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Nova Perspectiva Sistêmica

Print version ISSN 0104-7841

Nova perspect. sist. vol.26 no.57 São Paulo Apr. 2017

 

ARTIGOS

 

Contribuições do Pensamento Sistêmico, da Gestalt-terapia e de práticas da psicologia para o trabalho em um CAPSI

 

Contributions of Systemic Thinking, Gestalt Therapy and psychology practices to work in a CAPSI

 

 

 

Isabella Goulart BittencourtIElisangela BöingII


 


RESUMO

Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) são fundamentais para o processo da Reforma Psiquiátrica por terem como um dos propósitos, a partir da perspectiva do SUS, redirecionar o modelo de atenção à saúde mental. A partir da necessidade de um atendimento especializado para crianças, adolescentes e seus familiares, foi criado o Centro de Atenção Psicossocial para Infância e Adolescência (CAPSi). Neste artigo, buscamos refletir, com base no Pensamento Sistêmico e da gestalt-terapia, sobre as atuações específicas da Psicologia e ações interdisciplinares a partir da experiência de estágio curricular em um CAPSi da região sul do país e apontar de que forma tais ações se relacionam aos princípios e diretrizes do SUS. Discutiu-se a respeito do trabalho da equipe interdisciplinar e da importância da mesma para o atendimento integral ao sujeito, além de apresentar questões sobre o Pensamento Sistêmico, a gestalt-terapia, a avaliação psicológica e a psicoterapia, mostrando a contribuição destas teorias e práticas para a comunicação, interação e relação da equipe e para o trabalho em rede. Portanto, as teorias citadas podem contribuir não só para as práticas específicas da profissão, mas também para a qualidade das ações interdisciplinares e intersetoriais.

Palavras-chave: centro de atenção psicossocial (CAPS), epistemologia sistêmica, gestalt-terapia, saúde mental, SUS, teoria da comunicação.


ABSTRACT

The “Psychosocial Care Centers” (CAPS) are fundamental for the Psychiatric Reform process, because they have as one of the purposes, from the SUS perspective, to redirect the mental health care model. Based on the need for specialized care for children, adolescents and their families, the Psychosocial Care Center for Childhood and Adolescence (CAPSi) was created. In this article, we seek to reflect, based on Systemic Thinking and Gestalt therapy, about the specific actions of Psychology and interdisciplinary actions from the experience of curricular internship in a CAPSi of the southern region of Brazil and to indicate how such actions relate principles and guidelines of SUS. We discussed the work of the interdisciplinary team and its importance for the integral care of the subject, besides presenting questions about Systemic Thinking, Gestalt therapy, psychological evaluation and psychotherapy and the contribution of these theories and practices to the communication, interaction and relationship of the team and for networking. Therefore, the theories cited can contribute not only to the specific practices of the profession, but also to the quality of interdisciplinary and intersectoral actions.

Key Words: psychosocial care center (CAPS), systemic epistemology, gestalt therapy, mental health, SUS, communication theory.


 

A Constituição Federal (1988) instituiu que a saúde é direito de todos e dever do Estado e deve ser garantida por meio de políticas sociais e econômicas que almejem reduzir o risco de doença e de outros agravos e que proponham o acesso universal e igualitário às ações e serviços para promoção, proteção e recuperação da saúde da população (Brasil, 1988). O conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas com administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público, constitui o Sistema Único de Saúde (SUS), que resulta de movimento de reforma sanitária e de redemocratização do país (Brasil, 1990).

Na Lei nº 8080, estão descritos os princípios e diretrizes do SUS, que se dividem em doutrinários e organizativos. Os primeiros referem-se à universalidade de acesso, à equidade na assistência à saúde e à integralidade (Brasil, 1990). Por meio da universalidade, deve-se garantir que todas as pessoas tenham direito de serem atendidas, independentemente de cor, raça, religião, local de moradia, situação de emprego e renda ou qualquer aspecto, pelos serviços públicos de saúde e pelos serviços privados que têm convênio com o SUS. A equidade pretende diminuir as desigualdades, isto é, ajustar as ações dos serviços de saúde às necessidades de saúde de cada população e cada sujeito. A integralidade indica que as ações de saúde devem ser planejadas e efetuadas considerando o sujeito na sua totalidade, de modo integral, ou seja, observando aspectos biopsicossociais e contextuais, realizando intervenções que visem à promoção, prevenção e recuperação da saúde (Brasil, 1990; Böing & Crepaldi, 2014).

Os princípios organizativos englobam a regionalização, hierarquização, resolubilidade, descentralização, participação dos cidadãos e complementaridade do setor privado. Os princípios da regionalização e hierarquização determinam que os serviços de saúde sejam organizados em três níveis: 1) atenção básica (primeiro nível de atenção à saúde no SUS, que emprega tecnologia de baixa densidade, isto é, utiliza procedimentos mais simples que podem atender à maioria dos problemas comuns de saúde da comunidade); 2) atenção secundária (média complexidade ambulatorial; atende aos problemas e agravos de saúde da população, demandando profissionais especializados e a utilização de recursos tecnológicos para apoio diagnóstico e tratamento); 3) atenção terciária (procedimentos que requerem alta densidade tecnológica, geralmente relacionados ao sistema de informação hospitalar e ambulatorial) (Brasil, 2007) –, que devem estar dispostos em uma área geográfica delimitada e com a definição da população a ser atendida. A organização em níveis de atenção à saúde permite que os serviços ofereçam à população todas as modalidades de assistência por meio de um sistema de referência e contrarreferência, ampliando o grau de resolubilidade (Brasil, 1990; Böing, 2009). Embora os conceitos hierárquicos de “níveis de atenção à saúde” se mantenham, atualmente a compreensão está voltada para a lógica de rede de atenção à saúde, na qual os serviços de atenção primária, secundária e terciária ocupam diferentes pontos. A atenção básica deixa de ser entendida apenas como “porta de entrada” e base do sistema, para ocupar o “centro da rede de atenção” e para assumir também a função de ser referência contínua do cuidado em saúde e organizadora do acesso aos demais pontos da rede de atenção (serviços secundários e terciários).

Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), organizados na atenção secundária, são fundamentais para o processo da Reforma Psiquiátrica, visto que têm como um dos propósitos, a partir da perspectiva do SUS, redirecionar o modelo de atenção à saúde: de um modelo hospitalocêntrico asilar para o modelo de atenção psicossocial (Machineski, Schneider, & Camatta, 2013). Os CAPS destinam-se ao acolhimento de sujeitos com sofrimento psíquico grave, à sua integração social e familiar e ao apoio a iniciativas de busca à autonomia. Procuram, principalmente, integrar os usuários do serviço a um ambiente social e cultural, denominado como seu “território”, o qual apreende não somente uma área geográfica, como também as pessoas que nele vivem. Tal compreensão objetiva organizar uma rede de atenção àqueles que têm um sofrimento psíquico severo e persistente, bem como para suas famílias, amigos e interessados (Brasil, 2004a).

Considerando a necessidade de um atendimento especializado para crianças e adolescentes e a ampliação de possibilidades de atendimento precoce, o Centro de Atenção Psicossocial para Infância e Adolescência (CAPSi) constitui um serviço de atenção diária destinado a essa faixa etária (0 a 18 anos), bem como aos seus familiares. Comumente, os sujeitos que frequentam o CAPSi possuem sofrimento psíquico grave, condição que implica em dificuldade para manter ou estabelecer laços sociais saudáveis (Brasil, 2004a). Segundo o Ministério da Saúde (Brasil, 2004a), o CAPSi atende municípios com população acima de 200.000 habitantes com atividades como o atendimento individual, atendimento grupal, atendimento familiar, visitas domiciliares, atividades de inserção social, oficinas terapêuticas, atividades socioculturais e esportivas e atividades externas.

A inserção dos usuários no CAPSi acontece por meio das unidades básicas de saúde do SUS que, juntamente com as equipes de saúde mental do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF), prestam assistência e avaliam a necessidade de encaminhamento ao Centro de Atenção Psicossocial para crianças e adolescentes. No CAPSi em que foi realizada a experiência da qual trata este artigo, tais avaliações são informadas aos profissionais do serviço durante reuniões distritais, sendo esta a via oficial de encaminhamento dos postos de saúde. Também há a possibilidade de encaminhamento do Hospital Infantil, do Hospital Universitário, da escola que o sujeito frequenta, de acolhimento emergencial, do juizado e da assistência social.

A partir da perspectiva adotada, tem-se um conceito ampliado de saúde, regido pelas leis do SUS, no qual são incorporados aspectos do meio físico, fatores socioeconômicos e culturais, bem como oportunidades de acesso aos serviços e ações de saúde (Böing & Crepaldi, 2010). Com base no novo paradigma sanitário, o qual se fundamenta na teoria da produção social da saúde, não se entende “saúde” e “doença” como opostos, e sim como um processo. Entende-se, portanto, que há um processo saúde-doença a partir de uma concepção positiva de saúde.

Esse conceito de saúde tem uma compreensão contextualizada dos sujeitos e uma epistemologia sistêmica, que é baseada nos pressupostos da ciência novo-paradigmática (complexidade, instabilidade e intersubjetividade) e se propõe a compreender o processo saúde-doença como um fenômeno complexo (Böing & Crepaldi, 2014). A partir da compreensão do conceito ampliado de saúde, são desenvolvidas as ações específicas de cada profissão e ações interdisciplinares (Böing, Crepaldi & Moré, 2009) e a inserção do estudante de Psicologia em um Centro de Atenção Psicossocial possibilita a compreensão da dinâmica deste serviço e seu papel na Reforma Psiquiátrica, bem como contribuições e reflexões importantes sobre a formação e atuação do psicólogo.

Portanto, o presente artigo busca apresentar reflexões sobre as atuações específicas da psicologia e as ações interdisciplinares a partir de uma experiência de estágio curricular em um CAPSi da região sul do país. Propõe-se também a realizar uma articulação da prática profissional com a perspectiva epistemológica e as teorias escolhidas – Pensamento Sistêmico e Gestalt-terapia. Além disso, pretende apontar de que forma tais ações (específicas e interdisciplinares) se relacionam aos princípios e diretrizes do SUS.

DESCRIÇÃO DA EXPERIÊNCIA

O estágio curricular obrigatório da primeira autora foi realizado de agosto de 2015 a julho de 2016 em um CAPSi de um município da região sul do país, sob orientação da segunda autora, professora da universidade, e de uma psicóloga do serviço. Serão descritas as práticas profissionais em que a estagiária esteve presente e que fazem parte de Projeto Terapêutico Singular (PTS) de usuários do serviço. Optou-se por descrever as práticas realizadas pela primeira autora em terceira pessoa do singular e as reflexões teóricas feitas em discussões entre as autoras em primeira pessoa do plural.

