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Nova Perspectiva Sistêmica

Print version ISSN 0104-7841

Nova perspect. sist. vol.26 no.57 São Paulo Apr. 2017

 

ARTIGOS

 

Caminhando no contexto das práticas colaborativas e narrativasexperiências profissionais transformadas

 

Walking in the context of collaborative and narrative practicesTransformed professional experiences

   

 

Camila Martins LionI

 

 

 


RESUMO

Este artigo oferece conceitos básicos das práticas colaborativas, narrativas e narrativas coletivas, convidando o leitor ou leitora a caminharem por esses conteúdos, bem como pelo cenário de relatos de experiências profissionais que foram transformadas a partir do momento em que se fundamentaram nessas práticas supracitadas. A partida inicial da caminhada se dá por uma breve explanação acerca da pós-modernidade e depois percorre as premissas das práticas escolhidas. No cenário das experiências profissionais é possível perceber o quanto essas práticas pós-modernas colaboraram na ampliação dos diálogos, bem como na construção de narrativas mais ricas e de novas possibilidades do ser profissional. Um dos desejos desse artigo é de que essa caminhada teórica e prática possa também estimular o descobrimento de novos caminhos a serem percorridos em busca de ajudar pessoas a reescrevem suas histórias de vida.

Palavras-chave: pós-modernidade, práticas colaborativas, terapia narrativa, experiência profissional.


ABSTRACT

This article offers basic concepts of collaborative practices, narratives and collective narratives, inviting the readers to walk through these contents, as well as the scenario of professional reports experiences that were transformed from the moment they were based in these practices. The initial walking point is given by a brief explanation about postmodernity and then goes through the premises of the chosen practices. In the professional experiences scenario it is possible to notice how much these postmodern practices collaborated to the dialogues expansion, as well as in the construction of richer narratives and new possibilities of the professional being. One of the desires of this article is that this theoretical and practical journey can also stimulate the discovery of new paths to be traveled in order to help people rewrite their life stories.

Key Words: postmodernity, collaborative practices, narrative therapy, professional experience.


 

 

Considerando-se o grande guarda-chuva da pós-modernidade (Anderson, 2007) e as diferentes práticas que ele abarca, proponho neste artigo apresentar as práticas colaborativo-dialógicas, narrativas e narrativas coletivas. Reconhecendo que essas práticas têm conquistado espaços importantes na atualidade e que, apesar de suas distinções, estão inter-relacionadas ao compartilharem as mesmas premissas sobre a construção social da linguagem, do conhecimento, da identidade e das relações interpessoais.

Além disso, apresentarei exemplos do uso dessas práticas no cenário do meu contexto profissional. Cabe salientar que o intuito não é o de apresentar modelos de conversações a serem seguidos, visto que apresentar guias não se enquadra nas ideias centrais dessas práticas como será explicitado ao longo de todo o texto. O objetivo é convidar o leitor ou leitora a experienciar essa caminhada guiada por esse “guarda-chuva”, que levará a diversos caminhos que podem enriquecer a relação e a conversação com os clientes, ampliando suas possibilidades de ser e estar no mundo. Ao caminhar na leitura, fica o convite de se ampliar as possibilidades de se coconstruir novos e ricos caminhos que transformem sua prática profissional.

Conforme citado anteriormente, a nossa caminhada será guiada pelo guarda-chuva da pós-modernidade, que constitui correntes de pensamentos que são distintos, porém se assemelham em algumas premissas centrais. É possível mencionar que a ciência pós-moderna é um processo recente que vem sendo construído na atualidade e que portanto, está aberto para definir seus contornos. De modo simplificado, ela visa questionar as metanarrativas já existentes, estimulando assim a problematização de verdades absolutas, bem como a construção e/ou compreensão da existência de uma multiplicidade de verdades a respeito de algo. O discurso pós-moderno convida a legitimação das diferentes possibilidades de narrar o mundo, enfatizando a importância dos efeitos dessas narrativas na construção de ser e estar vivendo ao invés da descrição do que ele realmente representa (Moscheta, 2014).

A perspectiva pós-moderna se difere muito do pensamento moderno, pois este último acredita que a linguagem é apenas o “veículo” que transmite o conhecimento que foi produzido como sendo uma descrição de verdade e tendo como ideia que a realidade é separada do observador, garantindo assim sua neutralidade. Já a postura pós-moderna discursa que o conhecimento é construído socialmente pela linguagem nas relações interpessoais experienciadas, sendo assim a linguagem acaba ocupando um eixo central nessa postura por constituir a realidade (Sáez, 2006; Anderson, 2012; Moscheta, 2014).

 

CAMINHANDO NO TERRITÓRIO DAS PRÁTICAS COLABORATIVO-DIALÓGICAS

Nesse momento, vamos adentrar no território das Práticas Colaborativo-Dialógicas, que foram desenvolvidas por Harlene Anderson e Harry Goolishian em meados dos anos 1970. É o convite para sermos arquitetos do diálogo ao oferecer contextos que favoreçam o “estar com” e que tenham como compromisso as relações acolhedoras, empáticas e colaborativas, bem como os diálogos que ampliam possibilidades e criatividade diante dos dilemas narrados no contexto conversacional. Para Shotter (1993 apud Anderson, 2012) o “estar com” significa ser espontaneamente sensível a outra pessoa e aos eventos que vão sendo apresentados no momento atual da conversação, desse modo, é um conhecer e atuar no aqui e agora.

Nessas práticas, os sistemas humanos passam a serem vistos como sistemas linguísticos que geram linguagem e significado com o intuito de organizar e dissolver problemas. A fim de favorecer a coconstrução de diálogos transformadores e relações colaborativas, essas práticas nos presenteiam com alguns princípios e recursos que facilitam esse processo conversacional e relacional, tal como escrito por Anderson (2012), London (2015) e Sáez (2006).

Parceiros Conversacionais: desde o primeiro encontro, o cliente e o profissional se tornam parceiros, e juntos caminham pelo campo das conversas dialógicas e coconstroem relacionamentos colaborativos. É um processo com via de mão dupla em que ambos se indagam mutuamente e juntos desenvolvem o novo em uma relação que lembra a do hóspede e do anfitrião, em que é necessário ter acolhimento e amabilidade.

