava o menino. Eles que me pediram para cuidar do garoto, agora quem não largava dele era eu. Então, ele estava ligado a mim, mas eu também estava ligada a ele. Foi quando eu percebi que eu precisava  voltar a ser eu mesma, voltar a viajar e fazer meus cursos e pedi ajuda da Mirel e da Isabela3.

Nas décadas de 1960 e 1970, os atendimentos a crianças com autismo eram movidos pelo amor e pelo fascínio pelo desconhecido. Havia um romantismo subliminar que envolvia o autismo, muito em função do Método Son-Rise4, amplamente difundido por conta de um filme Meu filho, meu mundo, onde a prática terapêutica era justamente no “deixar ser”, “deixar fazer”, focando e objetivando a interação social.  O método foi se ajustando e hoje há associações e instituições em todo o mundo utilizando o programa.

Mesmo Leo Kanner (1943)5, ao descrever o autismo pela primeira vez, trata as características como fascinating peculiarities (peculiaridades fascinantes) e, ao final de seu trabalho, faz um breve relato sobre os pais e parentes: “In the whole group, there are very few really warmhearted fathers and mothers.”6 Crianças fascinantes e pais distantes, material suficientemente bom para profissionais se arriscarem ao desafio de “trazerem para fora” crianças tão isoladas.

Quando Mathilde nos diz que “precisava voltar a ser eu mesma”, ela nos ensina a nos olharmos dentro das relações terapêuticas: reconhecer nossos limites de atuação e nossos saberes.  

M - Depois de algum tempo, eu chamei a Isis7 e pedi para ela ensinar alguma coisa para ele. Eu queria ver se ele aprendia. Na clínica, eles poderiam ter mandado para a fono, mas pensaram na psicóloga. Como eu era amiga da Isis, pedi a ela que visse o garoto.

Ele passou a fazer sessões de fonoaudiologia com a Isis e continuava a vir comigo. Ficávamos lá fora e ele brincava com água. Tinha uma mesinha perto do tablado e lá tinha lápis e papel. Então, ele pegava o lápis e fazia o gesto como se estivesse fazendo rabiscos e imitava o som do lápis no papel, depois soltava a folha de papel no ar.

Ela repete os gestos e o som várias vezes.

M - Sei lá quantos papéis foram. Aqueles papéis eram muito importantes, tudo custava dinheiro. Tudo ali era caro. E se na clínica faltasse algo, a gente trazia de casa. E eu nem prestava atenção na papelada que estava gastando, tão comprometida estava. Simplesmente jogava a papelada fora.

Então eu dizia, desenha. Ele repetia o som e eu, o pedido. Conclui depois que, eu também era teimosa, talvez fosse como ele. Mais tarde ele fez um desenho diferente. Em vez de fazer, tchchchc, fazendo movimentos circulares, ele fez assim: Tum, Tum, Tum, Tum, Tum, fazendo movimentos mais amplos e planejados.

Mudou o movimento. Aí eu e comecei a olhar, andando em volta do desenho. Olhava o desenho e olhava para ele. Olho e falo assim. Então faz uma pausa, como se estivesse olhando o desenho naquele instante.

M – Volkswagen? – (Ele abre o rosto em sorriso.) Mathilde está ainda com o sorriso nos lábios... Faz uma grande pausa. – Era um Volkswagen. Você via o maleiro, o gordo aqui.

Então demonstra como viu o carro, como se tivesse o desenho em suas mãos.

M - Eu via o Volkswagen, não inventei não. Então, ele falou com o sorriso, você entendeu.  Ah,  então você gosta de Volkswagen? Eu não disse, opa, você fez. Você sabe que eu já tive um Volkswagen assim? O primeiro carro que eu tive. Conversando com ele como se ele fosse o maior entendedor e fosse um conversador. Era muito mais intuição minha do que livresco, nada livresco.

P - Você disse que foi na intuição, nada livresco. Como essa conversa vai ser lida por pessoas que não conhecemos, leigas ou não, talvez recém-formadas, assinalo que essa Mathilde que está atendendo esse garoto, já tinha uma estrada, já tinha estudado, não era principiante.

M - Por isso mesmo que eles me mandaram o garoto.

P - Mathilde sempre esteve presente nos congressos e cursos internacionais, entre estes, Chile em 1947, Paris em 1950,  além do trabalho que realizava no Juquery aos sábados.

