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Nova Perspectiva Sistêmica

Print version ISSN 0104-7841

Nova perspect. sist. vol.26 no.57 São Paulo Apr. 2017

 

ARTIGOS

 

O Fazer e o Estar em terapia dialógica colaborativa

 

The Doing and The Being in dialogical collaborative therapy

 

 

Bruno LenziI


 

 


RESUMO

Este artigo traz as transformações experimentadas ao longo de um processo terapêutico com um jovem de 20 anos. Desde o começo da terapia nossa relação se caracterizou como colaborativa. Ao longo de dois anos de atendimentos pudemos experimentar o diálogo, o conhecimento e a criatividade em nosso engajamento mútuo na situação vivida pelo cliente. Desenvolvemos juntos uma terapia feita sob medida às suas necessidades, que visava suas potencialidades rumo às transformações desejadas por ele e seus próximos. Compartilho também as transformações vividas por mim e que me acompanham em todas as relações em que me engajo.

Palavras-chave: construcionismo social, terapia colaborativa, diálogo, processos mutualmente transformadores.


ABSTRACT

This article brings the transformations experienced through a therapeutic process with a young man 20 years old. Since the beginning of the therapy our relationship was characterized as collaborative. Through two years of therapy we could experience dialogue, knowledge and creativity in our mutual inquiry of the clients situation. Together, we developed a therapy that was tailored to his needs, one that envisioned potentialities towards desired transformations by him and his kin. I too share transformations experienced that accompany me in all relations that I engage myself.

Key Words: social constructionism, collaborative therapy, dialogue, mutual transforming processes.


 

 

Aqueles atendimentos que fogem completamente às nossas expectativas de prática terapêutica são os que nos desafiam a ir além de nossos conhecimentos estabelecidos, para novas formas de nos percebemos como terapeutas na relação com o outro, explorando nossos recursos e possibilidades para facilitar o diálogo que gere o novo, a criatividade e a esperança. A partir da experiência de dois anos de atendimento a um jovem de 20 anos, a relação construída entre nós na terapia e o compartilhamento das aprendizagens e transformações vividas nessa relação com os colegas de profissão, motivei-me para o registro e compartilhamento dessa história através deste artigo. Durante as próximas páginas, convidarei ao diálogo os autores do construcionismo social, como epistemologia – uma postura filosófica que inspira práticas diversas – e da terapia colaborativa para o desenvolvimento das práticas. Estes autores me acompanham durante os atendimentos, como vozes internalizadas (Gergen & McNamee, 1999), para explorar aquilo que se manifesta na relação com o cliente e facilita a transformação de nossas vidas.

 

MINHA POSTURA PARA O ENCONTRO DIALÓGICO

Como terapeuta de famílias, meu posicionamento para o diálogo terapêutico se encontra em algum lugar próximo e semelhante às posições dos autores da terapia colaborativa e do construcionismo social. Quando penso em teoria, são os terapeutas cujas práticas decorrem de posturas socioconstrucionistas que encontro como parceiros do entendimento que o mundo e o real, tudo o que conhecemos e acreditamos, são frutos de significativas trocas relacionais que estabelecemos linguisticamente uns com os outros. Cada um de nós viveu relações diferentes, dessa forma, devemos estar abertos às diferentes formas de entender e nomear o mundo. Pessoas diferentes vivem realidades diferentes. Não há mais como afirmar que existem verdades absolutas antes de verificar a compatibilidade de significados com quem nos relacionamos (Gergen, 1994; Gergen e Gergen, 2010; Gergen & McNamee, 1998; Iñiguez, 2005).

Quando estamos com nossos clientes precisamos estar atentos aos seus objetivos para a terapia; neste sentido, chamamos de produto, aquilo que o cliente busca na relação conosco. Frequentemente, e ainda mais em atendimentos a crianças e a adolescentes, os pais, escola, família ou outros contextos também têm expectativas em relação à terapia da pessoa que nos enviam. Aos objetivos desses encaminhadores, chamamos de encomendas. Quando recebo uma encomenda para o trabalho com um de meus clientes, cujo encomendador (pessoa que traz uma demanda de trabalho à terapia) não estará presente no atendimento, eu peço a permissão de verbalizar tal tópico, e explico que meu trabalho é feito a partir do conteúdo espontâneo que vem do cliente. Desse modo, posso colocar a encomenda como tema a ser conversado e verificar com o cliente se aquele seria um bom momento para atendermos a expectativa do encomendador. No momento do encontro com meu cliente, o que mais me interessa são os temas que ele escolhe para conversar sobre. Não me preocupo se o conteúdo da conversa é o cotidiano do cliente, seus problemas, relacionamentos, ou entretenimento, livros e filmes que gosta de ler e assistir. O norte deste relacionamento é criar intimidade com o cliente, facilitar um relacionamento que seja

potencializador de seus múltiplos selves (Gergen, 1994), os personagens internos, que compõem nosso repertório relacional e são invocados através da linguagem. Existem muitas formas de ser em nós, todas são coerentes e quando legitimadas através do diálogo interno, oferecem novas e criativas possibilidades de coordenação da relação com os outros e com o mundo. A proposta deste conceito é nomear criativamente formas frequentes de responder às interações, conhecê-las através de diálogos internos e externos para, através do conhecimento, ter mais reflexividade sobre as possibilidades de ser e responder às demandas relacionais (Lenzi, 2013).

O principal conceito que norteia meu movimento de escrita do processo é o conceito desenvolvido por terapeutas das práticas colaborativas de estar com (Anderson, 2007; Hoffmann, 2007) e a complexa e libertadora diferenciação entre o fazer para o outro e o estar com o outro em um processo dialógico. É este conceito que desenvolverei ao longo do texto através do relato de um processo e das reflexões a partir deste processo, em que exploro os conceitos que me ocorrem ao longo do relacionamento. Estes conceitos facilitam a postura de estar com o outro enquanto nos afastam de uma inteligibilidade que acredita em um processo cujo terapeuta é responsável por fazer para o outro, intervir unilateralmente em nome de uma hipótese de mudança.

