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Nova Perspectiva Sistêmica

versão impressa ISSN 0104-7841

Nova perspect. sist. vol.26 no.57 São Paulo abr. 2017

 

ARTIGOS

 

Momentos de referência comum na comunicação dialógicauma base para colaboração clara em contextos únicos

 

Moments of common reference in dialogic communicationA basis for unconfused collaboration in unique contexts1

   

 

John ShotterI

I Universidade de New Hampshire, EUA.

 

 


RESUMO

Este artigo explora o afastamento da ideia da comunicação oral como um processo de transmissão de informação, ao contrário, explora o papel da espontaneidade, da vivacidade, da responsividade atuante de nossos corpos. quando todos os envolvidos em uma interação estão abertos a serem “tocados” ou “impulsionados” pela alteridade dos outros e, também, pela alteridade circundante, “momentos de referência comum” podem ser estabelecidos. na falta de tais momentos compartilhados, em uma situação específica, as pessoas não podem esperar entender-se mutuamente com a precisão necessária, isso se o objetivo for uma colaboração sem confusão na situação única em que se encontram – tais momentos compartilhados proporcionam “raízes” ou “terreno” comuns para as atividades compartilhadas.

Palavras-chave: comunicação, responsividade atuante, alteridade, enunciado, espontaneidade.


ABSTRACT

This paper explores the move away from de idea if speech communications a process of information transmission, and explores instead the role of the spontaneous, living, expressive-responsiveness of our bodies. When everyone involves in an interaction is open to being touched or moved by de otherness of the others and othernesses around them, “moments of common reference” can be established. lacking such shared moments, people in a specific situation cannot expect to understand each other with the unique precision required if they are to collaborated with out confusion in the unique situations they occupy – such shares moments provide a shared moments provide a shared “rooting” or “grounding for their shared activities.

Key Words: communication, living responsiveness, otherness, utterance, spontaneous.


 

 

A Alteridade que entra em nós transforma-nos em outro (Steiner, 1989, p. 188).
Na realidade, a palavra é uma via de mão dupla. Ela é determinada tanto pela pessoa que a pronuncia quanto para quem é dirigida. Como palavra, ela é exatamente o produto de um relacionamento recíproco entre o falante e o ouvinte, entre o remetente e o destinatário. Toda e cada palavra expressa o “indivíduo” em relação ao “outro”... Uma palavra é uma ponte lançada entre mim e o outro... É um território compartilhado por ambos: remetente e destinatário, falante e seu interlocutor (Voloshinov, 1986, p. 86).
Cada qual com suas entonações básicas, todos esses tipos de expressões abundam em termos e formas correspondentes de enunciados possíveis. A situação social determina em todos os casos qual termo, qual metáfora e qual forma pode se desenvolver em um enunciado que expresse (uma experiência vivenciada) a partir da sustentação de sua entonação particular contida na experiência (Voloshinov, 1986, p.89).
Os Lógicos usam exemplos que ninguém jamais pensaria em usar em outro contexto. Quem diz: “Sócrates é um homem”? Não estou fazendo uma crítica porque isso não ocorra na vida diária. Eu estou criticando é o fato de que os lógicos não dão vida a esses exemplos. Precisamos inventar um entorno para nossos exemplos (Wittgenstein, 2001, p. 124).
Apenas o quadro pretendido atinge a realidade como um referencial. Visto de fora, só existe morte e isolamento – é como se olhássemos para um quadro com a intenção de entrarmos nele... Desse modo, quando tentamos, nos vemos cercados pelo quadro das nossas intenções e estamos dentro delas... isso significa algo como dizer: “Viver nas páginas de um livro (Wittgenstein, 1981, p. 233).”

Deixem-me começar simplesmente fazendo algumas perguntas: quais são as características cruciais de nossas expressões que tornam possível para aqueles com quem nos encontramos terem uma visão de quão únicos nós somos? Como acontece às vezes, como podem perceber, a situação singular em que vivemos, a impressão de “estarem em nossa pele”, de “sentir onde o sapato aperta”? O que é que, em nossa interação com os outros, não apenas torna a psicoterapia possível, mas também, em muitos outros casos cotidianos, abre-nos uma possibilidade de sermos profundamente transformados em nossos encontros com os outros e com a alteridade que nos rodeia, ou seja, muda nosso “modo” de pensar, o “modo” de ver e ouvir, os “modos” de conectarmos eventos, “modo” de falar etc. – enfim, mudanças do tipo de pessoa que somos? O que é isso que torna possível para nós estarmos em “uma situação” em comum com os outros, que aparentemente orienta todos nós às mesmas “coisas” nessa situação compartilhada? Como poderia uma colaboração clara ser possível, isto é, uma forma de colaboração na qual todos os participantes envolvidos atualizariam continuamente o denominador comum que compartilham com os demais?