No primeiro semestre, a primeira autora participou de um Grupo Terapêutico para Crianças com idade de 5 a 7 anos. O grupo era coordenado por uma psicóloga e uma enfermeira, tinha frequência semanal e duração de aproximadamente uma hora e meia. Esse grupo caracterizava-se por ser um espaço terapêutico, heterogêneo (composto por crianças de ambos os sexos) e buscava oferecer às crianças um espaço lúdico e simbólico como instrumento para lidar com o sofrimento psíquico. Isso permitia a socialização, enfatizando a interação entre as crianças e a criação de vínculos. O ingresso de crianças no grupo ocorria à medida que o mesmo estava acontecendo. No entanto, a entrada da criança precisava ser coerente com o seu PTS, elaborado a partir das demandas dela e da família, bem como das características e da idade da criança.

Além disso, houve a participação no Grupo Multifamílias, embasado pela Terapia Comunitária Integrativa (Barreto, 2008), a qual, por sua vez, fundamenta-se em cinco pilares: Pensamento Sistêmico, Pragmática da Comunicação Humana (Watzlawick, Beavin, & Jackson, 1983), Antropologia Cultural, Pedagogia de Paulo Freire e Resiliência. No CAPSi, foram convidados usuários adolescentes e seus familiares para participação no grupo. No primeiro encontro, compareceram adolescentes, irmãos e mães. Nos encontros posteriores, compareceram somente as mães de adolescentes.

No segundo semestre, a estagiária participou do Grupo de Crianças de 7 a 9 anos, também coordenado por uma psicóloga e uma enfermeira e tinha as mesmas características do grupo de crianças mencionado anteriormente. Coordenou também um Grupo de Psicoterapia para adolescentes e jovens adultos em conjunto com uma psiquiatra e participou de uma oficina para adolescentes em cocoordenação com uma assistente social, uma técnica de enfermagem e uma estagiária de serviço social. Ambos os grupos para adolescentes, apesar de terem propostas diferentes, caracterizavam-se como espaços terapêuticos. O primeiro buscava potencializar recursos pessoais para o melhor enfrentamento de situações vivenciadas pelos envolvidos (Moré & Ribeiro, 2010). Nele, eram trabalhadas questões de ordem relacional, emocional e familiar e eventos marcantes na vida dos usuários, como períodos de internação em hospitais psiquiátricos. O segundo caracterizava-se como um grupo operativo (Moré & Ribeiro, 2010) e se propunha a ser um lugar de promoção à saúde, em que eram abordados aspectos a partir de atividades lúdicas, artísticas e por meio do diálogo.

Em ambos os semestres, foram realizados atendimentos às famílias das crianças e adolescentes, os quais aconteciam a partir do entendimento de que os eventos ocorrem dentro de um contexto e que a atenção deve ser focalizada nas conexões e relações, além de considerar as características individuais (Papp, 1992). Estes atendimentos foram embasados nos pressupostos epistemológicos do Pensamento Sistêmico, os quais serão descritos posteriormente.

Também foram feitos atendimentos individuais, nem todos caracterizados por psicoterapia. Nesse processo, realizaram-se acolhimentos, isto é, atendimentos aos encaminhamentos de pontos da rede de atenção à saúde, às demandas espontâneas e às urgências. Foram realizados acolhimentos individuais, de famílias e em grupos (por faixa etária). A partir do acolhimento, da entrevista inicial, da avaliação dos profissionais e da discussão na reunião de equipe, eram decididos quais os casos destinavam-se ao atendimento no CAPSi.

Além disso, foram conduzidas entrevistas iniciais, o momento da abertura do prontuário no CAPSi, em que se inicia o preenchimento do roteiro de anamnese padrão do serviço pelo técnico de referência (TR), profissional que tem a responsabilidade pela condução do caso, pela ampliação das possibilidades de construção de vínculo com o serviço (incluindo técnicos e outros usuários) (Campos & Domitti, 2007) e pela criação e recriação do PTS. Nas entrevistas iniciais, eram feitas questões referentes à família (genograma) (Coelho, 2007), à demanda (motivo do encaminhamento), à gestação e ao desenvolvimento psicomotor do paciente identificado (criança ou adolescente).

Foram realizadas também avaliações psicológicas e atendimentos psicoterapêuticos, a partir dos pressupostos e do olhar da Gestalt-Terapia. Dentro dessa perspectiva, o contato com as escolas do usuário é necessário, pois se considera o ambiente escolar e as relações lá estabelecidas importantes para a compreensão do sujeito e do sintoma apresentado. Entende-se que o todo é diferente da soma das partes e que cada parte pode ser entendida apenas no contexto do todo (Aguiar, 2014; Capra, 1996; Papp, 1992; Perls, 1988).

A estagiária também participou das reuniões de equipe que aconteciam semanalmente. Dessas reuniões, participavam as psicólogas, enfermeiras, técnicas de enfermagem, assistente social, psiquiatra e estagiárias. Nelas, eram discutidos os casos, revisados os PTS e decididas ações intersetoriais. A partir das atividades desenvolvidas, serão discutidas as contribuições de teorias e práticas específicas da Psicologia para o trabalho no CAPSi, para o trabalho em rede e para as ações interdisciplinares.