Para isso me engajo na conversa de qualquer tema de interesse, perguntando sobre a experiência do cliente, seus significados para estas experiências, quem mais vive estes processos com ele. Conto minhas próprias experiências ou histórias que conheço sobre este tema, em um sentido explorado pela terapia comunitária (Grandesso & Barreto, 2007) de compartilhar histórias com a intenção de construir comunidade, através da escuta interessada e respostas que incentivem a continuidade da conversação e o desenvolvimento da intimidade entre nós. Sem dúvida encontrar estes temas de conversa fluida são desafios da prática, mas, com dedicação, estas são pontes por onde podemos nos conectar com os clientes e nos transformarmos mutuamente na relação. Em momentos de ausência de assuntos para nossas conversas (e apenas quando estou seguro vínculo que construímos), as encomendas me ocorrem como possibilidade, quando as ofereço tentativamente para a conversação, não como obrigação a cumprir. É um momento para explorar com o outro o que ele entende por aquele tema encomendado, qual a história que resulta neste pedido, o que a pessoa imaginou que aconteceria quando pediu para conversarmos sobre aquele tema, entre outras perguntas que facilitam o acesso ao diálogo e entendimento dos outros envolvidos na vida do cliente.

APRESENTAÇÃO DO CASO

O atendimento aconteceu de forma individual, estando presentes nas sessões apenas eu e o cliente, um jovem de 20 anos, que havia terminado o ensino médio e estava sem atividades escolares ou profissionais no momento em que iniciou a terapia. Também foram feitas trocas de correio eletrônico com a mãe do cliente, que buscava manter-se próxima do processo e compartilhar suas percepções das transformações que via no filho comigo, além de eventuais encomendas por temas que ela gostaria que fossem trabalhados nas sessões. Enquanto eu a incentivava a manter o contato e que aquilo fosse parte natural da nossa relação, que ela pudesse incluir e ser transparente com o filho, quanto às trocas comigo.

O contato inicial com o terapeuta foi feito por sua tia, que perguntou sobre o processo e apresentou brevemente seu sobrinho, acreditava que a relação com um terapeuta homem poderia incentivar o desenvolvimento do rapaz, também confidenciou que havia uma suspeita diagnóstica imprecisa. Em seguida a mãe do cliente entrou em contato pelo telefone para conhecer o terapeuta, disse que deixaria que o terapeuta conhecesse o filho na primeira sessão, como no contato com a tia, citou um processo diagnóstico inconclusivo.

A partir desses dois contatos construí minhas expectativas para o encontro com meu novo cliente. Já havia tido alguma experiência com pessoas que vinham com diagnósticos abertos e fechados, com as dores e delícias deste enquadramento, possibilitando conversas que flexibilizavam e enriqueciam o self diagnosticado, sentia-me empolgado para conhecê-lo. Ao mesmo tempo, espontaneamente esquecia as informações oferecidas nos contatos e me preparava para conhecer uma nova pessoa do zero, com a certeza de que as descrições familiares eram apenas duas possibilidades dentro de um infinito de formas de entender e me relacionar com o rapaz. Acredito ser de crucial importância o momento de encontrar-me com um cliente pela primeira vez; consciente de todas as expectativas que orbitam o momento do atendimento psicológico, minhas fantasias de que o cliente vem com problemas que precisam ser tratados e curados, meu desejo de que ele possa se reconhecer como autor de sua história, protagonista de sua aventura.

REFLETINDO SOBRE DÉFICITS E COMPETÊNCIAS

Para começar nossa jornada com este norte, inicio meu encontro com uma pergunta: quem é meu cliente? Mais que querer saber qual o seu problema, ou sofrimento, me interesso pela complexidade de seu ser, por todas as suas características, para além de suas fraquezas, mas para aquilo que o define como humano. Também pergunto o que ele gostaria de saber de mim e sobre a forma como trabalho, quero que ele me conheça e tenha um canal aberto para me fazer as perguntas que ele precisar para ficar confortável na terapia. Esse tipo de pergunta inicial visa minimizar o risco de iniciar nosso relacionamento focado em problemas e sofrimentos, sem destacar os déficits da pessoa e sem invocar por nomes que não são aqueles que ele escolheu para se descrever como categorias diagnósticas.

Como outros terapeutas do movimento construcionista, questiono práticas diagnósticas e favoreço a exploração dos problemas a partir do entendimento das pessoas envolvidas com o problema é suas formas de entendê-lo e descrevê-lo. Um entendimento possível é que o diagnóstico ao menos oferece um nome, um tamanho e um caminho para o sofrimento anteriormente subjetivo e aterrorizante. Entretanto, o processo de dar nome a algo que o outro está sentindo me alerta para o risco de perder o acesso aquilo que há de único na história do cliente, para ficar com aquilo que é comum, de nos afastar da criatividade para superação do problema e ficarmos presos aos caminhos já trilhados para o alívio da dor, mas que podem não ser o caminho do cliente. Esses saberes externos e prontos podem servir de inspiração para a construção de caminhos singulares, mas precisamos estar atentos ao perigo de ficarmos dependentes do conhecimento externo, desqualificando o saber local. Qualquer prática deve estar atenta às ameaças à autonomia e ao significado social, para além do individual, que nossas escolhas de descrição de algo ou alguém podem ter. Aí reside a importância de legitimar a linguagem das pessoas mais intimamente envolvidas com o problema, elas são as mais interessadas em libertar-se de suas prisões. Gergen, Hoffman e Anderson (1996) se engajaram em um triálogo norteado pela seguinte pergunta: é o diagnóstico um desastre? O resultado foram reflexões e convites para a transformação de como entendemos a saúde mental. Apenas como provocação, os autores contam algumas histórias dos manuais de doenças mentais, citando, por exemplo, que a masturbação era patologizada em 1938. O desenvolvimento histórico e cultural para a classificação de doenças ilustra o quão situacionais são estes diagnósticos e quão desatualizados eles podem ser e ficar.