Para mim, há duas grandes características de nossas expressões: 1) a importância da capacidade de ambas as partes darem uma resposta corporal vívida e espontânea aos envolvidos na situação e à alteridade circundante; 2) o outro lado da mesma moeda: nossa comunicação não deveria acontecer dentro de códigos preestabelecidos de qualquer tipo, nossas expressões não deveriam consistir apenas em formas de expressão deliberadamente escolhidas – pois, como veremos, se os aspectos espontâneos, menos controlados, de nossas formas cotidianas de comunicação forem excluídos, não seremos capazes de atingir plenamente formas colaborativas de interação, não seremos capazes de adaptar nossas formas de comunicação às próprias mudanças que nossa comunicação causa. Assim, pelo menos parcialmente, a abertura para a inclusão do outro deve existir em todas aquelas atividades comunicativas nas quais desejamos colaborar na realização de fins comuns.

Penso que a inclusão dessas formas de demonstrações corporais e espontâneas de expressão é importante, pelo menos pelas quatro razões citadas a seguir:

1. a primeira é a possibilidade de sermos capazes de estabelecer o que vou denominar momentos compartilhados de referência comum com aqueles ao nosso redor;

2. outra é a possibilidade de chegarmos a um senso profundo do modo de ser do outro, de sermos capazes de sentir os movimentos interiores do outro em nós mesmos;

3. uma terceira é a possibilidade de chegarmos a saber “como é” (Nagel, 1974) ser uma pessoa única, que alguém encontra nas situações da vida diária, em seus encontros com os demais ao seu redor, como é o mundo deles;

4. finalmente, a possibilidade de sermos capazes de criar novos e inéditos caminhos para “seguir em frente” nessas situações, movendo-nos assim de relações sociais “imobilizadas” a formas inovadoras de relacionamentos.

Mas o que me sugerem essas quatro razões? O que há de tão especial em nossa responsividade corporal espontânea? Qual o caráter de meu ser, vivente no mundo, tal como eu o percebo dentro de mim: a) o sentido de certo tipo de dificuldade, uma inquietude específica, uma inquietude com uma “forma”, que pode me guiar na formulação explícita da mesma; b) um sentimento que também pode me guiar em minhas explorações de possíveis atividades que podem desempenhar um papel principal na resolução avaliativa do próprio sentimento? São o caráter desses “sentimentos corporais” e seu caráter de “guia” que desejo explorar nas próximas seções, que discutem: “sentido prático”, “estar chocado”, “dificuldades do intelecto e da vontade”, “enunciados” e “ouvir”.

SENTIDOS PRÁTICOS OCORREM NOS MOVIMENTOS DE DESDOBRAMENTO AO NOS ENCONTRARMOS COM OS OUTROS E COM A ALTERIDADE CIRCUNDANTE

Esses “sentimentos guias” primeiro ocorrem a nós, não como contemplação ou teorização – apesar de não sermos capazes de levar a efeito qualquer “movimento interior” em uma se quência racional sem eles2 – mas em nossos encontros práticos e diários com os outros e, também, com a alteridade que nos rodeia. É nos movimentos que ocorrem em nossos encontros com aqueles ao nosso redor que tais sentimentos “moldados” acontecem.

De fato, como Wittgenstein assinalou:

Queremos dizer – quando damos significado a algo, é como se estivéssemos alcançando alguém; não é ter uma imagem estática (de qualquer tipo) (...) Quando alguém dá significado a algo, o significado é o da própria pessoa, assim a própria pessoa está se movendo [grifo meu]. Uma pessoa está correndo adiante e, portanto, não pode observar-se correndo... dar significado a algo é como alcançar alguém (Wittgenstein, 1953, n. 455, 456, 457).

Assim, no meu entender, existem certos momentos cruciais nos afazeres humanos, em nossa atividade, em nossa relação dinâmica com os outros ao nosso redor, quando uma segunda pessoa responde espontaneamente aos enunciados (ou qualquer outro tipo de expressão) da primeira – ambas ouvindo ativamente e replicando responsivamente – em que uma “conexão viva” entre elas pode ser criada, um momento que, segundo Bakhtin (1986), poderíamos chamar de “momento dialógico” – ou como chamei originalmente: momento de “ação conjunta” (Shotter, 1980), e, posteriormente, de “momento interativo” (Shotter, 1993, p. 2). Central para a ocorrência de tais momentos é a capacidade corporal de responder vívida e espontaneamente a ambos: ao outros e à alteridade presente; uma responsividade da qual frequentemente não estamos conscientes, mas que não podemos eliminar totalmente de nós mesmos. Pois, se assim o fizéssemos, seríamos quase incapazes de entender rotineiramente uns aos outros, teríamos que nos submeter a deliberações complexas para tentar “descobrir” cada um dos significados em nossas expressões.