O cliente é o especialista: no diálogo colaborativo, o cliente ocupa o lugar de especialista, por reconhecer que é ele quem possui o saber a respeito dos conteúdos de sua vida. O profissional se torna o especialista em favorecer o processo de conversação e relacional. Ele não nega sua expertise, contudo seu enfoque está no “saber como” favorecer um diálogo transformador que amplie as possibilidades de vida.

Postura do não saber: ao iniciar uma conversação, o profissional assume uma postura de curiosidade genuína pelas histórias relatadas pelo cliente, deixando de lado a ideia de que está compreendendo tudo o que está sendo dito e assumindo um papel de checar no decorrer da conversação se sua compreensão condiz com a apresentada pelo cliente. Deste modo, o saber do profissional não é apresentado como sendo a verdade ou até mesmo como sendo o melhor caminho a seguir, ele apenas oferece seus pensamentos, ideias, comentários como sendo uma forma de ampliar a conversação, porém pode ser descartado ou até mesmo questionado pelo cliente caso não faça sentido para ele.

Ser público: em um diálogo aparecem com certa frequência pensamentos em quem escuta a narrativa do outro. Ser aberto condiz em tornar esses pensamentos visíveis ao cliente a fim de ampliar as possibilidades da conversação, podendo prevenir que o profissional não construa um monólogo ao ficar conectado com seus pensamentos internos sem compartilhá-los.

Transformação mútua: por meio do processo conversacional, as transformações são conquistadas. Não é o terapeuta que transforma o cliente. Ele favorece um contexto que possibilita diálogos transformadores e “no decorrer desse processo, tanto o cliente como o terapeuta são formados, re-formados e transformados” (London, 2015, p.27).

Viver com incerteza: as conversações dialógicas colaborativas são coconstruídas no momento em que o diálogo acontece. Dessa forma, não é possível programar previamente os caminhos que serão percorridos. É no caminhar junto com o cliente que a conversação emerge e se transforma. Conversar colaborativamente é percorrer o território das incertezas. A preocupação principal é estar inteiramente com o outro nesse processo, com uma escuta atenta e não apenas com as perguntas e respostas que serão oferecidas.

Olhar para o cotidiano: busca-se estabelecer diálogos e relações que se assemelham as que estabelecemos no nosso cotidiano, porém não se equivale às amizades devido a terem a finalidade de auxiliar o cliente que busca ajuda. As dificuldades mencionadas pelos clientes não são vistas como sendo maiores, menores ou passíveis de serem patologizadas. São vistas como dilemas que fazem parte da vida cotidiana e que podem ser dissolvidos.

As práticas colaborativas e dialógicas, como apresentado, enfatizam os processos conversacionais e relacionais, bem como a multiplicidade de vozes que emergem desses diálogos e que enriquecem as possibilidades de transformar os dilemas. Como alguns exemplos de práticas que fazem uso desses princípios aqui citados, Gergen e Gergen (2010) e Grandesso (2005) citam:

• Projeto de Conversações públicas (PCP): diante de vivências em contextos de discussões violentas acerca do dilema do aborto, um grupo de terapeutas de família de Boston construiu uma proposta que convidava ao diálogo sem ataques de violência ou julgamentos. Nesse diálogo, são convidadas principalmente narrativas acerca de experiências pessoais que conectam cada participante a questão do aborto, a fim de favorecer a compreensão mútua. Em seguida, cada participante é estimulado a falar sobre aspectos de incertezas que aparecem em seus argumentos de posicionamento que são denominadas “áreas cinzentas”. Todo esse diálogo conjunto acaba resultando em possibilidades de desintensificar o conflito e de se construir soluções criativas. Essa prática teve início na questão do aborto, porém pode ser utilizada em outros contextos de diálogos que envolvam posicionamentos polarizados (Gergen & Gergen, 2010).

• Investigações apreciativas – IA (“Aprecciative Inquiry”- A.I.): essa prática se originou no contexto organizacional, ambiente que costuma estar repleto de problemas. Acreditando que focalizar nossa atenção nos problemas individuais favorece um olhar depreciativo para consigo mesmo e os colegas, bem como um sentimento de desesperança em relação ao futuro, David Cooperrider e outros especialistas organizacionais desenvolveram essas práticas de investigação, que busca estimular o compartilhamento do olhar apreciativo dentro das organizações. Ou seja, para que se olhe para as coisas que estão funcionando bem e para experiências passadas de superação buscando dissolver os efeitos dos problemas em prol da construção de um futuro melhor (Gergen & Gergen, 2010).

• Terapia comunitária integrativa (TCI): consiste em um modelo estruturado em etapas /e desenvolvido por Adalberto Barreto, originado em contextos comunitários. O seu enfoque é fortalecer as redes sociais solidárias, bem como favorecer a valorização do olhar para as capacidades e não para as deficiências das pessoas, promovendo assim o empoderamento das mesmas e o desenvolvimento da autoestima e da resiliência. Ela possibilita um trabalho em grandes grupos e necessita de facilitadores capacitados e supervisionados (Grandesso, 2005).


CAMINHANDO PELOS HORIZONTES DAS PRÁTICAS NARRATIVAS E NARRATIVAS COLETIVAS

Penso que as práticas narrativas desenvolvidas por Michael White e David Epston nos anos 1980 nos convidam a caminhar em uma mina de pedras preciosas ao escutar e dialogar com as pessoas. Geralmente, quando as pessoas buscam o auxílio de um profissional, apresentam narrativas dominantes saturadas de problemas, assim como quando entramos em uma mina e primeiramente enxergamos apenas as rochas. Ao longo do diálogo, o profissional com questionamentos começa a estimular a coconstrução de histórias alternativas, que trazem consigo conteúdos de superação, habilidades, criatividades e possibilidades de dissolver os dilemas. Nesse momento, é como se, juntos, profissional e cliente começassem a assumir o papel de garimpeiros, explorando a mina, peneirando as rochas em busca de preciosidades que antes estavam escondidas na mina e nas narrativas de vida do cliente. Colaborativamente vão definindo os caminhos a serem percorridos e descobertos.