CONTRIBUIÇÕES DO PENSAMENTO SISTÊMICO, DA GESTALT-TERAPIA, DA AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA E DA PSICOTERAPIA NO CAPSI

As práticas dos psicólogos em serviços de saúde pública são regidas pelos princípios e diretrizes do SUS e embasadas tecnicamente por teorias específicas do campo da Psicologia. A experiência no CAPSi teve, como base epistemológica, o Pensamento Sistêmico e como suporte teórico e metodológico, teorias sistêmicas e da gestalt-terapia. Ambas as abordagens teóricas relacionam-se aos preceitos do SUS e se propõem a compreender o sujeito em um contexto, que envolve questões pessoais, relacionais, históricas, políticas, econômicas e sociais ao longo do tempo.

O Pensamento Sistêmico tem como pressupostos epistemológicos: a complexidade, que se refere à contextualização dos fenômenos e ao reconhecimento da causalidade recursiva, a instabilidade, que diz respeito ao entendimento de que há um processo que está constante transformação e a intersubjetividade, que considera que não existe uma realidade que independe do observador (Böing & Crepaldi, 2014; Gomes, Bolze, Bueno, & Crepaldi, 2014; Vasconcelos, 2010). Böing, Crepaldi e Moré (2009) apresentam a epistemologia do Pensamento Sistêmico como norteadora da atuação do psicólogo no SUS. Demonstram também que os princípios da complexidade, da instabilidade e da intersubjetividade condizem com as perspectivas fundamentais do SUS, principalmente com o princípio da integralidade da atenção, que fundamenta a inserção do psicólogo nas equipes interdisciplinares de saúde. As autoras também indicam a utilização de recursos teóricos e metodológicos sistêmicos à medida que estes se propõem a reconhecer o sujeito no seu contexto, sem excluir os fenômenos intrapsíquicos, os quais, por sua vez, podem ser vistos e trabalhados a partir de uma complexa rede de relações interpessoais.

Os atendimentos às famílias também foram orientados a partir da perspectiva sistêmica (Gomes, et al, 2014) e da Teoria da Pragmática da Comunicação Humana (Watzlawick, et al, 1983), a qual entende que todo comportamento tem valor de comunicação e que a forma como as pessoas se comunicam estabelece padrões de relacionamento interpessoais. A comunicação humana é compreendida a partir de cinco axiomas: (1) é impossível não comunicar; (2) toda comunicação tem aspecto de conteúdo e de relação; (3) a natureza de uma relação está na contingência da pontuação das sequências comunicacionais entre os comunicantes, neste sentido, vê-se que a discordância sobre como pontuar a sequência de eventos está na raiz de incontáveis lutas em torno das relações; (4) há duas maneiras de comunicação: digital (comunicação verbal) e analógica (comunicação não verbal); (5) todas as permutas comunicacionais ou são simétricas ou complementares e se baseiam na igualdade ou na diferença (Watzlawick et al., 1983).

Esta perspectiva relacional sistêmica contribui para uma prática contextualizada e com a possibilidade de realizar uma clínica ampliada, que é centrada nos sujeitos em seus contextos, isto é, a doença não ocupa o foco da atenção. Considera-se a doença como parte da existência das pessoas (Campos, 2007; Campos, 2001). Desse modo, o terapeuta produz um diagnóstico situacional e um projeto terapêutico singular. Moreira, Romagnoli e Neves (2007) ainda consideram clínica psicológica não como um local, mas sim como a posição do profissional. Dessa forma, pode-se dizer que ela se caracteriza pela qualidade da escuta e pela acolhida oferecida ao sujeito.

Propõe-se, portanto, a colocar a doença entre parênteses, o que significa que o objetivo do trabalho é o sujeito, não a doença. Dessa forma, o olhar deixa de ser exclusivamente técnico (Campos, 2001). Isso não corresponde à negação da doença. É preciso conhecer os aspectos genéricos dos processos saúde-doença, além de aprender com a variação, saber escutar e investigar o caso singular. Nesse sentido, o objeto de investigação e intervenção é o “conjunto de condições concretas de existência da população, seus determinantes nos processos saúde-doença, suas expressões em experiências de sofrimento de sujeitos singulares” (Conselho Federal de Psicologia, 2013, p. 78).

O terapeuta que trabalha com base nos pressupostos sistêmicos para a coordenação de um grupo, por exemplo, pode contribuir para mudanças construtivas nas experiências e comportamentos que provocam sofrimento (Tomm, 1988). O autor sugere que as perguntas feitas durante o processo de terapia – seja ela individual ou grupal – podem promover ações transformadoras na vida das pessoas. Na Terapia Comunitária Integrativa, prática oficialmente incorporada pelo Ministério da Saúde como uma estratégia de prevenção e promoção da saúde para os serviços da rede primária (Carvalho, Dias, Miranda & Ferreira Filha, 2013; Ferreira Filha et al., 2009), as perguntas têm duas fases: a de contextualização e a de problematização. A primeira tem como propósito esclarecer e si­tuar os acontecimentos e compreender o sofrimento e o contexto em que ele ocorre. A segunda refere-se ao momento de reflexão do grupo, em que as perguntas são feitas para permitir que o grupo pense a respeito do significado e sentidos dos comportamentos das pessoas. Podem ser feitas perguntas lineares, circulares, estratégicas e reflexivas, as quais têm suas respectivas intenções e seus efeitos (Tomm, 1988).