Uma vez que aceitemos a importância do papel de nossa responsividade corporal espontânea ao nosso entendimentos dos enunciados dos outros, começamos então a ver que outro tipo de narrativa – em lugar da frequente narrativa referencial-representacional – é necessária. Nós também precisamos do que eu nomeio como uma narrativa responsivo-relacional.

Nas palavras de Bakhtin (1986):

Todo entendimento real e integral é ativamente responsivo... E o falante é orientado precisamente em direção a tal entendimento receptivo e dinâmico. Ele não espera [grifo meu] um entendimento passivo que, por assim dizer, apenas repita suas próprias ideias na mente do outro (...) Ao contrário, o falante fala com a expectativa [grifo meu] de uma resposta, concordância, simpatia, objeção, execução etc. (p. 69).

De fato, mais do que meramente responder ativamente aos enunciados de alguém – uma resposta dada na expectativa do que será dito em seguida pelo outro –, também os entendemos como sendo pronunciados dentro de uma relação particular conosco. Daí,

“o significado de uma palavra pertence a uma realidade e a uma condição particular de comunicação falada... (assim) não compreendemos o significado de certa palavra simplesmente como um vocábulo de uma língua; ao contrário, assumimos uma posição de resposta ativa com respeito a ela (boa-vontade, concordância ou discordância, estímulo para ação). Portanto, a entonação expressiva [itálico meu] pertence à fala e não à palavra” (Bakhtin, 1986, p. 86).

Isso é crucial, pois é central ao ponto principal do que quero delinear a vocês nesse artigo: a questão do que está na alteridade do outro que pode entrar em nós e nos transformar em “outro” (diferente do que éramos). Mas por hora, quero ficar no âmbito mais geral, dizer algo mais sobre as possibilidades criativas e inovadoras que podem ser detectadas nas ocorrências espontâneas, nos momentos dialógicos em nossa vida e nas interações face a face. Então, expandirei um pouco mais esse conceito, logo adiante.

ESTAR “IMPRESSIONADO”: MOMENTOS EM QUE A ALTERIDADE DO OUTRO ENTRA EM NÓS E NOS TRANSFORMA EM OUTRO

Em nossas interações, algumas vezes, ocorrem eventos que são um pouco diferentes daquilo que normalmente esperamos. Na verdade, frequentemente “marcamos” tais eventos dizendo que eles nos “impressionaram”, “surpreenderam”, “comoveram” ou nos “tocaram”. Wittgenstein (1980) notou a importância de tais eventos como sendo possíveis inícios de novos jogos de linguagem: “A forma original e primitiva do jogo de linguagem é uma reação”, diz ele, “apenas a partir desta, formas mais complexas podem se desenvolver. Linguagem – quero destacar – é um refinamento, “no princípio era o ato” (citando Goethe) (p. 31). “Mas o que a palavra primitiva significa aqui?” Continua ele: “Presumivelmente, que esse tipo de comportamento é pré-linguístico, que o jogo de linguagem está baseado nele, ele é um protótipo de uma forma de pensar e não o resultado do pensamento” (1981, nº 541) – onde “a reação primitiva pode ter sido um vislumbre ou um gesto, mas pode também ter sido uma palavra” (1953, p. 218).

Em outras palavras, o que Wittgenstein está salientando aqui, como Freud, é que pode haver “evidências” sutis nos enunciados do orador que podem dar aos ouvintes uma abertura ao seu mundo interior. Freud, como é sabido, acreditava que as palavras nas quais os clientes emudeciam, quando pedido que fizessem associações livres, eram palavras indicativas de conflitos em suas vidas.

É sobre seguir o que é realmente expresso em nosso enunciar uma palavra, ou sequência de palavras, que eu quero falar aqui. Quero tentar focar no que pode ser ouvido em nossas palavras em seus pronunciamentos, não no que pode ser entendido (como nos estudos linguísticos), partindo do exame de padrões das palavras já ditas. Porém, com certeza, focar nos “contornos temporais” únicos dos “sentimentos mais profundos” despertados em nós em consequência dos pronunciamentos alheios não é tarefa fácil. Como veremos, isso requer um tipo especial de disciplina. Pois precisamos nos ater mais aos eventos que ocorrem nos “bastidores” do que aqueles realizados “no palco” deliberadamente; esses eventos de fundo, ocorrendo geralmente fora de nossa consciência, são de fato o que tornam possíveis nossas atividades mais deliberadas. Essa é uma disciplina muito diferente daquela em que fomos treinados desde a mais tenra infância no mundo ocidental.

