SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.26 número57Meios-irmãos e irmãos não consanguíneos: a fratria recomposta na perspectiva de padrastos/madrastasRumo a uma ética relacional para a prática terapêutica índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Nova Perspectiva Sistêmica

versão impressa ISSN 0104-7841

Nova perspect. sist. vol.26 no.57 São Paulo abr. 2017

 

CONVERSANDO COM A MÍDIA

 

O adulto ofensor sexualreflexões sobre o filme “O lenhador

   

 

Liana Fortunato CostaI e Matheus Farage FonsecaII

I Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica e Cultura, Universidade de Brasília (PSICC/PCL/IP/UnB), Brasília, DF, Brasil.

II Centro de Atendimento e Estudos Psicológicos, Universidade de Brasília (CAEP/UnB), Brasília, DF, Brasil.

 


 

 

Esse texto identifica aspectos do processo de responsabilização do ofensor sexual sobre as violências sexuais cometidas contra crianças e/ou adolescentes presentes no filme O Lenhador. O filme foi lançado em 2004 e teve a direção de Nicole Kasell e a produção de Lee Daniels. Pretende-se contribuir na discussão de uma parte essencial da intervenção frente a violência sexual contra crianças, adolescentes e também adultos, que é a atenção ao ofensor sexual, visando enfocar todo o circuito protetivo.

A sinopse do filme pode ser resumida assim: Walter cumpriu doze anos de regime fechado por abuso sexual de crianças, e foi solto. Encontra-se abandonado pela família e amigos, exceto por um cunhado, e recebe visitas somente de seu agente da condicional. Walter consegue um emprego em uma madeireira e lá conhece uma mulher com quem acaba se envolvendo sexualmente. Porém, sua atração por manter contatos sexuais com crianças ainda permanece. Acaba por morar próximo a uma escola, e o filme centra seu foco em sua luta interna em atender aos seus desejos ou rechaçá-los. Finalmente, Walter passa por duas importantes situações. A primeira é que ele conhece uma adolescente que tem sido abusada sexualmente, o que o ajuda a perceber a dor da menina. Na segunda, ele percebe a presença de um homem que está aliciando crianças na porta da escola e se questiona entre concordar ou proteger (Kasell & Daniels, 2004).

O ABUSO SEXUAL E O OFENSOR SEXUAL ADULTO

Desde o início do filme, fica evidente o principal aspecto do conflito expresso pelo protagonista que é a ambiguidade que permanece em seus pensamentos e comportamentos em relação ao reconhecimento do que fez, mesmo tendo sido condenado e cumprido pena em regime fechado. Sua saída do sistema prisional fechado indica seus limites dali à frente: vai ter um agente penitenciário acompanhando-o permanentemente; terá que ficar distante de escolas, e estará em medida condicional supervisionada. Outro ponto abordado logo no início é sua chegada ao trabalho, quando se percebe os preconceitos em relação ao ato cometido e os medos expressos pelas pessoas que o cercam. Essas observações são as reações que mais trazem desafios ao processo de reabilitação de ofensores sexuais (Marshall, 2007).

A dualidade entre seu desejo por crianças e sua dificuldade em se controlar é um dos pontos altos do filme, sugerindo uma tendência ao diagnóstico de pedofilia. Entretanto, a elaboração desse diagnóstico é extremamente complexo de ser concluído, pois não basta o cometimento de uma violência sexual contra crianças. A pedofilia é uma preferência sexual por crianças pré púberes, com a qual o indivíduo fantasia, sente desejo e atração sexual, excita-se por crianças e não tem interesse por adultos (Seto, 2009). Porém, é possível perceber que o protagonista sente desejo e luta contra esse desejo durante o filme. Em um diálogo com seu terapeuta, Walter diz que gostaria de ser normal, de conseguir se relacionar com uma criança sem sentir desejo sexual.

A RESPONSABILIZAÇÃO JURÍDICA

Somente a restrição da liberdade dos autores de violência sexual não é suficiente para que sejam responsabilizados e não reincidam no crime. Há evidências (Marshall, 2007) que o tratamento adequado de qualquer tipo de crime pode reduzir as taxas de reincidência. No filme, Walter tem que ser acompanhado por um terapeuta, com o qual fala sobre suas dificuldades em conviver com crianças. O tratamento faz parte da sua progressão penal e do seu processo de reabilitação. Marshall (2007) afirma que a passagem do ofensor pelo sistema prisional afeta substancialmente sua autoestima, e esse aspecto é um risco de aumento da reincidência do ato violento.