Os dilemas são compreendidos como sendo existentes na linguagem e não como parte da pessoa. Eles são identificados nas histórias dominantes, que narram eventos que enfatizam os problemas e acabam afetando as decisões e planos que possuímos (Morgan, 2007; Grandesso, 2008). As conversas narrativas buscam trazer à tona as histórias alternativas, que são compostas de eventos ausentes de problemas e repletos de habilidades, valores, crenças, competências, características essas que podem ir reduzindo os efeitos dos problemas em nossa vida e em eventos futuros. É um processo de resgatar as identidades que antes eram dominadas pelos problemas.

As narrativas são como fios de linhas que vão se entrelaçando e tecendo diversas histórias sobre a nossa vida e sobre nós mesmos (Morgan, 2007). A vida é compreendida como sendo multi-historiada e são essas histórias que compõem os sentidos das nossas experiência e identidade. Elas são construídas social e culturalmente e aos poucos vão sendo apropriadas em nossas narrativas (White, 2012). Como define lindamente Barbara Wingard (2001 apud Denborough, 2008), as práticas narrativas colaboram para que as pessoas consigam contar suas histórias de uma forma que se sintam mais fortes.

Histórias contadas são compostas por descrições da nossa vida e de nossa identidade. Entende-se que elas podem ser descritas de forma estreita ou rica. Quando se narra uma história com descrição estreita geralmente ela é limitante e depreciativa, por não apresentar muitas possibilidades para o indivíduo que acaba não reconhecendo suas habilidades e possibilidades de construir um futuro diferente do que está vivendo. É como se ele estivesse em contato mais com suas fragilidades que potencialidades (Grandesso, 2008). Essas descrições surgem das histórias saturadas de problemas, e, quanto mais forte elas são, mais poderosas elas se tornam para influenciar na construção das novas experiências. As descrições ricas são opostas, elas trazem consigo o resgate de potencialidades, habilidades e possibilidades que ficam “escondidas”, colaborando no empoderamento do indivíduo e na construção de um olhar apreciativo acerca de si mesmo e de sua vida (Morgan, 2007).

Michael White (2012), influenciado pelas ideias de Vygotsky, menciona que a construção dos diálogos narrativos são “conversações de construção de andaimes”. Ele acredita que quando as pessoas lidam com seus dilemas, ao enfrentá-los, fazem uso de recursos internos e sociais que já são familiares, sem conseguir muitas vezes encontrar novas possibilidades de compreender e agir. Assim sendo, nas práticas narrativas, as conversações são construídas por etapas e visam colaborar para que o indivíduo se distancie de formas de enfrentamento já conhecidas que não estão “funcionando” e caminhe rumo ao novo, no sentido de vivenciarem o agenciamento pessoal que significa “um sentimento de estar apto para afetar seu curso de acordo com suas intenções e fazer isso de modo que sejam moldados pelos conhecimentos e pelas habilidades de vida da pessoa” (p. 288).

Quando se iniciam as conversações narrativas, não se sabe que caminhos elas vão percorrer e quais novos territórios serão descobertos. Tudo vai sendo construído no diálogo com o outro, a partir das respostas de cada pergunta realizada é que novas são construídas diante das possibilidades identificadas. Pensar em uma pergunta antes de ouvir uma resposta anterior costuma não funcionar. Deste modo, a conversa não tem fronteiras previsíveis e não segue uma ordem nos questionamentos (White, 2012).

As práticas narrativas oferecem recursos conversacionais que auxiliam no direcionamento da conversação e na busca da construção de histórias nunca antes contadas. Apesar de disponibilizar essas diretrizes, cabe enfatizar que o seu uso é organizado juntamente com as pessoas envolvidas no processo conversacional. Aqui neste artigo serão apresentados de forma sucinta, contudo, aprofundar-se nesses conteúdos possibilita um aprendizado enriquecedor que favorece o fazer uso dessas práticas (White, 2012).

Conversações de Externalização: White (2012) menciona que, frequentemente, quando as pessoas se deparam com problemas em suas vidas, estas costumam acreditar que eles representam sua própria identidade ou a de outras pessoas com que se relaciona. Culpabilizando sempre algo em si ou alguém como sendo o responsável pelo problema. Essa forma de enxergar costuma potencializar ainda mais os efeitos dos problemas em nossa vida, influenciando nossas atitudes cotidianas. Diante desse contexto, o intuito principal das conversas de externalização é convidar o indivíduo para se ver separado do problema e assim poder ampliar as possibilidades de resolução do mesmo. As conversações de externalização também favorecem o que White chama “desenredamento” das visões depreciativas acerca de si mesmo que podem ser construídas ao vivenciar o problema. Nesse momento, o profissional assume o papel de jornalista e o cliente o de repórter, ambos assumem uma postura investigativa em busca de histórias de “forças” e recursos ainda não expressados e de metáforas para nomear e ajudar a enfrentar o problema.

Conversações de Reautoria: as pessoas narram seus problemas e dificuldades vivenciadas, ligando-os em uma sequência desenvolvida com o tempo e incluindo diferentes eventos e personagens. Essas histórias são as dominantes, geralmente compostas por sentimentos de sofrimento, fracasso, perdas, incompetência, desesperança, entre outros. As conversações de reautoria, ao se depararem com esse contexto de narrativas, convidam o indivíduo a continuar contando suas histórias, só que com novos conteúdos que são significativos, porém foram negligenciados pelas histórias dominantes. Esses eventos são denominados como “acontecimentos singulares”. O profissional favorece a construção de enredos alternativos que resgatam as experiências vividas, ampliando as ideias, habilidades e os significados. Nesse momento convida-se para a conversa o “ausente, mas implícito” (White, 2012), ou seja, acontecimentos significativos que foram vivenciados, porém não estão presentes nas histórias narradas. Por meio de questionamentos, essas conversações facilitam o re-narrar das histórias, contemplando novos significados da experiência e de identidade. As conversas de reautoria possibilitam um contexto conversacional que desenvolve narrativas alternativas com novos significados que ampliam as possibilidades de vida que antes estavam limitadas devido ao foco nas deficiências e carências contido nas histórias dominantes.