Nosso momento atual é de classificação a partir dos déficits e tratamentos a partir de estatísticas. Estas práticas estão mais centradas no saber profissional e compromisso do cliente com as orientações (Gergen, Hoffman & Anderson, 1996; Gergen & McNamee, 2010). Diferentemente, propomos a colaboração no processo, cada participante com um saber, os profissionais com o saber do processo e da preparação do contexto para o diálogo, os clientes com seu conhecimento e criatividade para a transformação do problema. Nosso compromisso é de trabalhar com o complexo e com a coerência das formas de vida de nossos clientes – tudo o que vivemos e somos é produto de trocas linguísticas vividas em relacionamentos, que têm coerência histórica, mas que podem ficar desatualizadas com o tempo. O desafio é entender e apreciar o único e o latente, ao invés do comum e deficiente, para um processo de transformação feito sob medida e relevante aos envolvidos. O que desenvolvo e o meu convite aos meus clientes é por uma prática de liberdade e amor.

Isto significa ingressar em uma inteligibilidade que questiona a indústria da saúde, que não rotula pessoas, ou diagnostica condições e, que por este posicionamento, representa um importante movimento no desenvolvimento do nosso campo de atuação. Nesta comunidade, nos ocupamos em engajar nossos clientes no processo. Em torná-lo significativo aos envolvidos. Investimos em uma relação que possa colaborar com os objetivos do cliente, que seja feita sob medida às suas necessidades e especificações, sem entrar em discursos culpabilizantes do cliente por falta de um sucesso relacionalmente dependente. Que outras palavras podemos usar, que linguagens acessar para caracterizar o processo como útil? Apenas quando interessados no cliente, em toda sua complexidade e construção sócio-histórica, é que podemos descobrir isto (Gergen, Hoffman & Anderson, 1996; Gergen & McNamee, 2010). Desta forma, elevamos o discurso diagnóstico a outro nível, um de descoberta, conhecimento, esperança e criatividade para a ação.

CURIOSIDADE, REFLEXIVIDADE E SIMETRIA PARA ESTAR COM O OUTRO

Com estes pensamentos em mente, fui à primeira sessão. O cliente era rapaz de 20 anos, educado em sua maneira de cumprimentar-me, um tanto rígido em sua postura corporal, o que supus ser constrangimento perante o primeiro contato comigo. Apresentei-me e falei um pouco do meu trabalho, de acordo com os pensamentos de Harlene, considero importante que meus clientes conheçam a forma como proponho o trabalho. Por isso expliquei brevemente a proposta de olhar para as relações que o constituíam e como ele se transformava nestas relações. Falei do formato descontraído que eu mais gostava de experimentar com clientes, que ele pudesse sempre me perguntar o que eu não tivesse deixado claro em meu discurso, ou questionar quaisquer ideias que viessem à conversa. Expliquei que eu tinha apenas um conhecimento de como conversar e me interessar por sua história e experiência, a elaboração de perguntas curiosas que visavam o entendimento do relato e o enriquecimento do nosso conhecimento sobre a vida do cliente, mas quem detinha esse conhecimento sobre sua vida, suas experiências e suas interpretações era o próprio cliente (Anderson & Goolishian, 1998). Isto faz referência à metáfora do convidado/anfitrião de Harlene Anderson (2009); quando encontro com meu cliente em meu consultório, gosto de me imaginar como recebendo um querido convidado ao meu espaço, por isso me esforço para que ele encontre uma situação de conforto, que o faça sentir-se especial, com vontade de voltar e intimidade para estar comigo em uma relação íntima e transparente. Preparo café, me preocupo com a decoração da sala e com a poltrona onde ele sentará. Converso com as secretárias para que conheçam quem é o cliente e que o recebam com gentileza e carinho. Ao mesmo tempo, me sinto um convidado à história do cliente, ele está me recebendo em sua morada mais íntima, onde poucas pessoas já estiveram, logo, quero me comportar de forma a ser convidado novamente para esta visita, demonstro minha gratidão, sou recebido onde o cliente julga mais apropriado, não olho debaixo dos tapetes, ou peço para ele me levar ao porão, nem me deito na cama do casal ou abro as gavetas de roupas íntimas dele. Sento onde ele indicar, aceito, com gratidão, aquilo que ele escolheu oferecer, tenho certeza de que esta oferta foi pensada para mim e me engajo nos temas de conversação que ele traz, como os apropriados para aquele encontro. Acredito que esta metáfora esclarece o respeito que tenho pelo meu cliente, enquanto explora a forma como me coloco no papel de terapeuta dele.

Então perguntei dele, quem era meu cliente e como eu poderia participar de sua história. Sempre me interesso em conhecer as pessoas que me buscam para terapia, mais do que seus problemas, toda a sua complexidade, todo o potencial para transformação de suas experiências e cotidiano, que pode estar desqualificado pela dor e desesperança de não ter conseguido resolver seus problemas sozinho. Este foi o momento em que passei a palavra para meu cliente, já havia me apresentado e estava ávido para conhecê-lo. Então ele pôde me mostrar sua bola de histórias, outra bela metáfora construída por Harlene Anderson (2007) que eu gostaria de explicar brevemente. Quando encontro meu cliente, ele me traz todo um emaranhado de histórias e experiências que compõe sua complexidade, este emaranhado não é linear ou organizado, a forma mais fácil de imaginá-lo é como uma bola de lãs, muitos fios entrelaçados que o cliente juntou para trazer para o atendimento, quando ele começa a me contar uma história, ele está me apresentando um destes fios, eu observo e ouço atentamente ao seu relato, não tomo a bola de histórias em minhas mãos, não busco organizar os fios, apenas ouço atentamente. Ao longo da narrativa percebo como outros fios estão em contato com este que está sendo apresentado, percebo também que estou observando apenas uma face da bola, há muito mais do que aquilo que posso perceber naquele momento. Quando o cliente termina seu relato, eu me engajo no meu entendimento daquela escuta, me pergunto sobre o que eu gostaria de ouvir mais, o que eu gostaria de entender melhor e que faça parte, ou tenha conexão com os fios explorados pelo cliente. Dessa conversa interna eu comento o meu processo de escuta e ofereço minhas perguntas curiosas para que o cliente possa retomar seu relato e explorar aquilo que escolheu conversar comigo.