No CAPSi, destacou-se o uso das perguntas lineares no começo do grupo, a fim de que os terapeutas coordenadores conhecessem aspectos da vida cotidiana dos pacientes e para que eles mesmos o fizessem entre si, já que a função dessas perguntas é investigativa. As perguntas reflexivas também tiveram destaque no grupo realizado no serviço, pois consistem em uma intervenção terapêutica em si. O propósito principal de utilizar essas perguntas de forma mais frequente foi possibilitar que os membros do grupo pudessem gerar, por eles mesmos, novos padrões de comportamento. As perguntas reflexivas e a terapia comunitária integrativa, de forma geral, possibilitam o desenvolvimento da autonomia dos sujeitos, porque acreditam na ideia de que todos os sujeitos têm potencialidades e capacidades de promover mudanças nas suas vidas, isto é, possuem uma força que os impulsiona para descobertas e transformações (Carvalho et al., 2013; Ferreira Filha et al., 2009). Então, o terapeuta assume uma postura facilitadora (Tomm, 1988). Além disso, a Terapia Comunitária Integrativa pode contribuir para o desenvolvimento de uma clínica ampliada, à medida que proporciona a proximidade dos pacientes com redes familiares e sociais e a construção de vínculos entre eles, isto é, abrange aspectos subjetivos, respeitando as individualidades, e sociais (Padilha & Oliveira, 2012).

Considerando que a visão de homem contribui para a realização da clínica psicológica, a gestalt-terapia também pode contribuir para algumas práticas específicas do psicólogo, como avaliação psicológica e psicoterapia. A gestalt-terapia baseia-se na fenomenologia de Husserl e nas seguintes teorias psicológicas: Psicologia da Gestalt, Teoria do Campo de Kurt Lewin e da Teoria Organísmica (Perls, 1988; Philippi, 2004; Ribeiro, 1994).

A psicologia da gestalt afirma que o sujeito não percebe as coisas e situações de modo isolado e sem relação, e sim organiza seu processo perceptivo como um todo significativo (Perls, 1988). Capra (1996), retomado por Gomes et al. (2014), apresenta aspectos históricos do surgimento do pensamento sistêmico, que aconteceu simultaneamente a outras disciplinas, em 1920. O autor mostra, em seu livro, que o pensamento sistêmico teve como pioneiros os biólogos, que contribuíram com a concepção de que os organismos vivos são totalidades integradas e, posteriormente, foi enriquecido pela psicologia da gestalt e pela ciência da ecologia.

Kurt Lewin propõe uma Teoria do Campo que demonstra a impossibilidade de não se interagir com aquele que se procura compreender (Philippi, 2004). Pode-se colocar a gestalt-terapia como fundamentalmente uma teoria do campo, em que o self é compreendido como um processo emergente e relacional. Segundo Philippi (2004), os teóricos sistêmicos também entendem o ser-no-mundo a partir da teoria de Lewin, a qual foi ampliada pela Teoria Geral dos Sistemas e pela Cibernética.

A Teoria Organísmica de Kurt Goldstein tem uma proposta holística, em que o todo não é a mera soma das partes, aspecto que corresponde à perspectiva sistêmica (Capra, 1996; Perls, 1988). Da visão holística, surge a ideia de autorregulação e de campo como uma relação pessoa-mundo na gestalt-terapia (Perls, 1988; Ribeiro, 2007). Não há, portanto, um “eu” dentro de um corpo, e sim seres humanos em relação uns com os outros (Ribeiro, 2007). Assim, pode-se afirmar que a gestalt-terapia oferece uma visão integral e não fragmentada do homem e da realidade (Aguiar, 2014). O self, a partir de uma perspectiva pós-moderna, pode ser entendido como uma rede de relações, não sendo, então, uma entidade individualizada (Goolishian & Anderson, 1996; Soar Filho, 1998).

No que se refere às similaridades entre o pensamento sistêmico e a gestalt-terapia, pode-se afirmar, a partir do exposto nos parágrafos anteriores, que ambas têm contribuições da Psicologia da Gestalt e da teoria de campo de Lewin. E, embora a teoria de self da gestalt-terapia tenha particularidades a serem consideradas – como suas fronteiras e funções –, ela também entende o self como interação contínua no campo/ambiente (Yontef, 1998). Além disso, tanto o pensamento sistêmico, quanto a gestalt-terapia criticam o pensamento mecanicista e o modelo cartesiano (Capra, 1996; Perls, 1988). Nesse aspecto, as duas abordagens se aproximam, pois compreendem o homem em relação.