Conversações de Remembrança: essas conversações se guiam pela compreensão de que nossa identidade é baseada no clube da vida, ou seja, ela é construída com a contribuição de personagens e figuras significativas que fizeram, fazem e ainda vão fazer parte de nossas vivências. Pode ser desde o autor de um livro que você gostou, uma pessoa importante que já faleceu, o personagem de um filme, uma vizinha, um animal de estimação, enfim, as possibilidades desses personagens são muito amplas. Todos eles têm vozes que ajudam a construir a nossa visão de self. As conversações de remembrança fazem o convite de revisitarmos o nosso clube da vida, para entrarmos em contato novamente com os membros que fazem parte dele, a fim de poder gerenciar a posição deles, colaborando na re-construção da identidade, desqualificando vozes que limitam nós mesmos e favorecendo vozes que potencializam nossas capacidades de identidade. Na conversação, ela busca auxiliar a pessoa na identificação desses personagens, bem como nas contribuições que elas trouxeram para sua vida e também nas contribuições que ela gerou na vida desses personagens. Desse modo, o indivíduo sai do lugar de receptor passivo e se torna parte de uma contribuição bilateral. É uma oportunidade de reconstruir versões preferencialmente mais ricas acerca do nosso self.

Cerimônias de Definição: o termo cerimônias de definição se originou do trabalho da antropóloga Barbara Myerhoff (1982 apud White, 2012) com idosos judeus que definiram de forma ativa a construção de sua identidade. Ao tomar conhecimento do mesmo, Michael White e David Epston começaram a experiênciá-lo nas práticas terapêuticas, contribuindo assim com a construção de novas possibilidades de realizar essas cerimônias. Posteriormente, David Denborough e Cheryl White também começaram a vivenciar as contribuições dessas audiências no contexto das práticas narrativas coletivas. As cerimônias de definição são audiências ou eventos que oferecem uma oportunidade para as pessoas narrarem ou até mesmo encenarem suas histórias na presença de testemunhas externas (termo este que será explicado mais adiante) de modo a colaborar com o processo. No momento da cerimônia de definição, a pessoa conta a sua história para as testemunhas externas que escutam para poder contribuir com o recontar das narrativas apresentadas. Nas palavras de Barbara Myerhoff (1982):

“Uma história contada em voz alta à prole ou a colegas é, claro, mais que um texto. É um evento. Quando conduzida apropriadamente, na forma de uma apresentação, seu efeito no ouvinte é profundo, e este é mais que um mero receptor passivo ou validador. O ouvinte é modificado (apud Denborough, 2008, p. 116).”

O profissional é responsável por preparar essa testemunha e formatar a versão final do recontar. As testemunhas externas são pessoas que são convidadas para participar da audiência de contação de história. Essas pessoas são escolhidas de forma cuidadosa e com o consentimento de todos que participaram da cerimônia. A testemunha externa pode estar presente fisicamente ou participar por intermédio de outros recursos, como uso da tecnologia virtual ou da escrita. O papel das testemunhas nessas audiências não é o de dar conselhos ou fazer interpretações. Ao assumirem essa posição de escuta para recontar histórias, elas deverão manter atenção nos aspectos da história que mais chamaram sua atenção e que gerou ressonância nelas, comentando os sentimentos que tocaram ao ouvir o relato e as imagens/metáforas que surgiram no momento de escuta. O recontar possibilita que o indivíduo consiga perceber os efeitos e aprendizados que sua história provoca no outro, vivenciando a vida como sendo algo que se conecta e que, ao compartilhar, se torna mais rico por contribuir de forma bilateral e ampliar as possibilidades dessas histórias (White, 2012; Denborough, 2008). A oportunidade de trazer vozes externas para a conversação também pode ser identificada nos trabalhos de Harlene Anderson “Como se” e no de equipes reflexivas de Tom Andersen, entretanto não serão abordados nesse artigo.

PRÁTICAS NARRATIVAS COLETIVAS

Principalmente com as contribuições da terapia narrativa (Michael White e David Epston) e também de Paulo Freire, David Denborough tem desenvolvido o seu trabalho denominado de práticas narrativas coletivas. Essa atuação tem acontecido em contextos de pessoas que experienciaram situações traumáticas, as quais David acredita que sejam reflexo de problemas sociais e não individuais. Sendo assim, o enfoque de sua prática é contribuir para se gerar transformações sociais.

Ao se deparar com pessoas que vivenciam dilemas traumáticos de sofrimento, essa prática compreende que esses problemas são coletivos, então estimula que elas, por meio de tentativas coletivas, consigam buscar formas de lidar com o problema social. O interesse principal não está nos discursos individuais do problema, mas nos padrões de discurso e interações que emergem do coletivo (Denborough, 2008).

As práticas narrativas coletivas são guiadas por quatro princípios (Denborough, 2008). O primeiro deles enfatiza que, ao escutar o outro, ele compreende que há uma dupla narrativa, uma que menciona o problema traumático vivenciado e outra que relata os recursos e habilidades que a pessoa fez uso para conseguir enfrentar e se proteger desse problema, bem como as pessoas que compuseram a rede de proteção. O segundo princípio é composto pela tentativa de ajudar a pessoa a identificar histórias alternativas nas narrativas saturadas do problema, a fim de possibilitar a identificação de conhecimentos e habilidades que ajudem a fortalecer as histórias preferidas. Como terceiro princípio está a tentativa de conectar as experiências individuais narradas a situações que envolvam o coletivo. Ao conectar as narrativas de uma pessoa ao coletivo, é como se houvesse o que Paulo Freire chama de “unidade na diversidade” (2008 apud Muller, 2012), a pessoa deixa de estar sozinha em sua experiência e começa a conhecer o que há de comum na diversidade que contempla o contexto das relações sociais. Contribuindo dessa forma na construção de novas possibilidades. Por fim, o último princípio é possibilitar que todas essas narrativas construídas nessa conversação possam ter a oportunidade de serem partilhadas e assim contribuir com a vida de outras pessoas, como, por exemplo, por meio de documentos coletivos.