A resposta de meu cliente foi breve, apresentou-se objetivamente, o que fazia em sua rotina e que gostaria de estar se desenvolvendo em terapia. Apesar de sentir a objetividade do cliente pus minha curiosidade em ação, olhei para aquela pequena parte da bola de histórias que me foi apresentada e perguntei sobre aquele último fio, sobre se desenvolver na terapia. Ele explicou que se percebia preguiçoso, que gostaria de desenvolver comigo sua iniciativa, compromisso e persistência. Perguntei sobre todas as experiências com pessoas que fizeram diferença em sua vida, como ele imaginava que eu deveria me comportar na relação com ele, qual seria meu papel, como eu poderia melhor atender suas expectativas para facilitar esses objetivos. A importância aqui é legitimar o conhecimento local, convidar o saber do cliente para experiências engrandecedoras, que exige do terapeuta curiosidade para o desconhecido, humildade em se permitir aprender com o cliente, construir com estar com (Anderson & Goolishian, 1988; Hoffmann, 2007).

Ele me respondeu que imaginava que eu poderia ser como um conselheiro. Neste momento minhas vozes internas se manifestaram num tumulto. Como eu, um terapeuta colaborativo, poderia atender esse pedido, para ser conselheiro? Conselhos são a última coisa que a minha crença me permitia fazer no relacionamento; todas as crenças de opressão pelo conhecimento do terapeuta me ocorreram, toda a aprendizagem de que a mais simples sugestão carregava consigo o potencial de crítica às possibilidades do outro, trazendo o risco da dependência das instruções do terapeuta para a ação no mundo.

Este momento de intenso diálogo interno, para interpretar e responder da melhor forma possível à conversação, me lembra de Wittgeinstein (apud Shotter, 1997) no destaque para os alvoroços, o fundo que não percebemos em uma ação, que determinam a construção dos nossos julgamentos, conceitos e reações, o momento em que eu estava engajado nesta interação privada, com meu self relacional, construindo possibilidades de resposta àquele enunciado inesperado. Respirei fundo e pedi ordem aos meus personagens internos. Como terapeuta colaborativo, antes de qualquer coisa, eu precisava ouvir e entender meu cliente. Perguntei como ele imaginava um conselheiro, se ele teria um exemplo, um modelo para me basear. Ele me respondeu que o conselheiro era alguém sábio. Pensei novamente nos meus modelos de conselheiros e sábios e me arrisquei, perguntei se um bom modelo seria um mestre jedi, sou fã do monomito e da jornada do herói, trabalhos desenvolvidos por Joseph Campbell (2008; Campbell & Moyers, 2011), havia me ocorrido a imagem do mestre Yoda de Star Wars, como um personagem icônico de conselho e sabedoria, alguém que poderia participar do nosso diálogo, se fosse o que o cliente entendia por conselheiro também. Ele me olhou sério e disse que sim. Busquei confirmar meu entendimento: poderia acompanhar seu desenvolvimento, colocando minhas percepções e participando das decisões dos caminhos que ele tomaria. O jovem confirma, apenas a confirmação do cliente pode nos assegurar de um processo de entendimento, de que estamos um com o outro.

Mais tarde, em contato com sua mãe, ela diz que ao perguntar sobre a terapia ao filho, ele conta justamente sobre minha curiosidade de como ser o melhor terapeuta para ele, evidenciando a importância deste processo, confirmando minha escolha. O cliente sabe o que precisa para iniciar seu processo de diálogo e transformação e o terapeuta precisa estar aberto para responder a esta necessidade (Anderson, 2007; Anderson, 2009). Precisamos confiar no saber de nossos clientes, legitimar sua experiência, para encontrá-los como iguais em um processo de desenvolvimento humano. Simetria é outro valor chave desse encontro. Quando nos colocamos simetricamente e conscientes do nosso papel como acompanhantes da jornada de nossos clientes, com um olhar que aprecia suas competências e entende a coerência de seus movimentos, podemos desenvolver o entendimento do principal mote da minha prática: confiança no processo. Os seres humanos são seres resilientes, que buscam seu desenvolvimento e bem-estar. Que fazem da carência, competência. Que são criativos na construção de narrativas empoderadoras de suas vivências. Quando o terapeuta aprende a confiar no processo, ele acessa outro nível de parceria com seu cliente. Quando as pessoas entendem a confiança no processo, elas podem experimentar um novo significado de liberdade e autonomia.

CRIATIVIDADE E O CONVITE A OUTROS PARTICIPANTES DO PROCESSO

Esses primeiros atendimentos foram muito desafiadores. Eu me sentia não encontrando a ponte para diálogo com ele. Em uma sessão, ele havia me pedido exercícios para a memória e fui atrás de recursos para estimular seu cérebro. Atendi-o em consultórios diferentes e solicitei a descrição do local anterior para exercitar memória e percepção. Esses exercícios me demandavam como terapeuta, eu estava atento às expectativas do cliente e consciente da fragilidade de nosso vínculo. O momento em que percebo diversão com o processo, confirmado por meio de avaliações sobre aquilo que ele traz e como eu coordeno a terapia construíram maior confiança no processo e um no outro. Procuro não deixar nenhuma interpretação minha privada em meus pensamentos, o risco de desencontro pode ferir a forma como estamos um com o outro e pode nos afastar do mesmo entendimento. Por isso o conceito de tornar público (Anderson, 2009), contextualizar uma interpretação ou pensamento para o cliente e finalizar com uma pergunta que busque confirmar ou descartar esta linha de pensamento, isso em nome do não saber, da simetria e humildade. Nós, terapeutas, não temos uma posição privilegiada para entendimento do outro, o que podemos ter são oportunidades de ouvir e responder de forma a favorecer o entendimento e a construção de novos conhecimentos.