M - Eu fiquei assustada porque todos os dias só rabiscos e de repente ele me traz isto.Fusca. Ele sorriu, como dizendo - essa me entende mesmo. Foi o primeiro sinal dele. Continuei trabalhando com ele ao mesmo tempo em que ele continuava com a Isis, eu não sabia o que estava acontecendo lá, mas falando ele não estava. Então espero ele vir para brincar sentada no tablado, numa cadeira que havia lá, e ele vem vindo, tuc tuc tuc, vem vindo, olhando pra mim.

Ela se levanta e me posiciona como se eu fosse ela naquela época e lentamente chega bem próxima ao meu corpo.

M – Ele vem devagarinho e eu deixo, não mexi um músculo, eu queria ver o que ele iria fazer, ele veio, veio, encostou, encostou, encostou, olhou assim pra mim e adivinha o que aconteceu... Ele disse Mmm... (eu falei Jesus) mmmmaaa thilde. Eu quase morri nessa hora.

Mathilde se emociona visivelmente e eu também.

As lágrimas diante da conquista do outro acabam por ser inevitáveis quando estamos diante de uma criança com características tão ímpares, tão singulares. Crianças que, muitas vezes, nos parecem não estar conectadas com nossos códigos e que, de repente, nos mostram o quão relacionais elas podem ser.

M - Quando eu contei para Isis dessa experiência com ele, ela me disse - ele não fala, mas eu não desisto. Ela era muito como eu, não desistia. De repente ele sai com essa, quer dizer, ele está observando, ele está vendo tudo, ele estava sabendo tudo o que ela estava ensinando. E depois solta, Mmmmaaa thilde. Não foi assim, “Oi Mathilde”, não. Foi com dificuldade, mas estava claro que foi Mathilde. Eu então brinquei com ele. Eu também não tinha limite, tudo aquilo que você sabe que a psicoterapia fala que não pode pegar, não pode fazer, eu não ligava para nada disso.

Mathilde relata de uma forma muito natural, o quão necessário era deixar de seguir os padrões da época para estar mais próxima de seu paciente. Uma criança com características do espectro autista, não se beneficiaria em uma sala fechada com jogos e brinquedos convencionais. Mathilde, por sua jornada em hospitais psiquiátricos e cursos fora do país, sabia que precisaria ir além.

P - Mas você tinha noção de um limite seu...

M - Claro, meu limite era como naquela hora que eu disse – não me mexo. Quero ver o que ele quer fazer, porque era iniciativa dele, encosta, encosta, encosta, pensei será que ele vai sentar no meu colo? Mas ele encosta a cabecinha assim e diz: Mathilde.

P - Até este ponto, quanto tempo já havia passado, Mathilde?

M - Ah sim, ele ficou comigo antes dessas manifestações por mais de um ano.

P - Você sem desistir, olhando e acreditando que havia possibilidade.

M - Conversando com ele, ele ia pra lá, ia pra cá, se comunicava por movimentos. Eu falava. Como se ele fosse o maior entendido da paróquia. Eu procedia como se fosse um cliente comum, sabe, só que ele não era um cliente comum, e eu andava com ele. Por exemplo, quando ele pegou as lousas, riscava, riscava, não fazia nada. Chega uma hora, um dia lá, ele põe as 3 lousas, uma ficava lá nos cafundós, outra do lado, outra em outro lugar, ele pegou as 3 e o que ele fez: Du, Du, Du, Du, Du.

Eu vi que era uma letra. Vai na outra lousa, daqui, da direita pra esquerda, Du, Du, Du, Du, Du, como se fosse árabe. Eu sou árabe, mas acho que ele não sabia. Vejo uma letra, outra letra, outra letra. Como a primeira letra, eu vi o que era, fui ligando as outras, não importa se era da direita pra esquerda. E juntando esta letra, com outra, e mais outra, eu olhei pra ele e ele sorriu: ele havia escrito o nome dele. As letras não seguiam uma ordem, mas para mim, era como se ele tivesse escrito o nome dele.

P - Legitimando o tempo todo.