Um aspecto que sobressai é o contato do agente da liberdade condicional com Wal-ter, que tem a função de fazer o controle do seu cotidiano e de pontuar que as regras de conduta sejam seguidas, tais como se manter longe de crianças e observar com quais pessoas se relaciona. Do relacionamento desse agente ao contato com outras pessoas, o preconceito, a rejeição e a evitação de aproximação com o público e as instituições se fazem presente, tanto da parte do ofensor como da parte de pessoas em geral.

A conduta do agente policial com Walter, mesmo que se configure como autoritária, representa a interdição social que necessita estar presente, quando faltam os limites pessoais. Trata-se de controle externo, que, de uma maneira mais violenta ou não, aparece como uma provocação para o surgimento de controle sobre seus impulsos (Howells & Day, 1999). Este tema do autocontrole é fundamental para a ressocialização do ofensor, e o sistema justiça deve ser visto como parceiro no processo de reconstrução dos limites da sociabilidade.

É o próprio agente da condicional que traz a metáfora que dá nome ao filme, ao se referir ao conto Chapeuzinho Vermelho. O agente, ao relatar um episódio que investigou de extrema violência contra uma menina, diz que não existem caçadores no mundo real, que as crianças estão desprotegidas, à mercê de “monstros” como Walter, e que a qualquer momento ele voltará para prisão, porque reincidirá no crime.

A RESPONSABILIZAÇÃO PSICOEMOCIONAL E A INTERVENÇÃO

O protagonista do filme aparentemente tem uma preferência sexual por crianças, mora próximo a uma escola, e além disso, possui um histórico de diversos abusos sexuais. Esse conjunto de fatores sugere um alto risco de reincidência de Walter. Com uma avaliação bem feita é possível programar e realizar uma intervenção mais específica e eficiente. As intervenções podem ser em grupo ou individuais, e se forem em grupo, deve haver uma preocupação de que seja mais homogêneo possível, para que os estímulos e as provocações consigam abranger a todos os participantes. Durante o filme observam-se alvos de tratamento que podem ser trabalhados com Walter, segundo as indicações de Marshall (2007). Dentre os aspectos específicos da ofensa sexual, pode-se observar no protagonista: baixa autoestima; distorções cognitivas – expressas quando escreve no diário que, se as crianças entram no carro do ofensor, é porque elas querem, ou quando diz que nunca machucou suas vítimas –; suas fantasias e preferências por crianças – quando diz que gostaria de ser “normal”; seu autocontrole e autorregulação de impulsos; o padrão de ofensa, reconhecendo os comportamentos que o levam a cometer uma violência – a forma como se aproximou da adolescente no parque e iniciou o contato e o padrão de Candy, o ofensor que fica próximo ao colégio; os sinais de alerta; e possíveis grupos de suporte além da terapia. Além destes, também são alvos específicos a linha da vida, as habilidades de enfrentamento de problemas e intimidade e vínculo. Os aspectos relacionados à ofensa sexual também devem ser trabalhados quando presentes. Apesar de não tão visíveis em Walter, devem ser avaliados, como por exemplo: o uso de substâncias, visto que sempre bebe junto com o cunhado; manejo da raiva; e transtornos psíquicos e psiquiátricos. Também são alvos relacionados a violência familiar, o estilo parental, as habilidades cognitivas e as metas espirituais (Marshall, 2007).

“Quando serei normal?” é a pergunta que Walter faz ao terapeuta. Isso se dará quando ele puder perceber a si mesmo e aos outros em uma dimensão de igualdade humana. Nesse sentido, o gênero, e sua dimensão de dominação e controle, bem como uma consciência de que integramos uma sociedade sexista e adultocêntrica deve ser um tema presente em toda a intervenção (Artime, McCallum & Peterson, 2014). Principalmente na realidade brasileira, essa questão assume um papel fundamental na intervenção, quando a mulher ocupa um lugar de menos valia em relação ao homem, e a criança ainda é vista como propriedade dos adultos (Meneses, Stroher, Setubal, Wolff & Costa, 2016).

Um aspecto preocupante é a autoindulgência de Walter quando diz “eu nunca machuquei fisicamente nenhuma delas”, porque não tem consciência da relação de dominação, além da falta de compreensão das crianças sobre o verdadeiro significado da violência e da dificuldade da criança compreender que o contato sexual abusivo não é uma relação de afeto saudável. Marshall (2007) aponta a necessidade de se mudar o sistema de crenças do ofensor sexual, visto que esse sujeito sustenta em si mesmo crenças favoráveis a uma inversão de responsabilidade, isto é, a vítima é a responsável pela violência ou concorda com ela. Este ponto, a distorção cognitiva, é fundamental que esteja presente em qualquer intervenção. Trata-se de uma percepção alterada da realidade para que os sentimentos acerca dos próprios atos violentos sejam minimizados e, assim, se tornem aceitáveis, diminuindo o poder de incômodo que a culpabilidade e o sentimento de vergonha possuem (Marshall, 2007).