Por exemplo, ao aprendermos padrões numéricos, ou posteriormente, teoremas de geometria euclidiana e equações algébricas, somos treinados em certo modo de raciocínio baseado em “ver” que dois (ou mais) padrões formais são idênticos, mesmo localizados em lugares e tempos diferentes. Esse é um estilo de raciocínio que nos treina no desenvolvimento de um sentido do que seja a certeza formal. Consequentemente, se posteriormente nos voltamos à filosofia, achamos bem “natural” aceitar o apelo de Descartes (1968) de uma certeza autoevidente e de sua resolução de “não estudar nenhuma outra ciência que não aquela que ele pudesse encontrar dentro de si mesmo ou em algum outro lugar no grande livro do mundo” (p. 35). De fato, onde mais poderíamos olhar para as fundações de nosso conhecimento e entendimento, senão em nós mesmos (subjetivamente) ou no mundo (objetivamente)?

Assim, contra esse tipo de fundamento, em que tal certeza parece possível, a reivindicação de Wittgenstein – (1969) “quero aqui considerar o homem como um animal... Como um criatura em estado primitivo... A linguagem não emerge de algum tipo de raciocínio” (nº 475), mas em uma forma de atividade muito mais caótica e descentralizada, uma forma que ocorre apenas entre pessoas em seus encontros – parece ser um grande afastamento da razão.

Mas penso que isso é o que devemos fazer. Devemos entender nossas habilidade mais autoconscientes como construções sociais, como realizações que somente podemos alcançar com a ajuda de outros, realizações que temos que lutar para alcançar continuamente – por “outra primeira vez” como colocado por Garfinkel (1967, p. 9) – em cada situação nova e particular na qual nos encontramos.

Portanto, se formos seguir Wittgenstein, devemos considerar aqueles aspectos de nossas atividades diárias que estão sempre presentes, mas desapercebidos nos bastidores, aqueles que “criam o cenário”, por assim dizer, para todos nossos atos mais conscientes e intelectuais. E fazer isso preferencialmente sem olhar para dentro e para trás em direção ao passado (com o propósito de compreender suas causas); se quisermos entender como estes aspectos operam, devemos olhar para fora e adiante, em direção à possibilidade de criarmos responsivamente, entre nós, em nossos atos mais espontâneos e não deliberados, maneiras de “seguirmos adiante” juntos, de forma que nossos atos mais intelectuais e conscientes possam ser entendidos pelos outros ao nosso redor. Esse trazer para o primeiro plano de nossas considerações intelectuais, seus frequentemente desapercebidos bastidores, a meu ver, constitui uma das maiores realizações de Wittgenstein.

DOIS TIPOS DE DIFICULDADES: DIFICULDADES DO INTELECTO E DIFICULDADES DA VONTADE

De fato, como consequência da visão de Wittgenstein (1980), há dois tipos muito diferentes de dificuldades que podemos encarar em nossa vida: dificuldades do intelecto e dificuldades da vontade (p.17). Podemos formular dificuldades do intelecto como problemas que, com a ajuda de teorias pertinentes, podemos resolver através do raciocínio. Entretanto, dificuldades da vontade são bem diferentes. Pois tem a ver com o modo de nos orientarmos corporalmente em relação aos eventos que ocorrem ao nosso redor, como nos relacionamos com eles, como os vemos, ouvimos, experimentamos e avaliamos; pois esses são meios que determinam, “que dão forma”, as linhas de ação que posteriormente resolvemos seguir. Mas devemos fazer tudo isso enquanto ainda estamos agindo, em movimento. Tão logo paramos de nos mover em relação a um ou outro propósito em nosso entorno, nossas relações com o meio ambiente deixam de ser estruturadas por metas e objetivos implícitos em nossos movimentos e se tornam estruturadas por isso, aquilo ou qualquer outro tipo de pensamento – assim substituindo um sistema muito diferente de valências organizacionais.

Essa distinção não é fácil de apreender, pois as diferenças entre dificuldades de orientação e de intelecto não podem ser compreendidas formalmente, só podem ser assimiladas na prática, com critérios práticos. Wittgenstein (1980) chama esse dois tipos de dificuldades de dificuldades do intelecto e dificuldades da vontade, respectivamente:

O que torna um tema difícil de entender... não é o fato de que antes de entendê-lo você tenha que ser treinado em obscuras disciplinas, mas o contraste entre entender o tema e o que a maioria das pessoas quer ver... O que tem de ser superado é uma dificuldade que tem a ver mais com a vontade do que com o intelecto (p.17).

Assim, como coloca Wittgenstein, o que pretende a filosofia (em seu tipo de prática) não é prover qualquer nova informação, mas transformar a pessoa dentro de si mesma, mudar “o modo como ela vê as coisas. (E o que a própria pessoa espera delas) (1980, p. 16)”.