Neste momento do processo, ele me trouxe um novo objetivo à terapia, me disse que enfrentava dificuldades na leitura de livros, pois, sempre que encontrava uma palavra que não conhecia, ele precisava buscar seu significado em dicionário para voltar à leitura. E quando voltava à leitura precisava voltar alguns parágrafos para retomar o contexto do romance. Lembrem-se da discussão anterior sobre diagnósticos, muito mais desafiador era entender meu cliente e a coerência da sua dificuldade e este caso estava me motivando a aceitar todos os desafios que ele propunha. Busquei o máximo de entendimento local sobre seu problema, usei da curiosidade para entender a situação em que o problema se manifestava e que recursos ele já exercitava para superação do problema. Pude aprender sobre esta forma de relacionamento singular com a leitura e então perguntei que livro ele estava lendo, ele respondeu que havia começado a leitura da saga Harry Potter, estava no primeiro livro dos sete. Este conhecimento me deixou muito animado e perguntei quais eram suas personagens preferidas e como estava sentindo a leitura. Ele me responde que a personagem que mais gostava era o diretor da escola, pelas palavras de sabedoria, mas que sentia certa frustração na leitura, pois tinha dificuldades de registrar os acontecimentos do romance em sua memória.

Nas sessões seguintes, construímos um formato diferente e criativo para nossas conversas. Eu o convidava para eleger aquilo que gostaria que conversássemos quando iniciávamos a sessão, pois preciso ter a segurança de que o cliente está engajado naquilo que ele acha importante à terapia, em seguida perguntava sobre sua leitura e o convidava a fazer um resumo dos trechos lidos e sua reflexão sobre os últimos acontecimentos do romance. Foi assim que a saga do bruxo começou a participar da terapia. Quando estamos lendo um livro, especialmente um romance com trama e personagens e relacionamentos, estamos conectados àqueles personagens, vivendo com eles suas aventuras, nos emocionando e respondendo às suas demandas. Como os autores do self dialógico (Lenzi, 2013; McNamee & Gergen, 1999) já diziam, internalizamos vozes significativas ao nosso desenvolvimento, sejam elas culturais, de pessoas relevantes, ou mesmo fictícias. Vozes que compõem nossa identidade, inspirando nossos posicionamentos no mundo.

O cliente me contava daquilo que havia lido, no início com certa dificuldade, e, aos poucos, com habilidosa desenvoltura. Contava a história e eu o ouvia, ao fim de seu relato eu perguntava sobre algum trecho e compartilhava minhas reflexões sobre os temas que haviam me tocado. Nossas reflexões mais elaboradas eram construídas a partir de participações da personagem Dumbledore, que contribuía com sua sabedoria. Ao longo dos sete livros, nosso momento de mais engajamento era o discurso final do diretor, quando transmitia as lições que haviam sido aprendidas pelas personagens.

Este foi um momento do processo que me remeteu aos ensinamentos de Tom Andersen (2002) sobre escuta e resposta em terapia. Enquanto ouvia meu cliente eu limpava minha mente de pensamentos, eu estava presente, com ele (Hoffmann, 2007), apenas observando e ouvindo o fluxo do relato, não me preocupava em construir reflexões ou perguntas, mas me comprometia em escutar atentamente as mensagens que me eram direcionadas, pelo relato, pelo corpo, pelo que me tocava, por minhas respostas corporais. Ao final do relato, me engajava aos pensamentos que surgiam da escuta, num diálogo privado e silencioso. Muitas perguntas e comentários se manifestavam, mas, para não bombardear meu cliente, eu sentia e desenvolvia aquele pensamento que me tocava mais intensamente, construindo uma pergunta pela qual me apaixonasse. Só então oferecia esta pergunta, tornando público (Anderson, 2009) o processo pelo qual havia passado privadamente para construção e oferta da pergunta. Quero que o cliente entenda como funcionam meus pensamentos e processos privados e quero participar com o meu melhor do diálogo. Quando explico o processo de construção da pergunta e a ofereço a ele estou falando do processo e evidenciando a importância que aquilo tem para mim, na esperança de causar certa tensão que seja suficiente para convidar a reflexão e o novo. Tom Andersen (2002) chamava isso de o “suficientemente diferente”. Mais tensão poderia paralisar o cliente e menos tensão poderia fazer minha pergunta passar despercebida. Este entendimento, segundo Tom Andersen, tem suas origens nas observações que fez em sessões de fisioterapia: quando o profissional causa pouca tensão, o corpo não responde, quando causa tensão demais, o corpo enrijece, mas quando causa tensão na medida, o corpo tenciona e relaxa.

O hábito da leitura transformou esse rapaz. A partir de seu exercício diário de leitura, ele pôde desenvolver sua atenção e discurso, era nítido como ele ampliou seu repertório comunicacional, explorando comigo palavras novas, gerando novos significados em sua vida. Eu o desafiava com minhas perguntas e respostas, nosso diálogo ficava cada vez mais complexo. Penso complexidade no sentido de conter mais informações, mais rico, permitindo a construção de conhecimentos que vão além do conteúdo anterior. Nesse caso, falava do relacionamento interpessoal, da forma como somos diferentes em cada relação, cada qual invocando recursos singulares, formas de ser e se comunicar que configuravam nosso self dialógico (Lenzi, 2013).

Proponho que a relação terapêutica se assemelhe a uma conversação cotidiana ao cliente, algo que se aproxime de seus relacionamentos banais que seja confortável, considerando-se que o contexto em si convida aquilo que está desconfortável ao outro, enquanto o diálogo visa complexificar o conhecimento, para que o cliente experimente o novo e o criativo. Também a partir da leitura e engajamento em seu conteúdo, o cliente pôde internalizar as vozes das personagens com que dialogava no romance. Seu self era composto por recursos destas personagens, que o desafiavam ao crescimento, o convidavam a ser melhor do que era. Enquanto seu terapeuta, eu me transformava intensamente. Poder participar desse processo ampliou meu conhecimento do poder generativo da leitura, engajando-me com afinco em minhas próprias leituras. Posso dizer com segurança que o próprio processo de autoria deste artigo, iniciado três anos após o início deste processo terapêutico, carrega as transformações vividas na relação com aquele cliente. Desde então, quando um cliente me pede por uma sugestão do que fazer de sua rotina para encontrar mais paz, ou se desenvolver, eu pergunto sobre qual o último livro que leu e qual foi a leitura mais significativa de sua vida.