M - Sempre. Dizia ótimo. Muito bem, que bonito. Olha, é você, o seu nome. Não falei: não é por aqui que começa, depois vem pra cá. Não interessa, não estava como professora dele. Eu estava ali para receber o que ele desse. Por onde mais que ele podia evoluir? O que eu fiz daí pra diante foi começar a levá-lo mais tempo para a cozinha que era interna. Então lá na cozinha tinha pia, minha intenção era que ele mexesse com a água, mas de uma maneira mais socializada. Tinha água, não era do tanque. Graças a Deus, eles deixavam eu fazer tudo o que eu queria, então lá dentro, a gente brincava com o que tinha. Aí eu chamei a Isabela e a Mirel para me observarem. Ele já se comunicava, mas não falando. Mas alguns sinais ele já tinha, e aí ele deslanchou com a Isis. A Isis foi uma preciosidade, eu não sei onde ela está hoje, mas esse menino ficou devendo a ela, e eu também fiquei devendo isso a ela. Isso, quer dizer, a paciência, tranquilidade, aceitar o menino como ele era, não exigir que ele mudasse rapidamente, deixá-lo trazer tudo o que ele pudesse trazer de si. Esse menino tinha uma preciosidade dentro dele. Aí a Mirel e a Isabela assistiam e eu já achava que precisava haver uma mudança, ele já tinha ficado 2 anos comigo e eu fiquei, não é escrava, mas eu fiquei limitada. Não podia fazer mais nada. Aí fomos buscar uma escola, mas não existiam escolas que o recebessem. Finalmente conseguimos uma escola que não aceitava autistas, mas ele foi aceito.

P - Mathilde, de onde veio o nome de autismo para ele? Você achava que era autismo desde o começo?

M - Desde o começo. Ele veio para mim para um diagnóstico diferencial, a Ana Maria Popovic8 me encaminhou dizendo que não sabiam o que havia com o menino. Parece o tal do autismo, mas não sabemos, você veja o que há com ele. Ele é deficiente, é débil mental? Se for, é bem no nível da imbecilidade.

P - Usando a terminologia da época.

M - Sim, a terminologia da época. Falava-se, teoricamente, da possibilidade de ser esse autismo, será que existe isso? Será que o caso tem alguma coisa com isso? Você sabe? Conversando como se eu soubesse tudo. Estude o que é isso de autismo, você é que vai ver isso. Do diagnóstico não veio nada, a não ser um caso difícil, diferente e talvez seja um caso de um idiota9, um menino desligado. É um menino desligado do mundo.

P - Você chegou a utilizar esse nome, a dar o nome de autismo?

M - Lá, depois sim. Pra mim, era. Ele vinha construindo sua vida, havia aspectos em que ele me parecia ter uma inteligência superior, afinal, pra conseguir ficar quietão e desenhar um fusca? E um fusca em perspectiva, de cima para baixo, não é qualquer um. E depois ele demonstrando carinho, chegando perto de mim. Foi quando disse Mathilde e aí eu abracei ele. Aquele menininho, eu aprendi com ele, não? Ele deu lição pra nós quatro.

P - Que lições? Eu consegui ver uma série de coisas, sair do setting, diminuir a rigidez do terapeuta.

M - Eles me deram liberdade lá.

P - E você acha que essa liberdade que utilizou foi sendo construída com ele e aprendida?

M - Foi isso mesmo. Ele me permitia andar um pouquinho, eu ia, ele me permitia andar mais um pouquinho, eu ia. Eu dava uma provocaçãozinha, se ele topava eu seguia, senão eu vinha pra cá (demonstrando afastamento). Com a água, quando ele quis tirar a roupa, eu não queria, mas ao mesmo tempo eu falei, ele vai se molhar, então deixei.

P - Essa deve ter sido uma escolha difícil, não?

M - Foi.

P - De novo, estou fazendo aquela linha de raciocínio de que a gente está escrevendo e pensando na quantidade de pessoas que vão se beneficiar e vão aprender com essa entrevista que você está concedendo pra mim.

M - Você acha que isto vai ser útil?

P - Sim, claro. Eu acho que vai ser muito útil. Então, voltando, a nudez de um paciente... Qual é esse limite, não ,é Mathilde? Lá, tendo que decidir, ou ele molha a roupa dele ou ele fica nu. E você opta por deixá-lo ficar nu.

M - Em nenhum momento passou pela minha cabeça não deixá-lo ir ao tanque.

P - Então, ir ao tanque era legítimo.