Em suas práticas, David Denborough frequentemente faz uso desses documentos coletivos que foram apresentados por Michael White e David Epston como sendo documentos terapêuticos. Eles podem ser compostos em forma de cartas, músicas, certificados, poemas, enfim, são amplas as possibilidades. Inspirada pelas palavras de Rubem Alves (2008), penso que esse recurso ajuda as pessoas a desenvolverem suas capacidades de ostra e assim transformar sofrimentos em pérolas, podendo embelezar a vida de muitas outras pessoas. Assim sendo, os documentos coletivos possibilitam que a pessoa reconheça na sua história de sofrimento, habilidades, conhecimentos e fatores que auxiliaram na superação e na construção de um aprendizado. Em seguida, permite que essa narrativa individual se conecte com narrativas coletivas de pessoas que vivenciaram situações semelhantes, permitindo assim a construção de histórias mais esperançosas e empoderadas.

Denborough (2008) apresenta suas experiências de trabalho, deixando um convite de estimular que o leitor desenvolva novas possibilidades de trabalhar, demonstrando interesse em conhecer as novas descobertas que serão feitas a partir dos seus relatos. Diante disso, estão sendo construídas diversas metodologias que seguem os princípios das práticas narrativas coletivas e fazem uso de metáforas que auxiliam na construção da coletividade. Alguns exemplos dessas práticas são:

Árvore da Vida: é uma prática narrativa coletiva que foi desenvolvida por David Denborough e Ncazelo Ncube para trabalhar com crianças em situações de vulnerabilidade nas regiões da África e Ásia, porém atualmente tem se percebido a sua utilidade com pessoas dos diferentes ciclos de vida que vivenciam ou já vivenciariam situações de sofrimento. É uma atividade que, como Denborough (2008) menciona, enfatiza a “revelação coletiva” por meio da estimulação para que as pessoas entrem em contato com as vivências traumáticas não de uma forma que as re-traumatizem, mas de um modo que consigam reduzir os efeitos do sofrimento ao favorecer a identificação de habilidades, sonhos e pessoas da rede de apoio. Partindo-se da metáfora da árvore, ela se compõe basicamente por quatro etapas: árvore da vida; floresta da vida; quando as tempestades chegam; certificados e músicas.

Time da Vida: Essa metodologia narrativa foi desenvolvida por David Denborough (2008). Utiliza-se da metáfora dos esportes, mais especificamente no Brasil a metáfora do futebol, que é considerado por muitas pessoas uma paixão nacional. Ela visa auxiliar jovens no enfrentamento de situações de dificuldades por meio da construção de um time que contenha pessoas significativas e recursos importantes de sua vida que possam ajudá-los a enfrentar o time adversário que no caso podem ser diferentes situações traumáticas. Basicamente ela é construída por meio das etapas de: acolhimento; construção do time da vida; celebração dos gols e do momento de driblar os problemas.

Ritmos da vida: Partindo-se da musicalidade e da ginga brasileira, a psicóloga Adriana Muller desenvolveu a metodologia narrativa coletiva dos ritmos da vida. Fazendo uso da metáfora da música, convida a construção de novas narrativas de vida, mais ricas, que valorizam as diversidades presentes nas melodias e nas histórias das pessoas. Conforme Muller (2011) menciona lindamente, o intuito principal dessa metodologia é possibilitar a “transformação do sintoma (o problema a ser enfrentando) em sintonia (o reconectar-se com o que é importante na vida) e, finalmente, ser capaz de compor uma sinfonia (a integração do individual com o coletivo)”. Para tanto, compõe-se de cinco etapas que vão colaborando na construção de versões de narrativas mais sintonizadas. Sendo elas: “meu instrumento; “minha interpretação”; “orquestra da vida” ;“entrando em sintonia”; “nossa música”.

Despensa da vida: Diante de vivências profissionais em contextos de pessoas vivenciando sofrimentos ocasionados pelo diagnóstico de doenças crônicas, as psicólogas brasileiras, Ana Luiza Novis e Lucia Helena Abdalla (2013), desenvolveram essa metodologia narrativa. Fazendo uso da metáfora da “visita inesperada” que chega em nossa casa sem estarmos preparados para recebê-la, assim como a doença pode chegar na nossa vida e de nossa família. Ela busca auxiliar as pessoas a resgatarem os valores, crenças, habilidades e costumes que fazem parte do sistema familiar e que podem ajudar a deixar a despensa da vida abastecida de recursos para se conviver de modo harmonioso com a visita inesperada que, no caso, é a doença crônica. Essa metodologia narrativa é composta por seis momentos reflexivos que convidam para a narração de novas histórias acerca desse adoecimento, e visa encontrar recursos e novos olhares para a situação vivenciada, ampliando as possibilidades de enfrentamento. Sendo eles: “A Chegada da Visita Inesperada”; “Dando Nome à Visita”; “Lidando com a Visita”; “Vasculhando a Despensa da Vida”; “Conversando com Sebastiana Quebra-Galho”; “Construindo um Livro de Receitas”.

UMA PARADA NA ESTRADA DA PRÁTICA PROFISSIONAL: COMPARTILHANDO EXPERIÊNCIAS CONVERSACIONAIS E RELACIONAIS

Nesse momento da caminhada, proponho relatar diálogos colaborativos e narrativos que marcaram até esse momento a minha trajetória pessoal e profissional. O contar dessas expe­riências não as torna um modelo conversacional único a ser sugerido, mas é um convite de narrar as riquezas que essas práticas possibilitam nos diálogos que construímos com o outro. São experiências conversacionais que dificilmente teriam sido possibilitadas em minha prática profissional se eu tivesse continuado caminhando no âmbito da terapia tradicional por ela favorecer principalmente os diálogos entre profissional e cliente, enfatizando o saber profissional como sendo o mais valioso no processo. O caminhar nessa terapia me fazia sentir engessada e receosa de utilizar a criatividade em prol do contexto dialógico.