CORPO, MENTE, COMUNIDADE E ESPIRITUALIDADE

Outro conceito que trago da minha experiência com pessoas em desenvolvimento está associado a quatro pilares de sustentação do bem-estar: o físico, o mental, o social e a fé. Enquanto identificado com a terapia colaborativa (no sentido de abrirmos mão do nosso saber a priori para legitimarmos os saberes locais e contextualmente coerentes de nossos clientes, de promovermos autoria e protagonismo nas histórias), também recebo com respeito os convites para participação com os saberes que tenho desenvolvido na minha prática e que proporcionam minhas transformações pessoais. Nestes momentos de interação simétrica, invoco as vozes dos clientes que me ensinaram sobre esses quatro pilares de sustentação, para participarem comigo do diálogo em terapia, ampliando nossos entendimentos de como pessoas buscam seu bem-estar: pelo exercício físico, alimentação e cuidado com o corpo; por leituras, estudo, reflexão e meditação; pela inserção em novas comunidades, tribos e grupos, com todo o seu potencial de contágio e transformação de nossas perspectivas; e do exercício de uma crença inabalável, que nos sustente durante as tempestades, sem doutrinas ou rituais específicos, mas que nos inundam de esperança e confiança de que os processos se desenvolvem para o melhor. Corpo, mente, coletividade e fé. Estes conteúdos são produtos do diálogo com clientes, práticas e teorias e os entendo como bem vindos apenas quando convidados pelos clientes. Na minha experiência se apresentam como caminhos que, em determinados momentos, os clientes tomam para desenvolver seu bem-estar. A sugestão ingênua destas atividades carrega o risco de alienar o cliente no saber do terapeuta. Apenas quando estamos em diálogo, quando estamos com o cliente é que entendemos o seu significado para o desenvolvimento de seu bem-estar é então é bem vindo compartilharmos uma história pessoal incentivadora, ou mesmo convidar um testemunha externa com uma história que possa comprometer o cliente com seu desenvolvimento (Grandesso & Barreto, 2007; White 2007).

Conversávamos com leveza sobre nossas vidas e o cliente pôde pensar comigo em chamados que ele gostaria de aceitar, mas que não se sentia pronto, me falou da vontade de praticar uma arte marcial e da necessidade de, primeiramente, se desenvolver muscularmente, numa preparação do corpo para a aprendizagem marcial. Coloquei-me curioso sobre seu interesse pelas artes marciais e perguntei no sentido de conhecer melhor esse universo. Ele me educou sobre o conhecimento oriental que unia o desenvolvimento físico ao mental e ao espiritual, falou de meditação e dos benefícios da atividade física para o funcionamento cognitivo. Enquanto conversávamos sobre o desenvolvimento de nós como um todo, sem separações entre mente e corpo, o rapaz me pergunta se eu conheço Bruce Lee, o artista marcial. Respondo que conheço pelo nome, sabia que ele havia sido um fenômeno em sua época e pergunto o que ele poderia dizer sobre este homem. Foi quando nossa relação passou por outro marcante acontecimento extraordinário. Meu cliente conta que além de artista marcial, o atleta era graduado em filosofia com uma produção sobre filosofia e arte marcial, recomendou que eu assistisse a um vídeo, que indico a todos que assistam também (Youtube, 2015). Foi a partir dessa sessão que começamos a conversar sobre filosofia. É importante reforçar que esses assuntos surgiam na conversa e eram explorados ativamente por nós dois, eu estava sensível ao meu cliente e aos assuntos em que ele se engajava com mais conforto na conversa. Isto é investir na relação com, é falar com o outro de um assunto é viver com ele transformações de significado e conhecimento, nos afastando novamente das práticas de falar para o outro ou facilitar um processo para o outro, com o risco de uma produção incoerente e de sairmos do encontro sem nenhuma aprendizagem significativa.

A filosofia levou às conversas sobre o conhecimento e esta invocou a vontade do cliente em continuar seus estudos, ingressando em uma universidade. Foi quando soube que ele optaria pelo curso de administração, em função de a mãe ter uma empresa onde ele poderia contribuir com seu conhecimento. As interações com este rapaz nunca deixavam de me surpreender, nesta situação o argumento pela escolha, a esperança de colocar seus conhecimentos em prática e desenvolver seus relacionamentos sociais me conectaram com a segurança e autonomia que o cliente tinha sobre seu processo, não há resultado mais significativo e emocionante que este, na minha prática.

Concomitante a estes acontecimentos, o rapaz se desafiava com leituras mais densas, selecionadas por serem obras de relevância política e literárias, como Admirável mundo novo e Os miseráveis. Novamente me colocava interessado e curioso sobre suas leituras, nossas conversas se engajando na ficção metafórica de Aldous Huxley sobre a sociedade equilibrada, produtiva e medicalizada, fóbica ao sofrimento e ao diferente. E também conversas sobre a desigualdade social, os limites a que chegam as pessoas em necessidade, o individualismo que culpa a pessoa como única responsável pelo crime, abstendo-se da participação na construção de uma sociedade que oprime pessoas ao limite do desespero, inspiradas pelas palavras de Victor Hugo. Todas importantes reflexões convidadas pelo construcionismo, compartilhadas em obras literárias. Reforça nosso compromisso de uma prática inclusiva, que se interessa e legitima saberes diversos, aberta ao improviso e construção singular (Gergen & Gergen, 2010).

Até hoje mantenho meu interesse pelas atividades de lazer que meus clientes escolhem, seja na leitura, em filmes, na música, jogos digitais, ou em outras formas de entretenimento. Acredito que ali há conteúdos que passam a compor a identidade dos meus clientes, conteúdos que eu preciso conhecer para entender as regras de construção de sua realidade, os jogos de linguagem, as formas de vida. Busco conhecer estas formas de entretenimento na conversa com eles, que acaba por se caracterizar como um diálogo sobre a vida, que não foca em problemas, mas em recursos de bem-estar para a pessoa. Finalmente, fico atento para como estas formas de entretenimento convidam a pessoa para uma vida mais alegre, esperançosa. Há mensagens nestas produções de entretenimento que educam gerações para uma ação no mundo, melhor que estejamos atentos a quais são estas mensagens e como podemos usá-las em favor do desenvolvimento das gerações que as acompanham e consomem. Dessa forma, podemos entender que a arte inspira a vida da mesma forma que a vida inspira a arte, ou como os construcionistas entendem: somos produtos e produtores das nossas realidades.