Desse modo, se essas mudanças não podem ser realizadas apenas dando boas razões para a adoção de novas crenças, por meio e argumentação, como alguém pode ser mudado? A pessoa tem que ser mudada em seu próprio ser, e isso só pode ser feito ao ser “movida” por outro ou pela alteridade, de forma que uma pessoa é incapaz de mover-se por si só3. Como elegantemente apontou Steiner (1989): “A Alteridade que entra em nós transforma-nos em outro (p. 188).”

Como consequência de nossa capacidade e vívida responsividade corporal ao que acontece a nossa volta, aspectos de nossos enunciados (e outras expressões responsivas) podem ser “moldados por influências de nossa situação imediata, bem como por aquelas que também incorporamos de nossas experiências passadas. Como enunciado por Voloshinov (1986), em tais momentos dialógicos, “a situação social imediata e o meio social circundante determinam totalmente – e determinam desde dentro destes – a estrutura do enunciado” (p. 86, grifos do autor) – o centro organizador não está nem totalmente dentro da psique do indivíduo, nem dentro do sistema linguístico, toda e cada uma das palavras expressam o “alguém” em relação ao outro. Usa-se uma determinada forma verbal sob o ponto de vista de outra pessoa, no fim, sob o ponto de vista da comunidade a que se pertence (p. 86). Como consequência, o ambiente em redor – ou os seus bastidores4 – devem ser levados em conta como “ambientes determinantes”, no sentido de que nossas respostas ocorrem inevitavelmente dentro deles, eles exercem uma “força” sobre nós para dar uma resposta a eles de um maneira “adequada”.

NOSSOS ENUNCIADOS MANIFESTAM O CARÁTER DE SEU MEIO-AMBIENTE NOS CONTORNOS TEMPORAIS DE SEUS DESDOBRAMENTOS: CONSTRUINDO UMA SITUAÇÃO COMPARTILHADA

Voloshinov (1987) nos dá um bom exemplo da profundidade e da complexidade existente na expressão de uma só palavra, e o caráter relacional que pode ser alcançado5. Ele descreve uma situação na qual duas pessoas estão sentadas em uma sala. Ambas em silêncio. De repente uma diz: “Bem”, com uma forte entonação. A outra nada responde.

Como nota Voloshinov, para nós, que estamos fora da cena, toda essa “conversa” é uma declaração opaca. Considerada em si mesma a exclamação “Bem” é em si mesma vazia e ininteligível. Entretanto, para as duas pessoas nela envolvidas, a simples palavra com sua entonação expressiva faz todo o sentido, é carregada de significado e se torna um enunciado completo. Como assim?

Quando esse enunciado foi feito, os dois russos envolvidos olharam através da janela e viram que havia começado a nevar, ambos sabiam que já era maio, portanto tempo do começo da primavera e, por fim, ambos estavam enjoados e cansados do longo inverno – ambos esperavam a primavera e ficaram amargamente desapontados com a nevasca tardia.

Na visão conjunta (neve do lado de fora da janela), no saber conjunto (mês do ano – maio) e na avaliação unânime (o final de inverno, a esperança da primavera) – de todo esse conjunto depende diretamente a declaração feita; isso tudo é apreendido em seu real significado – de fato, é seu próprio fundamento. E, mesmo assim, tudo isso permanece sem uma declaração verbal ou articulação. Os flocos de neve continuam do lado de fora da janela; a data, na página do calendário; a avaliação, na psique do falante, e, não obstante, tudo isso é presumido na palavra Bem (Voloshinov, 1987, p. 99).

Mas qual a importância de tal enunciado, o que foi realizado ao fazê-lo?

É óbvio que isso não reflete, descreve ou representa acuradamente de forma alguma a situação extra verbal entre os dois russos. Mesmo assim, ela atinge algo de grande importância. Como Voloshinov (1987) tão bem observou, o enunciado “resolve a situação ao trazê-la a uma conclusão avaliativa, digamos assim” (p. 100), e, ao fazê-lo, ela une os participantes da situação como coparticipantes que sabem, entendem e avaliam a mesma de igual modo – ainda que o ouvinte expresse sua concordância permanecendo em silêncio!

Em outras palavras, ao invés de atingir-se algo representacional e intelectual em cada um dos envolvidos separadamente, o enunciado chegou a algo relacional e corporal em ambos; opera para a criação de uma orientação compartilhada em direção a uma situação igualmente compartilhada – um momento de referência comum. Ambas as personagens agora sabem que sentem o mesmo em relação à situação, eles a compartilham, para esse efeito, podem compartilhar as várias expectativas de cada um em relação às ações do outro nessa situação comum.