M - Eu não ia impedir. A minha questão era: com roupa ou sem roupa. E ele foi sem roupa porque ele foi tirando e foi. Eu pus a roupinha dele separada para a hora de ir embora.

P - Hoje, pensando em uma pessoa no consultório, o que você aprendeu que poderia ser útil para uma pessoa nas mesmas condições.

M - Num consultório? (pausa) Eu no meu consultório encontraria uma saída com o material que eu tivesse. Mesmo porque, a criança usa aquilo que está na frente, se não existisse o tanque ali, ela não iria usar. O tanque estava no ambiente onde ele estava. Num consultório eu não vou ter um tanque. Como eu iria saber que ele iria dizer meu nome quando foi se aproximando de mim? Como é que a gente pode saber o que há na intenção de uma pessoa?

P - E você optou por deixar acontecer.

M - Pra ver o que iria acontecer.

P - E também, acho que é o que você conta aqui para todos, é não antecipar, não julgar com os seus critérios e sua compreensão.

M - Exato.

P - E você disse “vou esperar pra ver o que ele vai fazer”.

M - E ele encostou, encostou o corpinho assim e queria falar, o carinho dele foi falar Mathilde.

P - Fica difícil ouvir seu relato e não me ver no meu dia a dia. A cada passo que avançamos na relação terapêutica, é uma festa interna, é um júbilo. Nas minhas sessões, me percebo celebrando cada passo em direção ao compartilhar, cada ato que me mostre a possibilidade de compreensão mútua. Negar o envolvimento seria negar todo o processo. Eu caminho na direção que me apontam, eu olho onde eles olham, sempre na tentativa da compreensão. Definitivamente, são sessões cheias de emoção.  

M - Mas é isso! É, é verdade.

P - O que é ética dentro desta emoção?

M - A ética, eu diria assim, toda a sua vida anterior como terapeuta, o que você é na sua vida, como você vê a vida, eu tenho um artigo em que, no final, eu falo algo sobre isso. Que o psicólogo deve ter uma formação de equilíbrio pessoal porque senão ele desvia, então ele tem que ter ética, como se conduzir, o que é mais correto. Então, eu já tenho aquilo em mim, se eu não tiver, melhor não ser terapeuta. Você entendeu? Porque oportunidades pra você fazer besteiras surgem.

P - Seja dentro ou fora da sala de atendimento.

M - Exatamente. Perfeitamente. Por isso que eu senti necessidade, naquele momento, de pedir a colaboração das meninas, da Isabela e da Mirel. Psicólogo, cuide de você, você precisa saber quem você é. Qual seu referencial de vida, porque senão você mete o outro no lixo, o seu paciente. Você tem que saber como se conduzir. Além de bem equilibrado, tem que saber até onde ir, onde parar.

Coincidentemente, na semana em que Mathilde me daria a entrevista, ela vivenciou um debate em sua aula na pós-graduação da psicologia clínica da PUC, onde algumas alunas se referiam ao atendimento de crianças com autismo.

M - Que nome damos? Como vai ser chamado atualmente quando há um forte movimento contra diagnosticar? Você já notou isso também? A preocupação com designação. Mas e a experiência? Eles não são mais desprezados como antigamente?

Em um segundo momento de nossa entrevista, Mathilde é convidada a conhecer o Centro de Convivência Movimento e lá, cercada por estudantes de psicologia e jovens e adultos que apresentam características do espectro autista10, ela conversa com muita alegria.

P - Mathilde, como se deu seu trajeto até a Terapia de Família?

M - A família sempre esteve comigo. Quando cheguei para assumir o trabalho na ortopedia do HC, por indicação de Haim Grünspum11, me contaram que o maior problema era que as crianças com os troncos  engessados  se jogavam das camas. A primeira pergunta que fiz foi: E onde estão as mães? Pensei e perguntei pelas mães, como representantes da família, um membro que cuidasse das crianças. Um tempo depois, já trabalhando como assistente de Noemy Rudolfer12, que mantinha relações estreitas com Gregory Bateson13 e sua esposa Margareth Mead14, pude vivenciar o trabalho com famílias. Eu até atendia nas casas delas para conhecer a rotina, as dificuldades, a organização. Eu então, jovem que era, tinha meus preconceitos. Porque aquela mãe chega tão tarde em casa? E recebi minha primeira lição de Noemy: porque ela tem vida, o marido também é família. E nunca mais me afastei das questões das relações familiares.