Logo que conclui a minha graduação em psicologia não me sentia atraída pelas abordagens psicológicas que havia aprendido no âmbito acadêmico, sentia que eram tecnicistas, avaliativas e, em alguns momentos, pouco flexíveis, fazendo com que eu me sentisse pouco à vontade e preparada para dialogar com o outro e muito menos para analisar alguém. Observava colegas fazendo suas escolhas acerca da abordagem que iriam seguir e sentia que ainda não tinha sido conquistada por nenhuma das práticas modernas apresentadas. Com a sede de conhecer novas possibilidades de ser terapeuta, ingressei na especialização em Intervenção Familiar Sistêmica, contexto esse que favoreceu o meu sentimento de pertencimento, ou seja, de me sentir mais em casa, parecia que falava mais a minha “língua” no sentido de favorecer uma relação mais próxima e horizontal com as pessoas. Nessa fase de estudos, o que mais me encantou foi o construcionismo social e as práticas colaborativas por contribuírem com o entendimento de que os sentidos da vida e de nós mesmos são construídos quando nos relacionamos com o outro. Guiada por esse encantamento e pelo desejo de conhecer ainda mais desse universo pós-moderno, iniciei em 2015 o Certificado Internacional em Práticas Colaborativas e Dialógicas promovido pelo Interfaci (Instituto de Terapia: Família, Casal e Comunidade) em parceria com o Houston Galveston Institute (Texas) e Taos Institute (Novo México) que me trouxe intensas experiências de aprendizados acadêmicos e relacionais. Toda essa caminhada profissional foi me guiando para ir conhecendo os conceitos pós-modernos e ir aprimorando a minha postura profissional e pessoal, a qual percebo como sendo um aprendizado contínuo e sem fim, visto que em cada conversação somos formados e transformados.

Romper com o engessamento que me gerava as práticas modernas e a aproximação das práticas pós-modernas têm favorecido a construção de um contexto conversacional que está atento ao saber do cliente e aberto para se transformar enquanto profissional em busca da criação de recursos e possibilidades para construir processos de (re)construção de narrativas de vida os quais serão narrados a seguir.

Pizza dos interesses: valorizando os diferentes saberes e sabores – influenciada por um olhar que valoriza o conhecimento local e que possibilita que as pessoas sejam as estrelas do contexto conversacional, tenho utilizado a metáfora da pizza dos interesses como sendo um recurso para iniciar um diálogo e coconstruir um contexto grupal transformador. O desenvolvimento desse recurso surgiu devido considerar o grupo conforme mencionam Rasera e Japur (2001) como uma construção social que vai sendo construído por meio das práticas discursivas que acontecem na relação grupal, possibilitando o surgimento de sentidos para as realidades vivenciadas. Diante de tal entendimento e da importância da valorização do saber dos clientes, comecei a pensar em um recurso que pudesse favorecer a participação deles no processo de construção grupal, portanto o intuito principal desta atividade tem sido construir conjuntamente com os participantes os seus interesses acerca dos temas que desejam dialogar ao longo dos encontros conversacionais. Inicialmente utilizo a metáfora da pizza para explicar sobre esse recurso conversacional. Começo dizendo que se eu trouxesse o meu sabor de pizza favorito para eles saborearem, nem todos poderiam gostar. Do mesmo modo, se eu trouxer os temas que acredito que sejam interessantes para dialogar, eles podem não estar dispostos a dialogar sobre os mesmos, bem como não achar interessante ou produtivo para aquele momento. Assumo aqui a postura do não saber, reconhecendo que as pessoas sabem muito mais acerca de si mesmas e de suas necessidades do que o profissional, então me coloco como facilitador de contextos conversacionais e assim favoreço para que cada pessoa presente no diálogo assuma o papel de especialista do conteúdo de suas vidas (Sáez, 2006; Gergen & Gergen, 2010; Anderson, 2012; London, 2015). É possível utilizar esse recurso de duas formas: entregar a cada integrante papéis em formato de fatias de pizza e orientá-los a escreverem sobre os temas que cada um gostaria de dialogar, montando várias pizzas com as fatias dos participantes; ou levar uma cartolina com o desenho de uma pizza e ir escrevendo as sugestões em cada fatia conforme as sugestões de cada membro do grupo. No decorrer da mesma, nos tornamos parceiros conversacionais e juntos vamos construindo os sentidos e significados do contexto conversacional, re-descobrindo novas possibilidades de se dialogar e construir a realidade vivenciada. É possível ainda aprender com a diversidade de “pizzas” que podem ser montadas e experimentadas, podendo gerar o experimentar de novas sensações e diálogos. É um convite para a construção de contextos com sabores e saberes tanto novos, como os já conhecidos. O uso desse recurso tem colaborado para que os integrantes do grupo, assumam a posição de agentes empoderados e corresponsáveis pelo contexto conversacional a fim de promoverem mudanças.