De fato, se alguém responde a outrem de uma maneira sensível às relações entre seus atos e os do outro, de modo que ambos possam agir em antecipação à resposta da outra pessoa, então podemos dizer, com certo grau de acerto, que existe uma confiança entre os envolvidos. Mas, se a segunda pessoa sentir que a primeira tem uma agenda própria, então não só ficará ofendida eticamente com a falta de respeito da primeira por ela, mas também ficará ofendida eticamente pela falta de consideração da mesma em relação ao projeto comum de ambas (Goffman, 1967).

Portanto, longe da situação extra verbal ser meramente uma causa externa para o enunciado – digamos, por exercerem um impacto nos falantes – essa situação “entra no enunciado”, nota Voloshinov (1987), “como um constitutivo essencial da estrutura de seu significado” (p.100). As situações extraverbais se introduzem nos enunciados ao influenciar a entonação da voz ao dizer “Bem”. De fato, o falante poderia igualmente não ter pronunciado nenhuma palavra, apenas bufado. Em outras palavras, em geral, a influência de interesse para nós, é um influência exercida, repetindo, não em um padrão de palavras já expressas; é no desdobramento temporal dos contornos das palavras ao serem ditas. Assim, para Voloshinov (1986),

o fator constituinte para uma forma linguística como o signo não é sua identidade própria como sinal, mas sua variabilidade específica, e o fator constituinte para o entendimento da forma linguística, como para o signo, não é o reconhecimento de sua identidade como sinal, mas sua variabilidade específica; e o fator constituinte para compreender a forma linguística não é o reconhecimento ‘da mesma coisa’ mas compreender no próprio sentido da palavra, isto é, orientação em um dado contexto particular, e na situação – orientação particular dada, isso dentro do processo dinâmico de tornar-se e não ‘orientação’ como algum estado inerte (p. 69, ênfase minha)

ou seja, uma variabilidade manifestada nos contornos temporais únicos de um enunciado, como ele se desenvolve responsivamente no tempo6.

Mas como pode o desdobramento dos contornos temporais dos enunciados de alguém funcionar, não apenas para atingir tal compartilhamento avaliativo de uma situação, mas também expressar a relação da pessoa com suas próprias expressões – devem ser elas tomadas seriamente, tratadas como meras sugestões ou mesmo ser ridicularizadas? E mais, em situações nas quais nossas conversas não são mescladas com aspectos de um contexto compartilhado, mas nas quais apenas conversamos uns com os outros – salas de reunião acadêmica, de conferências corporativas ou em psicoterapia e nada mais além disso, ainda é possível ganharmos um sentido amplo do mundo invisível de outra pessoa e de sua relação com o mesmo, pelo modo como esta fala, suas pausas e entonação?

Caso possível, em que tipo de mundo deveríamos viver para que tais acontecimentos sejam possíveis, para que os contornos temporais das expressões pessoais funcionem e infundam em nós tais efeitos?

Assim, se for o caso de (pelo menos em alguns aspectos) todas as nossas atividades serem, em certa medida, “moldadas” pela responsividade corporal intrínseca às características únicas do contexto circundante, então qualquer apreciação que não leve isto em consideração – qualquer apreciação motivada por métodos prontos ou “entrevistas” conduzidas de acordo com “agendas” pré-estabelecidas – perderão inevitavelmente aspectos importantes de nossas atividades. Aliás, perderão justamente aqueles aspectos que tornam as atividades humanas e suas declarações, únicas, tanto para as pessoas envolvidas quanto para a situação em que se encontram. Falharão em fazer justiça ao que uma pessoa quis significar ao dizer algo, o “ponto” dela, o que estava tentando realizar naquele momento particular no tempo e no espaço – uma falha ética não apenas no aspecto total de como e o que expressou em seus enunciados, mas, como veremos, uma falha também em manter o sentido de um “nós”, de um nós-coletivo, de todos aqueles envolvidos na comunicação em tela, sermos influenciados do mesmo modo pelos mesmos “ambientes determinantes”.

OUVINDO AMBOS: “QUEM” ESTÁ FALANDO E “DE ONDE” ESTÁ FALANDO, NO DESDOBRAMENTO DOS CONTORNOS DOS ENUNCIADOS PESSOAIS

Todos os comentários anteriores, como espero que esteja se tornando claro agora, começam a nos orientar no uso da linguagem de um modo diferente daqueles mais comuns, ou seja, os relatos referenciais-representacionais. Em conjunto, esses comentários começam a sugerir que podemos ouvir nos enunciados pessoais, à medida que ocorrem, qual a concepção de mundo adotada por cada pessoa. Porém, mais que isso, podemos ouvir como cada um se relaciona, de maneira única, com essa visão e como esta permeia e molda a entonação de suas declarações. De fato, podemos “ouvir” sua luta para achar seu “caminho” singular – ainda que, “por outra primeira vez” (Garfinkel, 1967, p. 9) – nas pausas, hesitações e outras “perambulações” reveladas em seus enunciados. Mas, deixem-me enfatizar mais uma vez, todos esses aspectos dos pronunciamentos pessoais são largamente ditos como um aspecto da responsividade vívida de nossos corpos aos outros e à alteridade ao redor de nós.