P - Pensando sobre tudo o que conversamos e o que você viu hoje aqui. Como vê e entende hoje a questão do autismo?

M - Penso que este lugar é especial. O que você faz aqui é espetacular, é grandioso. Mas não posso acreditar que depois de tantos anos a questão do autismo tenha evoluído tão pouco. O que você me relata e o que tenho ouvido, é que a exclusão de pessoas com autismo ainda é uma realidade cruel e dolorosa.

Mathilde se choca ao saber que 60 anos depois muitos ainda lutam por buscar locais que aceitem uma criança com autismo.

A LEI Nº 13.146, DE 6 DE JULHO DE 201515, Lei Brasileira de Inclusão, passa a dar direitos a Educação a toda criança com algum transtorno no desenvolvimento e/ou deficiência. O que não significa que as escolas já estejam preparadas para oferecer este direito. A educação como um todo vem sofrendo mudanças e, repetindo um jargão muito famoso aos militantes da LBI, “o que é bom para uma pessoa com deficiência é muito melhor para a população em geral” defende-se uma educação individualizada para todos, uma educação onde se prioriza o modo particular de aprender de cada um.

Pensando um pouco como Mathilde, sair da sala de atendimento, abrir novos horizontes na educação é deixar o livro de lado – depois de muito lido, é sair da caixa, é buscar o contato. Mas esta é outra discussão.

Em um terceiro momento, estivemos na clínica da PUC-SP onde Mathilde pode conhecer as novas instalações de atendimentos e recebeu uma calorosa recepção por parte dos funcionários pelo trabalho de uma vida dedicada à academia e à psicologia.

Para concluir, podemos pensar na grandeza da reabilitação como tal, pelo muito que se pode conseguir pela ação coordenada da equipe técnica, apoiada pela administração e tendo em vista sempre o cliente, centro de nossos interesses. E tempo virá em que a pessoa portadora de alguma deficiência, física ou mental, terá conquistado o lugar social a que fizer jus por suas qualidades, por aquilo que ela pode fazer e é capaz de fazer bem. Derrubado o preconceito, tantas vezes eivado de falsa pena, piedade, caridade ou comiseração, só nos resta zelar para que realmente se dê o ajustamento pessoal, profissional e social do candidato à reabilitação.16

1 Todas as datas e informações sobre sua carreira foram retiradas do CRP, http://www.crpsp.org.br/portal/memoria/banners/Mathilde%20Neder.pdf.

2 Diagnóstico Diferencial é o termo utilizado pela classe médica, a fim de observar características de diversas síndromes, segundo critérios de avaliação como o CID X e o DSM – V, para definir uma síndrome em detrimento de outras. O processo ainda é muito utilizado atualmente por vários colegas.

3 Isabela de Santis e Mirel Granatovicz eram psicólogas da clínica da PUC e foram chamadas para auxiliar Mathilde no caso. Posteriormente, Isabela assumiu o atendimento e Mirel a auxiliava.

4 http://www.autismtreatmentcenter.org/contents/languages/portuguese_version.php

5 http://neurodiversity.com/library_kanner_1943.pdf

6 “em todo o grupo, há apenas poucos pais e mães realmente afetivos” – tradução da autora.

7 Isis Meira, fonoaudióloga na PUC-SP.

8 Diretora da clínica da PUC na ocasião.

9 Idiota era a nomenclatura da época para deficiência intelectual.

10 Lorna Wing, 1997.

11 Psiquiatra, psicólogo, especialista em psicopatologia infantil. Faleceu em 2006.

12 (1902 – 1988) Cátedra de Psicologia Educacional e laboratório de Psicologia Educacional da escola Normal de São Paulo Caetano de Campos.

13 Biólogo e antropólogo, grande pensador sistêmico e epistemológico da comunicação. Faleceu em 1980.

14 Primeira esposa de Gregory Bateson, antropóloga, concentrou seus estudos na infância, personalidade e cultura.

15 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13146.htm

16 Neder, M. (1959). O psicólogo a serviço da reabilitação. Revista Paulista de Hospitais, 3(VII).

I Psicóloga, terapeuta de famílias e diretora do Centro de Convivência Movimento - atendimento a pessoas com autismo. 

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