Vozes do bem: Com certa frequência, ao escutar narrativas de pessoas que lidam diariamente com problemas psiquiátricos, podemos nos deparar com histórias saturadas de sofrimento, angústias, sentimentos de impotência, entre outras que nos desafiam a buscar outras formas de auxiliar o cliente a viver e conviver com os sintomas da patologia. É nesse cenário que essa experiência foi coconstruída por meio de um atendimento individual. A história é protagonizada por uma mulher adulta que apresentava narrativas de sofrimento devido a patologias psiquiátricas, principalmente por ouvir vozes (alucinações auditivas) e que há mais de dez anos fazia tratamento medicamentoso. A busca pelo atendimento se deu devido a momentos em que relatou ter sofrido por causa de surtos psiquiátricos. Nos encontros iniciais eram recorrentes narrativas repletas de problemas e dificuldades ocasionadas pelo enfrentamento da patologia psiquiátrica. Ao escutar suas histórias de vida, comecei a perceber que havia ali uma mulher que já havia vivenciado diversos dilemas intensos em sua vida e estava ainda tendo forças para continuar lutando pelo seu bem-estar. Começou a me chamar atenção o quanto suas narrativas, além de problemas, continham momentos de superação. Desse modo, busquei não me conectar ao diagnóstico, entendendo que ele poderia favorecer um olhar para as dificuldades, bem como para as narrativas saturadas por problemas, que poderiam intensificar os efeitos do sofrimento e a visão sobre si mesma. Assim sendo, ao longo do diálogo, utilizando perguntas reflexivas, estimulei a construção de narrativas alternativas e de reautoria, que pudessem trazer outras vozes para a nossa conversa e não somente as vozes que traziam sofrimento, as quais a mulher nomeou de vozes do mal, a fim de possibilitar um re-narrar da história de sofrimento provocada pelas vozes. Para que essa construção dialógica se tornasse efetiva, conjuntamente fomos buscando fatos de sua vida que eram inéditos, suas potencialidades e habilidades que não estavam conseguindo aparecer devido ao olhar estar apenas na patologia, restringindo assim as possibilidades dessa cliente de se ver e viver. Esses diálogos possibilitaram que a mulher, conectando-se com suas crenças espirituais prestasse atenção em outras vozes, agora as que ela denominou de vozes do bem, e que auxiliaram ela a criar pequenos trechos musicais: Trecho 1: “Livrai minha família do mal, senhor, livrai minha vida do mal, senhor, livrai meus filhos do mal, senhor, amém, aleluia, senhor”; Trecho 2: Deus é meu amigo, Deus é meu irmão, que cura as feridas, que machucam o coração”; Trecho 3: “Manda a tua força, o teu poder, ó pai, sobre ele o seu amor, Deus do universo, nosso senhor”. Penso que essas músicas consistem em documentos coletivos (White, 2012; Denborough, 2008), pois possibilitaram que ela expressasse habilidades e conhecimentos que foram adquiridos com suas vivências de sofrimento. Fica evidente o quanto as práticas colaborativas e narrativas abrem caminhos, até mesmo diante de contextos de vida que parecem ser “ruas sem saída”, como é o conviver com alucinações auditivas. Ao construir essas músicas, ela começou apresentar narrativas de querer ajudar outras pessoas com sua história de vida, sendo assim a história das vozes do bem começou a ocupar um posto de preferida nas narrativas apresentadas por essa mulher, favorecendo o seu empoderamento e ampliação de suas redes de apoio. Diante do desejo de partilha, possibilitamos que seus trechos musicais fossem cantados em um grupo de mulheres do qual ela começou a participar. Esse momento favoreceu a concretização de uma cerimônia de definição, ao possibilitar o compartilhamento da história e o valioso “produto” do sofrimento dessa mulher, para pessoas que estavam vivendo situações semelhantes e que puderam comentar as ressonâncias que essa história e o documento musical provocaram. Ela deixou de ver a doença como sendo a sua própria identidade e passou a assumir um papel de agente de transformar a sua vida e a de outras pessoas (Denborough, 2008).

Retrato Falado: re-falando sobre si mesmo - partindo-se da ideia acerca da importância do tornar público os pensamentos internos do profissional, ao atender uma adolescente com narrativas depreciativas acerca de sua imagem corporal, surgiu pensamentos internos sobre a possibilidade de construir um retrato-falado que seria guiado pela orientações que ela fosse fornecendo. Sendo assim, como sugerem Anderson e London e Sáez (2012, 2015 & 2006), tornei pública essa ideia e ela aceitou experienciá-la. Ao final da construção do retrato falado, a adolescente relatou surpresa com a forma como estava descrevendo a si mesma, percebendo que poderia haver versões melhores. Nesse momento, ela começa a questionar as descrições restritas que estava fazendo sobre si mesma, contudo, por mais que o diálogo estava caminhando de um modo que começava a explorar descrições mais ricas acerca de sua identidade, pensei que o uso de testemunhas externas proposto por White (2012), poderiam valorizar e potencializar ainda mais as novas narrativas em relação a sua identidade. Portanto, propus que ela convidasse duas pessoas significativas para participarem dessa mesma atividade do retrato falado no próximo atendimento. Ela aceitou a proposta e se comprometeu a trazer. No atendimento seguinte, ela compareceu juntamente com duas amigas e a atividade foi realizada por meio das narrativas delas. No final, comparamos as três versões construídas por cada uma delas e tanto a adolescente, como suas amigas, questionaram a “verdade” da versão criada pela própria adolescente. Nesse momento, percebo que a narrativa dominante saturada de problemas foi perdendo forças perante as novas narrativas que foram surgindo com o uso dessa atividade e do diálogo construído. A adolescente passou a perceber uma versão mais apreciativa da história de sua identidade. Ao finalizar o diálogo, a adolescente desejou jogar fora a versão saturada de coisas ruins e levar consigo apenas as novas versões preferidas de si mesma. Essa experiência conversacional relatada evidencia a importância que as testemunhas externas tiveram no processo de reautoria dessa adolescente, ampliando as narrativas de sua identidade e construindo novas formas de narrar-se. Penso que em uma terapia moderna, a presença de testemunhas externas seria algo pouco provável de acontecer e como foi percebido nesse caso, elas tiveram um papel potencializador na construção do processo de mudança.