Como uma consequência, essa fonte de atividades vívidas, espontaneamente responsivas, constituem o bastidor mutante das próprias atividades, do qual mais atividades deliberadamente conduzidas podem brotar, e para o qual seus resultados podem retornar – o que chamei anteriormente de ambiente determinante de nossas atividades. Sendo esse o caso, as consequências são extraordinárias! Significa dizer que todo enunciado contém em si a “recíproca” das circunstâncias particulares na quais foi proferido pelo falante. Assim, enunciados escritos (ou registrados de algum outro modo) podem também, em seu estilo, manifestar aspectos das circunstâncias nas quais poderiam ter sido originariamente feitos. Portanto, se soubermos como ouvi-los ou lê-los, poderemos ouvir nos enunciados escritos ou gravados – se não a condição real ou original que os moldou em seu falar ou escrever –, pelo menos, as situações humanas possíveis de seu uso.

Merleau-Ponty (1962) fez alguns comentários similares ao dizer que nas conversas diárias e espontâneas, o ouvinte não necessita interpretar os enunciados do falante para apreender seus pensamentos, pois “o ouvinte recebe o pensamento da própria fala” (p. 178). Ele está presente na maneira em que os falantes “moldam” os seus proferimentos. Assim, o “significado conceitual” das palavras

deve ser formado por um tipo de dedução de um significado gestual, que é imanente à fala. Como em um país estrangeiro, começo a entender o significado das palavras através de seus lugares no contexto das ações e ao tomar parte na vida comunitária7 (p. 179).

Na verdade, devemos nos perguntar: que tipo de pessoa, em que tipo de situação, para que tipo de pessoa, por qual razão, diria tais coisas? Isto é, o que está sendo feito com o uso dessas palavras, qual é o seu objetivo, onde as pessoas quererem chegar ao usar as palavras dessa forma? O autor sugere que se pudermos fazer isso, se pudermos reproduzir o tom e a ênfase do falante, poderemos começar a sentir nosso caminho ao interior de sua visão existencial, o modo como os falantes estão usando suas palavras. Podemos iniciar nosso entendimento de suas palavras em termos de seu papel num contexto particular de ação. De fato, toda nossa fala (e escrita) carrega seu significado relacional em seu tom. Merleau-Ponty conclui: “Assim, há no homem – tanto naquele que ouve ou lê, como naquele que fala e escreve – um pensamento no discurso cuja existência é insuspeitada pelo intelectualismo (Merleau-Ponty, 1962, p. 179).


CONCLUSÕES

O que é central a tudo dito anteriormente, portanto, é nos afastarmos da ideia de comunicação falada como sendo um processo de transmissão de informação, do falante como fonte de informação, da fala como sendo um código comum no qual as ideias são colocadas, e do ouvinte com mero decodificador, cuja tarefa é chegar ao pensamento do emissor. Esse “modelo” de processo comunicativo elimina o papel dos dois maiores elementos da comunicação: 1) a responsividade expressiva, viva e espontânea de nossos corpos, relegando os ouvintes ao papel de ouvintes passivos – nessa situação, “o papel ativo do outro no processo da comunicação falada é (...) reduzido a um mínimo” (Bakhtin, 1986, p. 70); 2) o segundo é o papel do que chamei de “meio determinante” de nossas declarações, o ambiente (frequentemente invisível) ao qual respondemos espontaneamente ao nos expressarmos; por um lado, ele molda não apenas a entonação da fala, mas também todo o estilo, a escolha de palavras, de metáforas etc. O meio nos orienta em direção ao “lugar” de nossos enunciados em nosso mundo, ao local onde deveriam estar localizados ou aos seus aspectos relevantes e em direção ao ponto – ou seja, o que as pessoas estão tentando “construir” ao falar do modo que o fazem.

Em outras palavras, é crucial trazermos de volta nossas palavras de seu uso “de livre flutuação” – seja em comitês, seminários, psicoterapia, planejamento estratégico nos negócios, internet ou em conversas triviais na sala de espera – para o seu devido uso dentro de um “meio determinante” compartilhado. Ou seja, isso é crucial caso queiramos entender como as “variabilidades específicas” nas expressões do falante são expressivas tanto de seu “mundo interior” único, como do “ponto” único que quer ele enunciar, a respeito de seu mundo.