OS OUTROS PARTICIPANTES

Em outra oportunidade, havia recebido uma das mensagens de sua mãe, contando de um conflito, uma argumentação que havia tido com o filho. Me pedia para conversar sobre estes temas com ele: humildade, raiva, orgulho e transparência e me pediu discrição. Foi um momento reflexivo para mim, fazia tanto tempo que ela não me trazia encomendas à terapia que eu imaginava já ter dissolvido esta ponte. Meu sentimento no momento era que não era mais coerente trazer conteúdos externos à conversação. Como eu poderia atender ao pedido da mãe, sem trazer conteúdos a priori que poderiam intimidá-lo na relação comigo?

Estas questões são sempre mais complexas do que parecem, todos os discursos subliminares a essa ação, como a imposição dos significados da mãe sobre os dele; a eleição dos temas que precisam ser conversados pelo terapeuta, quebrando com a simetria e estabelecendo o poder nas mãos do profissional; a repressão exercida pela aliança entre mãe e terapeuta; entre muitas outras fantasias que podem ter me ocorrido naquele momento, na minha experiência aprendi que não podemos ser ingênuos ao estarmos íntimos das pessoas. Quando senti todas estas vozes desastrosas, decidi que iria confiar no processo e não iria convidar esses temas objetivamente. O resultado foi que o próprio cliente trouxe os temas para a conversação. Ele havia pensado recorrentemente em temas semelhantes a partir do conflito com a mãe. Eu coloquei meus entendimentos e curiosidades, ao mesmo tempo em que tornava público o pedido da mãe para conversar sobre esse conflito. Pude explorar com ele como ele nomeava e percebia os significados que haviam ficado para sua mãe, num processo de presentificar a voz dela, explorando nesse diálogo as formas de entendimento dele, as dela, as minhas e aquelas que construíamos juntos. Este é um recurso para invocar a dimensão social dos significados que vivemos, convidamos a multiperspectiva e a polivocalidade para enriquecer o entendimento, explorando múltiplas versões, percepções e narrativas para um mesmo fenômeno. O resultado é o entendimento ampliado do fenômeno, conhecimento que prepara para novas respostas e formas de relacionamento.

Constantemente convido as vozes não presentes das pessoas que participam da vida dos meus clientes; acredito que internalizamos aquelas vozes relevantes em nosso processo de criar realidade. O diálogo pressupõe enunciação e resposta, toda enunciação tem uma expectativa de resposta, possibilidades antecipadas pelo enunciador para a resposta de seu parceiro conversacional, desta forma estamos sempre comunicando de forma a prever o que nos será respondido, nossas expectativas, esse é o aspecto retórico-responsivo do construcionismo social (Shotter, 1993). Com este conhecimento, nossa investigação busca entender e explorar as vozes internalizadas que participam da construção dos enunciados das pessoas. Uma forma de se engajar nesse processo que constantemente ocorre em minha prática, é através do convite ao diálogo com os personagens internos do cliente (Lenzi, 2013).

Personagens Internos é um conceito desenvolvido por Telma Lenzi (2013) para o convite às várias formas de vida em nossos clientes. A partir da compreensão socioconstrucionista, nosso self se caracteriza como relacional, composto por múltiplas vozes, internalizadas ao longo de nossas experiências vividas e que têm coerência na construção da nossa identidade e nas formas de compreensão do mundo. Estas vozes são invocadas nos relacionamentos, interdependentes ao outro, ao contexto e à interação.

A proposta do diálogo com Personagens Internos é explorar as formas espontâneas de interação em nossos clientes e o contexto em que estas se manifestam. Através da curiosidade às diferenças na performance podemos construir esse repertório relacional, desenvolvendo-o na imaginação, conferindo nomes e características aos nossos personagens. O conhecimento gerado no diálogo inspira o cliente a perceber o ambiente com novos olhos, a ter uma postura reflexiva para a forma de ser em cada momento e escolher sua melhor personagem para trazer a determinadas interações.

No caso em discussão, o cliente pôde explorar a situação de conflito com sua mãe e questionar sobre as formas de participação e resposta naquela interação. Facilmente conseguimos olhar para a responsabilidade do outro ao invocar em nós determinada personagem, então, convidando o conhecimento de uma responsabilidade relacional (McNamee 
& Gergen, 1999) de que somos todos autores das situações que vivenciamos, conseguimos encontrar vozes diferentes para responder àquela interação. Nesse momento conhecemos e desenvolvemos a personagem Sabedoria que, com humildade, percebe suas emoções e pode voltar à relação com um pedido de desculpas por sua participação na cena, reconhecendo as aprendizagens que podem vir deste desencontro. Preciso entender como essas personagens são invocadas nas relações cotidianas de meus clientes, para entender que formas alternativas existem em seu repertório narrativo que podem oferecer interações mais úteis ao seu cotidiano.

Ele mantinha seus estudos, leituras por entretenimento, atividade física regular e a terapia. Senti-me presenteado quando, após alguns meses tendo nossos encontros a cada duas semanas ele pede para voltar à frequência semanal, pois havia conversado com seus familiares sobre a importância do encontro nesta frequência e pedia para retomar esse acordo apesar do investimento financeiro. Foi importante saber dele que aqueles encontros, mesmo após todo esse tempo, continuavam a inspirar suas ações no mundo e que ele sentia a relação como um momento de planejamento e compromisso comigo das suas próximas atitudes. Ainda mais relevante foi sua articulação da rede para batalhar por seus desejos, o processo de comunicar algo que ele queria, indo de encontro a um acordo anterior de redução de despesas, argumentando suas vontades e buscando formas alternativas de acordos familiares. Simultaneamente, um outro personagem interno se encontrava em uma posição delicada, a de um terapeuta colaborativo, pois trabalhamos para nos tornar dispensáveis. Queremos que o cliente seja independente de nós, que desenvolva autonomia e possa continuar sua jornada sem a necessidade de nossa companhia. Quando entendemos nosso self como dialógico e composto de múltiplas vozes, podemos sentir essas ambiguidades. Respeitamos o tempo de cada cliente, atentos às forças que o mantém na terapia, sempre conversando sobre o processo, de forma a avaliar aquilo que podemos fazer diferente, de forma a colocar o cliente na posição de consumidor e avaliador do serviço recebido. Me ofereço como o alfaiate que irá confeccionar um traje sob medida e de acordo com as expectativas do cliente.