O filme apresenta, quase ao fim, o protagonista iniciando uma fase de conscientização de sua responsabilidade, quando começa a perceber os meninos, alunos da escola, sendo seguidos e assediados por um homem em um carro. A observação sobre a conduta de Candy (o homem que alicia as crianças) permite entender a mudança na distorção cognitiva de Walter e seu processo de conscientização sobre a violência do ato.



A REDE SOCIAL DE APOIO

O filme mostra um diálogo de Walter com seu cunhado que insere o tema das relações sociais e do pertencimento a uma rede de apoio. Este é um ponto muito importante no processo de responsabilização, pois após a saída do sistema prisional Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 57, p. 116-121, abril 2017.o ex-detento necessita de contatos que resgatem a afetividade e conectividade com seus pares, com membros da família e a sociedade. O diálogo inicial entre os dois mostra a difícil linha de separação entre manter-se longe da criança, que é uma exigência judicial, ou preservar os vínculos afetivos que iriam proporcionar apoio e proximidade ao agressor. Por outro lado, o cunhado se mostra muito ambíguo: quer exibir a filha para ele, falando de como as meninas são lindas e atraentes. Em um momento, Walter chega a perguntar ao cunhado se ele nunca sentiu atração pela filha, tendo como resposta uma reação violenta e ameaçadora.

Os fantasmas das fantasias sexuais precisam ser expressos (Mackaronis, Byrne & Strassberg, 2014). Refere-se a uma volta da normalidade nas relações que o ofensor tenha em sociedade. Há aproximadamente quarenta anos, havia muita reticência e descrença na possibilidade de reabilitação do ofensor sexual. Atualmente, existe uma perspectiva mais encorajante com relação ao oferecimento de intervenções visando à reintegração social desse sujeito.



RELAÇÕES AFETIVAS E SEXUAIS ESTÁVEIS

Walter inicia um contato sexual com uma mulher, Vicki, que se encontra em uma situação de exclusão social tanto quanto ele. Essa mulher acaba por confessar ter sido abusada sexualmente quando criança por seus irmãos (incesto). Essa confissão aponta na direção das pesquisas sobre vítimas de abuso sexual que têm índices semelhantes seja no contexto nacional ou no contexto internacional.

Ao saírem da prisão, a maioria retorna ao lar, retomando conflitos anteriores, e necessitando de orientação e de um espaço para discussão da adaptação necessária que se faz nesse momento. Marshall (2007) indica um ponto essencial para essa adaptação: ter contatos afetivos e poder vislumbrar uma vida sexual mais estável. Esse ponto constitui-se em um aspecto que atenua o risco de reincidência da violência sexual.

Há uma cena na qual Walter reproduz com Vicki o que fazia com as meninas abusadas: coloca a namorada no colo e a força a ficar presa e dominada. Esta cena apresenta uma perspectiva importante para o processo terapêutico, que é a tendência à repetição de padrões de relacionamentos violentos e coercitivos que caracterizaram a vida do ofensor sexual, no que diz respeito às suas relações afetivas sexuais, bem como às relações pregressas com pessoas com as quais tenha se vinculado. Muitos autores chamam atenção para a vivência de extrema violência que caracteriza a história de vida dos ofensores sexuais, seja física ou sexual (Artime et al., 2014; Fonseca, Borges, Stroher & Costa, submetido).

A VÍTIMA

O filme informa sobre várias vítimas: as vítimas de Walter, Vicki e a adolescente de quem ele finalmente se aproxima. A definição que esta adolescente faz de si mesma aponta um isolamento social e afetivo: não tem amigos, dispende seu tempo livro em uma atividade que aumenta seu isolamento, que é a observação de pássaros. Além disso, a adolescente se culpa, apresenta baixa autoestima – “eu não sou bonita” –, que são evidentes manifestações de consequência de sua vitimização sexual.