Vozes de profissionais: colaborando na construção da escolha profissional de adolescentes – a adolescência é um momento do ciclo de vida, que envolve novas descobertas, transformações biológicas e psicossociais, além de ser uma etapa em que geralmente há expectativa de que eles escolham qual profissão querem seguir no futuro. Deparar com narrativas de dificuldades em fazer essa escolha me fez pensar nas possibilidades que poderiam ser coconstruídas no diálogo para auxiliar nesse processo de escolha. Ao invés de utilizar os conhecidos testes vocacionais, tendo em vista as contribuições das práticas pós-modernas e a valorização da inserção de vozes externas ao processo conversacional, surgiu a ideia de coletar depoimentos de profissionais de diversas áreas profissionais, contando como foi o processo de escolha, o caminhar pelo curso e pela atuação profissional após a graduação, bem como quais recomendações eles dariam aos jovens que estavam desejando escolher aquela determinada profissão. Os documentos coletivos compostos por esses depoimentos estão trazendo a voz e a história de testemunhas externas para o processo conversacional. Estes recursos têm possibilitado a ampliação dos diálogos acerca da escolha profissional, bem como o reconhecimento do quanto as histórias de vida profissional possuem ricas diversidades entre si, bem como semelhanças. Colaborando, assim, para a ideia de que não há um único caminho a seguir em busca do sucesso profissional, mas sim uma ampla possibilidade de se construir esse caminhar. Além de favorecer, o surgimento de reflexões importantes que ajudam nesse momento de construir seu plano de vida. Essa forma de dialogar com os dilemas da escolha profissional não traz consigo a profissão ideal para cada “perfil”, mas sim convida ao diálogo acerca das histórias de potencialidades e significativas que podem auxiliar nesse caminhar profissional, o qual pode ser contemplado pelo experienciar de diferentes profissões. Essa experiência transformou tanto o olhar da cliente em relação as escolhas profissionais, como a minha forma de facilitar o contexto da construção desses projetos de vida.

Escola, nossa escola: reescrevendo narrativas de conflitos - reconhecendo que narrativas saturadas por problemas dificultam a construção de formas melhores de ser e conviver, busquei estimular a construção de histórias alternativas em um grupo de adolescentes acerca de suas vivências com o contexto escolar. O intuito foi o de favorecer novos diálogos com a escola, que facilitassem a reescrita das narrativas de conflitos e para que eles pudessem se tornar agentes de transformação. Por meio de perguntas reflexivas e apreciativas (o que minha escola tem de bom e que me faz querer frequentá-la; o que eu posso fazer para ter uma escola melhor?; o que meus professores podem fazer para a escola ser melhor?; o que os diretores da minha escola podem fazer para a escola ser melhor?; o que eu não faço na escola, mas gostaria de fazer?), construiu-se um contexto conversacional que visava valorizar o saber dos adolescentes e trazer à tona narrativas alternativas compostas por situações que têm funcionado no cotidiano. Essas perguntas fizeram parte do processo de coletar informações significativas para embasar a construção narrativa coletiva acerca das vivências escolares. Após a coleta desse material, construiu-se uma carta coletiva que tinha como intuito convidar a escola a uma nova forma de dialogar, que favorece que os conflitos sejam dissolvidos e que se construam narrativas mais ricas acerca das possibilidades de ser e conviver nesse contexto educacional. A construção desse documento coletivo teve como efeitos trazer possibilidades de se dialogar com a escola, visto que antes pareciam estar mais fechados para esse diálogo. É como se após esse processo, eles começassem a ter uma visão de esperança de haver novas possibilidades de mudança no contexto escolar e também tivessem o reconhecimento da corresponsabilidade para poderem construir a escola de seus sonhos.

PONTO DE CHEGADA: CONSIDERAÇÕES FINAIS DA CAMINHADA

Caminhar pelas conversações fazendo uso do guarda-chuva da pós-modernidade com todas as práticas enriquecedoras nele presente me tirou do caminho solitário que dificultava o enxergar de novos caminhos. Antes de tomar conhecimento e conhecer essas práticas, era como se meu caminhar estivesse ancorado não com um guarda-chuva que me gera uma segurança libertadora que possibilita o caminhar seja em dias de chuva ou de sol, era como se eu estivesse caminhando em práticas que me engessavam, como se fosse um caminhar dependente e promotor de restritas possibilidades de vivenciar o novo. As incertezas que surgiam ao dialogar potencializavam a insegurança, fazendo com que a voz dela tomasse mais espaço na escuta do que as próprias narrativas do cliente.

A princípio acreditava que essa incerteza acontecia devido ao pouco tempo de experiência profissional, então aguardava com ansiedade o passar de cada experiência a fim de chegar ao momento que estaria livre dessa tal incerteza diante dos dilemas apresentados pelos clientes. Ao conhecer as práticas pós-modernas, percebi a incerteza como sendo uma grande aliada ao processo, e me sinto confortável com sua presença, visto que acredito que ela é como se fosse um sinal que está sempre me alertando a ter uma curiosidade genuína diante do relato, bem como acerca da importância do questionar / checar e também do saber construído junto, conforme apontam autores referências nessa área que foram citados ao longo do artigo.

Participar dos diálogos com uma postura colaborativa e dialógica tem me possibilitado estar genuinamente com o outro e aberta para percorrer inúmeros caminhos conversacionais. O contato mais próximo e afetuoso que essa atuação favorece tem possibilitado oferecer um espaço mais seguro e que me parece estar transmitindo mais apoio e transformações. Essa forma de estar com tem também oportunizado o uso da criatividade e do experienciar conversas que inovam e transformam.

As práticas narrativas e narrativas coletivas têm enriquecido e transformado o cenário atual de minhas práticas profissionais, por oferecer ferramentas que possibilitam a ampliação das narrativas, bem como a construção de novos recursos ao dialogar com o cliente. Ouvir histórias saturadas de problemas e oportunizar a reescrita de novas histórias tem sido um território prazeroso e encantador de experienciar. Possibilitar o compartilhamento de histórias de superação e aprendizado por meio dos documentos coletivos e das cerimônias de definição se conecta com o meu intuito de favorecer diálogos que transformem sofrimentos em perólas, para que assim as pessoas se empoderem de seus valiosos recursos e transformem vidas. Assim, com este artigo fica o desejo de que essa caminhada teórica e prática também estimule o descobrir de novos caminhos a serem percorridos em busca de ajudar pessoas a reescrevem suas histórias de vida.


Referências

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Recebido em: 07/01/2017
Aprovado em: 05/02/2017

I Camila Martins Lion: Psicóloga, especialista em intervenção familiar sistêmica. Certificado Internacional em Práticas Colaborativas e Dialógicas. Taiúva-SP, Brasil. E-mail: camila.m.lion@hotmail.com

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