Em gestalt-terapia, a avaliação psicológica, especificamente relacionada ao trabalho com crianças, envolve pensar qual é o papel desse sujeito diante das expectativas dos outros. Considera os valores e as necessidades dos membros da família e se propõe a identificar quais elementos dessa interação interferem no comportamento atual da criança e que recursos a família tem para refletir, escutar e aceitar o processo de mudança. Além disso, essa prática está em consonância com a visão de homem que a abordagem tem. Então, criança é compreendida e percebida como um ser integral, o que implica pensar numa vinculação mútua, numa influência e numa retroalimentação entre aspectos emocionais, cognitivos, biológicos, comportamentais, históricos, sociais, culturais, geográficos e espirituais (Aguiar, 2014). O modo de compreender o sintoma na gestalt-terapia e no pensamento sistêmico é similar, pois ambas as perspectivas teóricas, além de diferirem do modelo médico e do psicodinâmico, consideram o sintoma a partir de uma visão inter-relacional, enfatizam os contextos e consideram uma causalidade circular para os fenômenos (Grandesso, 2000).

Destaca-se que a avaliação psicológica em gestalt-terapia se diferencia do psicodiagnóstico que é realizado a partir da utilização de testes e medidas psicológicas (Santos, 2015). Embora o processo de diagnóstico e avaliação em gestalt-terapia envolva períodos de atendimentos individuais com a criança, necessita de contato constante com a família, com a escola e com os demais contextos em que a criança está inserida. A partir disso, considera-se que a gestalt-terapia corrobora para a compreensão do sujeito de forma contextualizada e com os princípios do SUS, principalmente no que se refere à integralidade e à equidade, à medida que considera o sujeito como singular. Portanto, com a realização de uma avaliação psicológica contextualizada e situacional, é possível pensar em um projeto terapêutico singular que englobe ações que proporcionem melhora do processo de saúde-doença do sujeito e que abranjam a família e todos os envolvidos (escola, projetos sociais, centros de saúde, serviços de assistência social e quantos setores fizerem parte da rede do usuário). A partir da experiência no CAPSi, percebeu-se que uma avaliação psicológica que amplia o olhar e que considera o sintoma como uma função para a vida do sujeito e para o sistema familiar, colabora para medidas de intervenção de qualidade, sejam elas específicas ou interdisciplinares. A avaliação e o manejo clínico podem contribuir, em muitos casos, com a diminuição da medicalização e da patologização do sofrimento.

Quando se percebe necessidade, não só a partir da avaliação psicológica, mas também da discussão de caso e da avaliação da equipe interdisciplinar, processos psicoterapêuticos individuais, de família e de grupo são realizados. Entende-se que, de acordo com Zurba (2015), a psicoterapia é uma ação específica de atenção psicológica e é um recurso de média complexidade na saúde mental. A psicoterapia, além de auxiliar o sujeito a refletir sobre si mesmo e seus processos de escolha, é uma estratégia que pode colaborar para a emancipação da pessoa e para o desenvolvimento de cidadania. Contribui para a prevenção de violência doméstica, suicídios e homicídios, bem como é um dos elementos importantes na história da Psicologia Clínica, que poderia colaborar efetivamente com a implantação de um novo modelo de saúde mental no Brasil (Zurba, 2015).

A psicoterapia, de diferentes bases teóricas, também pode colaborar para a realização de uma clínica ampliada. Conforme apresentado por Campos e Daltro (2015), a visão de homem, os conceitos e os recursos técnicos da gestalt-terapia podem contribuir para o desenvolvimento da clínica ampliada, pois o adoecimento é complexo e, para essa teoria, também é compreendido por meio da dimensão coletiva, que precisa ser considerada e discutida. As autoras exemplificam afirmando que a forma de compreender os fenômenos e as estratégias do gestalt-terapeuta podem auxiliar o usuário a encontrar suporte para lidar com fatores sociais, como a presença da violência em uma comunidade ou a escassez de recursos financeiros. Ressalta-se que não se pretende “psicologizar” questões sociais, e sim colaborar para abertura de um horizonte de possibilidades para o sujeito, o que pode acontecer em consonância com o trabalho interdisciplinar. Portanto, entende-se que o conhecimento das teorias, como o Pensamento Sistêmico e a gestalt-terapia, que embasam o trabalho do psicólogo em diferentes âmbitos e das questões relacionadas à infância e à adolescência pode auxiliar não só em uma avaliação psicológica de qualidade e que englobe aspectos pessoais, relacionais e contextuais, mas também contribuir para o apoio matricial e para o sistema de referência e contrarreferência, além de realizar uma clínica ampliada.

Durante a experiência de estágio no CAPSi, notou-se a dificuldade de profissionais de diversos pontos da rede de atenção à saúde para identificar questões ligadas ao desenvolvimento da criança (períodos esperados para determinados acontecimentos, por exemplo) e para realizar um manejo clínico com crianças devido à linguagem predominantemente lúdica das mesmas. Além disso, a necessidade de engajar a família no processo de diagnóstico e de psicoterapia, compreender aspectos relacionados à escola e aos outros contextos em que a criança ou o adolescente estão inseridos também dificultavam a avaliação e intervenção. Muitas vezes, além de despreparo dos profissionais da área da Psicologia, não havia condições que permitam a realização de um trabalho individualizado e contextual na atenção básica, ponto da rede que geralmente realiza encaminhamentos para o CAPSi.

Alguns encaminhamentos realizados das unidades básicas de saúde para o CAPSi não foram embasados pela especificidade ou complexidade do sofrimento psíquico, e sim por dificuldades dos profissionais em lidarem com crianças e adolescentes ou por falta de estrutura da unidade para realizar atendimentos de diversos tipos para sujeitos com essa faixa etária. Além disso, a limitação de recursos pessoais e de capacitação para lidar com processos de saúde mental prejudica o desenvolvimento de ações integrais pelas equipes da atenção básica (Brasil, 2003; Brasil, 2004b). Entende-se, portanto, que a articulação entre os pontos da rede de saúde, especialmente entre as equipes das unidades básicas e as de saúde mental, é um desafio e as teorias e ações da Psicologia podem contribuir para o fluxo da rede.