TRANSFORMAÇÃO MÚTUA

A metáfora do alfaiate é uma história íntima que me acompanha na clínica. Meu avô foi alfaiate, confeccionando trajes sob medida por muito tempo. Lembro quando ele estava fazendo um traje para mim e me falava: “Filho, você precisa dizer onde está pegando e onde está muito frouxo, lembre-se que, mesmo se eu vestir o traje, o meu corpo é diferente do seu e eu nunca vou adivinhar o que você quer.” Entendi que meu avô falava de uma prática colaborativa, em que, como cliente, eu trazia comigo a expectativa para o produto e meu saber de mim, das minhas preferências, da minha experiência com o traje. Meu avô entrava com o conhecimento de como facilitar que aquela matéria prima se transformasse em um traje feito às medidas do meu corpo, algo que ficasse confortável apenas para mim, que eu fosse usar com alegria por muito tempo. Entendo a terapia de igual forma e muito semelhante ao que Anderson e Goolishian (1998) entendiam por especialidade do cliente e especialidade do terapeuta. O cliente é o senhor de sua história, ele, mais do que ninguém, entende o que está acontecendo com ele, entende das regras do seu mundo e entende daquilo que ele quer para a terapia. O terapeuta entende do relacionamento humano, entende em como criar intimidade com seu cliente, entende de fazer perguntas sobre os conteúdos trazidos pelo cliente de forma a abrir novas janelas de entendimento de um conceito. Nessa interação o cliente traz a matéria-prima e nós nos engajamos nela com nosso interesse sobre os aspectos sociais da experiência, sobre a polivocalidade e multiperspectivismo, com nossas próprias histórias e experiências semelhantes que podem servir como inspiração e principalmente com nossa vontade de entender este mundo e, com isso, gerar conhecimento e liberdade.

Nossa última investida juntos no processo de mútua transformação foi o acordo de lermos simultaneamente o livro O Mundo de Sofia, que trazia um apanhado geral do desenvolvimento da filosofia ocidental desde a antiguidade. Líamos dois capítulos por semana e dialogávamos sobre os conceitos apresentados. Esta foi uma proposta construída por ele e aceita por mim. Preciso evidenciar aqui a simetria que alcançamos em nosso relacionamento, a liberdade de propor novas formas de fazermos nossa terapia, a partir daquilo que ele acreditava ser o melhor para o seu processo.

Gostaria de invocar o conceito de transformação mútua de Harlene Anderson (Anderson, 2007; Anderson, 2009). Sempre que estou com meus clientes em nossos diálogos, estou aberto para me transformar com eles, aliás, acredito que se não saio transformado de um atendimento, o cliente também não deve ter experimentado nenhuma transformação. Isto porque acredito que o diálogo nos une e nos mistura, sendo tudo aquilo que pensamos e sentimos invocados naquela determinada relação, tudo pertence aos envolvidos e nada tem autoria individual. Desde este processo, quando clientes me pedem por sugestões, ou quando eu quero conhecê-los ainda mais, pergunto pelos livros que eles estão lendo, se estão fazendo atividades físicas, se estão estudando algo novo e se estão se relacionando cotidianamente com outros, são aprendizagens que sempre caminham comigo e que pude vivenciar graças ao intenso comprometimento desse cliente com seu desenvolvimento.

PENSAMENTOS FINAIS

Sinto o convite para uma reflexão, que visa desmitificar a crença de que o terapeuta colaborativo, dialógico, ou pós-moderno, não pode fazer sugestões. A sugestão é algo muito perigoso e não pode ser feita ingenuamente. Quando sugerimos, estamos comunicando, implícita ou explicitamente, que o nosso saber é melhor que o do outro, que a nossa ideia pode dar um resultado satisfatório, pois estamos analisando o fenômeno de uma posição privilegiada e objetiva. Graças a Tom Andersen (2002) e Harlene Anderson (2009) e tantos outros, sabemos que esta posição de saber, objetiva e neutra, é uma grande ilusão. O maior conhecimento, aquele que deve ser conhecido e respeitado, é aquele da pessoa que vive a situação, não o daquele que tem o saber descontextualizado a priori.

Portanto, quando um cliente insiste por uma sugestão, pede por ideias ou caminhos, eu construo, com muita responsabilidade, algo que coloque meu cliente no norte de um processo de adquirir mais conhecimento sobre a sua situação. Colocando em palavras mais simples: eu peço que ele faça um estudo sobre a sua vida e aquilo que ele chama de problema. Essa é a principal sugestão que a minha experiência profissional me permite fazer.

Deixando explícito: eu não fiz nada durante o nosso processo. Mas eu estive intensamente envolvido com meu cliente, atento, interessado, curioso, acreditando em sua potencialidade e desenvolvimento. Minhas participações me ocorriam de forma espontânea, pelo meu interesse nos processos relacionais e transformacionais das pessoas. Não havia estratégia ou agenda oculta, não sabia aonde chegaríamos, eu acreditava, tinha fé e esperança. E compartilho desses sentimentos em todos os atendimentos que faço. São pessoas pelas quais eu me apaixono e, em um estado de paixão, eu vejo suas maiores potencialidades e os acompanho pelo caminho que eles quiserem, respeitosa e apreciativamente.

Essa história não tem fim, ela foi interrompida quando o cliente precisou passar por um procedimento cirúrgico e se afastou da terapia. Mantemos nosso contato através das redes sociais até o momento em que escrevo este artigo, com a bênção dele e a esperança de inspirar outros terapeutas a relacionamentos como o que construímos: honesto, humilde e mutuamente transformador.


Referências

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Recebido em: 23/08/2016
Aprovado em: 06/03/2017
 

I Bruno Lenzi: Terapeuta dialógico. Coordenador no Instituto Movimento. E-mail: brunoplenzi@gmail.com

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