De fato, esse é exatamente o ponto exposto por Wittgenstein (1953) ao propor:

Quando os filósofos usam a palavra – “conhecimento”, “ser”, “objeto”, “eu”, “proposição”, “nome” – e tentam apreender a essência da mesma, deve-se sempre perguntar: essa palavra é usada realmente desse jeito no jogo da linguagem que é seu lar original? O que fazemos é trazer as palavras de volta de seu uso metafísico para o seu uso diário (nº 116).

Pois, como concluiu, todas essas “grandes palavras”, como poderíamos chamá-las, permanecem indeterminadas e vazias – e assim, abertas a um sem fim de interpretações e argumentos filosóficos – quando afastadas de seu lar das circunstâncias do dia a dia.

Pois é apenas quando nossas palavras estão em casa, no ambiente determinante de seu uso diário, que podemos expressar nossa verdadeira identidade como indivíduos únicos que somos ou que podemos ser – qualquer requerimento que nos expressemos apenas dentro de códigos estabelecidos é uma limitação de quem somos ou podemos ser. E é nossa vívida abertura às variações específicas nas expressões dos outros que podem permitir que a sua alteridade entre em nós e nos torne outros, além do que já somos.





Referências

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1 Texto publicado no International Journal of Collaborative Practices, 1 (1)2009:31-39.

2 William James (1890) abordou essa questão muito elegantemente há mais de 100 anos, em um capítulo do seu famoso: “The stream of though.” A verdade é que uma grande parte do discurso humano não são nada mais além de signos de direção no pensamento, da qual temos um sentido discriminativo apurado, no entanto, o pensamento não desempenha qualquer papel definitivo ou desenvolve uma imagem sensorial... Se tentarmos nos agarrar ao sentimento de direção, a presença plena vem e o sentimento de direção é perdido... Agora, a razão pela qual contendo é, com inúmeros exemplos para mostrar, que “tendências” não são apenas descrições vindas de fora, mas estão entre os objetos da corrente, que, assim, está ciente delas interiormente, e devem ser descritas em larga escala como constituídas de sentimentos de tendência, geralmente tão vagos que somos incapazes de nomeá-los todos” (James,1890, pp. 253-254). Minha sugestão é que não é apenas a corrente de pensamento, que o autor descreve como sentimento de tendência, mas todos as nossas atividades diárias.

3 Em outro lugar, Arlene Katz e eu (Katz & Shotter, 1996, 1998, 2004) desenvolvemos uma abordagem abrangente do questionamento social, que chamamos de métodos de um poética social, construído sobre o “estar chocado com” a ocorrência de certos eventos.

4 “Talvez o que é inexpressível (o que eu acho misterioso e incapaz de expressar) é o bastidor que tem o seu significado, apesar de qualquer coisa que eu possa expressar (Wittgenstein, 1980, p.16).”

5 Sigo aqui o texto de Voloshinov bem de perto.

6 “Nos aspectos práticos do falar vivo, a consciência linguística do falante e do ouvinte-entendendor, não estão de forma alguma preocupadas com o sistema normativo abstrato das formas idênticas da linguagem, mas com a linguagem falada, no sentido do agregado de possíveis contextos de uso de um forma particular linguística. Para uma pessoa falando seu idioma nativo, a palavra se apresenta não como um item do vocabulário, mas como uma palavra que tem sido usada em uma variedade cofalante A, B, C etc., e também tem sido utilizada de diversas formas pelo próprio falante. Um tipo muito especial e específico de orientação é necessário, caso um indivíduo faça o caminho inverso em direção a uma palavra idêntica pertencente ao sistema léxico da língua em questão – a palavra dicionarizada” (Voloshinov, 1986, p. 70).

7 Deixe-me enfatizar aqui que por significado gestual Merleau-Ponty (1962) quer chamar nossa atenção ao que chamei de “meios determinantes” de nossas declarações, o “contexto particular da ação” no qual eles primeiramente apareceram. Quando fazemos isso, ou seja, quando trabalhamos inversamente, partindo da declaração até a situação particular na qual ela deva (ou possa) ter ocorrido, então descobrimos que o significado das declarações mais “livres de flutuação” dos indivíduos se tornam claras para nós. Assim: “Do mesmo modo”, continua Merleau-Ponty (1962), “como uma peça ainda imperfeitamente entendida, um escrito filosófico revela um certo ‘estilo’ – quer seja spinozista, criticista ou fenomenológico – que se torna o primeiro indicador de seu significado. Começo a entender a filosofia ao sentir meu caminho em direção ao sua maneira existencial, por reproduzir o tom e a ênfase do filósofo” (p.179).

I John Shotter  (1937-2016): Professor emérito de Comunicação na Universidade de New Hampshire, EUA.

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