AÇÕES INTERDISCIPLINARES NO CAPSI

Considerando que os processos saúde-doença são complexos e requerem um trabalho em equipe, destaca-se o que foi observado e vivido com a equipe interdisciplinar do CAPSi. Desde o início da inserção no serviço, percebeu-se que todos os profissionais atuantes no local conhecem cada usuário, sua história, sua família e sua demanda. Notou-se também que não é só o profissional psicólogo que realiza atendimentos individuais, acolhe os sujeitos ou coordena grupos. O saber e a prática interdisciplinares propiciam ao profissional uma visão que vai além da especificidade do seu saber, tornando, dessa forma, sua atuação ampla e contextualizada (Böing & Crepaldi, 2010). Dentre as ações interdisciplinares desenvolvidas no CAPSi, foi possível participar da coordenação de grupos com os profissionais de todas as disciplinas (psicologia, enfermagem, psiquiatria e serviço social), bem como de discussões de casos em equipe.

Na nossa percepção e observação, todos os profissionais exercem as mesmas atividades na função de coordenação de grupos, porém o manejo e a perspectiva das quais estão partindo são distintas. Por exemplo, a partir de algumas situações trazidas pelos adolescentes no Grupo de Psicoterapia, a intervenção escolhida pela psiquiatra diferenciava-se da criada pela estagiária de Psicologia, considerando os diferentes saberes, que se complementam e são importantes para o trabalho desenvolvido no CAPSi. Considera-se que as intervenções realizadas pela médica buscavam identificar elementos diagnósticos, verificar a evolução do caso e acompanhar a medicação prescrita. Já as colocações da estagiária de Psicologia visavam articular os sintomas e seus significados ao contexto de vida e à história do adolescente e de sua família. Em alguns momentos, a médica também realizava articulações das queixas e das situações com as histórias de vida e as relações estabelecidas pelos usuários, e a estagiária atentava-se a questões diagnósticas. Isso mostra que além de as intervenções se complementarem, elas têm aspectos em comum. Nos outros grupos – de crianças, de adolescentes e de família – também foram percebidas as distinções e complementaridade de manejo entre os diferentes profissionais.

Notamos que embora tenham sido vivenciadas situações em que as psicólogas realizavam as mesmas atividades que as outras profissionais, e que todos possam atuar no caso, existem modos específicos de o psicólogo trabalhar, nos quais a escuta e o olhar são diferenciados, à medida que consideram e enfatizam os significados que os sujeitos dão às suas experiências e os contextos em que cada vivência ocorre. A Psicologia, enquanto modo de atuação, assim como outras disciplinas, possui uma compreensão empática do sujeito e da situação em que ele vive, é sensível aos sentimentos e às significações pessoais que o sujeito vivencia a cada momento (Moreira & Torres, 2013). E a partir da compreensão de aspectos intrapsíquicos e interrelacionais, buscamos entender a perspectiva sob a qual a criança e o adolescente percebem o que acontece com eles, ao mesmo tempo em que procura identificar e fortalecer recursos pessoais e relacionais para ampliar a sua compreensão do que está acontecendo em sua vida. Dessa forma, “perceber de maneira empática é perceber o mundo subjetivo do outro ‘como se’ fôssemos essa pessoa, sem, contudo, jamais perder de vista que se trata de uma situação análoga, ‘como se’” (Rogers, 1977, p. 179 citado por Moreira & Torres, 2013), isto é, não se pode efetivamente ser a outra pessoa para percebermos o seu mundo, porém é possível apenas avaliá-lo como se fosse ela.

Durante as reuniões de equipe para discussão de casos, percebemos diferenças de perspectivas e discordâncias quanto à condução do caso e das atividades que constam no PTS do usuário. Nesse caso, pensamos que a Teoria da Pragmática da Comunicação Humana (Watzlawick et al, 1983) contribui para compreender as relações entre os profissionais e auxiliar a promover uma comunicação clara, saudável e sem desqualificações. É importante também compreender de que lugar e em que contexto os discursos são produzidos, bem como entender os aspectos pessoais de cada um, a história das relações entre os membros da equipe e do próprio serviço e as relações que são estabelecidas, no momento presente, entre os profissionais.

O primeiro axioma da teoria da pragmática da comunicação humana (Vasconcellos, 2007; Watzlawick et al, 1983) pressupõe que todo comportamento tem valor de mensagem, e como é impossível “não se comportar”, também não é possível “não comunicar”. A partir deste axioma, apresentam-se as possibilidades de confirmação, rejeição ou desconfirmação do outro na comunicação. A confirmação do outro pode ocorrer se concordamos ou não com o conteúdo que ele nos comunica, ou seja, a aceitação ou a rejeição é do conceito, da opinião, da atitude ou da perspectiva do outro. Em ambos os casos, há o reconhecimento e a qualificação do outro, como pessoa. No caso da desconfirmação, entretanto, uma pessoa desqualifica a outra enquanto pessoa (“o eu dela”) para se autodefinir e fazer prevalecer a sua perspectiva. São exemplos de desqualificações, o uso de deboches, ironias, arrogância ou mesmo a atitude de ignorar a existência do outro.