Walter e a adolescente dirigem-se a um local mais afastado, no qual ela costuma ir para a observação dos pássaros. Nesse momento, ele pede que ela se sente em seu colo. Inicialmente a adolescente recusa, porém, em razão da insistência de Walter, ela acaba por concordar e se submeter ao que ele quer. Então, há um diálogo que esclarece que a adolescente é uma possível vítima de Walter, mas que já se encontra na condição de vítima sexual de seu próprio pai. Walter pergunta o que a menina sente quando o pai pede para ela sentar em seu colo do mesmo modo que ele acabou de fazer. Nesse ponto, a adolescente se emociona e chora, revelando seu sofrimento com a situação de abuso por parte do pai, e que já deve perdurar por bom tempo. É essa emoção que ajuda Walter a compreender como ele e o pai abusador são violentos, e como o abuso é uma violência.

A ESCOLA

Enfim, é importante falar da escola, que é um personagem que fica o tempo todo ao fundo durante o filme. É devido a sua presença, e a das crianças que a frequentam, que boa parte da trama é construída. Porém, ela é colocada como passiva ao que acontece fora dos seus portões. O abusador Candy, como é chamado por Walter, age livremente, seduzindo e assediando as crianças, e a escola não se manifesta em momento algum. Permanece muda ao que acontece constantemente ao seu redor. Diferentemente do que é veiculado no filme, a escola tem um papel fundamental na observação de comportamentos que evidenciam o abuso sofrido, no apoio às crianças, adolescentes e familiares para que o abuso seja identificado, o silêncio quebrado e para que as providências sejam tomadas.

PARA FINALIZAR...

Assim, pode-se observar a riqueza de informações presentes no filme O Lenhador. A análise permitiu observar aspectos relacionados ao ofensor sexual, ao processo de responsabilização jurídica e psicoemocional, de intervenção e reabilitação e também à vítima do abuso sexual. Pode-se dizer que esse filme se apresenta como um ótimo recurso didático para compreensão do fenômeno da violência sexual, principalmente em relação à ótica do autor da violência. É importante lembrar que a violência sexual é um fenômeno complexo e multideterminado, exigindo atenção à todas as partes envolvidas, tanto na perspectiva de prevenção como de intervenção.


Referências

Artime, T. M., Mccallum, E. B., & Peterson, Z. D. (2014). Men’s Acknowledgement of Their Sexual Victimization Experiences. Psychology of Men & Masculinity, 15(3), 313-323. http://dx.doi.org/10.1037/a0033376.

Kasell, N. (2004). O Lenhador [Filme]. EUA: Independent Film.         [ Links ]

Fonseca, M. C. F., Borges, C. L., Stroher, L. M. C. & Costa, L. F. (Submetido) História de Vida de Autores de Violência Sexual.         [ Links ]

Howells, K., & D ay, A . (1999). Rehabilitation of Offenders: International Perspectives Applied to Australian Correctional Systems. Australian Institute of Criminology, 112. Disponível em http://aic.gov.au/documents/B/D/0/%7BBD027F93-A5CF-497C-B4A2-85B1987B4668%7Dti112.pdf. Acesso em 30/10/2016.         [ Links ]

Mackaronis, J. E., Byrne, P. M., & Strassberg, D. S. (2014) Assessing Sexual Interest in Adolescents Who Have Sexually Offended. Sexual Abuse: A Journal of Research and Treatment, 1-20. doi: 10.1177/1079063214535818        [ Links ]

Marshall, W . L . (2007) Treatment of Sexual Offenders and its Effects. In Aizawa, K. (Org.), Annual Report for 2006 and Resource Material Series No.72 (pp. 71-81). Tokyo: UNAFEI.         [ Links ]

Meneses, F . F . F ,; S troher, L . M . C., S etubal, C. B., W olff, L . S ., & Costa, L . F . (2016) Intervenção Psicossocial com o Adulto Autor de Violência Sexual Intrafamiliar contra Crianças e Adolescentes. Contextos Clínicos, 9(1), 98-108. doi: 10.4013/ctc.2016.91.08        [ Links ]

Seto, M. C. (2009). Pedophilia. Annual Review of Clinical Psychology, 5, 391-407. doi: http://dx.doi.org/10.1037/11639-000.         [ Links ]

I Liana Fortunato Costa: Psicóloga, Doutora em Psicologia Clínica, Docente Permanente do Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica e Cultura (PSICC/PCL/IP/UnB). Brasília, DF, Brasil. E-mail: lianaf@terra.com.br.

II Matheus Farage Fonseca: Psicólogo, Terapeuta Voluntário no Centro de Atendimento e Estudos Psicológicos da Universidade de Brasília (CAEP/UnB). Brasília, DF, Brasil. E-mail matheusfarage@gmail.com.

Creative Commons License