O segundo axioma da teoria pressupõe que toda comunicação tem aspecto de conteúdo e de relação, ou seja, além da mensagem em si (conteúdo), a comunicação também expressa a relação entre as pessoas, dá indícios da história da relação entre elas e também sobre a relação atual e futura (Vasconcellos, 2007; Watzlawick et al, 1983). A partir destes dois axiomas, é de fundamental importância compreender a diferença entre a capacidade de uma pessoa rejeitar o conteúdo da mensagem e, ainda assim, confirmar o outro, legitimá-lo como pessoa e de, por outro lado, usar da desqualificação da pessoa, que é fonte de mensagem, para fazer prevalecer a sua opinião, pois esse aspecto influencia diretamente as relações pessoais. Quando a relação entre as pessoas se caracteriza pelo respeito mútuo, pela cooperação, afetos positivos, o aspecto relacional da comunicação fica em um “segundo plano” e se destaca o aspecto do conteúdo, ou seja, as pessoas são capazes de se confirmarem mutuamente e podem se concentrar no “debate do conteúdo em si” (na discussão do caso clínico, por exemplo). Por outro lado, se há problemas na relação entre os profissionais, o foco da comunicação se concentra no aspecto relacional e o conteúdo cai para um “segundo plano”, isto é, aparentemente estão discutindo sobre o conteúdo, mas o que está em jogo é a disputa relacional.

Percebemos, na experiência de estágio no CAPSi, que em momentos em que se discordava do conteúdo e se mantinha a confirmação do outro, as interações eram mais saudáveis e a condução dos casos, mais eficiente. Isso permitiu melhor compreensão não só do diagnóstico da criança e do adolescente, mas também da função do sintoma para o sistema familiar, o que possibilitou pensar em orientações para a escola e para os pais e criar estratégias de intervenção da equipe com o usuário. Notamos que as relações entre a equipe também influenciaram no processo psicoterapêutico da criança e na construção do PTS.

Os aspectos da Teoria da Pragmática da Comunicação Humana também puderam colaborar com as ações intersetoriais, com o trabalho em conjunto com os demais pontos da rede de atenção à saúde e com o cuidado compartilhado. Assim como as relações entre os profissionais foram importantes para o trabalho em equipe interdisciplinar no serviço, o mesmo aconteceu com a articulação entre setores e entre diferentes pontos da rede de saúde. Percebemos, nos casos compartilhados com a assistência social, seja com o centro de referência (CRAS) ou o centro de referência especializado (CREAS), que a comunicação foi fator fundamental não só para o estabelecimento das atribuições de cada serviço no caso, como também para cumprimento dos acordos. Em alguns casos que pudemos observar e acompanhar, o PTS do usuário no CAPSi foi criado a partir de combinações feitas em reuniões de discussão de caso com os serviços da assistência social, a atenção básica de saúde, a escola e as demais instituições envolvidas.

Portanto, constatamos a relevância das teorias e práticas da Psicologia para as ações interdisciplinares, intersetoriais e para o trabalho em rede, envolvendo principalmente a atenção básica. Notamos também que algumas atividades e funções das diferentes profissões no CAPSi são semelhantes, no entanto há algumas especificidades do psicólogo. Não se trata de eleger qual perspectiva ou conhecimento está certo ou é o melhor. O importante e enriquecedor é reconhecer as diferenças e perceber que elas se complementam e contribuem para compreensão do caso e elaboração das intervenções.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Entendemos que o pensamento sistêmico, a gestalt-terapia e práticas da Psicologia podem contribuir não só para as práticas específicas da profissão, como a psicoterapia e a avaliação psicológica, mas também para a qualidade das ações interdisciplinares e intersetoriais. À medida que se reconhece, valoriza e qualifica o trabalho do outro, mesmo discordando e percebendo as diferenças, relações saudáveis entre a equipe podem ser criadas e fortalecidas.

Notamos que o saber e a prática do psicólogo, com a sua escuta e olhar focados nos contextos das relações e significados atribuídos pelos sujeitos às suas experiências, com ferramentas teóricas e metodológicas específicas para compreensão de aspectos intrapsíquicos e inter-relacionais, contribuem para o desenvolvimento de uma relação empática que se propõe a perceber o mundo do sujeito a partir da perspectiva dele e de seu contexto, potencializando o processo de intervenção específica e interdisciplinar.

Compreendemos a importância da realização de um diagnóstico situacional e contextualizado e de colocar a doença entre parênteses, não a fim de negá-la, mas com intuito de colocar o foco no sujeito, no seu contexto e nas suas vivências. Destacamos a contribuição do pensamento sistêmico, enquanto epistemologia, e de teorias sistêmicas e da gestalt-terapia para o desenvolvimento de um trabalho que considere o sujeito de modo integral e suas necessidades específicas e singulares, de acordo com os princípios do SUS.


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Recebido em: 09/09/2016
Aprovado em: 22/02/2017
 


I Isabella Goulart Bittencourt: Psicóloga graduada pela Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Brasil. E-mail: isabellagoulartb@gmail.com

II Elisangela Böing: Professora Doutora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Brasil. E-mail: elisangelaboing@gmail.com

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